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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

15 de julho de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Política social — Igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional — Diretiva 2000/78/CE — Proibição de discriminação em razão de deficiência — Artigo 2.o, n.o 2, alínea a), — Artigo 4.o, n.o 1 — Artigo 5.o — Regulamentação nacional que prevê requisitos em matéria de acuidade auditiva dos funcionários prisionais — Incumprimento dos níveis mínimos de perceção sonora exigidos — Impossibilidade absoluta de manutenção em funções»

No processo C‑795/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia), por Decisão de 24 de outubro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de outubro de 2019, no processo

XX

contra

Tartu Vangla,

sendo intervenientes:

Justiitsminister,

Tervise ja tööminister,

Õiguskantsler,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, A. Kumin, T. von Danwitz (relator), P. G. Xuereb e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação de XX, por K. Hanni, vandeadvokaat,

–        em representação do Õiguskantsler, por O. Koppel,

–        em representação do Governo helénico, por E.‑M. Mamouna, A. Magrippi e A. Dimitrakopoulou, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por D. Martin e E. Randvere, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 25 de novembro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional (JO 2000, L 303, p. 16).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe XX ao Tartu Vangla (Estabelecimento Prisional de Tartu, Estónia) na sequência da decisão do diretor desse estabelecimento de despedir XX por não preenchimento dos requisitos em matéria de acuidade auditiva dos funcionários prisionais.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 16, 18, 20, 21 e 23 da Diretiva 2000/78 enunciam:

«(16)      A adoção de medidas de adaptação do local de trabalho às necessidades das pessoas deficientes desempenha um papel importante na luta contra a discriminação em razão da deficiência.

[…]

(18)      A presente diretiva não poderá ter por efeito, designadamente, que as Forças Armadas, os serviços de polícia, prisionais ou de socorro sejam obrigados a recrutar ou a manter no seu posto de trabalho pessoas sem as capacidades necessárias para o exercício de todas as funções que possam ter de exercer, no âmbito do objetivo legítimo de manter a operacionalidade dos respetivos serviços.

[…]

(20)      É necessário prever medidas apropriadas, ou seja, medidas eficazes e práticas destinadas a adaptar o local de trabalho em função da deficiência, por exemplo, adaptações das instalações ou dos equipamentos, dos ritmos de trabalho, da atribuição de funções, ou da oferta de meios de formação ou de enquadramento.

(21)      Para determinar se as medidas em causa são fonte de encargos desproporcionados, dever‑se‑ão considerar, designadamente, os custos financeiros e outros envolvidos, a dimensão e os recursos financeiros da organização ou empresa e a eventual disponibilidade de fundos públicos ou de outro tipo de assistência.

[…]

(23)      Em circunstâncias muito limitadas, podem justificar‑se diferenças de tratamento sempre que uma característica relacionada com a religião ou as convicções, com uma deficiência, com a idade ou com a orientação sexual constitua um requisito genuíno e determinante para o exercício da atividade profissional, desde que o objetivo seja legítimo e o requisito proporcional. Essas circunstâncias devem ser mencionadas nas informações fornecidas pelos Estados‑Membros à Comissão.»

4        Nos termos do artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto»:

«A presente diretiva tem por objeto estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão da religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual, no que se refere ao emprego e à atividade profissional, com vista a pôr em prática nos Estados‑Membros o princípio da igualdade de tratamento.»

5        O artigo 2.o da referida diretiva, intitulado «Conceito de discriminação», dispõe:

«1.      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “princípio da igualdade de tratamento” a ausência de qualquer discriminação, direta ou indireta, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o

2.      Para efeitos do n.o 1:

a)      Considera‑se que existe discriminação direta sempre que, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o, uma pessoa seja objeto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável;

[…]

5.      A presente diretiva não afeta as medidas previstas na legislação nacional que, numa sociedade democrática, sejam necessárias para efeitos de segurança pública, defesa da ordem e prevenção das infrações penais, proteção da saúde e proteção dos direitos e liberdades de terceiros.»

6        O artigo 3.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», enuncia no seu n.o 1:

«Dentro dos limites das competências atribuídas à [União Europeia], a presente diretiva é aplicável a todas as pessoas, tanto no setor público como no privado, incluindo os organismos públicos, no que diz respeito:

a)      Às condições de acesso ao emprego, ao trabalho independente ou à atividade profissional, incluindo os critérios de seleção e as condições de contratação, seja qual for o ramo de atividade e a todos os níveis da hierarquia profissional, incluindo em matéria de promoção;

[…]

c)      Às condições de emprego e de trabalho, incluindo o despedimento e a remuneração;

[…]»

7        O artigo 4.o da Diretiva 2000/78, intitulado «Requisitos para o exercício de uma atividade profissional», prevê no seu n.o 1:

«Sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 2.o, os Estados‑Membros podem prever que uma diferença de tratamento baseada numa característica relacionada com qualquer dos motivos de discriminação referidos no artigo 1.o não constituirá discriminação sempre que, em virtude da natureza da atividade profissional em causa ou do contexto da sua execução, essa característica constitua um requisito essencial e determinante para o exercício dessa atividade, na condição de o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.»

8        O artigo 5.o desta diretiva, sob a epígrafe «Adaptações razoáveis para as pessoas deficientes», dispõe:

«Para garantir o respeito do princípio da igualdade de tratamento relativamente às pessoas deficientes, são previstas adaptações razoáveis. Isto quer dizer que a entidade patronal toma, para o efeito, as medidas adequadas, em função das necessidades numa situação concreta, para que uma pessoa deficiente tenha acesso a um emprego, o possa exercer ou nele progredir, ou para que lhe seja ministrada formação, exceto se essas medidas implicarem encargos desproporcionados para a entidade patronal. Os encargos não são considerados desproporcionados quando forem suficientemente compensados por medidas previstas pela política do Estado‑Membro em causa em matéria de pessoas deficientes.»

 Direito estónio

9        O § 146 da Vangistusseadus (Lei Relativa à Reclusão) dispõe:

«(1)      O objetivo do controlo médico do funcionário prisional é a deteção de problemas de saúde causados pelo serviço, a redução e a eliminação de riscos de saúde e a verificação da inexistência de problemas de saúde que impeçam o funcionário prisional de cumprir as suas obrigações profissionais.

[…]

(4)      As regras relativas aos requisitos e ao controlo em matéria de saúde dos funcionários prisionais e aos requisitos relativos ao conteúdo e à forma do atestado médico estão previstas por regulamento do Governo da República da Estónia.»

10      O Vabariigi Valitsuse määrus nr 12 «Vanglateenistuse ametniku tervisenõuded ja tervisekontrolli kord ning tervisetõendi sisu ja vormi nõuded» (Regulamento n.o 12 do Governo da República da Estónia, Relativo aos Requisitos e ao Controlo em Matéria de Saúde dos Funcionários Prisionais e aos Requisitos Relativos ao Conteúdo e à Forma do Atestado Médico), de 22 de janeiro de 2013 (a seguir «Regulamento n.o 12»), adotado com base no § 146, n.o 4, da Lei Relativa à Reclusão, entrou em vigor em 26 de janeiro de 2013.

11      O § 3 deste regulamento prevê:

«(1)      A acuidade visual do funcionário prisional deve cumprir os seguintes requisitos:

1)      A acuidade visual com correção não deve ser nem inferior a 0,6 num olho nem inferior a 0,4 no outro olho;

2)      Um campo visual normal, uma perceção normal das cores e uma visão noturna normal.

(2)      O funcionário prisional é autorizado a usar lentes de contacto e óculos.»

12      Nos termos do § 4 do referido regulamento:

«(1)      O nível de acuidade auditiva do funcionário prisional deve ser suficiente para comunicar por telefone e para ouvir o som de um alarme e as mensagens de rádio.

(2)      No controlo médico, a perda auditiva do funcionário prisional não deve ultrapassar, no ouvido com melhor audição, 30 dB para as frequências de 500 até 2 000 Hz e 40 dB para as frequências de 3 000 até 4 000 Hz, e, no ouvido com pior audição, 40 dB para as frequências de 500 até 2 000 Hz e 60 dB para as frequências de 3 000 até 4 000 Hz.»

13      O § 5 do mesmo regulamento dispõe:

«(1)      A lista dos problemas de saúde que impedem o funcionário prisional de cumprir as suas obrigações profissionais, que deve ser observada na apreciação do estado de saúde do funcionário prisional, está prevista no anexo 1.

(2)      A existência de um impedimento médico absoluto opõe‑se a que uma pessoa exerça as funções de funcionário prisional ou ingresse numa formação preparatória para a profissão de funcionário prisional. […]»

14      O anexo 1 do Regulamento n.o 12 prevê a lista dos problemas de saúde que impedem o funcionário prisional de cumprir as suas obrigações profissionais. Entre os «impedimentos médicos», a «perda auditiva abaixo da norma exigida» é classificada como um impedimento médico «absoluto».

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

15      O recorrente no processo principal esteve empregado no Estabelecimento Prisional de Tartu (Estónia) como funcionário prisional durante cerca de quinze anos. Trabalhou como guarda, a partir de 2 de dezembro de 2002, no departamento de «Reclusão» deste estabelecimento e, seguidamente, como guarda no departamento de «Vigilância», a partir de 1 de junho de 2008. Neste último posto, as suas obrigações incluíam, entre outras, a vigilância, de acordo com as instruções, de pessoas sob vigilância eletrónica, através de um sistema de controlo, bem como a transmissão de informações sobre estas pessoas, a monitorização de dispositivos de controlo e de sinalização, a reação e a comunicação de informações, designadamente em caso de alarme, e a verificação de violações do regulamento interno do estabelecimento prisional.

16      Um atestado médico de 4 de abril de 2017 certificou que o nível de perceção sonora no ouvido esquerdo do recorrente no processo principal cumpria as exigências do Regulamento n.o 12, ao passo que o do seu ouvido direito era de 55 a 75 decibéis (dB) para as frequências entre 500 e 2 000 Hertz (Hz). Segundo o recorrente no processo principal, tratava‑se de uma deficiência auditiva que existia desde a infância.

17      Por Decisão de 28 de junho de 2017, o recorrente no processo principal foi despedido pelo diretor do Estabelecimento Prisional de Tartu em conformidade com as disposições pertinentes do direito estónio, incluindo, nomeadamente, o § 5 daquele regulamento, devido à não conformidade da sua acuidade auditiva com os níveis mínimos de perceção sonora exigidos pelo referido regulamento.

18      O recorrente no processo principal interpôs um recurso para o Tartu Halduskohus (Tribunal Administrativo de Tartu, Estónia) com vista à declaração da ilegalidade desse despedimento e à obtenção de uma indemnização, alegando que o Regulamento n.o 12 incluía uma discriminação em razão de deficiência contrária à Põhiseadus (Constituição) e à regulamentação nacional em matéria de igualdade de tratamento. Foi negado provimento a esse recurso por Sentença de 14 de dezembro de 2017, com o fundamento, em especial, de que o requisito em matéria do nível mínimo de perceção sonora previsto no Regulamento n.o 12 constituía uma medida necessária e justificada para garantir que os funcionários prisionais no ativo pudessem cumprir todas as suas missões.

19      Por Acórdão de 11 de abril de 2019, o Tartu Ringkonnakohus (Tribunal de Recurso de Tartu, Estónia) deu provimento ao recurso entretanto interposto pelo recorrente no processo principal, anulou aquela sentença, declarou a ilegalidade da decisão de despedimento e condenou o Estabelecimento Prisional de Tartu no pagamento de uma indemnização.

20      Esse órgão jurisdicional considerou que as disposições do Regulamento n.o 12 relativas às exigências em matéria de acuidade auditiva eram contrárias ao princípio geral da igualdade consagrado na Constituição. Segundo ele, o referido regulamento era, além disso, contrário ao princípio da proteção da confiança legítima, igualmente consagrado na Constituição. Por conseguinte, decidiu não aplicar essas disposições ao processo que lhe foi submetido. Decidiu igualmente dar início a um processo judicial de fiscalização da constitucionalidade das referidas disposições no órgão jurisdicional de reenvio, o Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia).

21      Este último explica que o Justiitsminister (Ministro da Justiça, Estónia) e o Estabelecimento Prisional de Tartu alegam que o Regulamento n.o 12, mais precisamente o seu anexo 1, é conforme com a Constituição e que a necessidade de garantir a segurança das pessoas e a ordem pública justificam os níveis mínimos de perceção sonora previstos por este regulamento, bem como a proibição do recurso a um aparelho auditivo para cumprir esses requisitos. Com efeito, o funcionário prisional deve estar em condições de desempenhar todas as tarefas para que foi formado e prestar assistência, se necessário, à polícia, pelo que a acuidade auditiva do funcionário prisional deve ser suficiente para garantir, sem o auxílio de uma prótese auditiva, uma comunicação clara e sem risco com os seus colegas, em qualquer circunstância.

22      O órgão jurisdicional de reenvio salienta igualmente que a obrigação de tratar as pessoas com deficiência da mesma maneira que as outras pessoas que se encontram numa situação comparável e sem discriminação resulta não só da Constituição mas também do direito da União, nomeadamente do artigo 21.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e das disposições da Diretiva 2000/78.

23      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio indica, remetendo para o Acórdão de 13 de novembro de 2014, Vital Pérez (C‑416/13, EU:C:2014:2371, n.os 43 a 45), que a preocupação de assegurar o caráter operacional e o bom funcionamento dos serviços de polícia, prisionais ou de socorro constitui um objetivo legítimo, suscetível de justificar uma diferença de tratamento. No entanto, importa verificar se a regulamentação nacional em causa no processo principal impôs uma exigência proporcionada à luz do objetivo prosseguido. Ora, nem a redação desta diretiva nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça permitem retirar conclusões claras sobre este ponto.

24      Nestas condições, o Riigikohus (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 2.o, n.o 2, em conjugação com o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva [2000/78], ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições [de uma] legislação nacional que preveem que uma acuidade auditiva inferior ao nível mínimo exigido constitui um impedimento absoluto ao exercício da atividade de funcionário prisional e que não permitem a utilização de dispositivos de correção para avaliar o cumprimento dos requisitos de audição?»

 Quanto à questão prejudicial

25      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 2, e o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2000/78 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que prevê uma impossibilidade absoluta de manter em funções um funcionário prisional cuja acuidade auditiva não corresponde aos níveis mínimos de perceção sonora fixados por essa regulamentação, sem autorizar a utilização de dispositivos de correção para efeitos de avaliação do cumprimento dos requisitos em matéria de acuidade auditiva.

26      A título preliminar, importa recordar que, resulta tanto do título e do preâmbulo como do conteúdo e da finalidade da Diretiva 2000/78 que esta visa estabelecer um quadro geral para assegurar a todas as pessoas a igualdade de tratamento «no emprego e na atividade profissional», proporcionando‑lhes uma proteção eficaz contra as discriminações baseadas num dos motivos enumerados no seu artigo 1.o, entre os quais figura a deficiência (Acórdãos de 19 de setembro de 2018, Bedi, C‑312/17, EU:C:2018:734, n.o 28 e jurisprudência referida, e de 8 de outubro de 2020, Universitatea «Lucian Blaga» Sibiu e o., C‑644/19, EU:C:2020:810, n.o 30).

27      Quanto à aplicabilidade desta diretiva, à luz das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, não contestadas no Tribunal de Justiça, o Regulamento n.o 12 diz respeito às condições de contratação e de despedimento, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alíneas a) e c), da referida diretiva, de um funcionário prisional e está, consequentemente, abrangida pelo âmbito de aplicação desta última.

28      No que respeita, em primeiro lugar, à questão de saber se uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal institui uma diferença de tratamento em razão de deficiência, há que recordar que, nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2000/78, para efeitos desta última, entende‑se por «princípio da igualdade de tratamento» a ausência de qualquer discriminação, direta ou indireta, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o da mesma diretiva. O artigo 2.o, n.o 2, alínea a), desta diretiva especifica que se considera que existe discriminação direta sempre que, por motivo de deficiência, uma pessoa seja objeto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável.

29      No caso em apreço, por força do Regulamento n.o 12, especialmente do seu artigo 4.o e anexo 1, as pessoas com um nível de acuidade auditiva reduzido, inferior aos níveis mínimos de perceção sonora exigidos, não podem ser contratadas ou mantidas em funções como funcionário prisional. Por conseguinte, são objeto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outras pessoas em situação comparável, a saber, os outros trabalhadores empregados como funcionários prisionais cujo nível de acuidade auditiva cumpre essas normas.

30      Daqui resulta que esse regulamento cria uma diferença de tratamento diretamente baseada na deficiência, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2000/78.

31      No que respeita, em segundo lugar, à questão de saber se essa diferença de tratamento pode ser justificada com base no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2000/78, importa recordar que, segundo os próprios termos desta disposição, os Estados‑Membros podem prever que uma diferença de tratamento baseada numa característica relacionada com qualquer dos motivos de discriminação referidos no artigo 1.o desta diretiva não constituirá discriminação sempre que, em virtude da natureza da atividade profissional em causa ou do contexto da sua execução, essa característica constitua um requisito essencial e determinante para o exercício dessa atividade, na condição de o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.

32      O Tribunal de Justiça declarou que não é o motivo em que se baseia a diferença de tratamento, mas uma característica relacionada com esse motivo, que deve constituir esse requisito profissional essencial e determinante (Acórdão de 15 de novembro de 2016, Salaberria Sorondo, C‑258/15, EU:C:2016:873, n.o 33 e jurisprudência referida).

33      Na medida em que permite derrogar o princípio da não discriminação, o artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva, lido à luz do considerando 23 dessa diretiva, que se refere a «circunstâncias muito limitadas» que podem justificar diferenças de tratamento, deve ser objeto de interpretação estrita (v., neste sentido, Acórdão de 13 de setembro de 2011, Prigge e o., C‑447/09, EU:C:2011:573, n.o 72 e jurisprudência referida).

34      A este respeito, importa salientar que o considerando 18 da Diretiva 2000/78 especifica que a diretiva não poderá ter por efeito que os serviços prisionais sejam obrigados a recrutar ou a manter no seu posto de trabalho pessoas sem as capacidades necessárias para o exercício de todas as funções que possam ter de exercer, no âmbito do objetivo legítimo de manter a operacionalidade dos respetivos serviços.

35      A preocupação de assegurar o caráter operacional e o bom funcionamento desses serviços constitui assim um objetivo legítimo na aceção do artigo 4.o, n.o 1, dessa diretiva (v., por analogia, Acórdão de 13 de novembro de 2014, Vital Pérez, C‑416/13, EU:C:2014:2371, n.o 44).

36      Além disso, de acordo com o artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 2000/78, esta não afeta as medidas previstas na legislação nacional que, numa sociedade democrática, sejam necessárias para efeitos de segurança pública, defesa da ordem e prevenção das infrações penais, proteção da saúde e proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

37      Quanto ao objetivo prosseguido pela regulamentação nacional em causa no processo principal, resulta do pedido de decisão prejudicial que, ao prever, no seu artigo 4.o e anexo 1, níveis mínimos de perceção sonora cujo incumprimento constitui um impedimento médico absoluto ao exercício das funções de funcionário prisional, esse regulamento visa preservar a segurança das pessoas e a ordem pública, garantindo que os funcionários prisionais estejam fisicamente em condições de desempenhar todas as tarefas que lhes incumbem.

38      Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, do referido regulamento, a acuidade auditiva do funcionário prisional deve, assim, ser suficiente para comunicar por telefone e para ouvir o som de um alarme e mensagens de rádio.

39      Como salientou o advogado‑geral no n.o 45 das suas conclusões, a obrigação de ouvir corretamente e, portanto, de satisfazer um certo nível de acuidade auditiva decorre das funções de funcionário prisional, conforme descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, este expôs que a vigilância dos reclusos implica, designadamente, estar em condições de detetar e reagir a perturbações que se manifestam de forma sonora, de ouvir o disparo de alarmes, de poder comunicar com os outros funcionários através de aparelhos de comunicação e, especialmente, em situações barulhentas ou de conflitos, eventualmente físicos, em caso de violações por parte dos reclusos ao regulamento interno do estabelecimento prisional. Resulta, além disso, destas mesmas indicações que uma obrigação de prestar assistência à polícia, à qual se aplicam os mesmos requisitos em matéria de acuidade auditiva, pode ser imposta a qualquer funcionário prisional.

40      Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que o facto de se possuir capacidades físicas específicas pode ser considerado um «requisito essencial e determinante» na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2000/78 para o exercício de determinadas profissões, como as de bombeiro ou funcionário prisional (v., neste sentido, Acórdãos de 12 de janeiro de 2010, Wolf, C‑229/08, EU:C:2010:3, n.o 40; de 13 de novembro de 2014, Vital Pérez, C‑416/13, EU:C:2014:2371, n.os 40 e 41; e de 15 de novembro de 2016, Salaberria Sorondo, C‑258/15, EU:C:2016:873, n.o 36).

41      Por conseguinte, devido à natureza das funções de funcionário prisional e às condições do seu exercício, o facto de a acuidade auditiva dever satisfazer um nível mínimo de perceção sonora determinado pela regulamentação nacional pode ser considerado um «requisito essencial e determinante», na aceção do referido artigo 4.o, n.o 1, para o exercício da profissão de funcionário prisional.

42      Uma vez que o Regulamento n.o 12 visa preservar a segurança das pessoas e a ordem pública, deve considerar‑se que este regulamento prossegue objetivos legítimos, como resulta dos n.os 36 e 37 do presente acórdão. Nestas condições, importa ainda verificar se o requisito previsto neste regulamento, no seu artigo 4.o e anexo 1, segundo o qual a acuidade auditiva do funcionário prisional deve cumprir níveis mínimos de perceção sonora, sem que seja autorizada a utilização de dispositivos de correção durante a avaliação do cumprimento desses níveis, e cujo incumprimento constitui um impedimento médico absoluto ao exercício das suas funções, que lhe põe termo e, consequentemente, pode conduzir ao seu despedimento é proporcionado. Por conseguinte, há que examinar se este requisito é adequado para garantir a realização desses objetivos e não excede o necessário para o alcançar (v., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2014, Vital Pérez, C‑416/13, EU:C:2014:2371, n.o 45).

43      No que respeita, antes de mais, ao caráter adequado do requisito referido no número anterior para garantir a realização dos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 12, relativos à manutenção da segurança das pessoas e da ordem pública, pode aceitar‑se que a fixação de um nível mínimo de perceção sonora para o exercício das funções de funcionário prisional sem a utilização de dispositivos de correção da audição permite assegurar que este último estará em condições de reagir aos alarmes sonoros ou a uma eventual agressão e de prestar assistência à polícia sem o risco de ser impedido, se for o caso, pela presença, deterioração ou perda de um aparelho auditivo.

44      Todavia, importa recordar que uma regulamentação nacional só é apta a garantir a realização do objetivo invocado se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma forma coerente e sistemática (Acórdãos de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C‑341/08, EU:C:2010:4, n.o 53 e jurisprudência referida, e de 21 de janeiro de 2021, INSS, C‑843/19, EU:C:2021:55, n.o 32).

45      Ora, resulta das indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial que o cumprimento dos níveis mínimos de perceção sonora fixados pelo Regulamento n.o 12 é avaliado sem possibilidade de o funcionário prisional em causa utilizar, nessa ocasião, uma prótese auditiva, ao passo que, na avaliação do cumprimento das normas que prevê em matéria de acuidade visual, o funcionário pode recorrer a dispositivos de correção, como lentes de contacto ou óculos. Ora, a utilização, a perda ou a deterioração de lentes de contacto ou de óculos é também suscetível de dificultar o exercício das suas funções e de criar para um funcionário prisional riscos comparáveis aos resultantes da utilização, da perda ou da deterioração de um aparelho auditivo, nomeadamente numa situação de conflito físico com o qual o referido funcionário seja confrontado.

46      Seguidamente, no que respeita ao caráter necessário deste requisito para garantir a realização dos objetivos, relativos à manutenção da segurança das pessoas e da ordem pública, prosseguidos pelo Regulamento n.o 12, importa recordar que o incumprimento dos níveis mínimos de perceção sonora fixados por este regulamento constitui um impedimento médico que inibe de forma absoluta o exercício das funções de funcionário prisional. Estes níveis aplicam‑se a todos os funcionários prisionais, sem possibilidade de derrogação, independentemente do estabelecimento a que estejam afetos ou do posto que ocupam. Por outro lado, o referido regulamento não permite uma avaliação individual da capacidade do funcionário prisional para desempenhar as funções essenciais dessa profissão, não obstante a deficiência auditiva que apresenta.

47      Ora, como resulta dos n.os 15 e 39 do presente acórdão, algumas das funções desses funcionários consistem em vigiar pessoas colocadas sob vigilância eletrónica através de um sistema de controlo e monitorizar dispositivos de controlo e de sinalização, sem implicar contactos frequentes com os reclusos. Além disso, resulta do pedido de decisão prejudicial que o Regulamento n.o 12 não tem em conta o facto de a deficiência auditiva poder ser corrigida através de próteses auditivas, que podem ser miniaturizadas, usadas no interior do ouvido, ou mesmo colocadas num auricular.

48      Além disso, convém recordar que, nos termos do artigo 5.o da Diretiva 2000/78, lido à luz dos considerandos 20 e 21 desta diretiva, a entidade patronal é obrigada a tomar as medidas adequadas, em função das necessidades numa situação concreta, para que uma pessoa deficiente tenha acesso a um emprego, o possa exercer ou nele progredir, exceto se essas medidas implicarem encargos desproporcionados para a entidade patronal. Com efeito, nos termos do considerando 16 dessa diretiva, a adoção de medidas de adaptação do local de trabalho às necessidades das pessoas deficientes desempenha um papel importante na luta contra a discriminação em razão de deficiência. A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «adaptações razoáveis» deve ser entendido de uma forma ampla, no sentido de que visa a eliminação das diversas barreiras à participação plena e efetiva das pessoas deficientes na vida profissional em condições de igualdade com os outros trabalhadores. Por outro lado, o considerando 20 contém uma lista de adaptações razoáveis de ordem material, organizacional ou educativa que não é exaustiva (v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2013, HK Danmark, C‑335/11 e C‑337/11, EU:C:2013:222, n.os 54 e 56).

49      Essa obrigação é igualmente consagrada pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2010/48/CE do Conselho, de 26 de novembro de 2009 (JO 2010, L 23, p. 35), cujas disposições podem ser invocadas para efeitos de interpretação das disposições da Diretiva 2000/78, de modo que esta última deve ser objeto, tanto quanto possível, de uma interpretação conforme com a mesma convenção (Acórdão de 11 de setembro de 2019, Nobel Plastiques Ibérica, C‑397/18, EU:C:2019:703, n.o 40).

50      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que esta diretiva se opõe a um despedimento baseado em deficiência que, atendendo à obrigação de prever adaptações razoáveis para as pessoas deficientes, não seja justificado pelo facto de a pessoa em causa não ser competente, capaz ou disponível para executar as funções essenciais do seu posto (v., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2006, Chacón Navas, C‑13/05, EU:C:2006:456, n.o 52).

51      No caso em apreço, como resulta das indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial, antes de ser despedido, o recorrente no processo principal esteve ao serviço como funcionário prisional durante mais de catorze anos, a contento dos seus superiores hierárquicos. No entanto, segundo essas mesmas indicações, o Regulamento n.o 12 não permitia que, antes do seu despedimento, a entidade patronal procedesse a verificações para saber se eram possíveis medidas adequadas, em conformidade com o artigo 5.o da Diretiva 2000/78, como a utilização de um aparelho auditivo, uma dispensa da obrigação de desempenhar tarefas que necessitam de atingir os níveis mínimos de perceção sonora exigidos ou ainda uma afetação a um lugar que não exige que esses níveis sejam atingidos, e não é fornecida nenhuma indicação sobre o eventual caráter desproporcionado do encargo resultante da adoção dessas medidas.

52      Assim, ao prever níveis mínimos de perceção sonora cujo incumprimento constitui um impedimento médico que inibe de forma absoluta o exercício das funções de funcionário prisional, sem permitir verificar se esse funcionário está em condições de cumprir as suas funções, eventualmente após adoção de adaptações razoáveis na aceção deste artigo 5.o, o Regulamento n.o 12 parece ter imposto um requisito que ultrapassa o que é necessário para garantir a realização dos objetivos prosseguidos por este regulamento, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

53      Tendo em conta as considerações anteriores, há que responder à questão prejudicial submetida que o artigo 2.o, n.o 2, alínea a), o artigo 4.o, n.o 1, e o artigo 5.o da Diretiva 2000/78 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que prevê uma impossibilidade absoluta de manter em funções um funcionário prisional cuja acuidade auditiva não corresponde aos níveis mínimos de perceção sonora fixados por essa regulamentação, sem permitir verificar se esse funcionário está em condições de cumprir as referidas funções, eventualmente após a adoção de adaptações razoáveis na aceção desse artigo 5.o

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

O artigo 2.o, n.o 2, alínea a), o artigo 4.o, n.o 1, e o artigo 5.o da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que prevê uma impossibilidade absoluta de manter em funções um funcionário prisional cuja acuidade auditiva não corresponde aos níveis mínimos de perceção sonora fixados por essa regulamentação, sem permitir verificar se esse funcionário está em condições de cumprir as referidas funções, eventualmente após a adoção de adaptações razoáveis na aceção desse artigo 5.o

Assinaturas


*      Língua do processo: estónio.