Language of document : ECLI:EU:C:2021:187

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

10 de março de 2021 (*)

[Texto retificado por Despacho de 13 de abril de 2021]

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 8.o, n.o 1, alínea c) — Mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público de um Estado‑Membro para efeitos de procedimento penal com base numa medida privativa de liberdade decretada pela mesma autoridade — Inexistência de fiscalização jurisdicional antes da entrega da pessoa procurada — Consequências — Proteção jurisdicional efetiva — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

No processo C‑648/20 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Westminster Magistrates’ Court (Tribunal de Magistrados de Westminster, Reino Unido), por Decisão de 26 de novembro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 1 de dezembro de 2020, no processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra

PI,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, L. Bay Larsen, C. Toader (relatora) e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: C. Strömholm,

vistos os autos e após a audiência de 27 de janeiro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de PI, por H. Malcolm, QC, e J. Kern, barrister, mandatados por S. Bisnauthsing, solicitor,

–        em representação do Governo búlgaro, por L. Zaharieva e T. Tsingileva, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e S. Grünheid, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de fevereiro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»), lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito da execução, no Reino Unido, de um mandado de detenção europeu emitido pelo rayonna prokuratura Svichtov (procurador da Procuradoria Regional de Svichtov, Bulgária), para efeitos de procedimento penal instaurado contra PI.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 5, 6, 10 e 12 da Decisão‑Quadro 2002/584 têm a seguinte redação:

«(5)      O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6)      O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.

[…]

(10)      O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o [UE], verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o [UE] e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo.

[…]

(12)      A presente decisão‑quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.o [UE] e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia […], nomeadamente o seu capítulo VI. […]»

4        O artigo 1.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», dispõe:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [UE].»

5        O artigo 2.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação do mandado de detenção europeu», prevê, no seu n.o 1:

«O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado‑Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por sanções de duração não inferior a quatro meses.»

6        Nos termos do artigo 6.o da mesma decisão‑quadro, que tem por epígrafe «Determinação das autoridades judiciárias competentes»:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3.      Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

7        O artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Conteúdo e formas do mandado de detenção europeu», dispõe, no seu n.o 1:

«O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo:

[…]

c)      Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 1.o e 2.o;

[…]»

 Direito do Reino Unido

8        O procedimento de execução de um mandado de detenção europeu é regulado pelo Extradition Act 2003 (Lei relativa à Extradição de 2003). A primeira parte desta lei define os territórios para os quais se pode proceder a uma extradição pelo Reino Unido. A República da Bulgária é um deles. Nos termos da section 2(7) da referida lei, a autoridade central designada emite uma certidão se considerar que o mandado de detenção foi emitido por uma autoridade de emissão que emana de um dos referidos territórios.

 Direito búlgaro

 ZEEZA

9        A Zakon za ekstraditsiata i evropeiskata zapoved za arest (Lei relativa à Extradição e ao Mandado de Detenção Europeu, DV n.o 46, de 3 de junho de 2005), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «ZEEZA»), transpõe para o direito búlgaro a Decisão‑Quadro 2002/584. O artigo 37.o da ZEEZA enuncia as disposições relativas à emissão de um mandado de detenção europeu em termos quase idênticos aos do artigo 8.o dessa decisão‑quadro.

10      Nos termos do artigo 56.o, n.o 1, ponto 1, da ZEEZA, o Ministério Público é competente, na fase preliminar do processo penal, para emitir um mandado de detenção europeu contra o arguido.

 NPK

11      Em conformidade com o artigo 14.o, n.o 1, do Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal, DV n.o 86, de 28 de outubro de 2005), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «NPK») o Ministério Público toma as suas decisões de acordo com a sua íntima convicção, com base numa análise objetiva, imparcial e completa de todas as circunstâncias do processo, no respeito pela lei.

12      No âmbito do processo penal, o Ministério Público é a autoridade competente que, nos termos do artigo 46.o do NPK, exerce a ação penal pública, conduz a instrução e exerce uma fiscalização da legalidade desta e da sua boa marcha.

13      A aplicação da prisão preventiva a uma pessoa contra a qual seja exercida a ação penal é regida, na fase preliminar do processo penal, pelo artigo 64.o do NPK.

14      Nos termos do artigo 64.o, n.o 1, do NPK, «[a] medida de prisão preventiva deverá ser adotada, a pedido do Ministério Público, pelo tribunal de primeira instância competente durante a fase preliminar do processo».

15      Em conformidade com o artigo 64.o, n.o 2, do NPK, o Ministério Público pode adotar uma medida que ordene a detenção do arguido por um período máximo de 72 horas a fim de permitir a sua comparência perante o órgão jurisdicional competente para adotar, se for caso disso, uma medida de prisão preventiva.

16      O artigo 64.o, n.o 3, do NPK prevê, por sua vez, que «o tribunal, constituído por juiz singular, examinará de imediato o processo, em audiência pública, com a participação do Ministério Público, do arguido e do seu advogado».

17      Além disso, em conformidade com o artigo 64.o, n.o 4, do NPK, o tribunal é a autoridade competente para examinar o pedido de prisão preventiva e para apreciar se essa medida deve ser aplicada, ou se se deve optar por aplicar uma medida mais leve ou recusar de forma geral a aplicação de uma medida processual restritiva ao arguido.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

18      Em 28 de janeiro de 2020, o procurador da Procuradoria Regional de Svichtov emitiu um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal instaurado contra PI (a seguir «mandado de detenção europeu em causa»).

19      Conforme resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, PI é suspeito de ter praticado, na cidade de Svichtov (Bulgária), em 8 de dezembro de 2019, um furto de dinheiro e joias, com um valor total estimado de 14 713,97 levs búlgaros (BGN) (cerca de 7 500 euros), punível com pena de prisão de um a dez anos.

20      O mandado de detenção europeu em causa baseia‑se numa decisão do mesmo procurador, adotada em 12 de dezembro de 2019, que ordena a detenção de PI por um período máximo de 72 horas.

21      PI foi assim detido e preso preventivamente no Reino Unido, em 11 de março de 2020, com base no mandado de detenção europeu em causa.

22      Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a Westminster Magistrates’ Court (Tribunal de Magistrados de Westminster, Reino Unido), PI contesta a validade do mandado de detenção europeu em causa, sustentando que o sistema judiciário búlgaro não cumpre as exigências da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme interpretada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente pelos Acórdãos de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), e PF (Procurador‑Geral da Lituânia) (C‑509/18, EU:C:2019:457).

23      Resulta do pedido de decisão prejudicial que, segundo o procurador da Procuradoria Regional de Svichtov, a pessoa procurada por meio de um mandado de detenção europeu é, no direito búlgaro, representada por um advogado, pelo que os seus interesses são plenamente protegidos. Uma vez que a decisão de emitir tal mandado se baseia numa decisão de detenção que exige que, após a entrega da pessoa procurada, esta seja presente ao órgão jurisdicional que decide sobre a sua privação de liberdade, o sistema processual búlgaro está conforme com a Decisão‑Quadro 2002/584, conforme interpretada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

24      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, no direito búlgaro, nem a decisão do procurador que ordena a detenção da pessoa procurada nem o mandado de detenção europeu emitido pela mesma autoridade na sequência dessa decisão são suscetíveis de fiscalização jurisdicional antes da entrega da pessoa procurada. Esta situação afigura‑se, assim, distinta dos sistemas processuais conhecidos noutros Estados‑Membros e que deram origem à jurisprudência do Tribunal de Justiça nesta matéria.

25      O órgão jurisdicional de reenvio anexou ao seu pedido de decisão prejudicial a certidão emitida pela National Crime Agency (Agência Nacional de Luta contra a Criminalidade, Reino Unido), em conformidade com a section 2(7) da Lei relativa à Extradição de 2003, que atesta que o mandado de detenção europeu em causa foi emitido por uma autoridade judiciária competente a esse respeito.

26      No entanto, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre se a proteção em dois níveis dos direitos de que deve beneficiar a pessoa procurada, conforme exigido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente no n.o 56 do Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385), é assegurada no contexto do processo que lhe foi submetido, dado que tanto o mandado de detenção europeu em causa como o mandado de detenção nacional ou a decisão judicial com a mesma força que este último foram emitidos pelo procurador da Procuradoria Regional de Svichtov, sem intervenção de um órgão jurisdicional búlgaro antes da entrega de PI pelo Reino Unido.

27      Nestas circunstâncias, a Westminster Magistrates’ Court (Tribunal de Magistrados de Westminster) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Quando é pedida a entrega de uma pessoa procurada para efeitos de exercício da ação penal e tanto a decisão de emitir um mandado de detenção nacional […] como a decisão de emitir um mandado de detenção europeu […] com base na primeira são adotadas por um procurador do Ministério Público, sem a intervenção de um tribunal antes da entrega, a pessoa procurada beneficia da proteção em dois níveis prevista no Acórdão do Tribunal de Justiça de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi, C‑241/15 (EU:C:2016:385), se:

a)      o efeito do [mandado de detenção nacional] se limitar à detenção da pessoa [procurada] por um período máximo de 72 horas a fim de a fazer comparecer perante um juiz; e,

b)      no momento da entrega, couber exclusivamente ao tribunal ordenar a libertação ou a manutenção da detenção, tendo em conta todas as circunstâncias do caso?»

 Quanto à tramitação urgente

28      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

29      A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que este reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação da Decisão‑Quadro 2002/584, que integra os domínios a que se refere o título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. Por conseguinte, é suscetível de ser submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 107.o do seu Regulamento de Processo.

30      Em segundo lugar, no que respeita ao critério relativo à urgência, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, há que ter em consideração a circunstância de que a pessoa em causa no processo principal está atualmente privada de liberdade e de que a sua manutenção em detenção depende da decisão do litígio no processo principal (Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH, C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110, n.o 24 e jurisprudência referida).

31      No presente caso, como resulta dos n.os 18 a 21 do presente acórdão, PI foi detido e preso preventivamente no Reino Unido com base no mandado de detenção europeu em causa.

32      Daqui decorre que a manutenção de PI em prisão preventiva depende da decisão do Tribunal de Justiça, uma vez que a sua resposta à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio pode ter uma consequência imediata na execução do mandado de detenção europeu em causa e, consequentemente, no destino da prisão preventiva de PI.

33      Nestas circunstâncias, em 17 de dezembro de 2020, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta da juíza‑relatora, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação prejudicial urgente.

 Quanto à questão prejudicial

34      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584, lido à luz do artigo 47.o da Carta e da jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve ser interpretado no sentido de que as exigências inerentes à proteção jurisdicional efetiva de que deve beneficiar uma pessoa objeto de um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal estão preenchidas quando tanto o mandado de detenção europeu como a decisão judicial em que este se baseia são emitidos por um procurador, que pode ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, mas não podem ser sujeitos a fiscalização jurisdicional no Estado‑Membro de emissão antes da entrega da pessoa procurada pelo Estado‑Membro de execução.

35      Há que recordar, desde logo, que tanto o princípio da confiança mútua entre os Estados‑Membros como o princípio do reconhecimento mútuo, ele próprio assente na confiança recíproca entre estes últimos, são, no direito da União, de fundamental importância, dado que permitem a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Mais especificamente, o princípio da confiança mútua impõe a cada um desses Estados‑Membros, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os restantes Estados‑Membros respeitam o direito da União e, em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito [Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Openbaar Ministerie (Ministério Público da Suécia), C‑625/19 PPU, EU:C:2019:1078, n.o 33 e jurisprudência referida].

36      No entanto, a eficácia e o bom funcionamento do sistema simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, estabelecido pela Decisão‑Quadro 2002/584, assentam no respeito por determinadas exigências fixadas nesta decisão‑quadro cujo alcance foi clarificado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

37      Em primeiro lugar, decorre da decisão de reenvio que o procurador da Procuradoria Regional de Svichtov é uma autoridade que participa na administração da justiça penal e que é independente no exercício das funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu, permitindo estas duas condições qualificar essa autoridade de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 [v., por analogia, Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Parquet général du Grand‑Duché de Luxembourg e Openbaar Ministerie (Procuradores de Lyon e de Tours), C‑566/19 PPU e C‑626/19 PPU, EU:C:2019:1077, n.o 52 e jurisprudência referida]. Esta qualificação não é, aliás, contestada por PI, como esclareceu o seu advogado durante a audiência no Tribunal de Justiça.

38      Em segundo lugar, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a existência de fiscalização jurisdicional da decisão de emitir um mandado de detenção europeu tomada por uma autoridade que não seja um órgão jurisdicional não é uma condição para que essa autoridade possa ser qualificada de autoridade judiciária de emissão, na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, porque tal fiscalização não é abrangida pelas regras estatutárias e organizacionais da referida autoridade, antes dizendo respeito ao procedimento de emissão desse mandado, o qual deve obedecer à exigência de uma proteção jurisdicional efetiva (v., neste sentido, Acórdão de 13 de janeiro de 2021, MM, C‑414/20 PPU, EU:C:2021:4, n.o 44 e jurisprudência referida). Assim, a qualidade de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, não depende da existência de fiscalização jurisdicional da decisão de emissão do mandado de detenção europeu e da decisão nacional em que este último se baseia. Deste modo, o facto de a qualificação do procurador da Procuradoria Regional de Svichtov como «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, não ser contestada não basta para considerar que o procedimento búlgaro relativo à emissão de um mandado de detenção europeu por um procurador satisfaz as exigências inerentes à proteção jurisdicional efetiva.

39      Em terceiro lugar, à semelhança do advogado‑geral nos n.os 37 e 38 das suas conclusões, importa salientar que a decisão do procurador que ordena a detenção da pessoa procurada por um período máximo de 72 horas, na qual se baseia o mandado de detenção europeu, deve ser qualificada de «decisão judicial com a mesma força executiva» que um mandado de detenção nacional, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584.

40      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «mandado de detenção [nacional] ou […] qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva», na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584, visa as medidas nacionais adotadas por uma autoridade judiciária com vista à procura e detenção de uma pessoa contra a qual é exercida a ação penal, com o objetivo de a apresentar a um juiz para a prática de atos do processo penal (v., neste sentido, Acórdão de 13 de janeiro de 2021, MM, C‑414/20 PPU, EU:C:2021:4, n.o 57).

41      Por conseguinte, há que apreciar se um sistema de processo penal ao abrigo do qual tanto o mandado de detenção europeu como a decisão sobre a qual este se baseia são emitidos pelo Ministério Público, podendo ocorrer a este respeito uma fiscalização jurisdicional só após a entrega da pessoa procurada, satisfaz as exigências da Decisão‑Quadro 2002/584, a saber, o respeito pela proteção em dois níveis dos direitos de que deve beneficiar essa pessoa, conforme interpretada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

42      A este respeito, importa recordar que, no n.o 56 do Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385), o Tribunal de Justiça declarou que o sistema do mandado de detenção europeu inclui, nos termos da exigência prescrita no artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584, uma proteção em dois níveis dos direitos em matéria processual e dos direitos fundamentais de que deve beneficiar a pessoa procurada, uma vez que, à proteção judiciária nacional prevista no primeiro nível, no momento da adoção de uma decisão judiciária nacional, como um mandado de detenção nacional, acresce a que deve ser garantida no segundo nível, no momento da emissão do mandado de detenção europeu, que pode ocorrer, se for caso disso, num curto prazo, após a adoção da referida decisão judiciária nacional.

43      Esta proteção implica que uma decisão que cumpra as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva seja adotada, pelo menos, num dos dois níveis da referida proteção [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 68].

44      Daqui decorre que, quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um mandado de detenção europeu a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é um juiz nem um órgão jurisdicional, a decisão judiciária nacional, como um mandado de detenção nacional, na qual se baseia o mandado de detenção europeu, deve, por sua vez, cumprir essas exigências [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 69].

45      O cumprimento dessas exigências permite assim garantir à autoridade judiciária de execução que a decisão de emissão de um mandado de detenção europeu para efeitos de instauração de uma ação penal se baseia num procedimento nacional sujeito a fiscalização jurisdicional e que a pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção nacional beneficiou de todas as garantias próprias à adoção desse tipo de decisões, nomeadamente das decorrentes dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais referidos no artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 70].

46      Além disso, quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um mandado de detenção europeu a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é, ela mesma, um órgão jurisdicional, a decisão de emitir esse mandado de detenção e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão devem poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 75].

47      Como salientou o advogado‑geral no n.o 61 das suas conclusões, decorre desta jurisprudência do Tribunal de Justiça que a pessoa objeto de um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal deve poder beneficiar de uma proteção jurisdicional efetiva antes da sua entrega ao Estado‑Membro de emissão, e isso pelo menos num dos dois níveis de proteção exigidos pela referida jurisprudência.

48      Esta proteção pressupõe, consequentemente, que possa ser exercida uma fiscalização jurisdicional, quer relativamente ao mandado de detenção europeu, quer relativamente à decisão judiciária em que se baseia este mandado, antes de se proceder à execução deste último.

49      No sistema instituído pela Decisão‑Quadro 2002/584, que é baseado, conforme recordado no n.o 35 do presente acórdão, na confiança mútua entre os Estados‑Membros, esta exigência permite garantir à autoridade judiciária de execução que o mandado de detenção europeu, cuja execução lhe é pedida, foi emitido na sequência de um procedimento nacional sujeito a fiscalização jurisdicional, no âmbito do qual a pessoa procurada pôde beneficiar de todas as garantias próprias à adoção desse tipo de decisões, nomeadamente das decorrentes dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais referidos no artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, como decorre do n.o 45 do presente acórdão.

50      Estas considerações não são de modo algum postas em causa pelo ensinamento que emana dos Acórdãos de 12 de dezembro de 2019, Parquet général du Grand‑Duché de Luxembourg e Openbaar Ministerie (Procuradores de Lyon e de Tours) (C‑566/19 PPU e C‑626/19 PPU, EU:C:2019:1077), e Openbaar Ministerie (Ministério Público da Suécia) (C‑625/19 PPU, EU:C:2019:1078), invocados durante a audiência no Tribunal de Justiça.

51      Nos n.os 70 e 71 do primeiro desses acórdãos, o Tribunal de Justiça declarou que a existência, na ordem jurídica do Estado‑Membro de emissão, de regras processuais nos termos das quais o caráter proporcionado da decisão do Ministério Público de emitir um mandado de detenção europeu pode ser objeto, antes ou após a entrega efetiva da pessoa procurada, de fiscalização jurisdicional prévia, ou até simultânea à sua emissão, e, em todo caso, após esta última, obedece à exigência de uma proteção jurisdicional efetiva. No processo que deu origem a esse acórdão, como decorre dos n.os 68 e 69 deste, esta conclusão resultou da existência de um conjunto de disposições processuais que garantiam a intervenção de um juiz a partir da emissão do mandado de detenção nacional contra a pessoa procurada e, portanto, antes da entrega desta última.

52      Do mesmo modo, no processo que deu origem ao Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Openbaar Ministerie (Ministério Público da Suécia) (C‑625/19 PPU, EU:C:2019:1078), o mandado de detenção europeu emitido pelo procurador baseava‑se numa decisão judicial de prisão preventiva.

53      Assim, e como sublinhou o advogado‑geral nos n.os 69 e 72 das conclusões, nos acórdãos referidos no n.o 50 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça teve em consideração o facto de as condições para a emissão de um mandado de detenção europeu pelo Ministério Público poderem ser objeto de fiscalização jurisdicional antes da entrega da pessoa procurada, dado que, nos termos das legislações nacionais em causa nos processos que deram origem a esses acórdãos, o mandado de detenção europeu assentava num mandado de detenção nacional emitido por um juiz, que, além disso, procedia a uma apreciação das condições necessárias à emissão de um mandado de detenção europeu e, nomeadamente, do seu caráter proporcionado.

54      Ora, contrariamente aos processos que deram origem a esses dois acórdãos, no caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o direito búlgaro prevê apenas uma fiscalização jurisdicional a posteriori da decisão do procurador de emitir um mandado de detenção europeu, uma vez que essa fiscalização só é suscetível de ocorrer após a entrega da pessoa procurada.

55      [Conforme retificado por Despacho de 13 de abril de 2021] Quanto ao facto de, na sua resposta escrita às questões do Tribunal de Justiça, o Governo búlgaro precisar que, após a entrega da pessoa procurada na sequência da execução de um mandado de detenção europeu, esta será imediatamente presente ao órgão jurisdicional que examinará a necessidade de adotar contra ela uma medida preventiva privativa ou restritiva da liberdade e procederá, assim, igualmente à fiscalização do caráter proporcionado desse mandado, esta prática não é, porém, suscetível de assegurar a conformidade do sistema processual búlgaro com as exigências decorrentes da Decisão‑Quadro 2002/584.

56      [Conforme retificado por Despacho de 13 de abril de 2021] Com efeito, importa precisar que, como salientou o advogado‑geral nos n.os 33 e 34 das suas conclusões, no Acórdão de 13 de janeiro de 2021, MM (C‑414/20 PPU, EU:C:2021:4), o Tribunal de Justiça não se pronunciou diretamente sobre a questão de saber se o procedimento búlgaro relativo à emissão de um mandado de detenção europeu por um procurador durante a fase preliminar do processo penal respeitava as exigências inerentes à proteção jurisdicional efetiva, mas limitou‑se a considerar que, perante a inexistência de uma via de recurso distinta no direito do Estado‑Membro de emissão, o direito da União conferia a um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro um título de competência para exercer uma fiscalização a título incidental da validade do mandado de detenção europeu. Não se pode, portanto, deduzir desse acórdão que o Tribunal de Justiça declarou que a existência dessa possibilidade de fiscalização jurisdicional a posteriori era de molde a respeitar às exigências inerentes a uma proteção jurisdicional efetiva dos direitos da pessoa procurada.

57      Por conseguinte, a existência de uma fiscalização jurisdicional da decisão de um procurador de emitir um mandado de detenção europeu que ocorre apenas após a entrega da pessoa procurada não cumpre a obrigação que incumbe ao Estado‑Membro de emissão de aplicar regras processuais que permitam a um órgão jurisdicional competente efetuar, antes dessa entrega, uma fiscalização da legalidade do mandado de detenção nacional ou da decisão judiciária com a mesma força executiva, adotados igualmente por um procurador, ou ainda do mandado de detenção europeu.

58      É certo que, na aplicação da Decisão‑Quadro 2002/584, os Estados‑Membros conservam, em conformidade com a sua autonomia processual, a faculdade de adotar regras que podem revelar‑se diferentes de um Estado‑Membro para outro. Todavia, estes devem assegurar que essas regras não ponham em causa as exigências decorrentes desta decisão‑quadro, em especial quanto à proteção jurisdicional, garantida pelo artigo 47.o da Carta, que lhe está subjacente.

59      Daqui resulta que o objetivo da Decisão‑Quadro 2002/584, que, ao instituir um novo sistema simplificado e mais eficaz de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, pretende facilitar e acelerar a cooperação judiciária entre as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão e as do Estado‑Membro de execução de um mandado de detenção europeu, só pode ser alcançado mediante o respeito pelos direitos e princípios jurídicos fundamentais, consagrados no artigo 6.o TUE e refletidos na Carta, obrigação que, por outro lado, vincula todos os Estados‑Membros, nomeadamente, tanto o Estado‑Membro de emissão como o de execução (v., neste sentido, Acórdão de 12 de fevereiro de 2019, TC, C‑492/18 PPU, EU:C:2019:108, n.os 41, 54 e jurisprudência referida).

60      Tendo em conta todas estas considerações, há que responder à questão submetida que o artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584, lido à luz do artigo 47.o da Carta e da jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve ser interpretado no sentido de que as exigências inerentes à proteção jurisdicional efetiva de que deve beneficiar uma pessoa objeto de um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal não estão preenchidas quando tanto o mandado de detenção europeu como a decisão judicial em que este se baseia são emitidos por um procurador, que pode ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, mas não podem ser sujeitos a fiscalização jurisdicional no Estado‑Membro de emissão antes da entrega da pessoa procurada pelo Estado‑Membro de execução.

 Quanto às despesas

61      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da DecisãoQuadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve ser interpretado no sentido de que as exigências inerentes à proteção jurisdicional efetiva de que deve beneficiar uma pessoa objeto de um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal não estão preenchidas quando tanto o mandado de detenção europeu como a decisão judicial em que este se baseia são emitidos por um procurador, que pode ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisãoquadro, mas não podem ser sujeitos a fiscalização jurisdicional no EstadoMembro de emissão antes da entrega da pessoa procurada pelo EstadoMembro de execução.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.