Language of document : ECLI:EU:C:2024:389

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

8 de maio de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Diretiva (UE) 2019/1023 — Processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas — Artigo 20.° — Acesso ao perdão — Artigo 23.° — Derrogações — Artigo 23.°, n.° 4 — Exclusão de determinadas categorias de dívida do perdão da dívida — Regulamentação nacional que exclui os créditos tributários e da segurança social do perdão de dívidas — Caráter devidamente justificado de tal exclusão»

No processo C‑20/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunal da Relação do Porto (Portugal), por Decisão de 14 de dezembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de janeiro de 2023, no processo

SF

contra

MV,

Instituto da Segurança Social, I. P.,

Autoridade Tributária e Aduaneira,

Cofidis, S. A. — Sucursal em Portugal,

sendo interveniente:

José da Costa Araújo, na qualidade de Administrador de Insolvência de SF,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, F. Biltgen (relator), N. Wahl, J. Passer e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de SF, por U. Freitas, advogado,

–        em representação do Instituto da Segurança Social, I. P., por A. Serrano, advogada,

–        em representação do Governo Português, por M. Afonso Brigas, P. Barros da Costa, A. de Almeida Morgado, I. Inverno e A. Rodrigues, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Espanhol, por A. Ballesteros Panizo, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Braun, J. L. Buendía Sierra e I. Melo Sampaio, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de janeiro de 2024,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência) (JO 2019, L 172, p. 18), bem como do artigo 16.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe SF, uma pessoa singular que se tornou insolvente (a seguir «devedor») a MV, ao Instituto da Segurança Social, I. P. (Portugal), à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal) e à Cofidis, S. A. — Sucursal em Portugal, a propósito de um pedido de perdão de dívidas apresentado pelo devedor no decurso do seu processo de insolvência.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos dos considerandos 78 e 81 da Diretiva sobre reestruturação e insolvência:

«(78)      O perdão total da dívida ou o termo das medidas de inibição após um período não superior a três anos não são adequados a todas as situações, pelo que poderão ser previstas derrogações desta regra que sejam devidamente justificadas por razões estabelecidas no direito nacional. Por exemplo, essas derrogações deverão ser estabelecidas nos casos em que o devedor for desonesto ou tiver atuado de má‑fé. Caso os empresários não beneficiem de uma presunção de honestidade e boa‑fé nos termos do direito nacional, o ónus da prova da sua honestidade e da sua boa‑fé não deverá fazer com que seja desnecessariamente difícil ou oneroso para eles ter acesso ao processo.

[...]

(81)      Caso exista um motivo devidamente justificado ao abrigo do direito nacional, poderá ser adequado limitar a possibilidade de perdão para determinadas categorias de dívida. Os Estados‑Membros deverão poder excluir dívidas garantidas da elegibilidade para perdão só até ao valor da garantia tal como determinado pelo direito nacional, devendo o saldo da dívida ser tratado como dívida não garantida. Os Estados‑Membros deverão poder excluir outras categorias de dívida, quando devidamente justificado.»

4        O artigo 2.°, n.° 1, ponto 10, desta diretiva tem a seguinte redação:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

10)      “Perdão total da dívida”: a exclusão de fazer valer contra um empresário as suas dívidas não satisfeitas suscetíveis de serem perdoadas ou a extinção das dívidas não satisfeitas suscetíveis de serem perdoadas enquanto tais, no âmbito de um processo que poderá incluir a liquidação dos ativos ou um plano de reembolso ou ambos».

5        O artigo 20.° da referida diretiva, sob a epígrafe «Acesso ao perdão», enuncia:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida em conformidade com a presente diretiva.

Os Estados‑Membros podem exigir que a atividade comercial, industrial ou artesanal, ou profissional por conta própria, à qual as dívidas de um empresário insolvente estão associadas, tenha cessado.

2.      Os Estados‑Membros em que o perdão total da dívida tenha como condição o reembolso parcial da dívida pelo empresário asseguram que a obrigação de reembolso tenha por base a situação individual do empresário e, em especial, que seja proporcional aos seus rendimentos e ativos disponíveis ou suscetíveis de serem apreendidos durante o prazo para o perdão e tenha em conta o interesse equitativo dos credores.

3.      Os Estados‑Membros asseguram que os empresários que tenham obtido o perdão das suas dívidas possam beneficiar de regimes nacionais vigentes que prevejam apoios empresariais para empresários, incluindo acesso a informações pertinentes e atualizadas sobre esses regimes.»

6        O artigo 23.° da mesma diretiva, sob a epígrafe «Derrogações», prevê, no seu n.° 4:

«Os Estados‑Membros podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, ou restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados, nomeadamente no caso:

a)      Das dívidas garantidas;

b)      Das dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas;

c)      Das dívidas decorrentes de responsabilidade delitual;

d)      Das dívidas respeitantes a obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade;

e)      Das dívidas contraídas após a apresentação do pedido de abertura de um processo conducente a um perdão da dívida ou após a abertura de tal processo; e

f)      Das dívidas decorrentes da obrigação de pagar as custas do processo conducente a um perdão da dívida.»

7        O artigo 34.°, n.° 1, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência dispõe:

«Os Estados‑Membros adotam e publicam, até 17 de julho de 2021, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva, com exceção das disposições necessárias para dar cumprimento ao artigo 28.°, alíneas a), b) e c), que devem ser adotadas e publicadas até 17 de julho de 2024, e das disposições necessárias para dar cumprimento ao artigo 28.°, alínea d), que devem ser adotadas e publicadas até 17 de julho de 2026. Os Estados‑Membros comunicam imediatamente à Comissão [Europeia] o texto dessas disposições.

Os Estados‑Membros aplicam as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva a partir de 17 de julho de 2021, com exceção das disposições necessárias para dar cumprimento ao artigo 28.°, alíneas a), b) e c), que são aplicadas a partir de 17 de julho de 2024, e das disposições necessárias para dar cumprimento ao artigo 28.°, alínea d), que são aplicadas a partir de 17 de julho de 2026.»

8        Em aplicação do artigo 35.° desta diretiva, que prevê que esta entra em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia, a referida diretiva entrou em vigor em 16 de julho de 2019.

 Direito português

 CIRE

9        O artigo 235.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto‑Lei n.° 53/2004, de 18 de março de 2004 (Diário da República, I série‑A, n.° 66, de 18 de março de 2004), conforme alterado pela Lei n.° 9/2022, de 11 de janeiro de 2022 (Diário da República, 1.ª série‑A, n.° 7, de 11 de janeiro de 2022) (a seguir «CIRE»), sob a epígrafe «Princípio geral», tem a seguinte redação:

«Se o devedor for uma pessoa singular pode ser‑lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo.»

10      O artigo 242.°, n.° 2, do CIRE dispõe:

«É nula a concessão de vantagens especiais a um credor da insolvência pelo devedor ou por terceiro.»

11      O artigo 245.°, n.° 2, alínea d), do CIRE prevê que a exoneração do passivo restante (perdão de dívidas) não abrange, nomeadamente, «[o]s créditos tributários e da segurança social».

12      Em 2022, a República Portuguesa transpôs a Diretiva sobre reestruturação e insolvência por meio da Lei n.° 9/2022, de 11 de janeiro de 2022, que não alterou a lista de créditos excluídos da exoneração do passivo restante (perdão de dívidas) que figura no artigo 245.°, n.° 2, do CIRE, nomeadamente os créditos tributários e da segurança social. Esta lei não apresentou justificação para a exclusão destes últimos créditos.

 LGT

13      A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto‑Lei n.° 398/98, de 17 de dezembro de 1998 (Diário da República, I série‑A, n.° 290, de 17 de dezembro de 1998) (a seguir «LGT»), enuncia e define os princípios gerais que regem o direito fiscal português e os poderes da Administração Tributária e garantias dos contribuintes.

14      O artigo 5.° da LGT prevê:

«1.      A tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento.

2.      A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material.»

15      Nos termos do artigo 30.°, n.os 2 e 3, da LGT:

«2.      O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar‑se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

3.      O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16      Por Sentença de 18 de junho de 2018, transitada em julgado, o devedor foi declarado insolvente.

17      Em 23 de janeiro de 2019, o juiz do Tribunal de Primeira Instância decidiu admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante (perdão de dívidas) apresentado pelo devedor.

18      Em 29 de julho de 2022, o Administrador de Insolvência do devedor apresentou um parecer final no qual considerava que o devedor devia poder beneficiar da exoneração do passivo restante (perdão de dívidas).

19      Por Decisão de 3 de outubro de 2022, foi concedida ao devedor a exoneração do passivo restante (perdão de dívidas), com exceção dos créditos tributários e da segurança social que foram excluídos em aplicação do artigo 245.°, n.° 2, alínea d), do CIRE.

20      O devedor interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto (Portugal), o órgão jurisdicional de reenvio. Em apoio do seu recurso, alegou que o artigo 245.°, n.° 2, do CIRE não está em conformidade com o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, porquanto a exclusão da exoneração do passivo restante (perdão de dívidas) dos créditos tributários e da segurança social não está, contrariamente ao previsto nesta última disposição, «devidamente justificad[a]». Além disso, esta exclusão constitui um obstáculo aos objetivos prosseguidos por esta diretiva.

21      Este órgão jurisdicional constata que a Lei n.° 9/2022, de 11 de janeiro de 2022, que procedeu à transposição da referida diretiva para o direito português, não apresenta qualquer justificação para a referida exclusão, nem essa justificação foi sequer equacionada na proposta de lei que lhe esteve subjacente. O referido órgão jurisdicional indica que, além das dúvidas relativas à compatibilidade do artigo 245.°, n.° 2, do CIRE com a mesma diretiva, tem igualmente dúvidas quanto à questão de saber se a exclusão prevista nesta disposição constitui um obstáculo, nomeadamente, à realização dos objetivos prosseguidos pelo Tratado FUE e à efetividade do direito da União.

22      Nestas circunstâncias, o Tribunal da Relação do Porto decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O n.° 4 do artigo 23.° da [Diretiva sobre reestruturação e insolvência] deve ser interpretado no sentido que só é permitida a exclusão de outras dívidas (além das elencadas nas alíneas) quando estive[r] “devidamente justificad[a]”?

2)      A possibilidade de os Estados‑Membros excluírem determinadas categorias de dívidas do perdão da dívida (desde que tal exclusão seja devidamente justificada, tal como previsto no artigo 23.°, n.° 4, da [Diretiva sobre reestruturação e insolvência]) deve ser interpretada no sentido de permitir que os Estados‑Membros excluam os créditos tributários (não indicados no respetivo artigo), criando uma situação privilegiada para si próprios?

3)      Se porventura a resposta a estas questões for positiva, importa saber que critérios satisfariam tal exigência de justificação, na aceção do direito da União Europeia, por forma a respeitarem (tais justificações) os princípios gerais do direito da União e a proteção dos direitos fundamentais, aos quais o legislador europeu e nacional estão sujeitos [“não discriminação em razão da nacionalidade” (artigo 18.° do TFUE) e “liberdade de empresa” (artigo 16.° da [Carta]), para além das liberdades económicas fundamentais do mercado interno].

4)      Se porventura a resposta àquela questão for negativa, importa saber se a definição (na aceção do direito da União Europeia e para os efeitos de interpretação da diretiva em apreço) de “dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas”, bem como de “dívidas decorrentes de ‘responsabilidade delitual’”, abrange também as dívidas tributárias, tal como prevê o ato legislativo interno de transposição da [Diretiva sobre reestruturação e insolvência] (Lei n.° 9/2022, de 11 de janeiro).»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

23      O Governo Espanhol sustenta, em substância, que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível pelo facto de a Diretiva sobre reestruturação e insolvência não ser aplicável ao processo que deu origem ao processo principal, uma vez que o pedido de exoneração em causa é anterior à data de entrada em vigor desta diretiva.

24      A este respeito, importa relembrar que, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.° TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 22 de fevereiro de 2024, Consejería de Presidencia, Justicia e Interior de la Comunidad de Madrid e o., C‑59/22, C‑110/22 e C‑159/22, EU:C:2024:149, n.° 43 e jurisprudência referida).

25      Daqui decorre que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 22 de fevereiro de 2024, Consejería de Presidencia, Justicia e Interior de la Comunidad de Madrid e o., C‑59/22, C‑110/22 e C‑159/22, EU:C:2024:149, n.° 44 e jurisprudência referida).

26      Por outro lado, resulta do artigo 35.° da Diretiva sobre reestruturação e insolvência que esta entrou em vigor em 16 de julho de 2019. Além disso, o artigo 34.°, n.° 1, desta diretiva prevê que os Estados‑Membros adotam, publicam e aplicam, até 17 de julho de 2021, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento, nomeadamente, ao artigo 23.° da referida diretiva. Daqui decorre que, a partir desta última data, os Estados‑Membros estavam obrigados, por força do artigo 288.°, terceiro parágrafo, TFUE, a assegurar o pleno efeito deste artigo 23.° [v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Alemanha (Transposição das Diretivas 2009/72 e 2009/73), C‑718/18, EU:C:2021:662, n.° 118 e jurisprudência referida].

27      No caso vertente, a decisão de exoneração do passivo restante (perdão de dívidas) que é objeto do litígio no processo principal foi adotada em 3 de outubro de 2022. Por conseguinte, nessa data, o órgão jurisdicional que adotou essa decisão estava obrigado a fazê‑lo no pleno respeito dos objetivos e das obrigações estabelecidos pela Diretiva sobre reestruturação e insolvência, a fim de dar cumprimento ao artigo 288.°, terceiro parágrafo, TFUE.

28      Esta apreciação não é posta em causa pelo facto de o pedido de exoneração do passivo restante (perdão de dívidas) que deu lugar à referida decisão ter sido apresentado antes da data de entrada em vigor desta diretiva. Com efeito, o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência sujeita a possibilidade de os Estados‑Membros excluírem determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, restringirem o acesso ao perdão da dívida ou fixarem um prazo para o perdão mais prolongado à condição de essas derrogações ao perdão da dívida serem devidamente justificadas. Na medida em que essa exigência de justificação enquadra a margem de apreciação dos Estados‑Membros quanto à adoção das referidas derrogações, deve aplicar‑se também quando os pedidos de exoneração do passivo restante (perdão de dívidas) tenham sido apresentados antes da entrada em vigor desta diretiva, mas a decisão sobre esses pedidos seja tomada após o termo do prazo de transposição da referida diretiva.

29      Por conseguinte, a Diretiva sobre reestruturação e insolvência é aplicável ao litígio no processo principal e o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

30      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que só é possível a exclusão do perdão da dívida de uma determinada categoria de dívida diferente das enumeradas nessa disposição quando estiver «devidamente justificada».

31      A este respeito, há, antes de mais, que constatar que a lista de determinadas categorias de dívida que figura nesta disposição é introduzida pelos termos «nomeadamente no caso» e que termos com o mesmo significado são empregados nas outras versões linguísticas da referida disposição, incluindo na versão em língua portuguesa da mesma. Assim, decorre da redação da referida disposição que as determinadas categorias de dívida não são enumeradas de forma exaustiva [v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 37].

32      A interpretação literal do artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência segundo a qual a lista que figura nesta disposição não tem caráter exaustivo, mas exemplificativo, é corroborada pelo considerando 81 desta diretiva, do qual resulta que o legislador da União considerou que os Estados‑Membros «deverão poder excluir outras categorias de dívida, quando devidamente justificado» [Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 38].

33      Daqui resulta que este artigo 23.°, n.° 4, deve ser interpretado no sentido de que a lista das determinadas categorias de dívida que ali figura não tem caráter exaustivo e que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida diferentes das enumeradas nessa disposição, quando devidamente justificado [Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 39].

34      Além disso, atendendo ao facto de que o legislador da União sujeitou expressamente o exercício da faculdade assim concedida aos Estados‑Membros nesse artigo 23.°, n.° 4, à condição de essas exclusões serem «devidamente justificad[a]s», o Tribunal de Justiça declarou que, quando o legislador nacional adota tais derrogações, os fundamentos dessas derrogações devem resultar do direito nacional ou do processo que lhes deu origem e que esses fundamentos devem prosseguir um interesse público legítimo [Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 42].

35      Em seguida, tanto o considerando 78 da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, que faz referência às derrogações «devidamente justificadas por razões estabelecidas no direito nacional», como o considerando 81 desta diretiva, que evoca um motivo «devidamente justificado ao abrigo do direito nacional», permitem considerar que o legislador da União estimou que era suficiente o respeito das modalidades previstas para o efeito nos diferentes direitos nacionais [Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 43].

36      Por último, importa precisar que, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.° 42 das suas conclusões, a Diretiva sobre reestruturação e insolvência não exige que a justificação de exclusão de uma determinada categoria do perdão da dívida seja facultada no próprio ato que transpõe esta diretiva.

37      Com efeito, como salientado no n.° 34 do presente acórdão, resulta da referida diretiva que a justificação que deve ser facultada por um Estado‑Membro em apoio de uma exclusão como a que está em causa no processo principal deve resultar do processo que lhe deu origem ou do direito nacional. Assim, no que respeita à primeira hipótese, quando, ao abrigo do direito nacional, os trabalhos preparatórios, os preâmbulos e as exposições de motivos dos atos legislativos ou regulamentares fazem parte integrante destes ou são pertinentes para a sua interpretação e contêm uma justificação para a exclusão de uma determinada categoria de dívida do perdão da dívida, há que considerar que esta justificação está em conformidade com as exigências do artigo 23.°, n.° 4, da mesma diretiva [v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 54]. Por outro lado, no que respeita à segunda hipótese, a referida justificação pode também figurar noutras disposições do direito nacional além da que contém essa exclusão, como uma disposição constitucional, legislativa ou regulamentar nacional.

38      No caso vertente, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, por um lado, que o artigo 103.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa prevê que o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e, por outro, que os artigos 5.° e 30.° da LGT enunciam objetivos e os princípios que justificam a exclusão dos créditos tributários e da segurança social do perdão da dívida, tais como a satisfação das necessidades financeiras do Estado, a promoção da justiça social e da igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento com respeito pelos princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade, da justiça material e da indisponibilidade do crédito tributário. Afigura‑se, portanto, a priori, que existe, no direito português, uma justificação para esta exclusão. Todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar e aplicar o direito nacional, apreciar se a referida exclusão está devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.

39      Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão que o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que só é possível a exclusão do perdão da dívida de uma determinada categoria de dívida diferente das enumeradas nessa disposição quando estiver devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.

 Quanto à segunda questão

40      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida, tais como os créditos tributários e da segurança social, atribuindo‑lhes, assim, um estatuto privilegiado.

41      Para responder a esta questão, importa, por um lado, recordar que, como resulta do n.° 33 do presente acórdão, esta disposição deve ser interpretada no sentido de que a lista das determinadas categorias de dívida que ali figura não tem caráter exaustivo e que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida diferentes das enumeradas na referida disposição, quando devidamente justificado.

42      Por outro lado, no que respeita à margem de apreciação de que gozam os Estados‑Membros no exercício desta faculdade, o Tribunal de Justiça declarou que nem a Diretiva sobre reestruturação e insolvência nem os trabalhos preparatórios da sua adoção contêm elementos suscetíveis de corroborar a tese segundo a qual, atendendo à coerência interna das categorias de dívida expressamente previstas no artigo 23.°, n.° 4, desta diretiva, o legislador da União pretendeu limitar a margem de apreciação dos Estados‑Membros quanto à exclusão do perdão da dívida de categorias de dívida diferentes das enumeradas nesta disposição, tais como os créditos tributários e da segurança social. Pelo contrário, resulta mais especificamente destes trabalhos preparatórios que esse legislador teve uma vontade afirmada de deixar aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação para que estes pudessem, quando da transposição da referida diretiva para o seu direito nacional, ter em conta a situação económica e as estruturas jurídicas nacionais [v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 40].

43      Além disso, a exclusão do perdão da dívida de créditos, tais como os créditos tributários e da segurança social, pode ser devidamente justificada. Com efeito, nem todos os créditos são da mesma natureza, os credores não têm a mesma qualidade e a cobrança desses créditos pode responder a objetivos específicos. Assim, tendo em conta a natureza dos créditos tributários e da segurança social, bem como o objetivo da cobrança do imposto e das contribuições sociais, os Estados‑Membros podem legitimamente considerar que os credores institucionais públicos não se encontram, na perspetiva da cobrança dos créditos em causa, numa situação comparável à dos credores do setor comercial ou privado. Nestas circunstâncias, a possibilidade de excluir do perdão da dívida os créditos tributários e da segurança social não equivale a favorecer indevidamente os credores institucionais públicos face aos outros credores que não beneficiam de uma tal exclusão.

44      Por conseguinte, o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que não restringe a margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem quanto à escolha das categorias de dívida diferentes das enumeradas nesta disposição que pretendem excluir do perdão da dívida [v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 41].

45      Em face do exposto, há que responder à segunda questão que o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida, tais como os créditos tributários e da segurança social, atribuindo‑lhes, assim, um estatuto privilegiado, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.

 Quanto à terceira questão

46      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o exame do caráter devidamente justificado de uma exclusão de uma determinada categoria de dívida do perdão da dívida introduzida por um Estado‑Membro na sua ordem jurídica nacional deve ser efetuado à luz, nomeadamente, do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade previsto no artigo 18.° TFUE, da liberdade de empresa consagrada no artigo 16.° da Carta e das liberdades económicas fundamentais do mercado interno.

47      A este propósito, importa recordar que resulta do espírito de cooperação que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial que é indispensável que o tribunal nacional exponha, na decisão de reenvio, as razões precisas pelas quais considera que é necessária para a decisão da causa uma resposta às suas questões de interpretação de certas disposições de direito da União (Acórdão de 28 de novembro de 2023, Commune d’Ans, C‑148/22, EU:C:2023:924, n.° 43 e jurisprudência referida).

48      Segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este respeite escrupulosamente as exigências de conteúdo de um pedido de decisão prejudicial e que figuram expressamente no artigo 94.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça (Acórdão de 28 de novembro de 2023, Commune d’Ans, C‑148/22, EU:C:2023:924, n.° 44 e jurisprudência referida).

49      Assim, em conformidade com o artigo 94.°, alínea c), do Regulamento de Processo, é indispensável que a decisão de reenvio contenha a exposição das razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação de certas disposições do direito da União, bem como o nexo que esse órgão estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal (Acórdão de 28 de novembro de 2023, Commune d’Ans, C‑148/22, EU:C:2023:924, n.° 46 e jurisprudência referida).

50      No caso vertente, impõe‑se constatar que a decisão de reenvio não contém indicações que permitam compreender o nexo que o órgão jurisdicional de reenvio estabelece entre as disposições do direito da União cuja interpretação pede e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal.

51      Nestas condições, a terceira questão é inadmissível.

 Quanto à quarta questão

52      Tendo em conta as respostas dadas à primeira e segunda questões, não há que responder à quarta questão.

 Quanto às despesas

53      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência),

deve ser interpretado no sentido de que:

só é possível a exclusão do perdão da dívida de uma determinada categoria de dívida diferente das enumeradas nessa disposição quando estiver devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.

2)      O artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva 2019/1023

deve ser interpretado no sentido de que:

os EstadosMembros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida, tais como os créditos tributários e da segurança social, atribuindolhes, assim, um estatuto privilegiado, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.

Assinaturas


*      Língua do processo: português.