Language of document : ECLI:EU:T:2022:67

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Décima Secção alargada)

9 de fevereiro de 2022 (*)

«Concorrência — Abuso de posição dominante — Mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias — Decisão de rejeição de uma denúncia — Artigo 7.o do Regulamento (CE) n.o 773/2004 — Prazo razoável — Interesse da União em prosseguir o exame de uma denúncia — Determinação da autoridade mais bem colocada para examinar uma denúncia — Critérios — Erro manifesto de apreciação — Falhas sistémicas ou generalizadas relativamente ao respeito do Estado de Direito — Risco de violação dos direitos de um denunciante em caso de rejeição de uma denúncia — Dever de fundamentação»

No processo T‑791/19,

SpedPro S.A., com sede em Varsóvia (Polónia), representada por M. Kozak, advogada,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por J. Szczodrowski, L. Wildpanner e P. van Nuffel, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por:

República da Polónia, representada por B. Majczyna, na qualidade de agente,

interveniente,

que tem por objeto um pedido nos termos do artigo 263.o TFUE e destinado a obter a anulação da Decisão C(2019) 6099 final da Comissão, de 12 de agosto de 2019 (processo AT.40459 — Expedição de frete ferroviário na Polónia — PKP Cargo), que rejeitou a denúncia apresentada pela recorrente relativa a alegadas infrações ao artigo 102.o TFUE no mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias na Polónia,

O TRIBUNAL GERAL (Décima Secção alargada),

composto por: M. van der Woude, presidente, A. Kornezov (relator), E. Buttigieg, G. Hesse e D. Petrlík, juízes,

secretário: M. Zwozdziak‑Carbonne, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 17 de setembro de 2021,

profere o presente

Acórdão

 Antecedentes do litígio

1        A recorrente, Sped‑Pro S.A., é uma sociedade com sede em Varsóvia (Polónia), que opera no setor da prestação de serviços de expedição. No âmbito destas atividades, recorreu aos serviços de transporte ferroviário de mercadorias prestados pela PKP Cargo S.A., sociedade controlada pelo Estado polaco.

2        Em 4 de novembro de 2016, a recorrente apresentou uma denúncia contra a PKP Cargo à Comissão Europeia (a seguir «denúncia»), nos termos do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1). Na denúncia, a recorrente alegou designadamente que a PKP Cargo tinha abusado da sua posição dominante na aceção do artigo 102.o TFUE no mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias na Polónia, na medida em que, em substância, recusou celebrar com ela um contrato de cooperação plurianual nas condições do mercado. A recorrente apresentou uma denúncia complementar em 24 de agosto de 2017.

3        Por carta de 13 de setembro de 2017 (a seguir «carta de orientação»), a Comissão informou a recorrente da sua intenção de rejeitar a denúncia, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 773/2004 da Comissão, de 7 de abril de 2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2004, L 123, p. 18).

4        A recorrente apresentou observações e informações complementares em 19 de outubro, 19 de dezembro e 21 de dezembro de 2017, bem como em 8 de janeiro, 29 de junho e 4 de outubro de 2018. Além disso, realizaram‑se duas reuniões entre a recorrente e a Comissão em 5 de dezembro de 2017 e em 26 de abril de 2018.

5        Através da Decisão C(2019) 6099 final, de 12 de agosto de 2019 (processo AT.40459 — Expedição de frete ferroviário na Polónia — PKP Cargo) (a seguir «decisão impugnada»), a Comissão rejeitou a denúncia, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004, com o fundamento, em substância, de que o Prezes Urzędu Ochrony Konkurencji i Konsumentów (presidente da Autoridade da Concorrência e Defesa dos Consumidores, Polónia; a seguir «autoridade da concorrência polaca») estava mais bem colocado para a examinar.

 Tramitação processual e pedidos das partes

6        Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 15 de novembro de 2019, a recorrente interpôs o presente recurso.

7        Em 30 de janeiro de 2020, a Comissão apresentou a contestação na Secretaria do Tribunal Geral.

8        A réplica e a tréplica foram apresentadas na Secretaria do Tribunal Geral, respetivamente, em 8 de abril e em 26 de junho de 2020.

9        Por Decisão de 25 de maio de 2020, o presidente da Décima Secção do Tribunal Geral admitiu a intervenção da República da Polónia em apoio do pedido da Comissão. A República da Polónia apresentou um articulado de intervenção em 30 de agosto de 2020 e a recorrente apresentou observações sobre o referido articulado em 29 de setembro de 2020. Todavia, em 8 de outubro de 2020, o presidente da Décima Secção do Tribunal Geral decidiu não juntar essas observações aos autos, com o fundamento de que tinham sido apresentadas fora de prazo.

10      Sob proposta da Décima Secção, o Tribunal Geral decidiu, em aplicação do artigo 28.o do seu Regulamento de Processo, remeter o processo a uma formação de julgamento alargada.

11      Por impedimento de um membro da Décima Secção alargada, o presidente do Tribunal Geral designou‑se, em 20 de julho de 2021, em aplicação do artigo 17.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, para completar a Secção no presente processo. Em conformidade com o artigo 10.o, n.o 5, do referido regulamento, assumiu igualmente a presidência da Secção no presente processo.

12      As partes apresentaram as suas alegações e responderam às perguntas colocadas pelo Tribunal Geral na audiência de 17 de setembro de 2021.

13      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas.

14      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

15      A República da Polónia apoia o pedido da Comissão.

 Questão de direito

16      A recorrente invoca três fundamentos. O primeiro subdivide‑se em duas partes, relativas, em substância, respetivamente, a primeira, à violação do direito da recorrente a que o seu processo seja tratado num prazo razoável e, a segunda, à falta de fundamentação da decisão impugnada. O segundo fundamento é relativo à violação do princípio do Estado de Direito na Polónia. O terceiro fundamento respeita ao interesse da União em prosseguir o exame da denúncia.

17      Importa examinar, antes de mais, a primeira parte do primeiro fundamento, em seguida, o terceiro fundamento e, por último e conjuntamente, o segundo fundamento e a segunda parte do primeiro fundamento.

 Quanto à primeira parte do primeiro fundamento, relativa à violação do direito da recorrente a que o seu processo seja tratado num prazo razoável

18      A recorrente alega que a Comissão violou o princípio do prazo razoável uma vez que adotou a decisão impugnada cerca de três anos após a apresentação da denúncia e cerca de dois anos após a notificação da carta de orientação à recorrente. Ao fazê‑lo, a Comissão violou o artigo 7.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1/2003 e o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, conjugados com o artigo 41.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

19      A Comissão contesta os argumentos da recorrente.

20      Em primeiro lugar, importa recordar que a observância de um prazo razoável na condução dos procedimentos administrativos em matéria de política da concorrência constitui um princípio geral de direito da União, cujo respeito os órgãos jurisdicionais da União asseguram (v. Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Heineken Nederland e Heineken/Comissão, C‑452/11 P, EU:C:2012:829, n.o 97 e jurisprudência referida).

21      O princípio do prazo razoável de um procedimento administrativo foi reafirmado pelo artigo 41.o, n.o 1, da Carta, por força do qual todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável (Acórdão de 15 de julho de 2015, HIT Groep/Comissão, T‑436/10, EU:T:2015:514, n.o 239 e jurisprudência referida).

22      Em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, sempre que a Comissão considere, com base nas informações de que dispõe, que não existem fundamentos bastantes para lhe dar seguimento, deve informar o autor da denúncia das respetivas razões e estabelecer um prazo para que este apresente, por escrito, as suas observações. Nos termos do artigo 7.o, n.o 2, do mesmo regulamento, se o autor da denúncia apresentar as suas observações dentro do prazo estabelecido pela Comissão e as observações escritas por ele apresentadas não conduzirem a uma alteração da apreciação da denúncia, a Comissão rejeitará a denúncia mediante decisão.

23      Por conseguinte, um denunciante tem o direito de obter uma decisão de rejeição da sua denúncia e a Comissão tem a obrigação de se pronunciar sobre a mesma num prazo razoável (v., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2013, BVGD/Comissão, T‑104/07 e T‑339/08, não publicado, EU:T:2013:366, n.o 127).

24      É certo que, no Acórdão de 28 de janeiro de 2021, Qualcomm e Qualcomm Europe/Comissão (C‑466/19 P, EU:C:2021:76), o Tribunal de Justiça indicou, no n.o 32, que a violação do princípio do respeito do prazo razoável só era suscetível de justificar a anulação de uma decisão que declare infrações tomada no termo de um procedimento administrativo baseado no artigo 101.o ou 102.o TFUE, quando se tivesse demonstrado que essa violação tinha lesado os direitos de defesa das empresas em causa. Todavia, esta afirmação do Tribunal de Justiça deve ser lida à luz das circunstâncias do processo que deu origem ao referido acórdão. A este respeito, importa sublinhar que a decisão controvertida nesse processo era uma decisão de pedido de informações adotada nos termos do artigo 18.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1/2003, enquanto instrumento de inquérito no âmbito de um procedimento administrativo em curso. Foi neste contexto que o Tribunal de Justiça concluiu, em substância, no n.o 33 do referido acórdão, que a argumentação relativa ao caráter excessivo da duração desse procedimento administrativo não é pertinente no âmbito de um recurso que tenha por objeto tal decisão, mas no âmbito de um recurso que tenha por objeto a decisão da Comissão que põe termo a esse procedimento administrativo através da declaração de uma violação do artigo 101.o ou 102.o TFUE.

25      Ora, embora seja verdade que a decisão da Comissão de rejeitar uma denúncia não é uma «decisão que declara a existência de infrações», a mesma põe termo ao procedimento administrativo na Comissão, ao contrário da decisão controvertida no processo referido no n.o 24, supra. Nestas circunstâncias, negar a obrigação da Comissão de respeitar o princípio do prazo razoável no âmbito do seu exame das denúncias que lhe são apresentadas equivaleria, em violação do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, a esvaziar do seu conteúdo essencial o direito do autor da denúncia a que os seus assuntos sejam tratados num prazo razoável, como exige o artigo 41.o, n.o 1, da Carta.

26      Em segundo lugar, o Tribunal Geral observa que, no caso em apreço, decorreram cerca de dois anos e nove meses entre a apresentação da queixa e a adoção da decisão impugnada.

27      Embora a Comissão procure justificar esta duração pela complexidade das questões factuais e jurídicas constantes da denúncia e pelo facto de a recorrente ter apresentado um complemento de denúncia, bem como outras observações e informações adicionais, não é menos verdade que, na decisão impugnada, que contém apenas 31 pontos em menos de 7 páginas no total, a Comissão se limitou a afirmar, em substância, que a autoridade da concorrência polaca estava mais bem colocada para examinar a denúncia. Ora, como alega a recorrente, tal conclusão não exigia a realização de uma avaliação factual ou jurídica complexa das práticas anticoncorrenciais referidas na denúncia.

28      Além disso, há que salientar que a Comissão não respeitou o seu compromisso de informar o denunciante, num quadro temporal indicativo de quatro meses a contar da data de receção da denúncia, das medidas que se propunha tomar relativamente àquela, em conformidade com os pontos 61 e 62, conjugados com os pontos 55 e 56, da Comunicação da Comissão relativa ao tratamento de denúncias pela Comissão nos termos dos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2004, C 101, p. 65). Embora se trate de um prazo indicativo, como resulta do ponto 61 da referida comunicação, não deixa de ser verdade que decorreram cerca de dez meses entre a apresentação da denúncia e a notificação à recorrente da carta de orientação, o que excede largamente esse prazo indicativo.

29      Em qualquer caso, e sem que seja necessário que o Tribunal Geral se pronuncie definitivamente sobre se a Comissão violou a sua obrigação de tratar a denúncia num prazo razoável, resulta da jurisprudência que a violação do princípio do prazo razoável só é suscetível de justificar a anulação de uma decisão tomada pela Comissão quando possa ter tido incidência sobre o resultado do processo. Isso acontece quando a referida violação é suscetível de prejudicar os direitos de defesa da empresa em causa (v., neste sentido, Acórdão de 21 de setembro de 2006, Nederlandse Federatieve Vereniging voor de Groothandel op Elektrotechnisch Gebied/Comissão, C‑105/04 P, EU:C:2006:592, n.os 42 a 52).

30      Esta jurisprudência aplica‑se mutatis mutandis às decisões de rejeição de uma denúncia nos termos do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004, precisando‑se, porém, que o autor da denúncia não é recorrido no âmbito desse processo. Daqui resulta que, na hipótese de recurso de tal decisão, a violação desse princípio só é suscetível de implicar a anulação da referida decisão quando o recorrente demonstre que a inobservância do prazo razoável teve incidência sobre a possibilidade de defender a sua posição nesse processo. Seria esse o caso, nomeadamente, se a inobservância do prazo razoável o tivesse impedido de recolher ou invocar perante a Comissão elementos de facto ou de direito relativos às práticas anticoncorrenciais denunciadas ou ao interesse da União em instruir o processo.

31      Ora, a recorrente não facultou nenhum elemento suscetível de demonstrar que esse requisito estava preenchido no caso em apreço.

32      Com efeito, por um lado, a recorrente limita‑se a afirmar, em substância, que a duração do procedimento administrativo foi «crucial», dado que o prazo de prescrição para intentar uma ação de indemnização não foi suspenso nem interrompido pela apresentação da denúncia ou pela adoção da decisão impugnada, em conformidade com o artigo 10.o, n.o 4, da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014, L 349, p. 1).

33      No entanto, a possibilidade de a recorrente fazer valer os seus direitos a título do artigo 102.o TFUE pela propositura, nos tribunais nacionais, de uma ação de indemnização ou de qualquer outra ação em aplicação direta desta disposição no respeito dos princípios da equivalência e da efetividade (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de junho de 1990, Factortame e o., C‑213/89, EU:C:1990:257, n.o 19 e jurisprudência referida, e de 6 de junho de 2013, Donau Chemie e o., C‑536/11, EU:C:2013:366, n.o 27 e jurisprudência referida) não era de modo nenhum tributária do desfecho do procedimento relativo à sua denúncia perante a Comissão e designadamente da abertura de um procedimento formal por esta. Em consequência, a eventual ultrapassagem do prazo razoável pela Comissão não tinha efeitos sobre o direito de a recorrente intentar a referida ação nos tribunais nacionais antes do termo do prazo de prescrição e sem aguardar a decisão da Comissão sobre a sua denúncia.

34      Por outro lado, a recorrente alega, em substância, que certas medidas adotadas pela República da Polónia durante o procedimento administrativo puseram em causa o respeito do princípio do Estado de Direito nesse Estado‑Membro. Todavia, a recorrente não apresenta nenhum elemento suscetível de demonstrar que a deterioração do Estado de Direito na Polónia a impediu de recolher ou de alegar perante a Comissão elementos de facto ou de direito relativos às práticas anticoncorrenciais denunciadas ou ao interesse da União em instruir o processo.

35      Daqui resulta que a primeira parte do primeiro fundamento deve ser julgada improcedente.

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo ao interesse da União em prosseguir o exame da denúncia

36      A recorrente alega que a Comissão violou o artigo 102.o TFUE, em conjugação com o artigo 17.o, n.o 1, segundo período, TUE, o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004 e o artigo 7.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1/2003. Especialmente, alega que, na decisão impugnada, a Comissão cometeu erros manifestos na apreciação do interesse da União em prosseguir o exame da denúncia, o que teve por consequência privar o artigo 102.o TFUE de qualquer efeito útil.

37      A Comissão contesta os argumentos da recorrente.

38      A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a Comissão, investida pelo artigo 105.o, n.o 1, TFUE da missão de velar pela aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE, é chamada a definir e a pôr em prática a política da concorrência da União, dispondo, para esse efeito, de um poder discricionário no tratamento das denúncias. Para desempenhar eficazmente esta tarefa, pode assim conceder diferentes graus de prioridade às denúncias que lhe são apresentadas. Ao fazê‑lo, a Comissão pode não apenas decidir a ordem pela qual as denúncias serão examinadas, mas também rejeitar uma denúncia por falta de interesse suficiente da União em prosseguir a análise do processo (v., neste sentido, Acórdão de 16 de maio de 2017, Agria Polska e o./Comissão, T‑480/15, EU:T:2017:339, n.os 34 e 35 e jurisprudência referida).

39      Todavia, o poder discricionário de que a Comissão dispõe a este respeito não é ilimitado. Com efeito, a Comissão é obrigada a examinar atentamente o conjunto dos elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pelos denunciantes (v. Acórdão de 17 de dezembro de 2014, Si.mobil/Comissão, T‑201/11, EU:T:2014:1096, n.o 82 e jurisprudência referida).

40      Além disso, resulta da jurisprudência que, ao adotar regras de conduta e ao anunciar, através da sua publicação, que as aplicará no futuro aos casos a que essas regras dizem respeito, a Comissão se autolimita no exercício do seu poder de apreciação e não pode renunciar a essas regras sob pena de poder ser sancionada, eventualmente, por violação dos princípios gerais do direito, tais como os da igualdade de tratamento ou da proteção da confiança legítima (v., neste sentido, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, H&R ChemPharm/Comissão, C‑95/15 P, não publicado, EU:C:2017:125, n.o 57). No caso em apreço, a Comissão autolimitou‑se no exercício do seu poder discricionário no tratamento das denúncias através da adoção da sua Comunicação sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades da concorrência (JO 2004, C 101, p. 43), a qual contém orientações destinadas a clarificar, nomeadamente, em que condições se pode considerar que quer a Comissão, quer uma única autoridade nacional da concorrência, quer várias autoridades nacionais de concorrência estão mais bem colocadas para examinar uma denúncia.

41      A fiscalização jurisdicional das decisões de rejeição de denúncia não deve levar o Tribunal Geral a substituir a apreciação do interesse da União efetuada pela Comissão pela sua própria apreciação, mas visa verificar que a decisão controvertida não assenta em factos materialmente inexatos e não está ferida de nenhum erro de direito, nem de nenhum erro manifesto de apreciação ou de desvio de poder (v. Acórdão de 11 de janeiro de 2017, Topps Europe/Comissão, T‑699/14, não publicado, EU:T:2017:2, n.o 66 e jurisprudência referida).

42      Na decisão impugnada, a Comissão rejeitou a denúncia com o fundamento, em substância, de que a autoridade da concorrência polaca estava mais bem colocada para a examinar, uma vez que, por um lado, a infração alegada estava limitada, no essencial, ao mercado polaco e, por outro, a referida autoridade tinha adquirido um conhecimento pormenorizado do mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias na Polónia e das práticas da PKP Cargo, forjado na sequência de vários inquéritos que realizou e das decisões adotadas neste setor desde 2004.

43      A recorrente alega, por um lado, que a apreciação da Comissão está viciada por erros manifestos de apreciação no que respeita à definição do mercado afetado pelas práticas anticoncorrenciais denunciadas e, por outro, que a Comissão deveria ter tido igualmente em conta outros fatores suscetíveis de demonstrar a existência de um interesse da União em prosseguir o exame da denúncia.

44      Em primeiro lugar, quanto à definição do mercado afetado pelas práticas anticoncorrenciais denunciadas, importa salientar, primeiro, que a recorrente alega que as práticas pretensamente abusivas da PKP Cargo produziram efeitos além do mercado nacional, pelo que a Comissão estava mais bem colocada para as examinar.

45      A este respeito, importa recordar que, quando os efeitos das infrações alegadas numa denúncia, no essencial, são apenas sentidos no território de um único Estado‑Membro e os litígios relativos a estas infrações foram remetidos pelo denunciante aos órgãos jurisdicionais e entidades administrativas competentes deste Estado‑Membro, a Comissão tem o direito de rejeitar a denúncia por falta de interesse da União, desde que os direitos do denunciante possam ser salvaguardados de modo satisfatório pelas instâncias nacionais, o que supõe que estas tenham condições de reunir os elementos factuais para determinar se as práticas em causa constituem uma infração aos artigos 101.o e 102.o TFUE (v. Acórdão de 3 de julho de 2007, Au Lys de France/Comissão, T‑458/04, não publicado, EU:T:2007:195, n.o 83 e jurisprudência referida, e Despacho de 19 de março de 2012, Associazione «Giùlemanidallajuve»/Comissão, T‑273/09, EU:T:2012:129, n.o 68 e jurisprudência referida).

46      O n.o 10 da Comunicação sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades da concorrência precisa que uma única autoridade nacional responsável em matéria de concorrência está normalmente bem posicionada para tratar dos acordos ou práticas que afetem substancialmente a concorrência no seu território, ao passo que, segundo o n.o 14 da mesma comunicação, a Comissão está particularmente bem posicionada para instruir um processo, nomeadamente se um ou mais acordos ou práticas, incluindo redes de acordos ou práticas semelhantes, afetarem a concorrência em mais de três Estados‑Membros (mercados transfronteiras que abranjam mais de três Estados‑Membros ou vários mercados nacionais).

47      No caso em apreço, resulta da decisão impugnada que as práticas alegadamente abusivas denunciadas são imputáveis a uma empresa estabelecida na Polónia, a saber, a PKP Cargo, e lesam outra empresa igualmente estabelecida na Polónia, a saber, a recorrente. Além disso, na sua denúncia, a recorrente afirmou que, mesmo que os efeitos das referidas práticas fossem sentidos em vários Estados‑Membros, a PKP Cargo detinha uma posição dominante «no mercado polaco» e que, em princípio, o abuso de posição dominante imputado à PKP Cargo ocorria «no mercado polaco». Por outro lado, as quotas de mercado detidas pela PKP Cargo, conforme apresentadas na denúncia, apenas diziam respeito ao mercado polaco, uma vez que a recorrente não alegou, e ainda menos demonstrou, que a PKP Cargo detinha uma posição dominante noutros mercados geográficos. Do mesmo modo, na sua carta de 4 de outubro de 2018, a recorrente reiterou junto da Comissão o pedido de abertura de um inquérito contra a PKP Cargo a fim de examinar o seu alegado abuso de posição dominante «no mercado do transporte ferroviário de mercadorias na Polónia».

48      O facto, invocado pela recorrente, de o mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias na Polónia estar aberto à concorrência das empresas estabelecidas noutros Estados‑Membros não é suscetível de pôr em causa a análise da Comissão. Com efeito, mesmo admitindo que as práticas alegadamente abusivas da PKP Cargo tenham podido afetar também outros mercados geográficos, nenhuma informação constante dos autos deixava transparecer, nem explícita nem implicitamente, que a PKP Cargo detinha uma posição dominante nesses mercados. Além disso, o simples facto de a PKP Cargo operar e ter filiais em vários Estados‑Membros também não significa que esta empresa ou uma das suas filiais detinham uma posição dominante noutros mercados geográficos.

49      Segundo, o facto, invocado pela recorrente, de a alegada infração ser suscetível de afetar o comércio entre Estados‑Membros, na aceção do artigo 102.o TFUE, não é pertinente. Com efeito, a afetação do comércio entre os Estados‑Membros é uma condição para a aplicação do artigo 102.o TFUE e não para a determinação da autoridade mais bem colocada para examinar uma denúncia.

50      Terceiro, o argumento da recorrente segundo o qual, no n.o 25, alínea iv), da decisão impugnada, a Comissão concluiu erradamente que o mercado pertinente de serviços era o «mercado ferroviário», quando se tratava do «mercado do transporte ferroviário de mercadorias», também não pode ser acolhido. Com efeito, o número referido deve ser lido à luz dos n.os 3, 21 e 26 da mesma decisão, dos quais resulta que o mercado pertinente de serviços era o mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias. Assim, a referência ao «mercado ferroviário», que figura no n.o 25, alínea iv), da decisão impugnada, constitui, quando muito, uma imprecisão que não tem nenhuma incidência sobre a legalidade da referida decisão.

51      Nestas condições, a Comissão podia legitimamente considerar que as práticas alegadamente abusivas da PKP Cargo diziam sobretudo respeito ao mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias na Polónia.

52      Em segundo lugar, importa salientar que a recorrente não contesta a afirmação da Comissão segundo a qual a autoridade da concorrência polaca tinha adquirido um conhecimento pormenorizado do mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias na Polónia e das práticas da PKP Cargo, na sequência de vários inquéritos realizados por sua iniciativa e das decisões adotadas neste setor desde 2004.

53      Por conseguinte, a Comissão não cometeu nenhum erro manifesto de apreciação ao considerar que as práticas denunciadas diziam principalmente respeito ao mercado dos serviços de transporte ferroviário de mercadorias na Polónia, que a autoridade da concorrência polaca tinha adquirido um conhecimento pormenorizado do setor e que, com base nesses fatores, essa autoridade estava mais bem colocada para examinar a denúncia.

54      Em terceiro lugar, a recorrente sustenta que a Comissão deveria ter tido igualmente em conta outros critérios para efeitos da apreciação do interesse da União em instruir o processo.

55      Primeiro, faz referência à jurisprudência segundo a qual, quando a Comissão examina o interesse da União em instruir o processo, deve, por um lado, apreciar a gravidade dos alegados atentados à concorrência e a persistência dos seus efeitos, tendo em conta a duração e a importância das infrações denunciadas, bem como a sua incidência na situação da concorrência na União (Acórdão de 23 de abril de 2009, AEPI/Comissão, C‑425/07 P, EU:C:2009:253, n.o 53), e, por outro, ponderar a importância da infração alegada para o funcionamento do mercado interno, a probabilidade de poder provar a sua existência e a extensão das diligências de investigação necessárias (Acórdão de 18 de setembro de 1992, Automec/Comissão, T‑24/90, EU:T:1992:97, n.o 86). A recorrente alega, em substância, que a Comissão não examinou nem ponderou todos esses critérios, o que, em seu entender, é juridicamente errado e contrário ao dever de fundamentação da Comissão.

56      É verdade, como observa a recorrente, que, na decisão impugnada, a Comissão limitou a sua avaliação do interesse da União aos critérios mencionados no n.o 42, supra, sem examinar expressamente a gravidade ou a importância da infração alegada, a persistência dos seus efeitos, a probabilidade de poder provar a sua existência e a extensão das medidas de investigação necessárias.

57      Contudo, segundo jurisprudência constante, dado que a avaliação do interesse da União apresentada por uma denúncia é função das circunstâncias de cada caso, não deve limitar o número dos critérios de apreciação que a Comissão pode tomar como referência nem, inversamente, impor‑lhe o recurso exclusivo a certos critérios. Dado que, num domínio como o do direito da concorrência, o contexto factual e jurídico pode variar consideravelmente de um processo para outro, é possível aplicar critérios não previstos até então ou dar prioridade a um único critério para avaliar esse interesse da União (v. Acórdãos de 19 de setembro de 2013, EFIM/Comissão, C‑56/12 P, não publicado, EU:C:2013:575, n.o 85 e jurisprudência referida, e de 20 de setembro de 2018, Agria Polska e o./Comissão, C‑373/17 P, EU:C:2018:756, n.o 61 e jurisprudência referida).

58      O Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar que os ensinamentos decorrentes dessa jurisprudência não podem ser postos em causa pela jurisprudência referida no n.o 55, supra (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de maio de 2001, IECC/Comissão, C‑449/98 P, EU:C:2001:275, n.os 44, 46 e 47, e de 20 de setembro de 2018, Agria Polska e o./Comissão, C‑373/17 P, EU:C:2018:756, n.o 62 e jurisprudência referida).

59      Com efeito, é possível que, independentemente da gravidade ou da importância da infração alegada, da persistência dos seus efeitos, da probabilidade de poder provar a sua existência ou ainda da extensão das medidas de investigação necessárias, o interesse da União não exija à Comissão que instrua uma denúncia se uma autoridade nacional da concorrência se encontrar, devido, nomeadamente, à sua proximidade relativamente aos elementos de prova pertinentes, à extensão dos mercados afetados pelas práticas denunciadas ou ainda aos conhecimentos adquiridos no passado quanto a esses mercados e a essas práticas, mais bem colocada do que a Comissão para investigar a alegada infração referida.

60      Por conseguinte, contrariamente ao que sustenta a recorrente, a Comissão não estava obrigada a examinar e a ponderar todos os critérios mencionados na jurisprudência referida no n.o 55, supra.

61      Segundo, a recorrente alega, em substância, que a denúncia suscitava uma nova questão de direito, ainda não dirimida no direito da concorrência da União, concretamente se a recusa de dar acesso a uma infraestrutura essencial (essential facility), em condições não discriminatórias, justificada pela existência de uma dívida não paga, cuja existência é, no entanto, contestada pela empresa que pede acesso à referida infraestrutura, constituía um abuso de posição dominante na aceção do artigo 102.o TFUE.

62      A este respeito, há que salientar que, segundo o n.o 15 da Comunicação sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades da concorrência, a Comissão se encontra particularmente bem posicionada para instruir um processo se o interesse da União exigir que esta adote uma decisão para desenvolver a política de concorrência da União em presença de uma nova questão de concorrência ou para assegurar uma aplicação efetiva das regras.

63      Todavia, admitindo que a questão suscitada no n.o 61, supra, constituísse um novo problema de concorrência importante para o desenvolvimento da política de concorrência da União, na aceção do n.o 15 da Comunicação sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades da concorrência, isso não significa que a Comissão estivesse automaticamente obrigada a examinar a denúncia. Com efeito, a questão «nova» suscitada pela recorrente seria, em substância, a de saber se as práticas alegadamente abusivas da PKP Cargo poderiam ter sido consideradas objetivamente justificadas. Tal exame implicaria não só verificar se a PKP Cargo detinha uma posição dominante no mercado pertinente, mas também a veracidade, contestada, da dívida em causa, bem como os possíveis efeitos de eliminação das referidas práticas. Ora, a recorrente não demonstrou que a Comissão estava mais bem colocada para efetuar esse exame, apesar de as referidas práticas dizerem principalmente respeito ao mercado polaco e de a autoridade da concorrência polaca já dispor de um conhecimento pormenorizado do setor.

64      Por conseguinte, a recorrente não demonstrou que, no caso em apreço, o critério relativo à existência de um novo problema de concorrência importante para o desenvolvimento da política de concorrência da União devia prevalecer sobre os critérios referidos no n.o 42, supra.

65      Em quarto lugar, há que rejeitar o argumento da recorrente segundo o qual, na decisão impugnada, a Comissão devia ter verificado se a PKP Cargo aplicava um sistema de descontos discriminatório e se esta última detinha um crédito perante aquela suscetível de justificar a sua recusa de celebrar um contrato com ela. Com efeito, a Comissão não rejeitou a denúncia com o fundamento de que os elementos à sua disposição não permitiam concluir que as práticas denunciadas eram contrárias ao artigo 102.o TFUE, mas de que a autoridade da concorrência polaca estava mais bem colocada para os examinar. Por conseguinte, não cabia à Comissão tomar posição sobre estas questões.

66      Em quinto lugar, o facto, denunciado pela recorrente, de a autoridade da concorrência polaca ter recusado, por cartas de 21 de agosto e 7 de outubro de 2019, dar seguimento à denúncia é desprovido de pertinência, visto que essa recusa só ocorreu posteriormente à adoção da decisão impugnada (v., neste sentido, Acórdão de 28 de janeiro de 2021, Qualcomm e Qualcomm Europe/Comissão, C‑466/19 P, EU:C:2021:76, n.o 82).

67      Em sexto lugar, a circunstância, não contestada, de, em conformidade com o direito polaco, as decisões da autoridade da concorrência polaca de rejeição de uma denúncia não poderem ser objeto de recurso jurisdicional não é suscetível de impor à Comissão a obrigação de examinar a denúncia. Com efeito, cabe aos Estados‑Membros, por força do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, instituir os meios processuais necessários para assegurar aos interessados o respeito do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União e não à Comissão, pela abertura de um inquérito, atenuar as eventuais insuficiências da proteção jurisdicional a nível nacional. Além disso, e em quaisquer circunstâncias, a recorrente tinha a possibilidade de mover nos tribunais nacionais ações de reparação de danos alegadamente sofridos por causa dos comportamentos objeto da denúncia, a fim de obter a observância do artigo 102.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2018, Agria Polska e o./Comissão, C‑373/17 P, EU:C:2018:756, n.os 83 e 87).

68      Por último, uma vez que a recorrente alega igualmente uma violação do artigo 17.o, n.o 1, segundo período, TUE, basta salientar que não apresentou nenhum argumento autónomo relativo a uma violação desta disposição.

69      Daqui resulta que o terceiro fundamento deve ser julgado improcedente.

70      Em seguida, há que examinar os argumentos apresentados pela recorrente no âmbito do segundo fundamento e da segunda parte do primeiro fundamento, relativos à existência de falhas sistémicas e generalizadas do Estado de Direito na Polónia e destinados a demonstrar que existia um risco real de que os seus direitos enquanto denunciante não fossem salvaguardados de forma satisfatória a nível nacional.

 Quanto ao segundo fundamento e à segunda parte do primeiro fundamento, relativos ao respeito do princípio do Estado de Direito na Polónia

71      No âmbito do seu segundo fundamento, a recorrente alega que a Comissão violou o seu direito a uma proteção jurisdicional efetiva, garantido pelo artigo 2.o TUE, em conjugação com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e com o artigo 47.o da Carta. A este respeito, alega que a Comissão estava mais bem colocada para examinar a denúncia, tendo em conta as falhas sistémicas ou generalizadas do Estado de Direito na Polónia e, nomeadamente, a falta de independência da autoridade da concorrência polaca e dos órgãos jurisdicionais nacionais competentes na matéria.

72      Particularmente, a recorrente apresenta diversos elementos suscetíveis de demonstrar, segundo ela, que, por um lado, a autoridade da concorrência polaca estava subordinada ao poder executivo e que, por outro, os órgãos jurisdicionais nacionais chamados a fiscalizar a legalidade das suas decisões, concretamente o Sąd Ochrony Konkurencji i Konsumentów — XVII Wydział Sądu Okręgowego w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia — Secção XVII do Tribunal da Concorrência e da Proteção dos Consumidores, Polónia) e a Izba Kontroli Nadzwyczajnej i Spraw Publicznych (Secção de fiscalização extraordinária e de processos públicos) do Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia), não dispunham de todas as garantias de independência, como decorria designadamente da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Além disso, apresenta vários indícios específicos relativos às circunstâncias do processo em apreço, à natureza da infração alegada e ao contexto factual em que se inscreve, suscetíveis de demonstrar, em seu entender, que existiam motivos sérios e comprovados para acreditar que corria um risco real de violação dos seus direitos se o seu processo devesse ser examinado pelas instâncias nacionais. No âmbito da segunda parte do primeiro fundamento, a recorrente alega que a Comissão não tomou em consideração esses elementos e não fundamentou suficientemente a decisão impugnada a esse respeito.

73      A Comissão e a República da Polónia contestam os argumentos da recorrente.

74      Na decisão impugnada, a Comissão verificou se existiam falhas sistémicas ou generalizadas do Estado de Direito na Polónia que obstavam a que rejeitasse a denúncia com o fundamento de que a autoridade da concorrência polaca estava mais bem colocada para a examinar, aplicando por analogia o Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586).

75      Todavia, a República da Polónia contesta a aplicação por analogia desta jurisprudência ao caso em apreço, com o fundamento, nomeadamente, de que esta respeita à cooperação entre órgãos jurisdicionais nacionais em matéria penal, e, mais especificamente, à execução de um mandado de detenção europeu, e não às decisões de rejeição de uma denúncia em matéria de direito da concorrência. Além disso, este Estado‑Membro salienta que o Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586), dizia respeito ao princípio da proteção jurisdicional efetiva previsto no artigo 19.o, n.o 1, TUE, bem como ao risco de violação do direito fundamental a um processo equitativo perante um tribunal independente, conforme consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, quando estas disposições não são aplicáveis às autoridades administrativas como a autoridade da concorrência polaca.

76      Por conseguinte, há que examinar, em primeiro lugar, se a Comissão podia, com justeza, aplicar por analogia os ensinamentos decorrentes do Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586), ao caso em apreço.

77      A este respeito, importa recordar que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que, sempre que a pessoa contra quem foi emitido um mandado de detenção europeu invocasse, para se opor à sua entrega à autoridade judiciária de emissão, a existência de falhas sistémicas ou, pelo menos, generalizadas que, em seu entender, eram suscetíveis de afetar a independência do poder judicial no Estado‑Membro de emissão e o conteúdo essencial do seu direito fundamental a um processo equitativo, a autoridade judiciária de execução era obrigada a apreciar a existência de um risco real de que a pessoa em causa sofresse uma violação desse direito fundamental, quando devesse decidir da sua entrega às autoridades do referido Estado‑Membro [v. Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 60 e jurisprudência referida].

78      Para o fazer, segundo o Tribunal de Justiça, a autoridade judiciária de execução deve proceder a uma análise em duas etapas.

79      Num primeiro momento, deve, com fundamento em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados relativos ao funcionamento do sistema judicial no Estado‑Membro de emissão, avaliar a existência de um risco real de violação do direito fundamental a um processo equitativo, associado a uma falta de independência dos órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro, em razão de falhas sistémicas ou generalizadas neste último Estado [v. Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 61 e jurisprudência referida].

80      Se a autoridade judiciária de execução constatar que as condições relativas a essa primeira etapa de análise estão preenchidas, deve, num segundo momento, apreciar, de modo concreto e preciso, se, nas circunstâncias do caso concreto, existem motivos sérios e comprovados para acreditar que, na sequência da sua entrega ao Estado‑Membro de emissão, a pessoa procurada correrá esse risco [v. Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 68 e jurisprudência referida].

81      O Tribunal de Justiça precisou igualmente que, em certos casos bem delimitados, a autoridade judiciária de execução era obrigada a recusar automaticamente a execução de qualquer mandado de detenção europeu emitido pelo referido Estado‑Membro, sem ter de proceder a uma qualquer apreciação concreta do risco real que corre a pessoa em causa de que o conteúdo essencial do seu direito fundamental a um processo equitativo seja afetado [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 72].

82      No que respeita à questão de saber se a jurisprudência recordada no n.o 81, supra, se podia aplicar ao caso em apreço, importa recordar que a legalidade da decisão impugnada deve ser apreciada em função dos elementos de facto e de direito existentes à data em que esta decisão foi adotada, concretamente 12 de agosto de 2019 (v. jurisprudência referida no n.o 66, supra). Assim, mesmo admitindo que os acontecimentos ocorridos posteriormente a esta data permitem evitar a segunda etapa da análise em aplicação desta jurisprudência, importa salientar que, no momento da adoção da decisão impugnada, as condições da sua aplicação não estavam reunidas.

83      Feita esta precisão, há que admitir, com a República da Polónia, que existem, é certo, diferenças evidentes entre as circunstâncias na origem do Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586), e as que estão na origem do presente processo. Todavia, várias considerações de princípio justificam a aplicação por analogia dos ensinamentos que decorrem do referido acórdão para efeitos da determinação da autoridade da concorrência mais bem colocada para examinar uma denúncia de uma infração aos artigos 101.o e 102.o TFUE.

84      Com efeito, primeiro, importa recordar que a premissa fundamental segundo a qual cada Estado‑Membro partilha com todos os outros Estados‑Membros, e reconhece que estes partilham com ele, os valores comuns referidos no artigo 2.o TUE implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados‑Membros e, nomeadamente, os seus órgãos jurisdicionais no reconhecimento desses valores em que se funda a União, entre os quais o do Estado de Direito, e, portanto, no respeito do direito da União que põe esses valores em prática [Acórdão de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), C‑619/18, EU:C:2019:531, n.os 42 e 43]

85      Esta premissa fundamental é igualmente válida nas relações entre a Comissão, as autoridades nacionais da concorrência e os órgãos jurisdicionais nacionais no contexto da aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE. Com efeito, tanto as normas relativas ao espaço de liberdade, segurança e justiça, em causa no processo na origem do acórdão referido no n.o 76, supra [v. Acórdãos de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.os 35 e 36, e de 25 de julho de 2018, Generalstaatsanwaltschaft (Condições de detenção na Hungria), C‑220/18 PPU, EU:C:2018:589, n.o 104], como as relativas à rede europeia da concorrência e à cooperação entre a Comissão e os órgãos jurisdicionais nacionais para a aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE, em causa no presente processo (v., designadamente, considerandos 15, 21 e 28, artigo 11.o, n.o 1, e artigo 15.o do Regulamento n.o 1/2003, bem como n.o 2 in fine da Comunicação sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades da concorrência), estabelecem um sistema de estreita cooperação entre as autoridades competentes fundado nos princípios do reconhecimento mútuo, da confiança mútua e da cooperação leal.

86      Com efeito, por força dos artigos 4.o e 5.o do Regulamento n.o 1/2003, a Comissão e as autoridades da concorrência dos Estados‑Membros dispõem de competências paralelas para a aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE, ao passo que a economia do Regulamento n.o 1/2003 assenta numa estreita cooperação entre estas (Acórdão de 16 de outubro de 2013, Vivendi/Comissão, T‑432/10, não publicado, EU:T:2013:538, n.o 26). Além disso, segundo o artigo 35.o, n.o 1, do mesmo Regulamento, as autoridades de concorrência dos Estados‑Membros devem assegurar a aplicação efetiva dos artigos 101.o e 102.o TFUE no interesse geral, precisando‑se que podem figurar órgãos jurisdicionais entre as autoridades de concorrência designadas pelos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 7 de dezembro de 2010, VEBIC, C‑439/08, EU:C:2010:739, n.os 56 e 62). Além disso, em conformidade com o artigo 4.o da Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados‑Membros competência para aplicar a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno (JO 2019, L 11, p. 3), as referidas autoridades devem ser dotadas de garantias de independência e de imparcialidade. Embora, na verdade, o prazo de transposição da referida diretiva ainda não tivesse expirado aquando da adoção da decisão impugnada, é igualmente verdade que os Estados‑Membros se devem abster de, durante o prazo de transposição de uma diretiva, aprovar disposições que possam comprometer seriamente o resultado por ela previsto (v. Acórdãos de 18 de dezembro de 1997, Inter‑Environnement Wallonie, C‑129/96, EU:C:1997:628, n.o 45, e de 2 de junho de 2016, Pizzo, C‑27/15, EU:C:2016:404, n.o 32).

87      Além disso, o artigo 101.o, n.o 1, e o artigo 102.o TFUE produzem efeitos diretos nas relações entre particulares e criam, na esfera jurídica dos particulares, direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar. A competência para aplicar as referidas disposições pertence simultaneamente à Comissão e aos órgãos jurisdicionais nacionais. Esta atribuição de competências caracteriza‑se pela obrigação de cooperação leal entre a Comissão e os órgãos jurisdicionais nacionais (Acórdão de 18 de setembro de 1992, Automec/Comissão, T‑24/90, EU:T:1992:97, n.o 90). Isto é confirmado pelo n.o 15 da Comunicação da Comissão sobre a cooperação entre a Comissão e os tribunais dos Estados‑Membros da UE na aplicação dos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2004, C 101, p. 54), que prevê que a Comissão e os órgãos jurisdicionais nacionais estão sujeitos a deveres recíprocos de cooperação leal.

88      Daqui resulta que, à semelhança do espaço de liberdade, segurança e justiça, a cooperação, para efeitos da aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE, entre a Comissão, as autoridades da concorrência dos Estados‑Membros e os órgãos jurisdicionais nacionais assenta nos princípios do reconhecimento mútuo, da confiança mútua e da cooperação leal, que impõem a cada uma dessas autoridades e órgãos jurisdicionais que considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todas as outras autoridades e órgãos jurisdicionais respeitam o direito da União e, muito particularmente, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito.

89      Segundo, resulta da jurisprudência referida no n.o 45, supra, que, quando os efeitos das infrações alegadas numa denúncia, no essencial, são apenas sentidos no território de um único Estado‑Membro e os litígios relativos a estas infrações foram remetidos, pelo denunciante, aos órgãos jurisdicionais e entidades administrativas competentes deste Estado‑Membro, a Comissão tem o direito de rejeitar a denúncia por falta de interesse da União, desde que os direitos do denunciante possam ser salvaguardados de modo satisfatório pelas instâncias nacionais.

90      A jurisprudência já impõe, portanto, à Comissão que, antes de rejeitar uma denúncia por falta de interesse da União, se assegure de que as instâncias nacionais estão em condições de salvaguardar de modo satisfatório os direitos do denunciante. Esta jurisprudência, na medida em que se refere, de forma ampla, às «instâncias nacionais», abrange simultaneamente as autoridades nacionais da concorrência e os órgãos jurisdicionais nacionais competentes na matéria. Ora, se existissem, no Estado‑Membro em causa, falhas sistémicas ou generalizadas suscetíveis de comprometer a independência dessas instâncias, bem como motivos sérios e comprovados para acreditar que, se a Comissão rejeitasse a denúncia e esta fosse apresentada às referidas instâncias, o denunciante correria um risco real de violação dos seus direitos, então as referidas instâncias nacionais não poderiam salvaguardar de modo satisfatório os direitos do denunciante na aceção da jurisprudência recordada no n.o 45, supra.

91      Terceiro, o direito fundamental a um processo equitativo perante um tribunal independente, garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, assume igualmente uma importância muito particular para a aplicação eficaz dos artigos 101.o e 102.o TFUE. Com efeito, os órgãos jurisdicionais nacionais são chamados, por um lado, a fiscalizar a legalidade das decisões das autoridades nacionais da concorrência e, por outro, a aplicar diretamente os artigos 101.o e 102.o TFUE. A este respeito, o Tribunal de Justiça já sublinhou que cabe aos Estados‑Membros, por força do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, instituir os meios processuais necessários para assegurar aos interessados o respeito do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União, incluindo no domínio do direito da concorrência (v., a este respeito, jurisprudência referida n.o 67, supra).

92      Decorre do que precede que o respeito das exigências do Estado de Direito é um fator pertinente que a Comissão deve ter em conta, para efeitos da determinação da autoridade da concorrência mais bem colocada para examinar uma denúncia e que, para esse efeito, a Comissão podia, no caso em apreço, aplicar por analogia o Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586).

93      Em segundo lugar, resulta da decisão impugnada que a Comissão se limitou a indicar, em substância, que as condições relativas à segunda etapa de análise identificada no Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586), não estavam reunidas no caso em apreço, evitando tomar posição sobre se as condições relativas à primeira etapa da análise identificada nesse mesmo acórdão estavam preenchidas.

94      Ora, uma vez que estas duas etapas de análise são cumulativas, a Comissão não pode ser acusada de se ter limitado, por razões de economia processual, ao exame da segunda etapa.

95      Por conseguinte, os argumentos apresentados pela recorrente destinados a demonstrar, de maneira geral, a existência de falhas sistémicas ou generalizadas na Polónia suscetíveis de comprometer a independência da autoridade da concorrência polaca e dos órgãos jurisdicionais nacionais competentes na matéria são inoperantes.

96      Em terceiro lugar, há que examinar os fundamentos expostos na decisão impugnada pelos quais a Comissão considerou que as condições relativas à segunda etapa da análise não estavam preenchidas no caso em apreço.

97      A este respeito, resulta da jurisprudência que, no âmbito desta segunda etapa da análise, cabe em primeiro lugar à pessoa em causa, no caso em apreço a recorrente, apresentar indícios da existência de motivos sérios e comprovados para acreditar que correria um risco real de violação dos seus direitos se o seu processo devesse ser examinado pelas instâncias nacionais. Cabe, em seguida, à Comissão, à luz das preocupações específicas manifestadas pela recorrente e das informações por esta eventualmente prestadas, apreciar, de modo concreto e preciso, se, nas circunstâncias do caso concreto, existiam esses motivos, tendo em conta tanto a situação pessoal da referida parte como a natureza da infração pela qual é perseguida e o contexto factual [v., neste sentido, por analogia, Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.os 60, 68 e 75].

98      No caso em apreço, a recorrente alegou, durante o procedimento administrativo, um conjunto de indícios concretos e de informações específicas suscetíveis, em seu entender, de demonstrar, considerados no seu conjunto, que existiam motivos sérios e comprovados para acreditar que corria um risco real de violação dos seus direitos se o seu processo devesse ser examinado pelas instâncias nacionais. Ora, segundo a recorrente, a Comissão não tomou em consideração esses indícios e informações nem fundamentou suficientemente a decisão impugnada a esse respeito.

99      Em especial, primeiro, a recorrente chamou a atenção da Comissão para o facto de a PKP Cargo ser uma empresa controlada pelo Estado e de, devido às relações estreitas entre esta e o Governo, a autoridade da concorrência polaca se poder mostrar clemente, ou mesmo enviesada em relação a essa empresa. Com efeito, segundo a recorrente, por um lado, o presidente da autoridade da concorrência polaca depende inteiramente do poder executivo, uma vez que é nomeado e destituído pelo primeiro‑ministro, sem que a lei precise a duração do seu mandato e os motivos da sua destituição. O facto de o primeiro‑ministro ter destituído várias vezes o presidente desta autoridade desde 2014 é revelador dessa dependência. Por outro lado, a PKP S.A., que é a sociedade‑mãe da PKP Cargo, faz parte dos membros da Fundação Nacional polaca, uma associação criada e financiada, sempre segundo a recorrente, pelas maiores sociedades públicas da Polónia, que tem por objeto defender e promover, através de campanhas mediáticas, a reforma do sistema judicial na Polónia.

100    Segundo, a recorrente referiu diversas vezes que, em abril de 2007, o procurador‑geral da época, Z. Ziobro, tinha deduzido oposição à Decisão da autoridade da concorrência polaca de 17 de junho de 2004 no processo DOK 50/04, pela qual esta autoridade declarou existir um abuso de posição dominante da PKP Cargo e lhe aplicou uma sanção a esse título. De acordo com a recorrente, esta circunstância demonstra «a vontade política de proteger uma das principais sociedades do Tesouro Público» e era suscetível de pôr em causa a independência da autoridade da concorrência polaca, uma vez que esta última «ocupa[va] uma posição muito mais frágil» do que a do procurador‑geral.

101    Terceiro, segundo a recorrente, a política clemente da autoridade da concorrência polaca em relação à PKP Cargo é demonstrada pelo facto de, por um lado, as sanções que lhe foram aplicadas no passado terem sido diminutas, não dissuasoras e ineficazes, como demonstra o facto de, apesar das mesmas, a PKP Cargo persistir nas suas práticas anticoncorrenciais, e, por outro, a referida autoridade ter recusado tomar qualquer medida contra a PKP Cargo desde 2015, apesar de a recorrente ter apresentado vários pedidos a esse respeito. Esta última circunstância revela uma alteração na política da referida autoridade relativamente à PKP Cargo desde 2015, a qual se explica pela sua falta de independência.

102    Quarto, a recorrente salientou, em substância, que os órgãos jurisdicionais nacionais competentes em matéria de direito da concorrência não estavam em condições de suprir as falhas da autoridade da concorrência polaca devido à sua falta de independência.

103    Na decisão impugnada, a Comissão limitou‑se, no n.o 25, alínea v), a afirmar que os argumentos apresentados pela recorrente relativos à segunda etapa da análise, recordada no n.o 80, supra, continham «exclusivamente alegações não fundamentadas» e que o facto de o presidente da autoridade da concorrência polaca ser nomeado pelo primeiro‑ministro não prejudicava a independência das suas decisões em relação à PKP Cargo. Nenhum outro excerto da decisão impugnada revela alguma apreciação substancial do conjunto de indícios apresentado pela recorrente para esse efeito, nem, aliás, as razões pelas quais a Comissão considerou que todos esses indícios eram «exclusivamente» «não fundamentados».

104    Assim, não resulta da decisão impugnada que a Comissão tenha examinado de forma concreta e precisa os diferentes indícios apresentados pela recorrente durante o procedimento administrativo. Ora, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 97, supra, a Comissão devia apreciar, de modo concreto e preciso, à luz das preocupações específicas manifestadas pela recorrente e das informações por esta eventualmente prestadas, se, nas circunstâncias do caso em apreço, existiam motivos sérios e comprovados para acreditar que a recorrente corria um risco real de violação dos seus direitos se o seu processo devesse ser examinado pelas instâncias nacionais.

105    A fundamentação sumária da decisão impugnada quanto a este aspeto não permite nem à recorrente conhecer as razões pelas quais a Comissão excluiu os indícios concretos apresentados por ela e relativos à segunda etapa da análise recordada no n.o 80, supra, nem ao Tribunal Geral exercer uma fiscalização efetiva da legalidade dessa decisão e apreciar se existiam motivos sérios e comprovados para acreditar que a recorrente corria um risco real de violação dos seus direitos (v., neste sentido, Acórdão de 14 de setembro de 2017, Contact Software/Comissão, T‑751/15, não publicado, EU:T:2017:602, n.os 39 e 40 e jurisprudência referida).

106    Por conseguinte, o segundo fundamento e a segunda parte do primeiro fundamento do recurso devem ser julgados procedentes e, consequentemente, há que anular a decisão impugnada, sem que seja necessário examinar os outros argumentos invocados pela recorrente em apoio da segunda parte do primeiro fundamento.

 Quanto às despesas

107    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la a suportar as suas próprias despesas, bem como as efetuadas pela recorrente, em conformidade com o pedido desta última.

108    A República da Polónia suportará as suas próprias despesas, nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Décima Secção alargada)

decide:

1)      A Decisão C(2019) 6099 final da Comissão, de 12 de agosto de 2019 (processo AT.40459 — Expedição de frete ferroviário na Polónia — PKP Cargo), é anulada.

2)      A Comissão é condenada a suportar as suas próprias despesas, bem como as efetuadas pela SpedPro S.A.

3)      A República da Polónia suportará as suas próprias despesas.

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 9 de fevereiro de 2022.



*      Língua do processo: polaco.