Language of document : ECLI:EU:C:2024:364

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 25 de abril de 2024 (1)

Processo C228/23

Association AFAÏA

contra

Institut national de l’origine et de la qualité (INAO),

sendo interveniente:

Ministre de l’Agriculture et de l’Alimentation

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França)]

«Reenvio prejudicial — Agricultura — Produção biológica — Regulamento (UE) 2018/848 — Utilização de fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes na produção biológica — Regulamento de Execução (UE) 2021/1165 — Anexo II — Conceitos de pecuária industrial e de pecuária sem terra — Critérios para qualificar de industrial uma exploração pecuária na aceção do anexo II do Regulamento de Execução (UE) 2021/1165»






1.        Neste processo de reenvio prejudicial é pedido ao Tribunal de Justiça que interprete o conceito de exploração pecuária industrial (2) constante do Regulamento (UE) 2018/848 (3) e do Regulamento de Execução (UE) 2021/1165 (4).

2.        O litígio de origem insere‑se num contexto de crescimento da produção biológica (5), que se reflete no direito da União. Um dos problemas que se suscitam é o relativo à aplicação de fertilizantes em terrenos dedicados a esta produção (6), cujo regime o legislador europeu ainda não regulou com a necessária precisão.

3.        O Regulamento 2018/848 e o Regulamento de Execução 2021/1165 permitem, a título excecional e sob determinadas condições, que na agricultura biológica sejam utilizados estrumes não biológicos (7) provenientes da pecuária convencional (8). A principal restrição imposta pelas suas normas à utilização desse tipo de estrumes é a de não provirem de explorações pecuárias industriais. O pedido de decisão prejudicial tem por objeto determinar, precisamente, qual o significado desta última expressão.

I.      Quadro jurídico: direito da União

A.      Regulamento 2018/848

4.        Em conformidade com o artigo 4.° («Objetivos»):

«Produção biológica tem os seguintes objetivos gerais: […] b) Manter a fertilidade dos solos a longo prazo, […] d) Contribuir substancialmente para um ambiente não tóxico, e) Contribuir para normas exigentes de bem‑estar dos animais e, em especial, satisfazer as necessidades comportamentais dos animais que sejam próprias de cada espécie […]».

5.        O artigo 5.° («Princípios gerais») prevê:

«A produção biológica é um sistema de gestão sustentável baseado nos seguintes princípios gerais:

a)      Respeito pelos sistemas e ciclos da natureza e conservação e melhoria do estado dos solos, da água e do ar, da saúde dos vegetais e dos animais, assim como do equilíbrio entre eles;

[…]

d)      A produção de uma ampla variedade de géneros alimentícios e outros produtos agrícolas e aquícolas de elevada qualidade que respondam à procura, por parte dos consumidores, de bens produzidos por processos que não sejam nocivos para o ambiente, a saúde humana, a fitossanidade ou a saúde e o bem‑estar animal;

[…]

g)      A restrição da utilização de fatores de produção externos; quando forem necessários fatores de produção externos ou quando não existirem as práticas e os métodos de gestão adequados referidos na alínea f), os fatores de produção externos são limitados a:

i)      fatores de produção provenientes da produção biológica, sendo, no caso do material de reprodução vegetal, dada prioridade às variedades selecionadas pela sua capacidade de atender às necessidades e objetivos específicos da agricultura biológica,

ii)      substâncias naturais ou derivadas de substâncias naturais,

iii)      fertilizantes minerais de baixa solubilidade;

[…]

j)      A observância de um elevado nível de bem‑estar animal, respeitando as necessidades próprias de cada espécie».

6.        O artigo 9.° («Regras de produção gerais»), n.° 3, dispõe:

«Para os efeitos e as utilizações a que se referem os artigos 24.° e 25.° e o anexo II, apenas os produtos e substâncias que tenham sido autorizados nos termos dessas disposições podem ser utilizados na produção biológica, desde que a sua utilização na produção não biológica tenha também sido autorizada em conformidade com as disposições pertinentes do direito da União e, se aplicável, em conformidade com as disposições nacionais baseadas no direito da União.

[…]».

7.        Segundo o artigo 12.° («Regras aplicáveis à produção vegetal»), n.° 1:

«Os operadores que produzem vegetais ou produtos vegetais devem cumprir, nomeadamente, as regras pormenorizadas estabelecidas no anexo II, parte I».

8.        O artigo 14.° («Regras aplicáveis à produção animal»), n.° 1, estabelece:

«Os operadores no setor da produção animal cumprem, nomeadamente, as regras de produção pormenorizadas estabelecidas no anexo II, parte II, e em todos os atos de execução referidos no n.° 3 do presente artigo».

9.        O artigo 24.° («Autorização dos produtos e substâncias para utilização na produção biológica») tem a seguinte redação:

«1.      A Comissão pode autorizar a utilização de determinados produtos e substâncias na produção biológica e inscreve todos esses produtos e substâncias autorizados em listas restritivas para os seguintes fins:

[…]

b)      Como fertilizantes, corretivos dos solos e nutrientes;

[...]

3.      A autorização da utilização dos produtos e substâncias referidos no n.° 1 na produção biológica está sujeita aos princípios estabelecidos no capítulo II e aos critérios a seguir indicados, que são avaliados como um todo:

[…]

d)      No caso dos produtos referidos no n.° 1, alínea b), a sua utilização é essencial para desenvolver ou manter a fertilidade do solo ou para satisfazer requisitos nutricionais específicos das culturas, ou para objetivos específicos de correção do solo;

[…]».

10.      O anexo II, parte I («Regras aplicáveis à produção vegetal»), indica:

«Além das regras de produção estabelecidas nos artigos 9.° a 12.°, são aplicáveis à produção vegetal biológica as regras estabelecidas na presente parte.

1.      Requisitos gerais

[…]

1.9      Gestão e fertilização do solo

[…]

1.9.2.      A fertilidade e a atividade biológica dos solos devem ser mantidas e aumentadas:

[…]

c)      Em todos os casos, pela aplicação de estrume animal ou de matéria orgânica, de preferência ambos compostados, provenientes da produção biológica.

1.9.3. Sempre que não seja possível satisfazer as necessidades nutricionais dos vegetais através das medidas previstas nos pontos 1.9.1 e 1.9.2, podem apenas ser utilizados, e só na medida do necessário, os fertilizantes e corretivos do solo autorizados nos termos do artigo 24.° para utilização na produção biológica.

[…]».

11.      No anexo II, parte II («Regras aplicáveis à produção animal»), refere‑se:

«Além das regras de produção estabelecidas nos artigos 9.°, 10.°, 11.° e 14.°, são aplicáveis à produção animal biológica as regras estabelecidas na presente parte.

1.      Requisitos gerais

1.1      Exceto no caso da apicultura, a produção animal sem terra é proibida se o agricultor que tenciona produzir animais de criação biológica não gerir terrenos agrícolas e não tiver estabelecido um acordo de cooperação escrito com um agricultor no que diz respeito à utilização de unidades de produção biológica ou de unidades de produção em conversão para esses animais.

[…]

[1.4. 2.1]. […] os animais de criação biológica devem pastar em terrenos biológicos […]

1.6.3.       A densidade populacional dentro dos edifícios deve proporcionar conforto e bem‑estar e ter em conta as necessidades específicas dos animais, e deve depender, nomeadamente, da espécie, da raça e da idade destes. […]

[...]

1.6.8.      A utilização de jaulas, compartimentos e plataformas para criar animais não é permitida para nenhuma espécie animal.

[…]».

B.      Regulamento de Execução 2021/1165

12.      O artigo 2.° estipula:

«Para efeitos do disposto no artigo 24.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento (UE) 2018/848, apenas as substâncias e os produtos enumerados no anexo II do presente regulamento podem ser utilizados na produção biológica como fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes para a nutrição de plantas, […] desde que cumpram as disposições aplicáveis do direito da União […]».

13.      O anexo II prevê:

«Os fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes […] enumerados no presente anexo podem ser utilizados na produção biológica, desde que cumpram

—      a legislação aplicável nacional e da União, relativa aos produtos fertilizantes, designadamente os Regulamentos (CE) n.° 2003/2003 e (UE) 2019/1009; e

[…]

Só podem ser utilizados em observância das especificações e restrições de utilização constantes da respetiva legislação nacional e da União mencionada. Na coluna da direita dos quadros são especificadas condições mais restritivas de utilização na produção biológica.

Designação Produtos compostos ou que contêm unicamente as matérias constantes da lista seguinte

Descrição e condições e limites específicos

Estrume

Produtos constituídos por uma mistura de excrementos de animais e de matérias vegetais (camas de animais e matérias‑primas para alimentação animal)

Proibidos os produtos provenientes das explorações pecuárias “sem terra”

Estrume seco e estrume de aves de capoeira desidratado

Proibidos os produtos provenientes das explorações pecuárias “sem terra”

Excrementos compostados de animais, incluindo o estrume de aves de capoeira e estrumes compostados

Proibidos os produtos provenientes das explorações pecuárias “sem terra”

Excrementos líquidos de animais

Utilização após fermentação controlada e/ou diluição adequada

Proibidos os produtos provenientes das explorações pecuárias “sem terra”

[…]».

II.    Matéria de facto, litígio e questões prejudiciais

14.      O Institut national de l’origine et de la qualité (Instituto Nacional da Origem e da Qualidade, França; a seguir, «INAO») é um organismo público que, sob a tutela do Ministério competente, está encarregado de aplicar a política deste Estado‑Membro relativa aos sinais oficiais de identificação da qualidade e da origem dos produtos agrícolas e agroalimentares.

15.      Em 2020, o INAO alterou o seu «guia de leitura» (9) da regulamentação europeia para, em especial, interpretar a proibição, constante do anexo I do Regulamento (CE) n.° 889/2008 (10), de utilizar nas culturas biológicas os adubos e corretivos do solo de origem animal «provenientes das explorações pecuárias”sem terra”».

16.      Segundo o guia de leitura, é excluído o estrume «proveniente de animais criados em recintos totalmente ripados ou engradados e que excedam os limiares definidos no anexo I da Diretiva 2011/92/UE» e o «proveniente de animais criados em jaulas e que excedam» os mesmos limiares.

17.      A associação AFAÏA (11) pediu a revogação desta parte do Guia, mas o INAO indeferiu esse pedido em 4 de fevereiro de 2020.

18.      A AFAÏA pediu ao Conselho de Estado, em formação jurisdicional (França) a anulação da decisão do INAO de 4 de fevereiro de 2020 (12). Na sua opinião, o INAO não era competente para adotar medidas complementares dos Regulamentos (CE) n.° 834/2007 (13) e n.° 889/2008 e o guia de leitura omitia o sentido e o alcance destes regulamentos. O pedido de decisão prejudicial insere‑se no âmbito deste litígio.

19.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é aplicável a legislação em vigor à data da prolação da decisão, isto é, o Regulamento 2018/848 e o Regulamento de Execução 2021/1165. Após a entrada em vigor de ambos os regulamentos, o INAO atualizou o guia de leitura, mas não alterou o seu conteúdo no que respeita à definição de exploração pecuária industrial (14).

20.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio:

—      Existem divergências nas diferentes versões linguísticas (15) sobre o conceito de exploração pecuária industrial, que não é definido pelo Regulamento de Execução 2021/1165, pelo Regulamento 2018/848, nem pelas normas precedentes sobre agricultura biológica.

—      Este conceito é interpretado de forma diferente consoante os Estados‑Membros, uma vez que alguns continuam a equipará‑lo ao de exploração (pecuária) sem terra, enquanto outros distinguem ambos os conceitos e definem a exploração pecuária industrial por referência a requisitos técnicas, a limiares de número de animais e a exigências de alimentação.

21.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o anexo II do Regulamento 2021/1165 […] ser interpretado no sentido de que o conceito de exploração pecuária nele previsto é equivalente ao conceito de explorações pecuárias “sem terra”?

2)      Se o conceito de exploração pecuária for distinto do conceito de exploração pecuária “sem terra”, que critérios devem ser utilizados para determinar se uma exploração deve ser qualificada de exploração pecuária na aceção do anexo II do Regulamento 2021/1165?»

III. Tramitação processual no Tribunal de Justiça

22.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de abril de 2023.

23.      Foram apresentadas observações escritas pela AFAÏA, pelos Governos Finlandês e Francês e pela Comissão Europeia.

24.      Na audiência realizada em 21 de fevereiro de 2024 intervieram a AFAÏA, o Governo Francês e a Comissão.

IV.    Apreciação

A.      Primeira questão prejudicial: diferença entre «pecuária industrial» e «produção animal [pecuária] sem terra»

25.      De acordo com o anexo II, primeiro parágrafo, do Regulamento de Execução 2021/1165, «[o]s fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes enumerados no presente anexo podem ser utilizados na produção biológica, desde que cumpram

—      a legislação aplicável nacional e da União, relativa aos produtos fertilizantes, designadamente os Regulamentos (CE) n.° 2003/2003 e (UE) 2019/1009; e

—      a legislação da União relativa aos subprodutos animais, designadamente os Regulamentos (CE) n.° 1069/2009 e (UE) n.° 142/2011, nomeadamente os anexos V e XI».

26.      O terceiro parágrafo do referido anexo II precisa que os fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes «[s]ó podem ser utilizados em observância das especificações e restrições de utilização constantes da respetiva legislação nacional e da União mencionada». No quadro anexo acrescenta condições restritivas para a produção biológica.

27.      Concretamente, este quadro especifica que na produção biológica são «[p]roibidos os produtos provenientes das explorações pecuárias “sem terra” [industriais]» os seguintes produtos: estrume (16); estrume seco e estrume de aves de capoeira desidratado; excrementos compostados de animais, incluindo o estrume de aves de capoeira e estrumes compostados; e excrementos líquidos de animais (17).

28.      Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, não há uma definição de pecuária industrial no Regulamento de Execução 2021/1165, no Regulamento 2018/848, nem em mais nenhuma norma do direito da União.

29.      Além disso, nem sequer são coincidentes as diversas versões linguísticas do Regulamento de Execução 2021/1165 quanto à utilização da expressão pecuária industrial, porque algumas delas utilizam, em vez desta, a de «exploração (pecuária) “sem terra”» (18).

30.      Estas circunstâncias deram lugar a uma prática heterogénea: alguns Estados‑Membros equiparam a pecuária industrial à pecuária «sem terra» e outros definem a pecuária industrial por referência a requisitos técnicos, limiares de número de animais e exigências de alimentação, que são variáveis.

31.      Essas diferenças causam distorções da concorrência no mercado interno e influenciam de forma negativa os operadores económicos envolvidos e os fornecedores de fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes.

32.      O Regulamento de Execução 2021/1165 também não remete para o direito interno de cada um dos Estados‑Membros a caracterização do que deve ser considerado exploração pecuária industrial. Daqui resulta a necessidade de o Tribunal de Justiça proceder a uma interpretação autónoma e uniforme desta expressão (19), recorrendo aos critérios hermenêuticos habituais (20).

1.      Interpretação literal

33.      O anexo II, terceiro parágrafo, do Regulamento de Execução 2021/1165 não dá nenhuma indicação quanto ao sentido da expressão exploração pecuária industrial nem quanto à questão de saber se coincide ou difere do de «exploração pecuária “sem terra”». O mesmo acontece com o Regulamento 2018/848.

34.      Recorrer ao critério literal é especialmente difícil quando, como sucede no presente caso, existem divergências notáveis entre as versões linguísticas do anexo II, terceiro parágrafo, do Regulamento de Execução 2021/1165.

35.      A comparação entre essas versões revela que 21 delas fazem referência a exploração pecuária, produção ou exploração, que qualificam de industrial (21), intensiva (22) ou em larga escala (23). Estes termos poderiam ser considerados equivalentes e, como já referi, opto por utilizar o de pecuária industrial. Pelo contrário, as versões em língua dinamarquesa, neerlandesa e portuguesa utilizam o conceito de exploração pecuária «sem terra» (24).

36.      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as diversas versões linguísticas devem ser interpretadas de modo uniforme (25). Nenhuma tem prioridade em relação às outras (26).

37.      De acordo com o seu sentido habitual, é industrial a atividade pecuária em que os animais se encontram, regra geral, estabulados e em condições criadas e controladas de forma artificial. O gado é criado pela utilização de métodos próprios da indústria, isto é, orientados para maximizar a produção no menor período de tempo possível.

38.      Geralmente, a pecuária industrial exige grandes investimentos, recorre a alimentos enriquecidos e à utilização preventiva de antibióticos, e tem uma elevada produtividade, mas pode dar origem a uma contaminação significativa do ambiente. A proteção específica do bem‑estar animal não está necessariamente entre as suas prioridades (27).

39.      O conceito de exploração pecuária sem terra também não é definido pelo Regulamento de Execução 2021/1165 nem por nenhuma outra norma do direito da União. O anexo II, parte II, ponto 1.1, do Regulamento 2018/848 faz‑lhe menção ao indicar que a «produção animal sem terra» é proibida em determinadas circunstâncias (28).

40.      A pecuária sem terra corresponde, portanto, a uma produção animal realizada em recintos artificiais e em que os alimentos não provêm da superfície onde está instalada essa exploração, cujos efluentes são evacuados para o exterior (29).

41.      Sob uma perspetiva literal, a pecuária industrial engloba a exploração pecuária sem terra, mas é um conceito mais amplo. Pode haver explorações pecuárias que, pelas suas características, mesmo dispondo de terra, sejam qualificadas de industriais (30).

42.      A interpretação textual leva, portanto, a considerar que os fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes cuja utilização na agricultura biológica é proibida pelo anexo II do Regulamento de Execução 2021/1165 são os provenientes da exploração pecuária industrial e não apenas da exploração pecuária sem terra. De certo modo, a pecuária sem terra é a forma mais extrema, mas não a única, de pecuária industrial.

2.      Interpretação histórica e sistemática

43.      A divergência entre as versões linguísticas do Regulamento de Execução 2021/1165 já existia no regime que precedeu o atual [Regulamento n.° 834/2007 e Regulamento n.° 889/2008].

44.      O artigo 12.°, n.° 1, alínea d), do Regulamento n.° 834/2007 admitia o uso de fertilizantes e corretivos dos solos que tivessem sido autorizados pela Comissão, além dos de origem biológica. No anexo I do Regulamento n.° 889/2008, a Comissão admitiu a utilização dos mesmos produtos, com exceção dos provenientes de «explorações pecuárias industriais» (maioria das versões) ou de «explorações pecuárias sem terra» (uma minoria de versões), sem definir estes conceitos.

45.      Anteriormente, o Regulamento (CEE) n.° 2092/91 (31), revogado pelo Regulamento n.° 834/2007, estabelecia que:

—      O uso do «estrume» e o «estrume de aves de capoeira desidratado» se limitava ao «[p]roveniente unicamente de explorações extensivas na aceção do n.° 5 do artigo 6.° do Regulamento (CEE) n.° 2328/91» (32). Estes produtos não podiam, assim, ser usados como fertilizantes na agricultura biológica se proviessem da exploração pecuária industrial.

—      A utilização de «[e]xcrementos compostados de animais, incluindo o estrume de aves de capoeira e estrumes compostados» e dos «[e]xcrementos líquidos de animais» não era permitida se fosse proveniente de exploração pecuária industrial («produtos provenientes das explorações pecuárias intensivas [industriais]» ou «explorações pecuárias “sem terra”» em algumas versões).

46.      A evolução legislativa revela que o conceito de pecuária industrial era o maioritariamente utilizado na legislação da União antes do Regulamento de Execução 2021/1165. Revela, na mesma ordem de ideias, que o conceito de pecuária sem terra é englobado no conceito mais amplo de pecuária industrial.

3.      Interpretação teleológica

47.      A regulamentação da União sobre a produção biológica tem subjacentes vários objetivos, dos quais se destacam, para o que aqui importa, a proteção do bem‑estar dos animais e o respeito da confiança dos consumidores nos produtos rotulados como biológicos.

48.      A leitura dos considerandos primeiro (33) e segundo (34) do Regulamento 2018/848, bem como do seu artigo 4.°, evidencia que a proteção do bem‑estar dos animais é um dos objetivos dessas disposições, em conformidade com o artigo 13.° TFUE. Segundo este, a União e os Estados‑Membros «terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem‑estar dos animais, enquanto seres sensíveis (35).

49.      O Tribunal de Justiça declarou que, «[a]o sublinhar, em várias ocasiões, a sua vontade de assegurar um elevado nível de bem‑estar dos animais no quadro da agricultura biológica, o legislador da União quis frisar que este modo de produção agrícola se caracteriza pela observância de normas reforçadas em matéria de bem‑estar dos animais em todos os lugares e em todas as fases da produção em que é possível melhorar ainda mais o bem‑estar» (36).

50.      A preservação do bem‑estar dos animais na produção biológica milita no sentido de restringir a utilização dos efluentes provenientes da exploração pecuária industrial. A exploração pecuária extensiva, pelo contrário, é compatível com um elevado nível de bem‑estar dos animais, mesmo que não seja biológica.

51.      O sexto considerando do Regulamento 2018/848 proclama que o quadro jurídico da produção biológica tem como objetivo, nomeadamente, «manter e justificar a confiança dos consumidores nos produtos rotulados como biológicos».

52.      É mais fácil corresponder às legítimas expectativas dos consumidores de produtos biológicos se os fatores de produção na agricultura biológica provierem de fontes biológicas (ou, quando estas não forem suficientes, se utilizarem fatores de produção não biológicos, mas expressamente autorizados pela Comissão, com a finalidade de excluir o máximo possível de poluentes). No caso dos fertilizantes, a exclusão dos provenientes da exploração pecuária industrial reflete a mesma lógica.

53.      A influência destes dois objetivos na interpretação do termo exploração pecuária industrial coincide com a resultante da aplicação dos critérios literal e histórico. Além disso, esta interpretação é coerente com o anexo II, parte I, pontos 1.9.2, alínea c), e 1.9.3, do Regulamento 2018/848 que prevê, como regra geral, a utilização preferencial de estrume animal ou matéria orgânica de produção biológica na agricultura biológica.

54.      Só excecionalmente, quando a fertilidade do solo e as necessidades nutricionais das plantas não possam ser satisfeitas por estrume animal ou matéria orgânica de produção biológica, é que pode ser aplicável o artigo 24.°, n.° 4, alínea d), do Regulamento 2018/848. Nos termos deste, é permitido utilizar (e unicamente na medida do necessário) os fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes (não biológicos) expressamente autorizados pela Comissão, que são os que não provêm de explorações pecuárias industriais, segundo o anexo II, terceiro parágrafo, do Regulamento de Execução 2021/1165.

55.      Esta exceção à regra geral deve ser objeto de uma interpretação estrita, em consonância com os objetivos da legislação relativa à agricultura biológica (37).

56.      Pelo contrário, se a proibição da utilização na agricultura biológica se limitasse apenas aos estrumes provenientes da exploração pecuária sem terra, estaria a privilegiar‑se uma interpretação excessivamente estrita da restrição do anexo II, terceiro parágrafo, do Regulamento de Execução 2021/1165

57.      Na audiência, a AFAÏA defendeu precisamente esta interpretação lata, afirmando que assim é assegurada a disponibilidade de estrumes para uma agricultura biológica em constante crescimento e é evitado o recurso a fertilizantes químicos, mais nocivos para o ambiente e para a fertilidade dos solos a longo prazo. No entanto, segundo os dados apresentados pelo Governo Francês na audiência, esta interpretação não seria necessária, por enquanto, para assegurar uma disponibilidade suficiente de estrumes na agricultura biológica (38).

58.      É mais fácil cumprir, repito, os objetivos de proteção do bem‑estar dos animais e de satisfação das legítimas expectativas dos consumidores de produtos biológicos se se entender que os estrumes provenientes de explorações pecuárias convencionais (cuja utilização é permitida na agricultura biológica) são os que não provêm da exploração pecuária industrial. Neste último conceito engloba‑se, evidentemente, a exploração pecuária sem terra, mas também outras modalidades de produção, como a que é levada a cabo em terrenos insuficientes e limitados.

59.      Em suma, considero que a correta interpretação do anexo II, terceiro parágrafo, do Regulamento de Execução 2021/1165 conduz a que se declare que o conceito de «exploração (pecuária) sem terra» é mais reduzido e não equivale ao de exploração pecuária industrial. Este último abrange aquele, de modo que os fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes provenientes de explorações pecuárias industriais, e não só das explorações sem terra, não são admissíveis na produção biológica.

B.      Segunda questão prejudicial

60.      O órgão jurisdicional de reenvio formula a sua segunda questão para a hipótese (com a qual estou de acordo) de o conceito de exploração pecuária industrial ser diferente do de exploração pecuária sem terra. Com esta questão, pretende saber quais os critérios a ter em conta ao decidir se uma exploração pecuária é qualificada de industrial, na aceção do anexo II do Regulamento 2021/1165.

61.      Como já repeti, o legislador da União não definiu o que entende por exploração pecuária industrial para efeitos da aplicação do Regulamento de Execução 2021/1165. Apesar dessa falta de regulamentação, o Tribunal de Justiça pode proporcionar ao órgão jurisdicional de reenvio orientações para interpretar esse conceito, sem que tal signifique que se arroga funções legislativas (39).

62.      Permitem alguns esclarecimentos, neste sentido, dois textos de divulgação, respetivamente provenientes da Comissão e de um grupo de peritos que a mesma convocou.

1.      Guia da Comissão de 1995

63.      O guia de aplicação do Regulamento n.° 2092/91, elaborado pela Comissão em 1995 (40), explicava que a legislação da União excluía o uso de efluentes das explorações pecuárias industriais devido às técnicas de pecuária intensiva utilizadas e à presença nesses efluentes de resíduos indesejados (41).

64.      O guia reconhecia que a exploração pecuária industrial não tinha uma definição padrão no direito da União e que cabia aos Estados‑Membros delimitar o âmbito de aplicação deste conceito. No entanto, a Comissão sugeriu que no mesmo fossem incluídas as explorações que conjugam:

—      por um lado, instalações que impeçam os animais de se moverem 360 graus, que os mantenham predominantemente na obscuridade ou sem se deitarem, incluindo os sistemas de criação em bateria de aves de capoeira ou outros animais, e as unidades de frango de engorda com uma densidade superior a 25 quilogramas por metro quadrado.

—      por outro lado, a inexistência de terras destinadas à produção agrícola vegetal que permitissem a utilização do estrume.

2.      Nota do Grupo de peritos de 2021

65.      Em 2021, a Comissão convocou um grupo de peritos para, entre outras tarefas, delimitar os critérios da restrição da utilização de fertilizantes de determinadas proveniências, o que pressupõe precisar o alcance de «pecuária industrial». Na nota publicada por este grupo (42), afirma‑se que não podiam dar uma definição precisa, mas que a aplicação deste conceito podia ser feita através da utilização de um conjunto de indícios ou critérios que indicam ou não a existência de pecuária industrial.

66.      Entre os critérios que provam a existência de pecuária industrial, a Nota EGTOP 2021 menciona os seguintes: criação dos animais em jaulas (aves de capoeira, coelhos, etc.); sistemas que não permitam aos animais uma mobilidade, uma rotação, de 360 graus; sistemas de criação sem terra; animais destinados à indústria de curtumes; densidade de animais nas estruturas destinadas à alimentação (bebedouros) superior a um determinado limite; condições relativas ao bem‑estar dos animais (sistemas de alojamento, solo integral, iluminação, etc.); explorações que impliquem transportes de longa distância; uso preventivo de antibióticos; utilização de rações com organismos geneticamente modificados.

67.      Como critérios positivos para considerar que uma exploração pecuária convencional não exerce pecuária industrial, a Nota EGTOP 2021 enumera os seguintes: criação em liberdade; respeito dos regimes de qualidade (como Label Rouge, Compassion in World Farming, sistemas nacionais de qualidade, etc.) ou de sistemas de venda na exploração e de certificação territorial (denominação de origem protegida, indicação geográfica protegida); restrição da utilização de antibióticos em termos semelhantes aos da exploração pecuária biológica; utilização de materiais de cama de origem vegetal para aumentar o conteúdo orgânico dos solos; limitação da densidade de animais nos comedouros e bebedouros; cumprimento da legislação da União em matéria de bem‑estar dos animais; utilização de matérias‑primas de origem local.

3.      Outros textos e abordagem da resposta do Tribunal de Justiça

68.      Além dos dois textos precedentes, há disposições da União que se referem a explorações industriais de animais. É o que acontece com o artigo 4.° da Diretiva 2011/92/UE (43), que sujeita a avaliação de impacto no ambiente os projetos incluídos no anexo I, entre os quais se encontram (ponto 17) determinadas «[i]nstalações para a criação intensiva de aves de capoeira ou de suínos» (44).

69.      Como foi exposto na audiência, estas disposições da Diretiva 2011/92 têm o seu âmbito de aplicação nos processos de avaliação de impacto no ambiente, mas podem servir de pistas (aproximativas) para determinar a natureza industrial das respetivas explorações (45).

70.      Com base nestes elementos de referência, o Tribunal de Justiça pode fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio algumas indicações, para orientação, sobre a questão de saber quais os efluentes da exploração pecuária admissíveis na agricultura biológica, por não terem origem numa exploração industrial.

71.      Importa distinguir três tipos de efluentes: a) os provenientes da exploração pecuária biológica; b) os provenientes da exploração pecuária convencional, extensiva ou não industrial; e c) os provenientes da exploração pecuária industrial.

a)      Efluentes provenientes da exploração pecuária biológica

72.      O Regulamento 2018/848 exige para a agricultura biológica a utilização preferencial de estrumes e demais fertilizantes provenientes da exploração pecuária biológica [anexo II, parte I, ponto 1.9.2, alínea c)].

73.      Esses estrumes e fertilizantes não podem provir da exploração pecuária industrial, que não é qualificável de produção pecuária biológica em conformidade com o Regulamento 2018/848 e com as suas normas de execução.

b)      Efluentes procedentes de exploração pecuária convencional extensiva ou não industrial

74.      Como já expliquei, o artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento 2018/848 permite, a título excecional, que a Comissão autorize determinados produtos e substâncias como fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes para a sua utilização na produção biológica através de um sistema de listas taxativas.

75.      O Regulamento de Execução 2021/1165 enumera no seu anexo II esses produtos e substâncias. O terceiro parágrafo deste anexo precisa que uns e outras «[s]ó podem ser utilizados em observância das especificações e restrições de utilização constantes da respetiva legislação nacional e da União». Acrescenta, como restrição adicional para a agricultura biológica, a impossibilidade da utilização de efluentes provenientes da pecuária industrial.

76.      Esta lista autoriza, em suma, que para a produção vegetal biológica sejam utilizados fertilizantes e estrumes provenientes da pecuária convencional (a que não é biológica) não industrial.

77.      Na pecuária convencional não industrial, não tenho dúvidas de que se encontra a pecuária convencional extensiva, pelo que os seus efluentes podem ser utilizados em aplicação do anexo II do Regulamento de Execução 2021/1165.

78.      Para determinar o que se entende por pecuária extensiva, é útil o Guia da Comissão de 1995, que remete, quanto aos bovinos, para o artigo 6.°, n.° 5, do Regulamento n.° 2328/91 (46), bem como os critérios mencionados pela Comissão para os restantes tipos de animais, segundo diversos regulamentos da União.

79.      Maior complexidade apresenta a questão de discernir os critérios aplicáveis ao conceito de pecuária convencional não industrial. Este conceito deduz‑se a sensu contrario do da pecuária industrial, tendo presente que qualquer pecuária industrial será convencional, uma vez que não cumpre as exigências da produção animal biológica.

c)      Efluentes procedentes da pecuária industrial

80.      O anexo II do Regulamento 2021/1165 proíbe, repito, que na produção vegetal ecológica sejam utilizados estrumes provenientes de pecuária industrial. Para interpretar esta última expressão, à luz do Guia da Comissão de 1995 e da Nota EGTOP 2021, são relevantes os seguintes critérios qualitativos, cuja enumeração não é taxativa:

—      O sistema de criação dos animais. A criação em jaulas, compartimentos ou plataformas é uma característica própria da exploração pecuária industrial (47) e a criação em liberdade indica, em princípio, que a produção pecuária não é industrial.

—      A mobilidade dos animais. A utilização de sistemas que impeçam aos animais uma mobilidade a 360 graus é outro elemento próprio da exploração pecuária industrial. Evidentemente, a produção industrial não recorre a pastagens nem à transumância, práticas próprias da pecuária extensiva e da produção biológica.

—      A existência de terrenos disponíveis na exploração pecuária. Quando não existem terrenos além dos do recinto da exploração, trata‑se de uma exploração pecuária sem terra, que é industrial por natureza, uma vez que os alimentos dos animais provêm do exterior e os seus efluentes não podem ser absorvidos sem riscos pela terra. No entanto, uma exploração pecuária com terrenos deve respeitar um mínimo de superfície por animal para não ser industrial. A densidade, como é lógico, varia consoante as espécies e deve assegurar a possibilidade de obter uma parte da alimentação dos animais e de utilizar parte dos seus efluentes como fertilizante.

—      As práticas pecuárias e as condições dos recintos da exploração pecuária. A disponibilidade de bebedouros e comedouros por cabeça e as condições relativas ao bem‑estar dos animais (sistemas de alojamento, solo integral, iluminação, etc.) são relevantes. A utilização de gradeamentos e de ripados em vez de solo integral é um indício de pecuária industrial, tal como a ausência de solos secos e com cama de origem vegetal para o descanso dos animais (48).

—      O tipo de alimentação dos animais. A alimentação proveniente do exterior da exploração que utilize rações é característica da pecuária industrial, tal como a ausência de acesso a pastagens ou a forragens como alimento.

—      Os sistemas de profilaxia. A utilização generalizada de tratamentos preventivos à base de determinados medicamentos veterinários é indício de pecuária industrial, em que os animais são criados apinhados e o risco de epidemias é maior.

—      A utilização, igualmente generalizada, quer de substâncias para estimular o crescimento ou a produção, quer de hormonas ou de substâncias similares para controlar a reprodução ou para outras finalidades (49).

81.      Contrariamente ao que é proposto pelo Governo Francês, o critério quantitativo do número de animais, dissociado da área da exploração, não se me afigura adequado para definir, sem nenhuma reserva, a pecuária industrial. O número de animais pode indicar a existência de pecuária industrial, mas não pode ser um critério aplicável de forma isolada e à margem dos critérios qualitativos acima referidos.

82.      É certo que o anexo I, ponto 17, da Diretiva 2011/92 estabelece limiares por número de animais para submeter a avaliação de impacto no ambiente as explorações pecuárias intensivas de frangos e suínos. No entanto, o facto de uma exploração pecuária ser de grandes dimensões não implica necessariamente que seja industrial, embora necessite de muitos terrenos para não ter essa natureza (50). De qualquer modo, o que uma grande exploração pecuária pode ter é um elevado impacto no ambiente e por isso a Diretiva 2011/92 exige que seja avaliada a sua repercussão sobre o ambiente, o que não acontecerá com uma pequena exploração, mesmo que seja intensiva.

V.      Conclusão

83.      Em face do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) nos seguintes termos:

«O anexo II, terceiro parágrafo, do Regulamento de Execução (UE) 2021/1165 da Comissão, de 15 de julho de 2021, que autoriza a utilização de determinados produtos e substâncias na produção biológica e que estabelece as listas respetivas,

deve ser interpretado no sentido de que:

—      O conceito de “exploração (pecuária) sem terra” é mais restrito e não equivale ao de “pecuária industrial”, que abrange o anterior. Na produção vegetal biológica não podem ser utilizados os fertilizantes, corretivos do solo e nutrientes provenientes da pecuária industrial nem a fortiori os provenientes da exploração (pecuária) sem terra.

—      Para qualificar uma exploração pecuária de industrial, para efeitos do anexo II, terceiro parágrafo, do Regulamento de Execução 2021/1165 podem ser utilizados, nomeadamente, os seguintes critérios qualitativos: o sistema de criação dos animais, a possibilidade de se moverem, a disponibilidade de terrenos nas explorações pecuárias e a densidade de animais nesses terrenos, as práticas pecuárias e as condições dos recintos da exploração pecuária, o tipo de alimentação do gado, os sistemas de profilaxia e a utilização de substâncias químicas para estimular o crescimento ou controlar a reprodução».


1      Língua original: espanhol.


2      A versão espanhola do Regulamento de Execução (UE) 2021/1165 utiliza a expressão «ganaderías intensivas» [«explorações pecuárias intensivas»], mas a maioria das versões linguísticas referem‑se a «exploração pecuária industrial». Nas presentes conclusões utilizarei esta última, considerando que ambos os conceitos são equivalentes no âmbito do referido regulamento.


3      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos e que revoga o Regulamento (CE) n.º 834/2007 do Conselho (JO 2018, L 150, p. 1).


4      Regulamento de Execução da Comissão, de 15 de julho de 2021, que autoriza a utilização de determinados produtos e substâncias na produção biológica e que estabelece as listas respetivas (JO 2021, L 253, p. 13).


5      A proporção de terras agrícolas da União dedicadas à agricultura biológica aumentou mais de 50 % no período de 2012 a 2020. Em 2020, 9,1 % da área agrícola da UE estava ocupada com culturas biológicas, percentagem que, em 2021, a Comissão preconizou que devia ser aumentada para 25 % desde esse ano até 2030. Além disso, as vendas de produtos biológicos a retalho duplicaram na União entre 2015 e 2020. V. dados do Relatório de mercado relativo à agricultura biológica publicado pela Comissão Europeia em janeiro de 2023, disponível em https://agriculture.ec.europa.eu/news/organic‑farming‑eu‑decade‑growth‑2023‑01‑18_es?etrans=es#more.


6      As explorações de agricultura biológica necessitam de matéria orgânica para fertilizar os solos. A utilização de estrumes era o modo tradicional de o fazer até à generalização dos fertilizantes químicos, mas estes não são admitidos na agricultura biológica, cujo principal fertilizante continua a ser o estrume.


7      As explorações pecuárias biológicas são maioritariamente extensivas, o que pressupõe que os excrementos dos animais ficam, em larga medida, dispersos no terreno e a sua recolha é impossível, com exceção dos acumulados nas instalações que servem de abrigo aos animais. A disponibilidade de estrumes biológicos é, assim, limitada e não basta para produzir fertilizantes suficientes para a agricultura biológica.


8      Por pecuária convencional deve entender‑se a produção animal que não é biológica, ou seja, que não respeita as condições estabelecidas pelo anexo II do Regulamento 2018/848.


9      Guide de lecture pour l’application des règlements (CE) n.º 834/2007 […] et (CE) n.º 889/2008 (Guia de leitura para a aplicação dos Regulamentos n.º 834/2007 e n.º 889/2008). Disponível em https://www.inao.gouv.fr/content/download/1352/13877/version/18/file/GUIDE‑de‑LECTURE‑RCE‑BIO%202020‑01.pdf.


10      Regulamento da Comissão, de 5 de setembro de 2008, que estabelece normas de execução do Regulamento (CE) n.º 834/2007 do Conselho, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos, no que respeita à produção biológica, à rotulagem e ao controlo (JO 2008, L 250, p. 1).


11      Trata‑se de uma associação profissional que tem por objeto a defesa dos interesses coletivos dos produtores de fertilizantes naturais.


12      Além disso, a AFAÏA pediu que o INAO fosse intimado a alterar o referido guia de leitura no prazo de um mês a contar da notificação da decisão [do Conselho de Estado] e a adotar medidas de publicidade complementares que explicassem que a nova interpretação relativa à definição de estrume resultante de exploração pecuária já não era aplicável nem estava em vigor.


13      Regulamento do Conselho, de 28 de junho de 2007, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos e que revoga o Regulamento (CEE) n.º 2092/91 (JO 2007 L 189, p. 1).


14      Do n.º 3 do despacho de reenvio consta que o INAO disponibilizou, no seu sítio Internet, um novo guia de leitura, aplicável a partir de 1 de janeiro de 2022, que reproduz, no seu n.º 192, a anterior interpretação do conceito de «exploração pecuária industrial».


15      Sublinha que o conceito se encontra na maioria das versões linguísticas do Regulamento de Execução 2021/1165, designadamente na versão em língua inglesa, mas que das versões em língua dinamarquesa, neerlandesa e portuguesa consta, pelo contrário, o conceito de «exploração pecuária sem terra».


16      Especifica‑se que são os «[p]rodutos constituídos por uma mistura de excrementos de animais e de matérias vegetais (camas de animais e matérias‑primas para alimentação animal)».


17      Neste último caso permite‑se a «[u]tilização após fermentação controlada e/ou diluição adequada», mas mantém‑se a proibição de ser proveniente da pecuária industrial.


18      V. as notas 21 a 24 das presentes conclusões.


19      Como decorre das exigências da aplicação uniforme do direito da União e do princípio da igualdade, os termos de uma disposição do direito da União que não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem em princípio ser objeto de interpretação autónoma e uniforme em toda a União. Acórdãos 23 de abril de 2020, Associazione Avvocatura per i diritti LGBTI (C‑507/18, EU:C:2020:289, n.º 31), de 2 de junho de 2022, HK/Danmark e HK/Privat (C‑587/20, EU:C:2022:419, n.º 25) e de 30 de março de 2023, Hauptpersonalrat der Lehrerinnen und Lehrer (C‑34/21, EU:C:2023:270, n.º 40). 


20      Isto é, de acordo com o sentido habitual do conceito na linguagem comum, tendo também em consideração o contexto em que é utilizado e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte. Acórdãos 23 de abril de 2020, Associazione Avvocatura per i diritti LGBTI (C‑507/18, EU:C:2020:289, n.º 32), de 2 de junho de 2022, HK/Danmark e HK/Privat (C‑587/20, EU:C:2022:419, n.º 26), de 30 de março de 2023, Hauptpersonalrat der Lehrerinnen und Lehrer (C‑34/21, EU:C:2023:270, n.º 41) e de 8 de junho de 2023, UFC — Que choisir e CLVC (C‑407/21, EU:C:2023:449, n.º 24).


21      A expressão exploração pecuária industrial é utilizada nas versões francesa («provenance d’élévage industriel interdite»), inglesa («factory farming origin forbidden»), italiana («proibito se proveniente da allevamenti industriali»), romena («proveniența din ferme industriale este interzisă»), alemã («Erzeugnis darf nicht aus industrieller Tierhaltung stammen»), polaca («Zakazane są produkty pochodzące z chowu przemysłowego») ou lituana («medžiagos, gautos pramoninės žemdirbystės būdu, draudžiamos»).


22      As versões búlgara («забранен е произходът от интензивни животновъдни стопанства»), espanhola («prohibida la procedencia de ganaderías intensivas») e grega («η προέλευση από εντατικοποιημένη εκτροφή απαγορεύεται») referem uma exploração pecuária intensiva.


23      A versão checa («Nesmí pocházet z velkochovu») refere‑se a exploração pecuária em larga escala.


24      As versões dinamarquesa («ikke fra jordløst husdyrbrug»), neerlandesa («Het product mag niet afkomstig zijn van nietgrondgebonden veehouderij») e portuguesa («Proibidos os produtos provenientes das explorações pecuárias “sem terra”») referem a exploração pecuária «sem terra».


25      Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi (C‑561/19, EU:C:2021:799, n.º 43).


26      Acórdãos de 27 de março de 1990, Cricket St Thomas (C‑372/88, EU:C:1990:140, n.º 18) e de 26 de janeiro de 2021, Hessischer Rundfunk (C‑422/19 e C‑423/19, EU:C:2021:63, n.º 65).


27      Exemplo de exploração pecuária industrial podem ser as designadas macroexplorações (explorações‑fábricas), que se caracterizam pela concentração de um grande número de animais numa exploração sem área suficiente para a produção dos respetivos alimentos nem para absorver sem riscos os seus excrementos.


28      Isto é, se o agricultor que tenciona produzir animais de criação biológica não gerir terrenos agrícolas e não tiver estabelecido um acordo de cooperação escrito com outro agricultor no que diz respeita à utilização de unidades de produção biológica para os animais.


29      Uma vez mais, as macroexplorações dedicadas à criação de suínos ou de frangos são um exemplo deste tipo de exploração pecuária, simultaneamente intensiva e sem terra.


30      Quando a densidade de animais por hectare é muito alta, os alimentos são trazidos do exterior e podem ser geneticamente modificados, e o terreno não tem capacidade para absorver sem riscos os efluentes dos animais.


31      Regulamento do Conselho, de 24 de junho de 1991, relativo ao modo de produção biológico de produtos agrícolas e à sua indicação nos produtos agrícolas e nos géneros alimentícios (JO 1991, L 198, p. 1).


32      Regulamento do Conselho, de 15 de julho de 1991, relativo à melhoria da eficácia das estruturas agrícolas (JO 1991, L 218, p. 1). Nos termos do seu artigo 6.°, n.º 5, as ajudas para efetuar investimentos no setor da produção de carne de bovino, com exceção das ajudas para proteção do ambiente, «serão limitadas às explorações pecuárias cuja densidade de bovinos para carne não ultrapasse, no final do plano, três cabeças normais (CN) por hectare de superfície forrageira consagrada à alimentação dos mesmos bovinos […]».


33      «A produção biológica é um sistema global de gestão das explorações agrícolas e de produção de géneros alimentícios que combina as melhores práticas em matéria ambiental e climática, um elevado nível de biodiversidade, a preservação dos recursos naturais e a aplicação de normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais e de normas exigentes em matéria de produção em sintonia com a procura, por parte de um número crescente de consumidores de produtos produzidos através da utilização de substâncias e processos naturais […]».


34      «A observância de normas exigentes em matéria de saúde, ambiente e bem‑estar dos animais na produção de produtos biológicos é intrínseca à elevada qualidade destes produtos […]».


35      V. Acórdãos de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 63 e 64) e de 17 de dezembro de 2020, Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o. (C‑336/19, EU:C:2020:1031, n.os 41 e 42.


36      Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Œuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137, n.º 38).


37      Acórdão de 29 de abril de 2021, Natumi (C‑815/19, EU:C :2021:336, n.os 70 e 71): «[…] o Regulamento n.° 2018/848 e o referido projeto de regulamento de execução, incluindo os seus anexos […] demonstram […] a evolução em matéria de alimentação biológica, destinada a limitar a adição de elementos não biológicos nos géneros alimentícios biológicos».


38      De acordo com esses dados, 75 % dos estrumes provenientes de suínos e 40 % dos provenientes de aves teriam origem em explorações pecuárias convencionais não industriais.


39      Obviamente o Tribunal de Justiça não é a instituição idónea para regular o que se deve entender por exploração pecuária industrial, na falta de estudos de impacto que permitam discernir as consequências de uma ou outra das opções, nem dispõe de peritos especializados nesse setor. Na audiência, a Comissão declarou que estão em curso trabalhos destinados à elaboração de uma norma que precise aquele conceito.


40      Guidelines for the use of livestock excrements in organic farming [Annex II, part A, to Regulation (EEC) N.º 2092/91] [Diretrizes para a utilização de excrementos de animais na agricultura biológica], disponíveis em https://www.phosphorusplatform.eu/images/download/Commission%20EU%20COM%20Guidelines%20excrements%20organic%20farming%20‑%20Factory%20Farming%20VI568495‑EN%20Rev5PPQPPEN955684R5.pdf.


41      O guia referia que, pelo contrário, a legislação da União permite, sem nenhuma restrição, a utilização de estrumes provenientes da pecuária extensiva, devido ao risco diminuto de conterem resíduos indesejados, por utilizar como alimentos forragens e pastagens e por empregar um método de recuperação dos excrementos (em princípio, uma mistura de palha e de estrume animal nos edifícios da exploração) que provoca alguma decomposição das matérias orgânicas.


42      Expert Group for Technical Advice on Organic Production (EGTOP), Factory Farming (the use of fertilisers from conventional animal husbandry in organic plant and algae production). Final Report, maio 2021, disponível em https://agriculture.ec.europa.eu/system/files/2021‑12/egtop‑report‑on‑factory‑farming_en_0.pdf. A seguir, «Nota EGTOP 2021».


43      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011,relativa à avaliação dos efeitos de determinados projetos públicos e privados no ambiente (JO 2012, L 26, p. 1).


44      São assim consideradas as que tenham espaço para mais de: a) 85 000 frangos, 6 000 galinhas; b) 3 000 suínos de engorda (de mais de 30 quilogramas), ou c) 900 porcas.


45      V., no entanto, o n.º 82 e a nota 50 das presentes conclusões.


46      Segundo este artigo, as ajudas concedidas para investimentos relativos ao setor da produção de carne de bovino, com exceção das ajudas que tenham por objetivo a proteção do ambiente, serão limitadas às explorações pecuárias cuja densidade de bovinos para carne não ultrapasse, no final do plano, duas cabeças normais (CN) por hectare de superfície forrageira (são autorizadas para 1994 e 1995, respetivamente, as percentagens máximas de densidade populacional de 3 CN/ha. e de 2.5 CN/ha.) consagrada à alimentação dos mesmos bovinos. O anexo I do Regulamento n.º 2328/91 contém o quadro de conversão dos bovinos, equídeos, ovinos e caprinos em cabeças normais (CN) referido no n.º 5 do artigo 6.° e na alínea a) do n.º 1 do artigo 19.° do mesmo regulamento: touros, vacas e outros bovinos com mais de dois anos, equídeos com mais de seis meses = 1,0 CN; bovinos de seis meses a dois anos = 0,6 CN; ovelhas = 0,15 CN; e cabras = 0,15 CN.


47      O anexo II, ponto 1.6.8, do Regulamento 2018/848 afirma que, na exploração pecuária biológica, «[a] utilização de jaulas, compartimentos e plataformas para criar animais não é permitida para nenhuma espécie animal».


48      Recordo que, segundo o Guia de Leitura do INAO, é excluído o estrume «proveniente de animais criados em recintos totalmente ripados ou engradados e que excedam os limiares definidos no anexo I da Diretiva 2011/92/UE» e «proveniente de animais criados em jaulas e que excedam» os mesmos limiares.


49      O anexo II, pontos 1.5.1.3 e 1.5.1.4, do Regulamento 2018/848 proíbe o uso desses produtos na pecuária biológica.


50      Como afirmou a AFAÏA na audiência, uma exploração de suinicultura não é industrial por ter, por exemplo, mais de 900 porcas e não deixa de o ser por ter 899, como resultaria da aplicação dos limiares do anexo I da Diretiva 2011/92. Uma exploração de suinicultura extensiva com mais de 900 porcas ibéricas numa ampla herdade da Extremadura (Espanha) ou do Alentejo (Portugal) não constitui pecuária industrial. Pelo contrário, pode ser industrial uma exploração com 800 porcas em instalações sem terra, mesmo que não necessite de avaliação de impacto ambiental.