Edição provisória
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
JEAN RICHARD DE LA TOUR
apresentadas em 7 de maio de 2024 (1)
Processo C‑4/23 [Mirin] (i)
M.‑A.A.
contra
Direcţia de Evidenţă a Persoanelor Cluj, Serviciul stare civilă
Direcţia pentru Evidenţa Persoanelor şi Administrarea Bazelor de Date din Ministerul Afacerilor Interne,
Municipiul Cluj‑Napoca,
sendo intervenientes
Asociaţia Accept,
Consiliul Naţional pentru Combaterea Discriminării
[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Judecătoria Sectorului 6 Bucureşti (Tribunal de Primeira Instância do Setor 6, Bucareste, Roménia)]
«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigo 21.°, n.° 1, TFUE — Direito de circular e residir livremente nos Estados‑Membros — Pessoa que reside no Reino Unido e tem a nacionalidade deste Estado e de um Estado‑Membro — Recusa das autoridades deste segundo Estado de averbar no seu assento de nascimento as alterações de nome próprio e de género legalmente obtidas no primeiro Estado — Regulamentação nacional que apenas admite a alteração de um assento de identidade civil com base numa decisão judicial transitada em julgado — Impacto da saída do Reino Unido da União»
I. Introdução
1. O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.° TUE, dos artigos 18.°, 20.° e 21.° TFUE e dos artigos 1.°, 7.°, 20.°, 21.° e 45.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2).
2. Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe uma pessoa nacional da Roménia às autoridades nacionais deste Estado‑Membro, responsáveis pelos serviços de registo civil e pela gestão do número de identificação pessoal (3), pelo facto de recusarem reconhecer e inscrever no assento de nascimento o seu novo nome próprio e a sua identidade de género (4) adquiridos (5) no Reino Unido cuja nacionalidade esta pessoa também possui.
3. Este processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de precisar o alcance das suas decisões relativas ao reconhecimento do estatuto pessoal dos cidadãos da União, baseadas no artigo 21.° TFUE, dentro dos limites da competência dos Estados‑Membros em matéria de registo civil e do estado das pessoas.
II. Quadro jurídico
A. Acordo de Saída
4. O quarto e oitavo parágrafos do preâmbulo do Acordo sobre a Saída do Reino Unido de Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (6), adotado em 17 de outubro de 2019 e que entrou em vigor em 1 de fevereiro de 2020, aprovado pela Decisão (UE) 2020/135 do Conselho, de 30 de janeiro de 2020 (7), enunciam:
«Recordando que, nos termos do artigo 50.° do TUE, em conjugação com o artigo 106.°‑A do Tratado Euratom, e sob reserva das disposições estabelecidas no presente Acordo, o direito da União e da Euratom deixa de ser aplicável na íntegra ao Reino Unido a partir da data de entrada em vigor do presente Acordo,
[...]
Considerando que é do interesse da União e do Reino Unido determinar o período de transição ou de execução, durante o qual [...] o direito da União, incluindo os acordos internacionais, é aplicável ao Reino Unido e no seu território, e, como regra geral, produz os mesmos efeitos em relação aos Estados‑Membros, a fim de evitar perturbações durante o período de negociação do(s) acordo(s) sobre as futuras relações».
5. Nos termos do artigo 126.° do Acordo de Saída, intitulado «Período de transição», constante da parte IV do mesmo, relativa à «[t]ransição»:
«É estabelecido um período de transição ou de execução, com início na data de entrada em vigor do presente Acordo e termo em 31 de dezembro de 2020.»
6. O artigo 127.° deste acordo, intitulado «Âmbito de aplicação da transição», dispõe, no seu n.° 1, primeiro parágrafo, e no seu n.° 6:
«1. Salvo disposição em contrário do presente Acordo, o direito da União é aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição.
[...]
6. Salvo disposição em contrário do presente Acordo, durante o período de transição, as referências a Estados‑Membros no direito da União aplicável nos termos do n.° 1, incluindo as disposições transpostas e aplicadas pelos Estados‑Membros, entendem‑se como incluindo o Reino Unido.»
B. Direito romeno
7. O artigo 9.° da Legea nr. 119/1996 cu privire la actele de stare civilă (Lei n.° 119/1996 relativa aos Atos de Registo Civil) (8), de 16 de outubro de 1996 (a seguir «Lei n.° 119/1996»), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, tem a seguinte redação:
«Se o funcionário do registo civil ou o funcionário que exerce funções em matéria de identificação civil recusar lavrar um assento ou registar um averbamento que seja da sua competência, a pessoa lesada pode recorrer ao órgão jurisdicional competente, em conformidade com a lei.»
8. O artigo 43.° desta lei prevê:
«Nos assentos de nascimento e, se for o caso, nos assentos de casamento ou de óbito, são inscritos os averbamentos relativos às alterações ocorridas na identidade da pessoa nos seguintes casos:
[...]
f) alteração do nome;
[...]
i) mudança de sexo, após o trânsito em julgado da respetiva decisão judicial».
9. Nos termos do artigo 57.°, n.° 1, da referida lei:
«A anulação, a integração ou a alteração dos assentos de registo civil e dos averbamentos neles contidos apenas podem ser efetuadas por força de uma decisão judicial transitada em julgado.»
10. Em aplicação dos artigos 1.°, 2.°, bem como do artigo 10.° e seguintes da Lei n.° 119/1996, as autoridades responsáveis pelos serviços de identificação civil emitem certidões de nascimento, de casamento ou de óbito com base nos assentos de registo civil que conservam sem os reproduzirem integralmente.
11. O artigo 4.°, n.° 2, alínea l), do Ordonanța Guvernului nr. 41/2003 privind dobândirea și schimbarea pe cale administrativă a numelor persoanelor fizice (Despacho do Governo n.° 41/2003, relativo à Aquisição e à Alteração por via Administrativa dos Nomes das Pessoas Singulares) (9), de 30 de janeiro de 2003, enunciava:
«Os pedidos de alteração de nome consideram‑se justificados nos seguintes casos:
[...]
l) quando a mudança de sexo foi aprovada por uma decisão judicial transitada em julgado e irrevogável e a pessoa solicita o uso de um nome que lhe corresponda, mediante a apresentação de um documento médico‑legal que indique o seu sexo».
12. O artigo 131.°, n.° 2, da metodologia aprovada pela Hotărârea Guvernului nr. 64/2011 pentru aprobarea Metodologiei cu privire la aplicarea unitară a dispozițiilor în materie de stare civilă (Decisão n.° 64/2011 do Governo, que aprova a Metodologia relativa à Aplicação Uniforme das Normas em matéria de Registo Civil), de 26 de janeiro de 2011, tem a seguinte redação:
«O número de identificação pessoal é atribuído com base nos dados constantes do assento de nascimento relativos ao sexo e à data de nascimento.»
13. Este número de identificação pessoal é inscrito nos assentos de registo civil (10).
14. Segundo a regulamentação romena relativa à emissão de cartões de identidade e de passaportes (11), nestes documentos são inscritos, nomeadamente, o apelido, o nome próprio, o sexo e o número de identificação pessoal dos respetivos titulares. As alterações destes dados ocorridas no estrangeiro não podem produzir efeitos na Roménia sem serem previamente registadas pelos serviços de identificação civil, aquando da emissão de um passaporte, em caso de alteração de apelido e de nome próprio, ou de um cartão identidade, em caso de alteração dos dados relativos à identificação civil. Em aplicação do artigo 19.°, alínea i), do Despacho Urgente do Governo n.° 97/2005, o serviço público responsável pelo registo civil emite um novo documento de identidade em caso de mudança de sexo.
C. Direito do Reino Unido
15. Segundo o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.° do Gender Recognition Act 2004 (Lei do reconhecimento da identidade de género, de 2004), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (12), uma pessoa maior de 18 anos, que pretenda obter o reconhecimento legal do género que declara, pode requerer a um Painel de reconhecimento da identidade de género que examine os elementos probatórios que apresentou para obter uma certidão de reconhecimento da identidade de género (13). Trata‑se, por um lado, de um diagnóstico de transtorno da identidade de género elaborado por um médico ou por um psicólogo especializado nessa matéria e, por outro, de uma declaração, sob compromisso de honra, de que a pessoa viveu durante pelo menos dois anos segundo a identidade de género adquirida e que tem a intenção de viver segundo a identidade de género adquirida até ao fim da vida.
16. O artigo 9.°, n.° 1, desta lei dispõe que a emissão de uma GRC definitiva implica, para todos os efeitos, o pleno reconhecimento da identidade de género adquirida pelo(a) requerente. No entanto, não pode ser utilizada como meio de identificação (14).
17. Em aplicação do Enrolment of Deeds (Change of Name) Regulations 1994 [Regulamento de 1994 relativo aos atos de registo (alteração de nome)] (15), um cidadão da Commonwealth pode alterar o seu apelido ou o seu nome próprio por simples declaração, a saber, um deed poll que pode ser registado, por pessoas com, pelo menos, 18 anos, na Secretaria da High Court of Justice (England & Wales), King’s Bench Division [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Secção do King’s Bench, Reino Unido]. Neste caso, é publicado no The London Gazette. Este registo não é obrigatório e a prova da alteração de nome pode ser feita por qualquer meio juridicamente admitido.
III. Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais
18. O recorrente (16), de nacionalidade romena, foi registado à nascença, em 24 de agosto de 1992, em Cluj‑Napoca (Roménia), como sendo de sexo feminino.
19. Depois de se ter mudado, com os seus pais, para o Reino Unido em 2008, o recorrente adquiriu a nacionalidade britânica por naturalização em 21 de abril de 2016. Tem, desde essa data, dupla nacionalidade, romena e britânica.
20. Em 21 de fevereiro de 2017, o recorrente alterou o seu nome próprio e a sua forma de tratamento de feminino para masculino segundo o procedimento do deed poll.
21. Cumprida esta formalidade, procedeu à alteração de alguns documentos oficiais emitidos pelas autoridades britânicas, a saber, a carta de condução e o passaporte.
22. Em 29 de junho de 2020, o recorrente obteve, no Reino Unido, uma «Gender Recognition Certificate» (GRC), certidão que confirma a sua identidade de género masculina.
23. Em maio de 2021, com base nos dois documentos obtidos no Reino Unido, a saber, o deed poll e a GRC, o recorrente requereu, no Serviço de Identificação Civil de Cluj, a inscrição, no seu assento de nascimento, dos averbamentos relativos à alteração do nome próprio, do sexo e do seu número de identificação pessoal para que este passe a corresponder ao sexo masculino, bem como a emissão de uma nova certidão de nascimento da qual constassem estes novos elementos.
24. Devido à recusa deste serviço, o recorrente interpôs, em 14 de setembro de 2021, no Judecătoria Sectorului 6 Bucureşti (Tribunal de Primeira Instância do Setor 6, Bucareste, Roménia), o órgão jurisdicional de reenvio, um recurso contra o Serviço de Identificação Civil de Cluj, a Direção do Registo Civil e da Gestão das Bases de Dados do Ministério da Administração Interna e o Município de Cluj‑Napoca, no âmbito do qual apresentou os mesmos pedidos.
25. O recorrente alega que pede ao órgão jurisdicional de reenvio que ordene a harmonização do seu assento de nascimento com a sua identidade de género reconhecida definitivamente no Reino Unido. Solicita a aplicação direta do direito da União, nomeadamente do direito de qualquer cidadão da União de circular e residir livremente no território da União, para poder exercer este direito sem entraves com um documento de viagem conforme com a sua identidade de género masculina. Considera que o facto de ser obrigado a instaurar um novo processo judicial Roménia, diretamente destinado a obter a aprovação da mudança de sexo, o faria correr o risco de obter uma decisão contrária à adotada pelas autoridades britânicas, uma vez que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (17) declarou que o processo romeno é desprovido de clareza e previsibilidade (18).
26. As autoridades romenas recorridas alegam que o recurso se destina a obter o reconhecimento do novo estatuto social pessoal resultante de alterações ocorridas no estrangeiro. Ora, em conformidade com o artigo 43.°, alínea i), da Lei n.° 119/1996, os averbamentos relativos às alterações de identidade da pessoa são inscritos nos assentos de nascimento, em caso de mudança de sexo, com base numa decisão judicial transitada em julgado.
27. Nesse processo, foi posta em causa a posição do Consiliul Naţional pentru Combaterea Discriminării (Conselho Nacional para a Luta contra a Discriminação, Roménia), enquanto interveniente forçado, e foi deferido o pedido de intervenção acessória da Asociația Accept (Associação Accept) em apoio do recorrente.
28. O órgão jurisdicional de reenvio começa por fazer referência à jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça, nomeadamente aos Acórdãos de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello (19), de 14 de outubro de 2008, Grunkin e Paul (20), de 8 de junho de 2017, Freitag (21) e de 14 de dezembro de 2021, Stolichna obshtina, rayon «Pancharevo» (22), para, em seguida, manifestar dúvidas sobre a conformidade da regulamentação nacional com os direitos inerentes à cidadania da União, dado que obriga o interessado a instaurar um novo processo judicial num dos Estados‑Membros do qual é nacional, apesar de já ter concluído, com sucesso, um processo noutro Estado‑Membro de que também é nacional, independentemente da natureza do processo, designadamente judicial ou administrativo, tramitado neste último Estado.
29. Por último, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a decisão do litígio no processo principal depende igualmente da clarificação das consequências da saída do Reino Unido da União. Em particular, no caso de resposta afirmativa à sua primeira questão, há que precisar se um Estado‑Membro é obrigado a reconhecer os efeitos jurídicos de um processo de mudança de género intentado num Estado que tinha a qualidade de Estado‑Membro no início desse processo, mas que já tinha saído da União à data da conclusão do mesmo.
30. Nestas circunstâncias, a Judecătoria Sectorului 6 București (Tribunal de Primeira Instância do Setor 6, Bucareste) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O facto de o artigo 43.°, alínea i), e o artigo 57.° da [Lei no 119/1996] não reconhecerem as alterações das inscrições relativas ao sexo e ao nome próprio no [registo] civil, realizadas por um homem transgénero, com dupla nacionalidade (romena e de outro Estado‑Membro), noutro Estado‑Membro, através do processo de reconhecimento jurídico do género, e exigirem ao cidadão romeno que instaure desde o início um processo judicial distinto na Roménia contra o Serviço público local de Registo Civil e do estado civil, processo que o [TEDH] considerou desprovido de clareza e de previsibilidade ([Acórdão X e Y c. Roménia]) e que pode resultar numa decisão contrária à adotada pelo outro Estado‑Membro, obsta ao exercício do direito à cidadania da União (artigo 20.° [TFUE]) e/ou do direito do cidadão da União de circular e residir livremente (artigo 21.° [TFUE] e artigo 45.° da [Carta]), em condições de dignidade, igualdade perante a lei e não‑discriminação (artigo 2.° [TUE], artigo 18.° [TFUE] e artigos 1.°, 20.° e 21.° da [Carta]) no respeito pelo direito à vida privada e à vida familiar (artigo 7.° da [Carta])?
2) A saída do [Reino Unido] da União Europeia influencia a resposta à questão anterior, em especial (i) quando procedimento para alterar o estado civil tiver sido iniciado antes do Brexit e concluído no período de transição, e (ii) o impacto do Brexit implica que a pessoa pode gozar dos direitos inerentes à cidadania europeia, incluindo o direito de livre circulação e de residência, apenas com base nos documentos de identidade ou de viagem romenos em que figura com sexo e nome próprio femininos, contrariamente à identidade de género já reconhecida juridicamente?»
31. Foram apresentadas observações escritas pelo recorrente e pela Associação Accept, pelo Município de Cluj‑Napoca, pelos Governos Romeno, Alemão, Grego, Húngaro, Neerlandês e Polaco e pela Comissão. O recorrente, a Associação Accept, os Governos Alemão, Húngaro, Neerlandês e Polaco e a Comissão responderam às perguntas para resposta oral feitas pelo Tribunal de Justiça na audiência realizada em 23 de janeiro de 2024.
IV. Análise
32. O pedido de decisão prejudicial tem por objeto um pedido destinado a obter a inscrição, num assento de nascimento, de uma alteração de nome próprio e de género, com base em atos registados no Reino Unido, um antes da saída deste Estado da União e o outro antes do fim do período de transição previsto no Acordo de Saída. O recorrente, nacional do Reino Unido, onde reside, e da Roménia, onde nasceu, alega que a emissão de um documento de viagem conforme com a sua identidade de género lhe permite exercer o seu direito de livre circulação e de residência na União na qualidade de cidadão europeu.
33. Assim, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por um lado, sobre a procedência, à luz do direito da União, da recusa em reconhecer a um cidadão da União, para efeitos da atualização do seu assento de nascimento, as alterações da sua identidade obtidas num Estado em que o direito da União era então aplicável. Por outro lado, pretende que o Tribunal de Justiça precise quais as consequências a retirar da saída do Reino Unido da União.
A. Quanto à conexão, com o direito da União, da situação em que um cidadão da União pede a inscrição da sua identidade de género no seu assento de nascimento
34. No estado atual do direito da União, não há nenhuma regulamentação ou jurisprudência que regule as questões relativas à atualização, no Estado‑Membro de nascimento de um cidadão da União, das declarações constantes dos assentos de registo civil em matéria de sexo ou de identidade de género com base em documentos emitidos ou em decisões tomadas noutro Estado‑Membro.
35. Com efeito, há que recordar, em primeiro lugar, que não é aplicável nenhum regulamento em matéria de cooperação civil. O estado das pessoas é expressamente excluído do âmbito de aplicação do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (23), e isto desde a Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (24). O objeto do presente litígio também não é abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (25).
36. Além disso, embora o legislador da União tenha intervindo para facilitar a circulação dos atos de registo civil, não abordou os respetivos efeitos, conforme resulta do título do Regulamento (UE) 2016/1191 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de julho de 2016, relativo à promoção da livre circulação dos cidadãos através da simplificação dos requisitos para a apresentação de certos documentos públicos na União Europeia e que altera o Regulamento (UE) n.° 1024/2012 (26). Este regulamento, cuja base jurídica é, nomeadamente, o artigo 21.°, n.° 2, TFUE, prevê formulários multilingues e uma dispensa geral de legalização no interior da União. A questão da atualização dos registos civis nacionais não é abordada, apesar de ter figurado no ponto 4 do Livro Verde da Comissão «Reduzir os trâmites administrativos para os cidadãos: Promover a livre circulação dos documentos públicos e o reconhecimento dos efeitos dos atos de registo civil» (27).
37. Em segundo lugar, a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça em matéria de registo civil tem por objeto apenas o apelido e o nome próprio, inscritos nos assentos de registo civil. O Tribunal de Justiça declarou que, embora as normas que regulam a inscrição destes elementos da identidade de uma pessoa sejam da competência dos Estados‑Membros, estes últimos devem, todavia, no exercício desta competência, respeitar o direito da União, em particular, as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade reconhecida a qualquer cidadão da União de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros (28).
38. Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça recordou que «o estado das pessoas, do qual fazem parte as normas relativas ao casamento e à filiação, é uma matéria abrangida pela competência dos Estados‑Membros, competência que o direito da União não põe em causa. Os Estados‑Membros têm, assim, liberdade para prever ou não, no seu direito nacional, o casamento entre pessoas do mesmo sexo assim como a parentalidade destas últimas. Todavia, no exercício dessa competência, cada Estado‑Membro deve respeitar o direito da União e, em especial, as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade reconhecida a qualquer cidadão da União de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros, reconhecendo, para esse fim, o estado das pessoas estabelecido noutro Estado‑Membro, em conformidade com o direito deste» (29).
39. Assim, segundo esta jurisprudência constante, existe uma conexão com o direito da União relativamente a pessoas nacionais de um Estado‑Membro e que residem legalmente no território de outro Estado‑Membro (30). Por conseguinte, qualquer cidadão da União nesta situação pode invocar direitos respeitantes a esta qualidade, designadamente os previstos no artigo 21.°, n.° 1, TFUE, incluindo, se for caso disso, no que diz respeito ao seu Estado‑Membro de origem (31).
40. No presente caso, é facto assente que o recorrente, na qualidade de cidadão da União, exerceu a sua liberdade de circular e de permanecer num Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de origem, em conformidade com o artigo 21.° TFUE, e que adquiriu a nacionalidade do primeiro.
41. Além disso, este recorrente invoca, no seu Estado‑Membro de origem, os direitos adquiridos depois de ter exercido a sua liberdade de circular no Reino Unido que era à data um Estado‑Membro da União. Por último, desde que este Estado deixou de ter essa qualidade, é enquanto cidadão da União devido apenas à sua nacionalidade romena que o mesmo entende poder circular livremente no território da União com os documentos de identidade e de viagem romenos (32).
42. A situação do recorrente está assim abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União. Todavia, pode esta análise ser posta em causa pelo facto de o mesmo ter invocado os seus direitos na Roménia depois da saída do Reino Unido da União?
B. Quanto ao impacto do Acordo de Saída
43. Em primeiro lugar, importa recordar que:
– em 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido saiu da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, e
– em conformidade com o artigo 2.°, alínea e), do Acordo de Saída, lido em conjugação com o seu artigo 126.°, este acordo previa um período de transição, entre 1 de fevereiro de 2020, data da entrada em vigor deste acordo, e 31 de dezembro de 2020. Segundo o artigo 127.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do referido acordo, durante este período, o direito da União era aplicável ao Reino Unido e no seu território, salvo disposição em contrário no mesmo.
44. Em segundo lugar, devo concluir que:
– nenhuma das disposições do Acordo de Saída prevê uma derrogação ao princípio enunciado neste artigo 127.° relativa a disposições do direito da União aplicáveis no processo principal, e
– no presente caso, são os efeitos do exercício da liberdade de circular no Reino Unido, produzidos respetivamente antes da saída deste Estado‑Membro da União e do fim do período de transição, que são reivindicados noutro Estado‑Membro. Com efeito, em 21 de fevereiro de 2017, na sequência de um processo de deed poll, o nome próprio do recorrente no processo principal e a sua forma de tratamento foram alterados e, em 29 de junho de 2020, durante o período de transição, foi emitido um GRC, ou seja, uma certidão que confirma a identidade de género masculina.
45. Daqui resulta, na minha opinião, que esta GRC, emitida durante o período de transição, deve ser analisada no Estado‑Membro em causa como um documento oficial de outro Estado‑Membro (33), em conformidade com o direito da União aplicável no dia da apreciação do pedido.
46. Esta qualificação não pode estar dependente do fim do período de transição e, consequentemente, da data em que os seus efeitos são reivindicados pelo interessado (34). Por conseguinte, a restrição à liberdade de circular alegada pelo recorrente (35) quanto à recusa da atualização do seu assento de nascimento pode, em princípio, ser apreciada à luz do disposto no artigo 21.° TFUE.
47. Assim, com as suas duas questões, que, na minha opinião, devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 21.° TFUE e os artigos 7.° e 45.° da Carta devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que as autoridades de um Estado‑Membro recusem o reconhecimento e a inscrição no assento de nascimento de um nacional deste Estado‑Membro, que tem igualmente nacionalidade britânica, do nome próprio e da identidade de género, legalmente declarados e adquiridos no Reino Unido quando este Estado ainda era membro da União, aquando da primeira declaração, e quando o direito da União ainda era aplicável, aquando da segunda, pelo facto de uma disposição do direito nacional condicionar a possibilidade de obter essa inscrição ao reconhecimento da mudança de sexo por um órgão jurisdicional do primeiro Estado‑Membro.
48. Por conseguinte, há que determinar quais as consequências em matéria registo civil que, segundo o direito da União, podem decorrer destes atos controvertidos.
C. Quanto ao reconhecimento em matéria de registo civil num Estado‑Membro das alterações de nome próprio e de género obtidas noutro Estado‑Membro
49. Tendo em consideração as condições para o reconhecimento num Estado‑Membro dos efeitos dos documentos públicos emitidos noutro Estado‑Membro, devo observar, em primeiro lugar, que o órgão jurisdicional de reenvio considera garantido que os atos em causa no processo principal, que não são atos de registo civil nem decisões judiciais, são válidos e seriam suscetíveis de produzir, em matéria de registo civil, os mesmos efeitos relativos à identidade do recorrente (36) que os reconhecidos pelas autoridades britânicas, que emitiram um novo passaporte e uma nova carta de condução, na sequência da declaração de alteração do nome próprio e da forma de tratamento (deed poll), e não tendo especificado nada a respeito da GRC (37).
50. Em segundo lugar, quanto a um pedido de atualização do assento de nascimento de um cidadão da União, há que referir as decisões do Tribunal de Justiça em matéria de identidade civil relativas exclusivamente à recusa das autoridades de um Estado‑Membro de reconhecerem o nome próprio ou o apelido adquiridos, em circunstâncias análogas às do processo principal, por um nacional deste Estado‑Membro que exerceu o seu direito de circular livremente e que tem igualmente a nacionalidade de outro Estado‑Membro, tendo o nome próprio ou o apelido sido determinados segundo as regras em vigor neste último Estado‑Membro (38).
51. O Tribunal de Justiça considerou, primeiro, que «o nome próprio e o apelido de uma pessoa são um elemento constitutivo da sua identidade e da sua vida privada, cuja proteção se encontra consagrada no artigo 7.° da [Carta], bem como no artigo 8.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”)». O Tribunal de Justiça declarou também que, embora o artigo 7.° da Carta não o mencione expressamente, o nome próprio e o apelido de uma pessoa não deixam de constituir um elemento da vida privada e familiar dessa pessoa enquanto meio de identificação pessoal e de conexão a uma família (39).
52. Seguidamente, o Tribunal de Justiça declarou que a recusa de reconhecer o apelido de um cidadão da União legalmente obtido noutro Estado‑Membro pode causar entraves ao exercício do direito, consagrado no artigo 21.° TFUE, de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros devido às confusões e inconvenientes que podem advir de uma eventual divergência entre os dois apelidos atribuídos a uma mesma pessoa para efeitos da prova da sua identidade e da natureza das suas relações familiares (40).
53. Por último, quando o direito nacional contém outras bases jurídicas para proceder à alteração do apelido a pedido do interessado, o Tribunal de Justiça declarou que estas, para serem consideradas compatíveis com o direito da União, não devem tornar impossível ou excessivamente difícil a implementação dos direitos conferidos pelo artigo 21.° TFUE. Além disso, na falta de regulamentação da União em matéria de alteração do apelido, as modalidades previstas pelo direito nacional devem respeitar o princípio da equivalência (41).
54. Nessas decisões, baseadas no direito de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros de que goza qualquer cidadão da União, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se a favor da uniformização, num Estado‑Membro, dos assentos relativos à identificação civil com um apelido ou um nome próprio adquiridos noutro Estado‑Membro, quer em aplicação das regras de atribuição do nome próprio ou do apelido (42), quer na sequência de uma alteração voluntária (43).
55. A lógica subjacente a esta jurisprudência é a do reconhecimento automático, num contexto de confiança mútua entre Estados‑Membros e com vista a assegurar a livre circulação da pessoa em causa nestes Estados, de um apelido ou de um nome próprio adquirido noutro Estado‑Membro, e não de um ato administrativo ou jurisdicional. Esta lógica é, portanto, diferente da do reconhecimento dos efeitos de um ato ou de uma sentença estrangeira, segundo os métodos do direito internacional privado (44), que justificariam a elaboração de regras especiais com fundamentos diferentes dos do artigo 21.° TFUE (45).
56. Nestas circunstâncias, importa determinar quais as condições em que esta jurisprudência pode ser transposta, distinguindo os atos em causa no processo principal, uma vez que o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre o reconhecimento automático de um novo nome próprio.
1. Alteração de nome próprio
57. No presente caso, quanto à alteração de nome próprio obtida pelo recorrente no Reino Unido, antes do reconhecimento da sua identidade de género, é facto assente que o nome próprio que consta do passaporte e da carta de condução britânicos do recorrente não é idêntico ao que está inscrito no registo civil e nos documentos administrativos romenos. Como no processo que deu origem ao Acórdão Bogendorff (46) e, a fortiori, no caso de escolha de um novo nome próprio ligado ao da declaração posterior relativa à identidade de género, não há dúvida de que o facto de a mesma pessoa usar nomes próprios diferentes é suscetível de lhe provocar sérios inconvenientes de ordem administrativa, profissional e privada.
58. Por conseguinte, a recusa das autoridades de um Estado‑Membro de reconhecerem o nome próprio, conforme adquirido noutro Estado, que era, à data membro, da União, constitui uma restrição às liberdades reconhecidas pelo artigo 21.° TFUE a qualquer cidadão da União.
59. Nem o órgão jurisdicional de reenvio nem o Governo Romeno mencionam nenhum motivo específico suscetível de justificar a recusa em reconhecer e inscrever, no assento de nascimento do recorrente, o nome próprio que adquiriu no Reino Unido diferente do reconhecimento da identidade de género, a que as autoridades romenas se opõem (47). Esse órgão jurisdicional não referiu, aliás, nenhuma disposição específica relativa à alteração de nome próprio, a não ser a relacionada com a mudança de sexo. Além disso, não foi dada nenhuma informação quanto a um procedimento de reconhecimento de uma decisão estrangeira em conformidade com o direito da União em matéria de apelido ou de nome próprio (48).
60. Acresce que, nas circunstâncias do processo principal, o facto de vincular o reconhecimento do novo nome próprio ao reconhecimento da identidade de género não respeita o princípio da efetividade e não assegura a proteção dos direitos que decorrem, para o recorrente, do direito da União e, nomeadamente, do artigo 21.° TFUE (49). Por fim, o órgão jurisdicional de reenvio não se poderia basear em justificações ligadas à ordem pública ou à igualdade de tratamento para recusar a alteração do nome próprio (50).
61. Por conseguinte, considero que, atendendo a estas circunstâncias, não há nenhuma dificuldade, quanto à atualização do assento de nascimento do recorrente, em dissociar o reconhecimento da alteração do seu nome próprio do reconhecimento da mudança de género, ainda que o nome próprio apareça ligado a um género diferente daquele a que se associa sociologicamente o sexo registado à nascença.
62. Por outro lado, entendo que, nesta situação, para apreciar o alcance de uma decisão de reconhecimento automático de um novo nome próprio, há que ir além do quadro factual no âmbito do qual o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se e considerar que esse reconhecimento pode ter consequências noutros assentos de registo civil, como os dos membros da família da pessoa em causa, dos quais consta o nome próprio anterior à alteração, designadamente um assento de casamento ou parceria registada ou ainda o assento de nascimento de um filho.
63. Considero que, quando a regulamentação em matéria de identificação civil o prevê, o reconhecimento de um novo nome próprio deve produzir efeitos incondicionalmente, tanto mais desde que não altere a identidade dos terceiros em causa, diferentemente do reconhecimento de uma alteração de um apelido escolhido ou adquirido pelo cônjuge ou ainda transmitido aos filhos. Pelo contrário, na falta de atualização subsequente, resultaria daí uma divergência entre os assentos de registo civil que criaria entraves ao exercício dos direitos decorrentes do artigo 21.° TFUE se os membros da família pretendessem gozar desses direitos com base nas relações familiares que teriam de justificar.
64. É por isso que, no meu entender, o alcance da resposta do Tribunal de Justiça não se deve limitar ao assento de nascimento da pessoa em causa. Assim, de um modo geral, o artigo 21.° TFUE deveria ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades de um Estado‑Membro recusem inscrever no registo civil o nome próprio, adquirido por um nacional deste Estado‑Membro noutro Estado‑Membro, cuja nacionalidade também possui, com base numa disposição do direito nacional que condiciona a possibilidade de obter essa inscrição ao reconhecimento da mudança de sexo por um órgão jurisdicional do primeiro Estado‑Membro.
2. Alteração de género
65. No presente caso, a questão inédita que o Tribunal de Justiça é chamado a decidir é se a sua jurisprudência em matéria de registo civil relativa aos efeitos transfronteiriços da obtenção de um apelido num Estado‑Membro pode ser transposta em todos os aspetos.
a) Analogia com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao apelido
66. A título preliminar, importa sublinhar que, embora, no Acórdão de 26 de junho de 2018, MB (Mudança de sexo e pensão de reforma) (51), o Tribunal de Justiça tenha especificado que «o direito da União não prejudi[ca] a competência dos Estados‑Membros no domínio do estado civil das pessoas e do reconhecimento jurídico da mudança de identidade sexual de uma pessoa» (52), o processo que deu origem a essa decisão não tinha por objeto o reconhecimento jurídico num Estado‑Membro da identidade de género adquirida noutro Estado‑Membro (53).
67. Por conseguinte, importa decidir se a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa apenas ao reconhecimento de pleno direito num Estado‑Membro da alteração de um elemento da identidade de um cidadão da União, a saber, o seu apelido, com vista à sua inscrição no registo civil noutro Estado‑Membro, deve ser aplicada nas mesmas condições quando se trata da indicação do sexo no assento de nascimento.
68. Numa primeira fase da análise, poder‑se‑ia impor uma resposta afirmativa, reproduzindo os mesmos termos do Acórdão Freitag (54), por três razões.
69. Antes de mais, na maior parte dos Estados‑Membros (55), a indicação do sexo é um elemento constitutivo da identidade de uma pessoa, como o apelido e o nome próprio (56). Este é normalmente associado ao sexo inscrito no assento de nascimento (57), o que, por vezes, também acontece com o apelido (58).
70. Em seguida, os fundamentos do reconhecimento de um novo apelido ou nome próprio para efeitos da sua inscrição no registo civil, a saber as exigências que decorrem do artigo 21.° TFUE e do direito ao respeito da vida privada cuja proteção é consagrada no artigo 7.° da Carta e no artigo 8.° da CEDH (59), impõem que um cidadão da União não possa ser privado da essência dos direitos que o seu estatuto lhe confere, e isto em todos os aspetos da sua identidade.
71. Além disso, essa solução está de acordo com a jurisprudência atualmente constante do TEDH, baseada no artigo 8.° da CEDH e relativa ao respeito da identidade de género (60).
72. É certo que esse tribunal não se pronunciou sobre casos de reconhecimento de decisões de mudança de apelido ou de sexo (61), mas afirmou reiteradamente que o respeito da vida privada ou familiar induz a obrigação positiva do Estado de a assegurar adotando medidas destinadas a reconhecer tanto a mudança do apelido ou do nome próprio (62) como da identidade de género (63) e retirar daí as consequências em matéria de registo civil.
73. Importa igualmente constatar que 25 dos 27 Estados‑Membros preveem processos de alteração de identificação civil permitindo alterar a identidade legal de nascimento em consequência de uma escolha individual quanto ao género (64), o que vem confirmar a pertinência da solução proposta com base nos princípios enunciados no n.° 70 das presentes conclusões, por analogia com a jurisprudência relativa ao apelido.
74. Acrescento que a falta de regulamentação, num Estado‑Membro, que tenha por objeto o reconhecimento da declaração de alteração de género não me parece constituir um obstáculo à luz do artigo 21.° TFUE, devido à obrigação positiva que resulta da jurisprudência do TEDH (65) e à analogia que pode ser feita com o Acórdão Grunkin e Paul. Nessa decisão, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre o reconhecimento do apelido de um menor, composto pelos apelidos do pai e da mãe, quando o direito alemão não previa esse duplo apelido (66).
75. Por último, quanto às justificações de uma restrição à liberdade de circulação, analisadas pelo Tribunal de Justiça, este pronunciou‑se, em especial, sobre o objetivo de impedir, em caso de alteração voluntária de apelido, uma elusão do direito nacional em matéria de estatuto pessoal através do exercício, só com esse propósito, da liberdade de circulação e dos direitos daí resultantes. Nessa ocasião, o Tribunal de Justiça recordou que, no n.° 24 do Acórdão de 9 de março de 1999, Centros (67), já tinha declarado que um Estado‑Membro pode tomar medidas destinadas a impedir que, com base nas facilidades criadas em virtude do Tratado, alguns dos seus nacionais se tentem subtrair abusivamente à aplicação da sua legislação nacional, e que os particulares não se podem, abusiva ou fraudulentamente, prevalecer das normas do direito da União (68).
76. A este respeito, em matéria de reconhecimento da identidade de género, é necessário tomar em consideração o facto de a regulamentação dos Estados‑Membros se encontrar atualmente menos consolidada do que a relativa à alteração de apelido no momento em que o Tribunal de Justiça se pronunciou (69). Alguns Estados‑Membros preveem um processo de autodeterminação (70), ao passo que, noutros Estados‑Membros, devido à jurisprudência dor TEDH (71), as exigências probatórias foram alteradas, ou mesmo eliminadas (72).
77. No entanto, esta diversidade de direitos substantivos aplicáveis em caso de alteração de género não pode levar a admitir motivos sérios para não a reconhecer (73). Uma vez que se trata de atribuir efeitos aos direitos inerentes à cidadania, esta diversidade justifica apenas uma supervisão reforçada sobre as condições em que esses direitos são exercidos para prevenir qualquer abuso.
78. Por conseguinte, como preconizado na audiência, considero adequado, para afastar o risco de abuso, que possam ser invocadas condições de residência ou de nacionalidade (74) para verificar a existência de relações estreitas com o Estado‑Membro em que essa mudança ocorreu (75).
79. Quanto à aplicação, no processo principal, dos princípios anteriormente expostos, devo observar que a única justificação para a recusa de reconhecer e inscrever no assento de nascimento em causa, sem mediação de um processo, a alteração de género na sequência de uma declaração de identidade de género, exposta no pedido de decisão prejudicial (76), é a relativa à existência de outras bases jurídicas que permitam obter uma mudança de sexo na Roménia.
80. Ora, o Acórdão X e Y c. Roménia (77) vem demonstrar, como salientou o órgão jurisdicional de reenvio, que este processo nacional não pode ser considerado compatível com o direito da União, uma vez que torna impossível ou excessivamente difícil a implementação dos direitos conferidos pelo artigo 21.° TFUE (78).
81. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça pode considerar, atendendo às circunstâncias do processo principal, como nos acórdãos precedentes relativos ao apelido de um cidadão da União, que a recusa das autoridades romenas de reconhecerem a identidade de género adquirida no Reino Unido, quando o direito da União ainda era aplicável, constitui uma restrição injustificada às liberdades reconhecidas pelo artigo 21.° TFUE a qualquer cidadão da União.
82. No entanto, numa segunda fase da análise, a indispensável apreciação do alcance geral dessa decisão, assente nas mesmas bases da jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de apelido, suscita a questão dos eventuais limites impostos pelos efeitos particulares em matéria de estatuto pessoal da indicação do sexo no assento de nascimento.
b) Prever limites à transposição da jurisprudência sobre o apelido?
83. A indicação do sexo no assento de nascimento tem efeitos particulares em matéria de estatuto pessoal. Quais as consequências, se for esse o caso, devem ser retiradas à luz das últimas decisões do Tribunal de Justiça relativas às condições em que os assentos de registo civil originários de um Estado‑Membro devem produzir efeitos noutro Estado‑Membro, designadamente dos Acórdãos Coman e o. e Pancharevo?
1) Quanto aos efeitos específicos da indicação do sexo no registo civil sobre o estatuto pessoal
84. Em matéria de identificação das pessoas, a declaração relativa à identidade sexual tem efeitos que o apelido não tem. A mudança de apelido é, efetivamente, suscetível de alterar sucessivamente o apelido das pessoas às quais este foi transmitido ou que por ele optaram (79). No entanto, por comparação, a declaração de identidade de género não pode ser analisada como uma manifestação de vontade que se limita à identidade da pessoa em causa.
85. Com efeito, esta declaração altera tanto o estatuto pessoal como o estatuto familiar do interessado. Assim, pode ser invocada no exercício de direitos correlacionados com a diferença de sexo (casamento, filiação, reforma (80), saúde, competições desportivas, etc.).
86. Por conseguinte, uma vez que a atualização dos assentos de registo civil é justificada pelo objetivo de assegurar os direitos inerentes à livre circulação do cidadão em causa e dos seus familiares (81), é indispensável questionar, como em relação à mudança de nome próprio (82), os efeitos em cadeia desse registo de uma declaração de identidade de género reconhecida num Estado‑Membro sobre outros atos de registo civil, como os assentos de casamento ou os assentos de nascimentos dos filhos, lavrados antes dessa declaração (83) no mesmo Estado‑Membro ou noutros Estados‑Membros, como exemplificam os Acórdãos Coman e o. e Pancharevo.
2) Quanto aos efeitos próprios do reconhecimento e da inscrição no registo civil da declaração de identidade de género adquirida noutro Estado‑Membro
87. Deduzo dos Acórdãos Coman e o. e Pancharevo que o Tribunal de Justiça assegurou a observância do princípio segundo o qual o direito da União não põe em causa a competência dos Estados‑Membros em matéria de registo civil de indicações que teriam por efeito reconhecer a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou um vínculo de filiação estabelecido com dois progenitores do mesmo sexo. Nesta última hipótese, foi claramente recordada a inexistência de uma obrigação dos Estados‑Membros em matéria de registo civil (84).
88. Por conseguinte, considero que a questão dos efeitos do reconhecimento, num Estado‑Membro, dos atos ou decisões relativos à declaração do sexo estabelecidos, noutro Estado‑Membro, é apresentada sob um ângulo diferente do abordado pelo Tribunal de Justiça em matéria de apelido (85).
89. Com efeito, no Acórdão Coman e o., embora o Tribunal de Justiça tenha declarado a obrigação de um Estado‑Membro reconhecer um casamento entre pessoas do mesmo sexo, celebrado noutro Estado‑Membro em conformidade com o direito deste, precisou que este casamento deve ser reconhecido unicamente para efeitos da concessão de um direito de residência derivado a um nacional de um Estado terceiro, mas que esta obrigação de reconhecimento não implica que o referido Estado‑Membro preveja, no seu direito nacional, a instituição do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo (86).
90. No Acórdão Pancharevo, o Tribunal de Justiça declarou que as autoridades de um Estado‑Membro devem emitir um cartão de identidade ou um passaporte ao seu nacional com base numa certidão de nascimento emitida noutro Estado‑Membro, independentemente da emissão de uma nova certidão de nascimento num serviço de registo nacional, devendo a primeira certidão ser reconhecida (87).
91. Nesses dois acórdãos, o Tribunal de Justiça enquadrou a sua decisão no prolongamento da sua jurisprudência constante relativa aos efeitos transfronteiriços de um apelido atribuído ou escolhido. Recordou a competência dos Estados‑Membros em matéria do estado das pessoas (88) e a obrigação de assegurar os direitos decorrentes do artigo 21.° TFUE, que impõe, assim, o reconhecimento do casamento de pessoas do mesmo sexo (89) ou do vínculo de filiação com progenitores do mesmo sexo, registado noutro Estado‑Membro (90). Neste último caso, o assento de registo civil, lavrado num Estado‑Membro, estabelecia a existência de vínculos de filiação apenas para efeitos da emissão, por outro Estado‑Membro, de um documento de viagem aos seus nacionais (91), sem nenhum efeito sobre os registos civis deste Estado‑Membro.
92. Por conseguinte, à luz dos referidos acórdãos, o regime aplicável em matéria de reconhecimento e de inscrição no registo civil de uma alteração de género na sequência de uma declaração relativa à identidade de género adquirida noutro Estado‑Membro, com base no duplo imperativo da autonomia pessoal (92) e da liberdade de circulação dos cidadãos da União (93), deve, na minha opinião, prever alguns limites.
93. Esta solução consistiria em restringir a obrigação dos Estados‑Membros de procederem ao registo da alteração dos elementos de identidade de um indivíduo consoante o sexo pelo qual optou apenas no seu assento de nascimento se for suscetível de produzir efeitos sobre outros atos de registo civil. Enunciada em termos gerais, a resposta do Tribunal de Justiça ao órgão jurisdicional de reenvio limitaria os efeitos em matéria de registo civil dos princípios decorrentes do artigo 21.° TFUE aos elementos de identificação da pessoa em causa (94) que servem, nomeadamente, para que se possa deslocar no território da União, ou seja, com vista à emissão de um cartão de identidade ou de um passaporte (95).
94. A referida solução teria como consequência que a atualização dos assentos de registo civil respeitantes aos membros da família da pessoa em causa não seria obrigatória, por força do direito da União, uma vez que esta atualização implicaria um reconhecimento subsequente no registo civil do casamento de pessoas do mesmo sexo (96) ou de vínculos de filiação com progenitores do mesmo sexo (97), o que não pode ser imposto aos Estados‑Membros em aplicação do direito da União.
95. Nessa perspetiva, o paliativo da divergência entre os assentos de registo civil dos membros de um casal ou da mesma família, baseado no artigo 21.° TFUE, já enunciado pelo Tribunal de Justiça, poderia ser adaptado no sentido de a declaração de identidade de género produzir os seus efeitos sobre as informações decorrentes dos assentos de registo civil já existentes apenas aquando da emissão de um cartão de identidade, de um título de residência ou de um passaporte, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça nos Acórdãos Coman e o. e Pancharevo.
96. É certo que esta solução não é satisfatória à luz do direito ao respeito da vida familiar e do superior interesse do menor, uma vez que a pessoa transgénero deve poder justificar as suas relações familiares estabelecidas por atos de registo civil. Com efeito, considero que, embora a dissociação entre a emissão de um documento administrativo e a manutenção da identidade civil seja concebível para sair do território de que o cidadão é nacional, a mesma não satisfaz a exigência de uma vida sem inconvenientes de ordem administrativa no caso de este regressar (98).
97. No entanto, uma vez que o reconhecimento num Estado‑Membro de uma alteração relativa à identidade de um cidadão da União ocorrida noutro Estado‑Membro se baseia no artigo 21.° TFUE, só os Estados‑Membros são competentes para definir as consequências em matéria de estado das pessoas que resultem da harmonização de todos os assentos de registo civil (99).
98. O TEDH considera igualmente que devem ser ponderados os interesses públicos em jogo no âmbito da organização do registo civil (100) e do reconhecimento da identidade de género das pessoas (101). A este respeito, devem ser tidas em consideração as diferentes exigências nos Estados‑Membros (102).
99. Por conseguinte, considero que o artigo 21.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades competentes de um Estado‑Membro recusem reconhecer e inscrever, sem mediação de um processo, no assento de nascimento de um nacional deste Estado‑Membro, a sua identidade de género adquirida noutro Estado‑Membro, cuja nacionalidade também possui. A existência, no direito nacional, de um processo de mudança de sexo ou de género não pode justificar essa recusa.
100. Atendendo ao exposto relativamente às mudanças de nome próprio e de género obtidas noutro Estado‑Membro e tendo em consideração as circunstâncias do processo principal, proponho que a resposta do Tribunal de Justiça às questões do órgão jurisdicional de reenvio em matéria de identidade civil se limite ao assento de nascimento do cidadão da União em causa, formulada em termos gerais e completada por uma precisão sobre a inexistência de impacto da saída do Reino Unido da União.
V. Conclusão
101. À luz das considerações anteriores, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pela Judecătoria Sectorului 6 București (Tribunal de Primeira Instância do Setor 6, Bucareste, Roménia) nos seguintes termos:
1) O artigo 21.° TFUE e os artigos 7.° e 45.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
devem ser interpretados no sentido de que:
se opõem a que as autoridades de um Estado‑Membro recusem reconhecer e inscrever no assento de nascimento de um cidadão desse Estado‑Membro o nome próprio e a identidade de género legalmente declarados e adquiridos noutro Estado‑Membro, cuja nacionalidade também possui.
A existência de um processo judicial ou administrativo de mudança de sexo ou de género não pode constituir um obstáculo a esse reconhecimento automático.
Em contrapartida, o direito da União não põe em causa a competência dos Estados‑Membros para preverem, no respetivo direito nacional, os efeitos deste reconhecimento e desta inscrição noutros assentos de registo civil e em matéria de identidade das pessoas, a que são aplicáveis as regras relativas ao casamento e à filiação.
2) O facto de o pedido de reconhecimento e de inscrição no registo civil da alteração de nome próprio e de género adquiridos no Reino Unido ter sido apresentado num Estado‑Membro da União, numa data em que o direito da União já não era aplicável no Reino Unido, não é pertinente.