Language of document : ECLI:EU:C:2024:384

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

7 de maio de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Admissibilidade — Artigo 267.o TFUE — Conceito de “órgão jurisdicional” — Comissão arbitral nacional competente em matéria de luta contra a dopagem no domínio desportivo — Critérios — Independência do organismo de reenvio — Princípio da tutela jurisdicional efetiva — Inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial»

No processo C‑115/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Unabhängige Schiedskommission Wien (Comissão Arbitral Independente de Viena, Áustria), por Decisão de 21 de dezembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de fevereiro de 2022, no processo

SO

sendo intervenientes:

Nationale AntiDoping Agentur Austria GmbH (NADA),

Österreichischer Leichtathletikverband (ÖLV),

World AntiDoping Agency (WADA),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Prechal, K. Jürimäe, C. Lycourgos, T. von Danwitz, F. Biltgen, Z. Csehi e O. Spineanu‑Matei, presidentes de secção, J.‑C. Bonichot, S. Rodin, J. Passer (relator), D. Gratsias, M. L. Arastey Sahún e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: T. Ćapeta,

secretário: D. Dittert,

vistos os autos e após a audiência de 2 de maio de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de SO, por J. Öhlböck, Rechtsanwalt,

–        em representação da Nationale Anti‑Doping Agentur Austria GmbH (NADA), por A. Sammer, na qualidade de agente, assistido por P. Lohberger e A. Schütz, Rechtsanwälte,

–        em representação da World Anti‑Doping Agency (WADA), por D. P. Cooper, solicitor, assistido por A.‑S. Oberschelp de Meneses, avocate, K. Van Quathem, B. Van Vooren, advocaten, e L. Waty, avocat,

–        em representação do Governo Belga, por P. Cottin e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Francês, por R. Bénard e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Letão, por E. Bardiņš, J. Davidoviča e K. Pommere, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Luxemburguês, por A. Germeaux e T. Schell, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Bouchagiar, M. Heller e H. Kranenborg, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 14 de setembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 1, alíneas a) e c), do artigo 6.o, n.o 3, e dos artigos 9.o e 10.o do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1; retificação no JO 2018, L 127, p. 2; a seguir «RGPD»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo arbitral que opõe SO, uma atleta de competição, à Nationale Anti‑Doping Agentur Austria GmbH (NADA), uma agência independente de luta contra a dopagem, a respeito da decisão desta agência de publicar as sanções aplicadas a SO por ter violado a legislação nacional antidopagem.

 Quadro jurídico

 Regras da IAAF

3        A International Association of Athletics Federations (Associação Internacional das Federações de Atletismo, a seguir «IAAF») adotou as IAAF Competition Rules 2014‑2015 (regras de competição da IAAF de 2014‑2015), cuja regra 32.2, alíneas b) e f), bem como os artigos 2.2 e 2.6 das IAAF Anti‑Doping Rules (regras antidopagem da IAAF) de 2017, proíbem o «uso ou tentativa de uso de uma substância proibida ou de um método proibido» e a «posse de uma substância proibida ou método proibido».

 Direito da União

4        O artigo 5.o do RGPD prevê os princípios relativos ao tratamento de dados pessoais, ao passo que o artigo 6.o deste regulamento enuncia as condições de licitude desse tratamento. Os artigos 9.o e 10.o do referido regulamento contêm regras sobre o tratamento de categorias especiais de dados pessoais e sobre o tratamento de dados pessoais relacionados com condenações penais e infrações.

5        O artigo 77.o deste regulamento, sob a epígrafe «Direito de apresentar reclamação a uma autoridade de controlo», dispõe, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo de qualquer outra via de recurso administrativo ou judicial, todos os titulares de dados têm direito a apresentar reclamação a uma autoridade de controlo, em especial no Estado‑Membro da sua residência habitual, do seu local de trabalho ou do local onde foi alegadamente praticada a infração, se o titular dos dados considerar que o tratamento dos dados pessoais que lhe diga respeito viola o presente regulamento.»

6        O artigo 78.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Direito à ação judicial contra uma autoridade de controlo», enuncia, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo de qualquer outra via de recurso administrativo ou extrajudicial, todas as pessoas singulares ou coletivas têm direito à ação judicial contra as decisões juridicamente vinculativas das autoridades de controlo que lhes digam respeito.»

7        O artigo 79.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Direito à ação judicial contra um responsável pelo tratamento ou um subcontratante», prevê, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo de qualquer outra via de recurso administrativo ou extrajudicial, nomeadamente o direito de apresentar reclamação a uma autoridade de controlo, nos termos do artigo 77.o, todos os titulares de dados têm direito à ação judicial se considerarem ter havido violação dos direitos que lhes assistem nos termos do presente regulamento, na sequência do tratamento dos seus dados pessoais efetuado em violação do referido regulamento.»

 Direito austríaco

 ADBG

8        O § 5 da Anti‑Doping‑Bundesgesetz 2021 (Lei Federal da Antidopagem de 2021), de 23 de dezembro de 2020 (BGBl. I, 152/2020, a seguir «ADBG»), sob a epígrafe «Unabhängige Dopingkontrolleinrichtung [Organismo Independente de Controlo da Dopagem, Áustria]», prevê, no seu n.o 1, que este organismo tem, entre outros, por missão apresentar pedidos de análise, em conformidade com o § 18 da ADBG, na Österreichische Anti‑Doping Rechtskommission (Comissão Austríaca de Luta contra a Dopagem, a seguir «ÖADR»), quando considere que a ADBG foi violada, e assumir a qualidade de parte nos processos que decorram nesta última e na Unabhängige Schiedskommission (Comissão Arbitral Independente, Áustria) (a seguir «USK»), em conformidade com o § 20, n.o 2, e o § 23, n.o 2, da ADBG.

9        O § 5, n.o 5, da ADBG dispõe:

«Para a execução das funções de organismo independente de controlo da dopagem, existe uma sociedade de utilidade pública de responsabilidade limitada com a denominação [NADA]. […] Enquanto responsável pelo tratamento, na aceção do artigo 4.o, ponto 7, do RGPD, a [NADA] trata dados pessoais.»

10      O § 6 da ADBG, sob a epígrafe «Disposições relativas à proteção de dados», prevê, no seu n.o 1:

«O organismo independente de controlo da dopagem está autorizado, enquanto responsável pelo tratamento nos termos do artigo 4.o, ponto 7, do RGPD, e na medida em que tal seja necessário para o exercício das missões que lhe incumbem por força da [ADBG] e para efeitos da execução da [ADBG], em especial no âmbito das missões da [ÖADR] e da [USK], a tratar dados pessoais. […]»

11      O § 7 da ADBG, sob a epígrafe «[ÖADR]», dispõe, no seu n.o 1, nomeadamente, que a ÖADR deve instaurar processos disciplinares em nome da federação desportiva federal competente em causa em conformidade com as regras antidopagem em vigor da federação desportiva internacional competente (processos antidopagem). Nos termos do § 7, n.o 7, da ADBG, a ÖADR é instituída junto do Organismo Independente de Controlo da Dopagem. O § 7, n.o 8, da ADBG especifica que o seu § 6 se aplica mutatis mutandis.

12      O § 8 da ADBG, sob a epígrafe «[USK]», enuncia:

«(1)      A [USK] é uma comissão independente dos órgãos do Estado, dos particulares e do organismo independente de controlo da dopagem. Os membros da USK não podem ter participado na investigação de um praticante desportivo ou de outra pessoa, nem na decisão sobre a apresentação de um pedido de análise relativo a um praticante desportivo ou a outra pessoa, nem na decisão, sujeita à sua apreciação, da própria ÖADR. Sem prejuízo do disposto no § 23, n.o 10, pontos 1 e 2, a [USK] é instituída junto do organismo independente de controlo da dopagem para analisar as decisões da ÖADR nos processos antidopagem.

(2)      Sob reserva da verificação da presença de, pelo menos, 50 % de mulheres, a USK é composta por uma/um presidente e por sete membros com as seguintes qualificações:

1.      a/o presidente e a/o sua/seu suplente devem ter sido aprovados no exame para juiz ou advogado;

2.      dois membros devem ter um diploma em Direito e experiência na condução de procedimentos formais de investigação;

3.      dois membros devem ser peritas/peritos em química analítica ou em toxicologia;

4.      dois membros devem ser peritas/peritos em medicina desportiva.

Em cada processo, a/o presidente ou a/o sua/seu suplente designa para a condução do processo, de entre os membros da USK, pelo menos um membro com um diploma em Direito e experiência na condução de procedimentos formais de investigação, pelo menos uma/um perita/perito em química analítica ou em toxicologia e, pelo menos, um membro na qualidade de perita/perito em medicina desportiva.

(3)      A/o presidente e os membros referidos no n.o 2, pontos 1 a 4, são nomeados por um período de quatro anos pelo [Bundesminister für Kunst, Kultur, öffentlichen Dienst und Sport (Ministro Federal das Artes, da Cultura, da Função Pública e do Desporto, Áustria)]. De entre os membros, é nomeado um membro suplente da/do presidente. Os mandatos podem ser renovados e revogados antecipadamente por motivos sérios. A/o presidente e os membros podem demitir‑se das suas funções a qualquer momento. Se a/o presidente ou um membro se demitir prematuramente, é nomeada uma nova pessoa para o período remanescente do mandato em causa. A USK delibera por maioria dos votos e o quórum é alcançado quando a/o presidente e pelo menos dois membros estiverem presentes. Em caso de empate, a/o presidente tem voto de qualidade. A USK pode também tomar decisões mediante procedimento escrito quando, devido à clareza das circunstâncias, não seja necessário debater em reunião e nem a/o presidente nem outro membro se opuserem a que a decisão seja tomada de acordo com essas modalidades. As disposições do § 5, n.o 3, aplicam‑se à USK.

[…]

(6) O § 6 [do ADBG] é aplicável mutatis mutandis

13      O § 20 da ADBG, sob a epígrafe «Processos tramitados na [ÖADR]», dispõe, em substância, que a ÖADR é competente para conduzir processos antidopagem na sequência dos pedidos de análise apresentados pelo organismo independente de controlo da dopagem e para adotar decisões em primeira instância em caso de violação das regras antidopagem da federação desportiva internacional competente.

14      O § 21 da ADBG prevê, no seu n.o 3:

«A ÖADR deve, o mais tardar 20 dias após a decisão se ter tornado definitiva, informar [a organização desportiva federal], as organizações desportivas, os praticantes desportivos, outras pessoas e os organizadores de competições, bem como o público em geral, das medidas de segurança impostas (por exemplo, suspensões) e das decisões tomadas no âmbito de processos antidopagem, indicando o nome da pessoa em causa, a duração da suspensão e os motivos desta, sem, porém, permitir que se possam retirar conclusões sobre a saúde dessa pessoa a partir dos dados publicados. Esta informação pode ser omitida relativamente a pessoas especialmente vulneráveis, praticantes desportivos recreativos, bem como a pessoas que, pela divulgação de informações ou outras indicações, tenham contribuído significativamente para a deteção de potenciais infrações em matéria de dopagem. Relativamente aos desportistas recreativos, proceder‑se‑á à divulgação por motivos de saúde pública, se tiverem sido apuradas infrações em matéria de dopagem nos termos do § 1, n.o 2, pontos 3 e 9 a 11.»

15      O § 23 da ADBG, sob a epígrafe «Processos tramitados na [USK]», enuncia, no seu n.o 1:

«As partes referidas no n.o 2 podem, no prazo de quatro semanas a contar da notificação, solicitar à USK que reveja as decisões referidas no § 20. A decisão deve ser objeto de fiscalização da legalidade pela USK e pode ser anulada, sem ser substituída, por ilegalidade, ou alterada num ou noutro sentido. O pedido de revisão não produz efeitos suspensivos sobre a decisão adotada ao abrigo do § 20, salvo se a USK assim o determinar.»

16      O § 23, n.o 2, da ADBG, especifica que o organismo independente de controlo da dopagem é parte no processo na USK.

17      Nos termos do § 23, n.o 3, da ADBG, o § 580, n.os 1 e 2, o § 588, n.o 2, o § 592, n.os 1 e 2, os §§ 594, 595, 597 à 602, 604, o § 606, n.os 1 a 5, o § 608, n.os 1 e 2, e o § 610 do Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil, a seguir «ZPO») são aplicáveis mutatis mutandis aos processos tramitados na USK. Esta deve conduzir o processo com base nas regras antidopagem em vigor da federação desportiva internacional competente. Além disso, as partes no processo podem solicitar que o processo seja tornado público.

18      O § 23, n.o 4, da ADBG dispõe:

«No prazo de seis semanas a contar da receção do pedido de revisão, a USK é obrigada a decidir ou a realizar uma audiência. No prazo de quatro semanas após a fase oral do processo, deve ser proferida, por escrito, uma decisão final fundamentada. O processo deve ser concluído no prazo de seis meses após a entrada do pedido de revisão, devendo os atrasos causados pela parte nos termos do n.o 2, ponto 1, ser incluídos neste prazo. Em caso de empate, a/o presidente terá voto de qualidade. As decisões são proferidas por escrito e devem ser fundamentadas. Não obstante a sentença arbitral da USK, [a Agência Mundial Antidopagem (AMA)], o Comité Olímpico Internacional, o Comité Paraolímpico Internacional e a federação internacional especializada do desporto em causa podem recorrer da decisão da USK para o [Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), estabelecido em Lausana (Suíça)]. Nos processos relacionados com a participação numa competição internacional ou que envolvam desportistas internacionais, as decisões podem ser impugnadas no TAD diretamente pelos interessados. A via civil mantém‑se aberta para a resolução de litígios em matéria de direito civil, depois de esgotadas as vias de recurso no âmbito do processo antidopagem.»

19      O § 23 da ADBG dispõe, no seu n.o 14:

«A USK deve informar [a organização desportiva federal], as organizações desportivas, os praticantes desportivos, outras pessoas e os organizadores de competições, bem como o público em geral, das suas decisões, indicando o nome da pessoa em causa, a duração da suspensão os motivos desta, sem, porém, permitir que se possam retirar conclusões sobre a saúde dessa pessoa a partir dos dados publicados. Esta informação pode ser omitida relativamente a pessoas especialmente vulneráveis, praticantes desportivos recreativos, bem como a pessoas que, pela divulgação de informações ou outras indicações, tenham contribuído significativamente para a deteção de potenciais infrações em matéria de dopagem. Relativamente a desportistas recreativos, proceder‑se‑á à divulgação por motivos de saúde pública, se tiverem sido apuradas infrações em matéria de dopagem nos termos do § 1, n.o 2, pontos 3 e 9 a 11.»

 Regulamento de Processo da Comissão Arbitral Independente previsto na Lei Federal da Antidopagem de 2021

20      O Verfahrensordnung der Unabhängigen Schiedskommission nach dem Anti‑Doping‑Bundesgesetz 2021 (Regulamento de Processo da Comissão Arbitral Independente previsto na Lei Federal da Antidopagem de 2021), de 1 de janeiro de 2021, enuncia, no seu § 1, n.o 3, que os membros da USK são independentes no exercício das suas funções. O § 5 deste regulamento prevê os motivos que permitem invocar a parcialidade de um ou mais desses membros, bem como as consequências que daí se devem retirar.

21      O § 9, n.o 1, do referido regulamento especifica que as partes no processo podem utilizar todos os meios de prova previstos no ZPO.

 ZPO

22      De entre os §§ do ZPO, na versão de 23 de dezembro de 2020 (BGBl. I, 148/2020), que regula o processo arbitral, o § 597 estabelece as regras relativas ao pedido de arbitragem e à resposta, enquanto o § 598 prevê a possibilidade de realização de uma audiência e o § 599, nomeadamente, as regras de produção da prova no tribunal arbitral.

23      O § 607 do ZPO prevê, em substância, que uma sentença de um tribunal arbitral produz, entre as partes, os efeitos de uma decisão judicial com força de caso julgado.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

24      SO foi atleta de competição entre 1998 e 2015. É também responsável por uma associação que é membro da federação de atletismo de Viena (Áustria).

25      Em 2021, com base nos resultados de uma investigação realizada pelo Bundeskriminalamt (Serviço Federal de Polícia Criminal, Áustria), a NADA apresentou à ÖADR um pedido de análise do caso de SO, por considerar que SO tinha violado as regras antidopagem.

26      Por Decisão de 31 de maio de 2021, a ÖADR considerou que SO era culpada por ter violado a regra 32.2, alíneas b) e f), das regras de competição da IAAF de 2014‑2015 e dos artigos 2.2 e 2.6 das regras antidopagem da IAAF de 2017 (a seguir «decisão controvertida»). Mais precisamente, a ÖADR constatou que, entre maio de 2015 e abril de 2017, SO esteve na posse de substâncias cuja utilização por desportistas profissionais sujeitos às regras de competição da IAAF era proibida pela AMA nesse período, a saber, eritropoietina (também denominada EPO), Genotropin (Omnitrope) e testosterona (androgel), e que SO as tinha utilizado, pelo menos em parte, em 2015.

27      Em resultado desta conclusão, na decisão controvertida, a ÖADR declarou inválidos todos os resultados que SO obteve entre 10 de maio de 2015 e a data de entrada em vigor dessa decisão e retirou‑lhe todos os direitos de participação e/ou prémios que tinha obtido. Além disso, aplicou a SO a proibição de participação, por um período de quatro anos, com efeitos a partir de 31 de maio 2021, em qualquer tipo de competição desportiva.

28      No decurso do processo na ÖADR, SO pediu que a decisão controvertida não fosse levada ao conhecimento do público em geral, em conformidade com o § 21, n.o 3, da ADBG, nomeadamente não divulgando nem publicando o seu nome ou outras características individuais. Este pedido foi indeferido pela ÖADR na decisão controvertida.

29      SO apresentou à USK um pedido de revisão, requerendo que a decisão controvertida fosse alterada para que o público em geral não fosse informado, através da publicação do seu nome completo num sítio Internet de acesso livre, das infrações em matéria de dopagem que tinha cometido e da sanção que lhe tinha sido aplicada.

30      Por Decisão de 21 de dezembro de 2021, a USK confirmou a anulação de todos os resultados obtidos por SO em competição, incluindo a retirada de todos os títulos, medalhas, recompensas, direitos de participação e prémios obtidos a partir de 10 de maio de 2015, bem como a sua suspensão de todas as competições (nacionais e internacionais) por um período de quatro anos a contar de 31 de maio de 2021.

31      No entanto, a USK decidiu pronunciar‑se por decisão separada sobre o pedido de não publicação das infrações em matéria de dopagem cometidas por SO e das sanções daí decorrentes, reservando para final a sua decisão a este respeito.

32      Nestas condições, a USK decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve entender‑se que a informação de que uma determinada pessoa cometeu uma determinada infração em matéria de dopagem e que, por esse motivo, a sua participação em competições (nacionais e internacionais) está suspensa consubstancia um “dado relativo à saúde”, na aceção do artigo 9.o do [RGPD]?

2)      Opõe‑se o [RGPD], tendo especialmente em consideração o seu artigo 6.o, n.o 3, segundo parágrafo, a uma regulamentação nacional que prevê a publicação do nome das pessoas afetadas pela decisão da [USK], da duração da suspensão e dos motivos da mesma, sem que possam ser inferidos dados relativos à saúde da pessoa afetada? Neste caso, é relevante que, nos termos da regulamentação nacional, só se possa omitir a divulgação ao público destas informações se a pessoa afetada for um praticante desportivo recreativo, se for menor ou se for uma pessoa que, pela divulgação de informações ou outras indicações, tenha contribuído significativamente para o esclarecimento de potenciais infrações em matéria de dopagem?

3)      Exige o [RGPD], tendo especialmente em consideração os princípios previstos no seu artigo 5.o, n.o 1, alíneas a) e c), que, previamente à divulgação de cada situação, seja feita uma ponderação entre, por um lado, os interesses de personalidade da pessoa envolvida que sejam afetados e, por outro, o interesse do público na informação sobre as infrações em matéria de dopagem cometidas pelo praticante desportivo?

4)      A informação de que uma determinada pessoa cometeu uma determinada infração em matéria de dopagem e de que, devido a essa dopagem, a sua participação em competições (nacionais e internacionais) está suspensa consubstancia um tratamento de dados pessoais relacionados com condenações penais e infrações, na aceção do artigo 10.o do [RGPD]?

5)      Em caso de resposta afirmativa à quarta questão: a [USK] constituída nos termos do § 8 da [ADBG] é uma autoridade pública na aceção do artigo 10.o do [RGPD]?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

33      O processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes cabe decidir (Acórdão de 9 de março de 2010, ERG e o., C‑378/08, EU:C:2010:126, n.o 72, e Despacho de 9 de janeiro de 2024, Bravchev, C‑338/23, EU:C:2024:4, n.o 18).

34      Daqui resulta que, para poder recorrer ao Tribunal de Justiça no âmbito do processo prejudicial, o organismo de reenvio deve poder ser qualificado de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE, o que cabe ao Tribunal de Justiça verificar com base no pedido de decisão prejudicial (Despachos de 13 de dezembro de 2018, Holunga, C‑370/18, EU:C:2018:1011, n.o 13, e de 19 de maio de 2022, Frontera Capital, C‑722/21, EU:C:2022:412, n.o 11).

35      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para apreciar se o organismo de reenvio em causa tem a natureza de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.o TFUE, questão que deve ser decidida unicamente no âmbito do direito da União, o Tribunal de Justiça toma em consideração um conjunto de elementos, como a origem legal do organismo, a sua permanência, o caráter vinculativo da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, pelo organismo em causa, das regras de direito, bem como a sua independência [v., neste sentido, Acórdãos de 30 de junho de 1966, Vaassen‑Göbbels, 61/65, EU:C:1966:39, p. 395; de 3 de maio de 2022, CityRail, C‑453/20, EU:C:2022:341, n.o 41, e de 21 de dezembro de 2023, Krajowa Rada Sądownictwa (Manutenção em funções de um juiz), C‑718/21, EU:C:2023:1015, n.o 40].

36      Resulta igualmente de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que os órgãos jurisdicionais nacionais só podem recorrer ao Tribunal de Justiça se neles se encontrar pendente um litígio e se forem chamados a pronunciar‑se no âmbito de um processo que deva conduzir a uma decisão de caráter jurisdicional. Assim, a legitimidade de um organismo para submeter questões ao Tribunal de Justiça deve ser determinada segundo critérios tanto estruturais como funcionais (v., neste sentido, Acórdão de 3 de maio de 2022, CityRail, C‑453/20, EU:C:2022:341, n.os 42 e 43 e jurisprudência referida).

37      No que respeita a estes critérios estruturais, resulta dos elementos que figuram nos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, nomeadamente das disposições da ADBG, que a USK cumpre os critérios relativos à origem legal, à permanência, ao caráter vinculativo da sua jurisdição, bem como à natureza contraditória do processo nela tramitado.

38      Em contrapartida, coloca‑se a questão de saber se a USK preenche o critério da independência.

39      Quanto a este critério, importa sublinhar que a independência dos órgãos jurisdicionais nacionais, que é indispensável a uma tutela jurisdicional efetiva, é inerente à missão de julgar (v., neste sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.os 41 e 42). Essa independência é, portanto, essencial para o bom funcionamento do sistema de cooperação judiciária que representa o mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, porquanto, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, esse mecanismo só pode ser acionado por uma instância que satisfaça, designadamente, esse critério da independência (v., neste sentido, Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 56 e jurisprudência referida).

40      O conceito de independência comporta dois aspetos (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de setembro de 2006, Wilson, C‑506/04, EU:C:2006:587, n.os 49 e 50, e de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 57).

41      O primeiro aspeto, de ordem externa, pressupõe que o organismo em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetido a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções seja de que origem for, e esteja, assim, protegido contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões (Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 57 e jurisprudência referida).

42      A este respeito, importa recordar que a inamovibilidade dos membros da instância em causa constitui uma garantia inerente à independência dos juízes, uma vez que visa proteger a pessoa daqueles que têm a missão de julgar (Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 58 e jurisprudência referida).

43      Mais especificamente, o princípio da inamovibilidade, cuja importância decisiva importa sublinhar, exige, designadamente, que os juízes possam permanecer em funções enquanto não atingirem a idade obrigatória de aposentação ou até ao termo do seu mandato, quando este tiver uma duração determinada. Embora não tenha caráter absoluto, o referido princípio só pode sofrer exceções quando motivos legítimos e imperiosos o justifiquem, no respeito pelo princípio da proporcionalidade. Assim, é comummente aceite que os juízes possam ser destituídos se não estiverem aptos a continuar a exercer as suas funções em razão de uma incapacidade ou de falta grave, desde que sejam respeitados os procedimentos adequados (v., neste sentido, Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 59 e jurisprudência referida).

44      A garantia de inamovibilidade dos membros de um órgão jurisdicional exige, assim, que os casos de destituição dos membros desse organismo sejam previstos por uma regulamentação especial, através de disposições legais expressas que ofereçam garantias que ultrapassem as previstas pelas regras gerais do direito administrativo e do direito do trabalho aplicáveis em caso de destituição abusiva (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 60, e de 26 de janeiro de 2023, Construct, C‑403/21, EU:C:2023:47, n.o 44).

45      O segundo aspeto, interno, do conceito de «independência» está ligado ao conceito de imparcialidade e visa o igual distanciamento em relação às partes no litígio e aos seus interesses respetivos, tendo em conta o objeto deste. Este aspeto exige o respeito pela objetividade e a inexistência de qualquer interesse na resolução do litígio que não seja a estrita aplicação da regra de direito (v., neste sentido, Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 61 e jurisprudência referida).

46      Assim, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «independência» implica, acima de tudo, que a instância em causa tenha a qualidade de terceiro em relação à autoridade que adotou a decisão objeto de recurso (v., neste sentido, Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 62 e jurisprudência referida).

47      Estas garantias de independência e de imparcialidade pressupõem a existência de regras, designadamente no que respeita à composição do organismo, à nomeação, à duração das funções e às causas de escusa, de suspeição e de destituição dos seus membros, que permitam afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos litigantes, quanto à impermeabilidade do referido organismo em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto (Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 63 e jurisprudência referida).

48      A este respeito, relativamente à USK, há que observar que o § 1, n.o 3, e o § 5 do seu Regulamento de Processo previsto na Lei Federal da Antidopagem de 2021 enunciam que os seus membros são independentes no exercício das suas funções e estão sujeitos ao princípio da imparcialidade.

49      Todavia, de acordo com o § 8, n.o 3, da ADBG, os membros da USK são nomeados pelo Ministro Federal das Artes, da Cultura, da Função Pública e do Desporto para um mandato renovável de quatro anos, que pode ser revogado antecipadamente «por motivos sérios», sem que este conceito esteja definido na legislação nacional.

50      Em especial, nenhuma regra específica garante a inamovibilidade dos membros da USK.

51      Neste ponto, a situação dos membros da USK distingue‑se, por exemplo, da situação do organismo de reenvio no processo que deu origem ao Acórdão de 6 de outubro de 2015, Consorci Sanitari del Maresme (C‑203/14, EU:C:2015:664), no sentido de que, como resulta dos n.os 11 e 20 desse acórdão, os membros deste organismo gozam, durante o período do seu mandato, de uma garantia de inamovibilidade que só pode ser derrogada por causas expressamente enumeradas na regulamentação que enquadra o funcionamento do referido organismo.

52      Além disso, a decisão de destituição dos membros da USK pertence exclusivamente ao Ministro Federal das Artes, da Cultura, da Função Pública e do Desporto, a saber, um membro executivo, sem que tenham sido previamente estabelecidos critérios precisos ou garantias precisas.

53      Daqui resulta que a legislação nacional aplicável não garante que os membros da USK se encontrem ao abrigo de pressões externas, diretas ou indiretas, suscetíveis de pôr em dúvida a sua independência, pelo que este organismo não cumpre o requisito da independência próprio de um órgão jurisdicional, considerado no seu aspeto externo.

54      Resulta de todos os elementos anteriores que a USK não pode ser qualificada de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE.

55      No entanto, esta circunstância não dispensa a USK da obrigação de garantir a aplicação do direito da União quando da adoção das suas decisões e de não aplicar, se necessário, as disposições nacionais que se afigurem contrárias a disposições do direito da União dotadas de efeito direto, incumbindo essas obrigações, com efeito, a todas as autoridades nacionais competentes e não apenas às autoridades jurisdicionais (Acórdão de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander, C‑274/14, EU:C:2020:17, n.o 78 e jurisprudência referida).

56      Por outro lado, importa salientar que resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça e das informações transmitidas pela NADA na audiência que SO apresentou à Österreichische Datenschutzbehörde (Autoridade Austríaca de Proteção de Dados) uma reclamação por violação dessa proteção, em aplicação do artigo 77.o, n.o 1, do RGPD. Este órgão adotou uma decisão de indeferimento, de que foi interposto recurso para o Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal, Áustria), em aplicação do artigo 78.o, n.o 1, do RGPD [v., a este respeito, Acórdão de 7 de dezembro de 2023, SCHUFA Holding (Libertação da dívida remanescente), C‑26/22 e C‑64/22, EU:C:2023:958, n.os 52 e 70]. Foi decretada a suspensão deste recurso até que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre as questões submetidas no presente processo.

57      Decorre de todo o exposto que o presente pedido de decisão prejudicial é inadmissível.

 Quanto às despesas

58      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o organismo de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O pedido de decisão prejudicial apresentado pela Unabhängige Schiedskommission Wien (Comissão Arbitral Independente de Viena, Áustria), por Decisão de 21 de dezembro de 2021, é inadmissível.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.