Language of document : ECLI:EU:C:2023:857

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 9 de novembro de 2023 (1)

Processo C516/22

Comissão Europeia

contra

Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte

«Incumprimento de Estado — Acórdão proferido à revelia — Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica — Período de transição — Competência jurisdicional do Tribunal de Justiça — Acórdão da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) — Execução de uma sentença arbitral — Artigo 4.o, n.o 3, TUE — Dever de cooperação leal — Suspensão da instância — Artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE — Acordos entre Estados‑Membros e países terceiros celebrados antes da data da sua adesão à União Europeia — Tratados multilaterais — Artigo 267.o TFUE — Omissão de reenvio prejudicial — Órgão jurisdicional nacional que decide em última instância — Artigo 108.o, n.o 3, TFUE — Auxílio de Estado — Obrigação de não execução»






I.      Introdução

1.        Num artigo de que foi co‑autor em 1970, a título extrajudicial, o então juiz Mertens de Wilmars — que veio a ser o sexto presidente do (atual) Tribunal de Justiça da União Europeia — observou que, nos termos do direito internacional público clássico, os Estados são responsáveis pela atuação do seu poder judicial. Todavia, acrescentou que o então Tratado CEE tinha estabelecido uma relação muito especial entre as autoridades judiciais nacionais e as comunitárias. Nesta base, o juiz Mertens de Wilmars declarou que «uma decisão de um órgão jurisdicional nacional sobre o alcance das normas comunitárias […] ou, mais genericamente, um acórdão de aplicação do direito comunitário, nunca pode, enquanto tal, ser considerado como incumprimento de um Estado‑Membro». No seu entender, no âmbito de uma ação por incumprimento, um Estado‑Membro só seria responsável pela atuação dos seus órgãos jurisdicionais no caso de recusa sistemática de um tribunal de última instância em recorrer ao processo prejudicial (2).

2.        Cerca de cinquenta anos depois, o direito da União evoluiu consideravelmente. Está agora bem assente que o incumprimento de um Estado‑Membro pode, em princípio, ser declarado, nos termos dos artigos 258.o a 260.o TFUE, qualquer que seja a instituição, órgão ou agência desse Estado cuja ação ou omissão esteja na origem do incumprimento, ainda que se trate de uma instituição constitucionalmente independente (3). Daqui resulta que, no âmbito de uma ação por incumprimento, um Estado‑Membro pode ser responsabilizado por violações do direito da União resultantes de decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais (4).

3.        No entanto, a particularidade do presente processo é a de que as violações do direito da União alegadas pela Comissão Europeia não foram cometidas por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, mas por um órgão jurisdicional que — no momento em que proferiu o acórdão recorrido, dada a saída do Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia (a seguir «Brexit») — pertencia a um Estado terceiro: a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido).

4.        No caso em apreço, considero que, apesar do «Brexit» e da especial prudência que se impõe para declarar uma infração cometida por um órgão jurisdicional (5), o acórdão recorrido da Supreme Court deu origem a algumas violações do direito da União que podem ser declaradas no âmbito do presente processo.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União Europeia

5.        O artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE dispõe:

«As disposições dos Tratados não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções concluídas antes de 1 de janeiro de 1958 ou, em relação aos Estados que aderem à União, anteriormente à data da respetiva adesão, entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro» (6).

6.        Nos termos do artigo 2.o, alínea e), do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (7), entende‑se por «período de transição» o período previsto no artigo 126.o do Acordo.

7.        O artigo 86.o, n.o 2, do Acordo de Saída, relativo aos «Processos pendentes no Tribunal de Justiça da União Europeia», estabelece:

«O Tribunal de Justiça da União Europeia continua a ser competente para decidir, a título prejudicial, sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição.»

8.        O artigo 87.o, n.o 1, do Acordo de Saída, relativo aos «Novos processos submetidos ao Tribunal de Justiça», declara o seguinte:

«Se a Comissão Europeia considerar que o Reino Unido não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados ou da parte IV do presente Acordo antes do termo do período de transição, pode, no prazo de quatro anos após o termo do período de transição, recorrer para o Tribunal de Justiça da União Europeia, em conformidade com os requisitos estabelecidos no artigo 258.o do TFUE […]. O Tribunal de Justiça da União Europeia tem competência para conhecer desses casos.»

9.        O artigo 126.o do Acordo de Saída, sob a epígrafe «Período de transição», enuncia:

«É estabelecido um período de transição ou de execução, com início na data de entrada em vigor do presente Acordo e termo em 31 de dezembro de 2020.»

10.      O artigo 127.o do Acordo de Saída, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação da transição», tem a seguinte redação:

«1.      Salvo disposição em contrário do presente Acordo, o direito da União é aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição.

[…]

3.      Durante o período de transição, o direito da União aplicável nos termos do n.o 1 produz, no que respeita ao Reino Unido e no seu território, os mesmos efeitos jurídicos que produz na União e nos seus Estados‑Membros, e deve ser interpretado e aplicado em conformidade com os mesmos métodos e princípios gerais que são aplicáveis na União.

[…]

6. Salvo disposição em contrário do presente Acordo, durante o período de transição, as referências a Estados‑Membros no direito da União aplicável nos termos do n.o 1, incluindo as disposições transpostas e aplicadas pelos Estados‑Membros, entendem‑se como incluindo o Reino Unido.

[…]»

B.      Direito internacional

11.      O Tratado Bilateral de Investimento, celebrado em 29 de maio de 2002 entre o Governo do Reino da Suécia e o Governo Romeno para a promoção e a proteção recíproca dos investimentos (a seguir «TBI»), entrou em vigor em 1 de julho de 2003 e dispõe, no seu artigo 2.o, n.o 3:

«Cada parte contratante garante, a todo o momento, um tratamento justo e equitativo aos investimentos dos investidores da outra parte contratante e não cria obstáculos, através de medidas arbitrárias ou discriminatórias, à gestão, manutenção, utilização, gozo ou cessão dos referidos investimentos pelos mencionados investidores, nem à aquisição de bens e serviços ou à venda da sua produção.»

12.      O artigo 7.o do TBI estabelece que qualquer diferendo entre investidores e as partes contratantes é regulado, nomeadamente, por um tribunal arbitral que aplica a Convenção CIRDI (a seguir «cláusula de arbitragem»).

13.      Os artigos 53.o e 54.o da Convenção para a Resolução de Diferendos relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de outros Estados, celebrada em Washington em 18 de março de 1965 (a seguir «Convenção CIRDI») figuram na secção 6 («Reconhecimento e execução da sentença») do seu capítulo IV («Arbitragem»). O artigo 53.o, n.o 1, tem a seguinte redação:

«A sentença será obrigatória para as partes e não poderá ser objeto de apelação ou de qualquer outro recurso, exceto os previstos na presente Convenção. Cada parte deverá acatar os termos da sentença, exceto se a execução for suspensa em conformidade com as disposições da presente Convenção.»

14.      O artigo 54.o, n.o 1, dispõe:

«Cada Estado Contratante reconhecerá a obrigatoriedade da sentença dada em conformidade com a presente Convenção e assegurará a execução no seu território das obrigações pecuniárias impostas por essa sentença como se fosse uma decisão final de um tribunal desse Estado […].»

III. Antecedentes do processo e procedimento précontencioso

15.      O contexto factual pertinente do litígio, tal como resulta dos autos, pode ser resumido da seguinte forma.

A.      Sentença arbitral, decisões da Comissão e tramitação processual no Tribunal de Justiça da União Europeia

16.      Em 26 de agosto de 2004, a Roménia revogou, com efeitos a partir de 22 de fevereiro de 2005, um regime de auxílios estatais com finalidade regional sob a forma de vários incentivos fiscais que tinham sido instituídos em 1998. Em 28 de julho de 2005, os investidores suecos Ioan e Viorel Micula, bem como três sociedades por estes controladas com sede na Roménia (a seguir «investidores») — que tinham beneficiado do regime antes da sua revogação —, pediram a constituição de um tribunal arbitral nos termos do artigo 7.o do TBI, a fim de obter a reparação do prejuízo resultante da revogação do regime de incentivos fiscais em causa.

17.      Na sentença arbitral que proferiu em 11 de dezembro de 2013 (a seguir «sentença»), o tribunal arbitral declarou que, ao revogar o regime de incentivos fiscais em causa antes de 1 de abril de 2009, a Roménia tinha violado as legítimas expectativas dos investidores, não tinha agido de forma transparente por não os ter informado em tempo útil e não tinha assegurado um tratamento justo e equitativo dos seus investimentos, na aceção do artigo 2.o, n.o 3, do TBI. Por conseguinte, o tribunal arbitral condenou a Roménia a pagar aos investidores, a título de indemnização, o montante de 791 882 452 leus romenos (RON) (cerca de 160 milhões de euros, à taxa de câmbio atual)

18.      Em 26 de maio de 2014, a Comissão adotou a Decisão C(2014) 3192 final, que obrigava a Roménia a suspender imediatamente qualquer ação suscetível de conduzir à aplicação ou à execução da sentença, com o fundamento de que esta ação parecia constituir um auxílio de Estado ilegal, até que a Comissão tivesse tomado uma decisão final sobre a compatibilidade do alegado auxílio com o mercado interno (a seguir «injunção de suspensão»).

19.      Em 1 de outubro de 2014, a Comissão informou a Roménia de que tinha decidido dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE no que respeita ao alegado auxílio (a seguir «decisão de iniciar o procedimento»).

20.      Posteriormente, em 30 de março de 2015, a Comissão adotou a Decisão (UE) 2015/1470 relativa ao auxílio estatal SA.38517 (2014/C) (ex 2014/NN) aplicado pela Roménia — Sentença arbitral Micula contra Roménia, de 11 de dezembro de 2013 (a seguir «a decisão final de 2015»). Esta decisão previa essencialmente que, por um lado, o pagamento da indemnização concedida pela sentença aos investidores constituía um «auxílio de Estado», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, que era incompatível com o mercado interno; e, por outro, que a Roménia estava obrigada a não pagar nenhum auxílio incompatível e devia recuperar qualquer auxílio que já tivesse sido pago aos investidores.

21.      Os investidores contestaram a validade da decisão final de 2015 no Tribunal Geral que, no Acórdão de 18 de junho de 2019, European Food e o./Comissão, anulou esta decisão (8). Em substância, o Tribunal Geral julgou procedentes os fundamentos dos investidores relativos, por um lado, à incompetência da Comissão e à inaplicabilidade do direito da União a uma situação anterior à adesão da Roménia e, por outro, a um erro na qualificação da sentença como «vantagem» e como «auxílio» na aceção do artigo 107.o TFUE.

22.      Em 27 de agosto de 2019, a Comissão interpôs recurso do acórdão do Tribunal Geral para o Tribunal de Justiça. Por Acórdão de 25 de janeiro de 2022, o Tribunal de Justiça anulou o acórdão do Tribunal Geral (9). Em substância, o Tribunal de Justiça declarou, em primeiro lugar, que o alegado auxílio tinha sido concedido após a adesão da Roménia à União e que, por conseguinte, o Tribunal Geral tinha cometido um erro de direito ao declarar que a Comissão não era competente ratione temporis para adotar a decisão final de 2015. Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que o Tribunal Geral também cometeu um erro de direito quando declarou que o Acórdão Achmea (10) não era pertinente no caso em apreço. Daqui resulta, segundo o Tribunal de Justiça, que o consentimento da Roménia para o sistema de arbitragem previsto no TBI se tornou inaplicável na sequência da adesão deste Estado‑Membro à União. Não tendo o Tribunal Geral, no seu acórdão, examinado todos os fundamentos invocados pelos investidores, o Tribunal de Justiça remeteu o processo ao Tribunal Geral para este se pronunciar novamente. Até à data, este processo está pendente no Tribunal Geral.

23.      Por último, no Despacho de 21 de setembro de 2022, Romatsa e o., o Tribunal de Justiça, em resposta a um pedido de decisão prejudicial apresentado por um órgão jurisdicional belga no âmbito de um litígio em que os investidores eram partes, declarou que o artigo 267.o TFUE e o artigo 344.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, chamado a pronunciar‑se sobre a execução da sentença, «não deve aplicar essa sentença e, por conseguinte, não pode, em caso algum, proceder à sua execução para permitir que os seus beneficiários obtenham o pagamento das indemnizações que a sentença lhes atribui» (11).

B.      Tramitação processual nos órgãos jurisdicionais britânicos

24.      Em 17 de outubro de 2014, a sentença foi registada na High Court of England and Wales, em conformidade com as disposições do Arbitration (International Investment Disputes) Act, de 1966, que aplica a Convenção CIRDI no Reino Unido.

25.      Em 20 de janeiro de 2017, a High Court (Juiz Blair) negou provimento ao pedido da Roménia para a anulação do registo, mas concedeu provimento ao pedido da mesma para a suspensão da execução até à conclusão do processo nos órgãos jurisdicionais da União (12). Posteriormente, em 27 de julho de 2018, a Court of Appeal (Lordes Arden, Hamblen e Leggatt) decidiu que os órgãos jurisdicionais ingleses estavam impedidos, com base no princípio da cooperação leal enunciado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, de ordenar a execução imediata da sentença enquanto uma decisão da Comissão proibisse a Roménia de pagar a indemnização concedida. Com este fundamento, negou provimento ao recurso interposto pelos investidores contra a suspensão da execução ordenada pela High Court mas ordenou à Roménia que prestasse uma garantia (13).

26.      Com o Acórdão de 19 de fevereiro de 2020, Micula/Roménia (a seguir «acórdão recorrido»), a Supreme Court (Supremo Tribunal, Reino Unido) ordenou a execução da sentença. Invocando o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, a Supreme Court concluiu que a execução dessa decisão era regida por um tratado multilateral, a Convenção CIRDI, que o Reino Unido celebrou antes da sua adesão à União Europeia e que impunha ao Reino Unido obrigações cuja execução pode ser exigida por países terceiros que são partes nesse acordo.

C.      Fase précontenciosa

27.      Em 3 de dezembro de 2020, a Comissão enviou ao Reino Unido uma notificação para cumprir, alegando quatro violações do direito da União resultantes do acórdão recorrido. Na sua resposta de 1 de abril de 2021 à notificação para cumprir, o Reino Unido contestou as alegadas violações.

28.      Por não ter ficado convencida com os argumentos apresentados na resposta à notificação para cumprir, em 17 de julho de 2021 a Comissão enviou um parecer fundamentado ao Reino Unido. Por carta de 23 de agosto de 2021, o Reino Unido solicitou a prorrogação do prazo para responder ao parecer fundamentado, o que a Comissão concedeu. O Reino Unido não respondeu ao parecer fundamentado.

IV.    Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

29.      Na sua petição, apresentada em 29 de julho de 2022, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        declarar que o Reino Unido, ao autorizar a execução da sentença arbitral proferida no processo CIRDI n.o ARB/05/20, não cumpriu as suas obrigações:

–        previstas no artigo 4.o, n.o 3, TUE, em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (a seguir «Acordo de Saída»), ao decidir quanto à interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e sua aplicação à execução da sentença arbitral, quando a mesma questão já tinha sido objeto de decisões da Comissão vigentes e estava pendente nos órgãos jurisdicionais da União;

–        previstas no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, em conjugação com o artigo 127.o do Acordo de Saída, ao interpretar e aplicar erradamente os seguintes conceitos: «direitos» de «um ou mais Estados terceiros» e «[os] Tratados não prejudicam»;

–        previstas no artigo 267.o, primeiro parágrafo, alíneas a) e b), e terceiro parágrafo, TFUE, em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída, ao não submeter uma questão prejudicial sobre a validade da «injunção de suspensão de 2014» da Comissão e da «decisão de 2014 de iniciar o procedimento» da Comissão, e ao não submeter, enquanto órgão jurisdicional de última instância, uma questão prejudicial sobre a interpretação de direito da União que não constituía um ato claro ou um ato aclarado; e

–        previstas no artigo 108.o, n.o 3, TFUE, em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1 do Acordo de Saída, ao intimar a Roménia a violar as suas obrigações previstas no direito da União, no seguimento da injunção de suspensão de 2014 e da decisão de 2014 de iniciar o procedimento;

–        condenar o Reino Unido nas despesas.

30.      O Governo do Reino Unido, devidamente notificado da petição inicial, não apresentou contestação no prazo fixado. Contactado pela Secretaria do Tribunal de Justiça para verificar se a petição da Comissão tinha sido bem recebida, o Governo do Reino Unido declarou que tinha recebido a petição e que, «naquela fase», não tinha intenção de participar no processo.

31.      Por carta de 31 de outubro de 2022, a Comissão pediu ao Tribunal de Justiça que decidisse à revelia, nos termos do artigo 152.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça (a seguir «Regulamento de Processo»).

32.      Na sequência de uma carta da Secretaria do Tribunal de Justiça, a Comissão informou o Tribunal de Justiça de que não se opunha à fixação de um novo prazo para a apresentação da contestação do demandado. Todavia, por carta de 20 de abril de 2023, o Governo do Reino Unido confirmou que não tinha a intenção de apresentar contestação no presente processo, apesar do novo prazo fixado pelo Tribunal de Justiça.

V.      Análise

33.      No caso em apreço, a Comissão invoca quatro violações distintas do direito da União resultantes da sentença impugnada. Antes de analisar estas alegações (C), gostaria de referir brevemente alguns aspetos processuais que caracterizam o presente processo: a competência do Tribunal de Justiça em conformidade com o artigo 258.o TFUE, nos termos do Acordo de Saída (A), e certas especificidades do processo no âmbito do qual o Tribunal de Justiça decide à revelia (B).

A.      Observações preliminares I: competência do Tribunal de Justiça em conformidade com o artigo 258.o TFUE, nos termos do Acordo de Saída

34.      Em 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido saiu da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica. Em 1 de fevereiro de 2020, entrou em vigor o Acordo de Saída.

35.      O artigo 2.o, alínea e), e o artigo 126.o do Acordo de Saída estabeleceram um período de transição que teve início na data da entrada em vigor do Acordo de Saída e que terminou em 31 de dezembro de 2020. O artigo 127.o dispunha que o direito da União era aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição, salvo disposição em contrário no Acordo de Saída.

36.      Este acordo incluía também certas disposições específicas sobre o controlo dos auxílios estatais e os procedimentos administrativos conexos perante a Comissão (14), bem como sobre os processos judiciais nos órgãos jurisdicionais da União (15). Todavia, nenhuma destas disposições do Acordo previa uma derrogação ao princípio consagrado no seu artigo 127.o relativamente às disposições do direito da União (tanto de natureza material como processual) pertinentes para o presente processo.

37.      Em concreto, o artigo 87.o, n.o 1, do Acordo de Saída estabelecia que, «[s]e a Comissão Europeia considerar que o Reino Unido não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados […] antes do termo do período de transição, pode, no prazo de quatro anos após o termo do período de transição, recorrer para o Tribunal de Justiça da União Europeia, em conformidade com os requisitos estabelecidos no artigo 258.o do TFUE […]. O Tribunal de Justiça da União Europeia tem competência para conhecer desses casos.»

38.      Podem retirar‑se duas conclusões das disposições acima referidas. Em primeiro lugar, no momento em que ocorreram as alegadas violações, o Reino Unido estava vinculado pelas disposições do direito da União que a Comissão invoca no âmbito do presente processo. Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer do presente processo, uma vez que: i) o acórdão recorrido foi proferido durante o período de transição (em 19 de fevereiro de 2020); e ii) a ação intentada pela Comissão nos termos do artigo 258.o TFUE foi interposta no prazo de quatro anos após o termo do período de transição (em 29 de julho de 2022).

B.      Observações preliminares II: acórdãos proferidos à revelia

39.      No presente processo, o Reino Unido não apresentou contestação e, por conseguinte, a Comissão pediu ao Tribunal de Justiça que proferisse um acórdão à revelia.

40.      Em conformidade com o artigo 152.o, n.o 3, do Regulamento de Processo, neste caso, o Tribunal de Justiça conhece «da admissibilidade do pedido e verifica se os requisitos de forma se encontram devidamente preenchidos e se os pedidos do demandante se afiguram procedentes».

41.      No caso em apreço, as formalidades adequadas parecem ter sido cumpridas. Em especial, conforme indicado nos n.os 30 a 32, supra, o Governo do Reino Unido confirmou à Secretaria do Tribunal de Justiça ter recebido a petição. Além disso, não vislumbro nada nesta petição que sugira a existência de um vício processual suscetível de afetar a admissibilidade do recurso. A petição da Comissão satisfaz os requisitos de clareza e de precisão enunciados no artigo 120.o do Regulamento de Processo e as acusações nela formuladas parecem corresponder às já enunciadas na notificação para cumprir e no parecer fundamentado.

42.      No que respeita à apreciação do mérito de um recurso a proferir à revelia, gostaria de fazer duas breves considerações, que são conexas.

43.      Em primeiro lugar, pode ser útil precisar o nível de prova que o Tribunal de Justiça deve aplicar quando aprecia as alegações de um demandante. A este respeito, devo recordar novamente o texto do artigo 152.o, n.o 3, do Regulamento de Processo, segundo o qual, em processos à revelia, o Tribunal de Justiça deve verificar «se os pedidos do demandante se afiguram procedentes» (16).

44.      Na minha opinião, resulta claramente desta disposição que, por um lado, a falta de participação do demandado no processo não implica automaticamente a aceitação, pelo Tribunal de Justiça, das pretensões do demandante. Como referiu o advogado‑geral J. Mischo, nos processos à revelia não se coloca «a questão de fazer as afirmações da recorrente beneficiarem de uma qualquer presunção de veracidade» (17). Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito de um processo nos termos dos artigos 258.o a 260.o TFUE, «mesmo que o Estado‑Membro em causa não conteste a existência de um incumprimento, incumbe‑lhe, de qualquer modo, declarar a existência ou não do incumprimento alegado» (18).

45.      O nível de prova também não pode ser o que é utilizado pelo Tribunal de Justiça no contexto dos pedidos de medidas provisórias nos termos dos artigos 278.o e 279.o TFUE. Segundo jurisprudência constante, nesses processos, o Tribunal de Justiça deve apenas verificar a existência de um fumus boni iuris, entendido como um pedido que «à primeira vista, não [é] desprovido de fundamento sério» (19). Na minha opinião, a diferença entre uma alegação que «se afigura procedente» e uma que «não parece desprovida de fundamento sério» não é apenas terminológica. Por conseguinte, o artigo 152.o, n.o 3, do Regulamento de Processo exige algo mais.

46.      Por outro lado, em contrapartida, o verbo «parecer» indica que o nível de fiscalização é relativamente benévolo quanto às alegações do recorrente. O Tribunal de Justiça não é obrigado a proceder a um exame completo dos factos alegados e dos argumentos jurídicos apresentados pelo demandante; tão‑pouco se pode esperar que desenvolva os argumentos de facto e de direito que o demandado poderia ter invocado se tivesse participado no processo. Ao abdicar do seu direito de comparecer em juízo, o demandado opta por renunciar à sua faculdade de, entre outras coisas, apresentar elementos de prova suscetíveis de pôr em causa a exatidão dos factos alegados pelo demandante ou de invocar linhas de defesa que, em princípio, compete ao demandante apresentar e fundamentar.

47.      É evidente que, para apreciar as alegações do demandante, o Tribunal de Justiça pode considerar provado um facto notório ou demonstrado pela experiência comum (20), e o princípio iura novit curia permanece plenamente válido (21). Todavia, quanto ao resto, o Tribunal de Justiça baseia‑se nos elementos que constam dos autos.

48.      No meu entender, num processo à revelia, impende sobre o demandante o ónus da prova de que o seu pedido «à primeira vista, não [é] desprovido de fundamento sério»: se os argumentos apresentados em apoio destas alegações se revelarem, sem uma análise aprofundada, razoáveis em matéria de direito e de facto e, se for caso disso, sustentados por elementos de prova suficientes, o Tribunal de Justiça pronunciar‑se‑á, sem mais, a favor do demandante (22).

49.      Esta abordagem equilibrada ao nível de prova do Tribunal de Justiça de acordo com o artigo 152.o, n.o 3, do Regulamento de Processo parece‑me ser a mais conforme com os termos desta disposição, bem como com a própria lógica do processo à revelia. Os processos à revelia são uma construção jurídica que existe, sob diferentes formas, na maioria das jurisdições. Tanto quanto sei, estes processos têm geralmente uma natureza sumária e os órgãos jurisdicionais são, na sua maioria, chamados a decidir a favor dos demandantes, ainda que não de forma acrítica ou automática (23).

50.      Com efeito, se o Tribunal de Justiça procedesse a uma análise normal e completa das pretensões dos demandantes, tanto de direito como de facto, a possibilidade de os demandados interporem um recurso de anulação do acórdão proferido à revelia (24) perderia largamente a sua razão de ser.

51.      Isto conduz‑me ao ponto seguinte.

52.      Embora não me caiba julgar do prudente arbítrio da escolha de uma parte de não participar no processo, devo, no entanto, sublinhar que o exercício pelo Tribunal de Justiça da sua missão jurisdicional pode ser dificultado por esta escolha (25). Há um antigo ditado inglês segundo o qual «há dois lados em todas as histórias» (26). Se isso for verdade, é lamentável que, em alguns casos, um dos dois lados da história não seja plenamente exposto ao Tribunal de Justiça, pelo menos até ter lugar um eventual segundo processo. A possibilidade de apresentar um pedido de anulação do acórdão proferido à revelia pode dar a oportunidade de resolver determinadas questões que poderiam decorrer do primeiro acórdão do Tribunal de Justiça, mas conduz também a uma duplicação de processos, o que se traduz numa situação de insegurança jurídica prolongada e num subaproveitamento dos recursos do Tribunal de Justiça (e, eventualmente, dos recursos das partes).

53.      Após ter tratado as questões processuais acima referidas, examinarei agora o mérito dos quatro fundamentos invocados pela Comissão. Embora estes motivos estejam estritamente relacionados entre si, analisarei cada um deles separadamente e incluirei referências cruzadas a questões já examinadas nas presentes conclusões.

C.      Primeiro fundamento: violação do artigo 4.o, n.o 3, TUE

1.      Argumentos da demandante

54.      Com o seu primeiro fundamento, a Comissão acusa o Reino Unido de ter violado o princípio da cooperação leal, uma vez que a Supreme Court não suspendeu a instância enquanto aguardava a prolação do acórdão do Tribunal de Justiça no processo European Food.

55.      Segundo a Comissão, decorre da obrigação de cooperação leal consagrada no artigo 4.o, n.o 3, TUE que, quando um órgão jurisdicional nacional é chamado a conhecer de um processo que já foi objeto de um inquérito ou de um processo da Comissão nos órgãos jurisdicionais da União, o dever de cooperação leal impõe a esse órgão jurisdicional a suspensão da instância, salvo se quase não existir risco de conflito entre a sua decisão antecipada e o provável ato da Comissão ou a decisão dos órgãos jurisdicionais da União.

56.      Graças aos processos de reconhecimento e de execução iniciados pelos investidores no Reino Unido, a Comissão alega que a Supreme Court foi chamada a apreciar uma questão que exigia a interpretação das mesmas disposições do direito da União relativas às mesmas medidas relativamente às quais a Comissão já se tinha pronunciado e que eram objeto de um processo pendente nos órgãos jurisdicionais da União.

57.      Embora sabendo que o seu dever de cooperação leal continuava a aplicar‑se, a Supreme Court decidiu pronunciar‑se definitivamente sobre a questão, gerando um risco de conflito entre este acórdão e as decisões esperadas da Comissão e/ou dos órgãos jurisdicionais da União sobre a mesma matéria.

2.      Apreciação

a)      O princípio da cooperação leal e o controlo dos auxílios de Estado

58.      O artigo 4.o, n.o 3, TUE estabelece um dos princípios gerais do direito da União que constituem a espinha dorsal do sistema jurídico criado pelos Tratados da União: o princípio da cooperação leal. Essencialmente, este princípio impõe às instituições da União e a todas as autoridades nacionais, incluindo as autoridades judiciais dos Estados‑Membros que atuam no âmbito das suas competências, que cooperem de boa‑fé (27).

59.      Em especial, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, TUE, os Estados‑Membros estão obrigados, por um lado, a «toma[r] todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União» e, por outro, a «facilita[r] à União o cumprimento da sua missão e abst[er]‑se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União».

60.      Um dos principais objetivos da União Europeia (nem é preciso recordá‑lo) é o estabelecimento de um mercado interno (28): um espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada (29), e em que a concorrência entre empresas não seja falseada (30) por comportamentos unilaterais e multilaterais das empresas (31), nem pela concessão de auxílios pelas autoridades nacionais (32).

61.      No que diz respeito às medidas de auxílio estatal, o artigo 108.o TFUE instituiu um sistema de controlo ex ante e ex post, no qual é atribuído à Comissão um papel central. A Comissão deve, nomeadamente, «proceder […] ao exame permanente» de todas as formas de auxílios existentes e apreciar previamente os «projetos relativos à instituição ou alteração de quaisquer auxílios», antes da sua execução. Além disso, foi atribuída à Comissão uma «competência exclusiva» para apreciar a compatibilidade das medidas de auxílio com o mercado interno, sob a fiscalização do juiz da União (33).

62.      Dito isto, os órgãos jurisdicionais nacionais têm também um papel importante a desempenhar neste domínio. Está bem assente que a aplicação das regras da União em matéria de auxílios de Estado se baseia numa obrigação de cooperação leal entre, por um lado, os órgãos jurisdicionais nacionais e, por outro, a Comissão e as jurisdições da União, no âmbito da qual cada um atua em função da missão que lhe é conferida pelo Tratado (34). O papel dos órgãos jurisdicionais nacionais inclui, nomeadamente, a exigência de proteger as partes afetadas pela distorção da concorrência provocada pela concessão do auxílio ilegal (35). No entanto, os órgãos jurisdicionais nacionais devem abster‑se de tomar decisões contrárias a uma decisão da Comissão, mesmo que esta seja provisória (36).

63.      Neste contexto — devido à sobreposição entre as respetivas competências e poderes da Comissão, dos órgãos jurisdicionais da União e dos órgãos jurisdicionais nacionais —, pode por vezes surgir um risco de conflito quanto à interpretação e aplicação das regras sobre auxílios estatais em casos específicos. Isso pode acontecer, nomeadamente, quando a compatibilidade de certas medidas nacionais com as regras da UE em matéria de auxílios estatais está sujeita a vários procedimentos administrativos e/ou judiciais, paralelamente a nível da União e a nível nacional.

64.      Nesta perspetiva, o Tribunal de Justiça declarou que, quando a resolução do litígio pendente no órgão jurisdicional nacional depende da validade da decisão da Comissão, resulta da obrigação de cooperação leal que, para evitar tomar uma decisão contrária à da Comissão, o órgão jurisdicional nacional deve suspender a instância até ser proferida pelos órgãos jurisdicionais da União uma decisão definitiva sobre o recurso de anulação. Este órgão jurisdicional nacional pode, todavia, recusar suspender a instância se considerar que, nas circunstâncias do caso em apreço, se justifica submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial sobre a validade da decisão da Comissão ou que não existe praticamente nenhum risco de conflito entre decisões administrativas e/ou judiciais (37).

65.      Os princípios decorrentes desta jurisprudência (a seguir «jurisprudência Masterfoods») parecem‑me plenamente aplicáveis no caso em apreço.

b)      O princípio da cooperação leal no acórdão recorrido

66.      Tal como a Supreme Court reconheceu no n.o 2 do acórdão recorrido, o processo que lhe foi submetido era «o último capítulo das numerosas tentativas [dos investidores] em vários órgãos jurisdicionais diferentes para executar a sua sentença contra a Roménia e das tentativas da Comissão Europeia […] de impedir a execução com fundamento na violação do direito da União que proíbe os auxílios de Estado ilegais» (38).

67.      Com efeito, a Supreme Court salientou que estavam em curso processos de execução em vários outros Estados‑Membros: França, Bélgica, Luxemburgo e Suécia. Além disso, num destes Estados (a saber, a Bélgica), o órgão jurisdicional nacional em causa já tinha submetido ao Tribunal de Justiça três questões prejudiciais relativas à execução da sentença e ao princípio da cooperação leal (39). Além disso, e mais importante, o processo na Supreme Court corria também paralelamente com o processo nos órgãos jurisdicionais da União em que os investidores tinham contestado a validade da decisão final de 2015 (a seguir «processo European Food») (40).

68.      Consciente das consequências que poderiam decorrer desta complexa rede de litígios, no n.o 56 do acórdão recorrido a Supreme Court declarou que, nas circunstâncias do caso em apreço, i) estava «preocupada com decisões potencialmente contraditórias sobre o mesmo objeto e entre as mesmas partes»; ii) não podia concluir que «não [existia] praticamente nenhum risco de conflito» entre essas decisões; iii) se o conflito entre diferentes acórdãos se tivesse materializado, as consequências daí resultantes teriam constituído «um obstáculo significativo ao funcionamento do direito da União»; e iv) a existência de um recurso pendente no Tribunal de Justiça era, em princípio, «suficiente para desencadear o dever de cooperação».

69.      No entanto, a Supreme Court procedeu à apreciação do mérito do fundamento de recurso dos investidores baseado no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE. Começou por recordar a jurisprudência da União relativa a esta disposição (41) e, seguidamente, examinou de forma geral o alcance das obrigações decorrentes de acordos anteriores em conformidade com esta disposição (42). De seguida, a Supreme Court debruçou‑se sobre a questão de saber se o artigo 351.o TFUE era aplicável às obrigações pertinentes do Reino Unido por força da Convenção CIRDI (43), antes de apreciar, por último, se a sua interpretação da disposição do Tratado no caso em apreço podia dar origem a um risco de conflito que exigisse a suspensão do processo nacional enquanto se aguardava o resultado do processo nos órgãos jurisdicionais da União (44).

70.      É esta última parte do raciocínio da Supreme Court que a Comissão critica no seu primeiro fundamento da presente ação. Nas últimas passagens do acórdão recorrido, a Supreme Court chegou à conclusão de que, não obstante as suas anteriores conclusões sobre a aplicabilidade abstrata do princípio da cooperação leal, a suspensão do processo não era necessária por três razões.

71.      Em primeiro lugar, a Supreme Court declarou que, à luz do direito da União, as questões relativas à existência e ao alcance das obrigações decorrentes de acordos anteriores nos termos do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não estão reservadas aos órgãos jurisdicionais da União. Estas questões não são reguladas pelo direito da União e (ainda segundo a Supreme Court) o Tribunal de Justiça não estava mais bem colocado do que um órgão jurisdicional nacional para lhes dar resposta.

72.      Em segundo lugar, a Supreme Court declarou que a questão suscitada pelos investidores ao abrigo do artigo 351.o TFUE não era inteiramente a mesma que a suscitada perante os órgãos jurisdicionais da União. No processo European Food, os investidores alegaram, entre outras coisas, que o artigo 351.o TFUE concedia primazia às obrigações internacionais preexistentes que impendiam sobre a Roménia por força do referido TBI e do artigo 53.o da Convenção CIRDI. Em contrapartida, no processo britânico, a questão jurídica pertinente era a obrigação do Reino Unido de aplicar a Convenção CIRDI e de reconhecer e executar a sentença nos termos dos artigos 54.o e 69.o da Convenção CIRDI (45). A Supreme Court salientou que se tratava de uma questão que, por ser específica do litígio britânico, não tinha sido suscitada perante os órgãos jurisdicionais da União.

73.      Em terceiro lugar, a Supreme Court considerou também que a perspetiva de os órgãos jurisdicionais da União abordarem a aplicabilidade do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE às obrigações prévias à adesão impostas pela Convenção CIRDI no âmbito do litígio pendente no Reino Unido era muito remota. O acórdão do Tribunal Geral no processo European Food não tinha abordado a interpretação do artigo 351.o TFUE e, por conseguinte, o recurso (então pendente) para o Tribunal de Justiça limitou‑se à apreciação de outras questões. Mesmo em caso de anulação do acórdão recorrido e de remessa ao Tribunal Geral para nova apreciação do processo, seria pouco provável, segundo a Supreme Court, que o juiz da União abordasse a questão específica suscitada no processo britânico. Por conseguinte, a Supreme Court concluiu que, nestas circunstâncias, não era necessário suspender a instância.

c)      Suspensão da instância

74.      No meu entender, a crítica da Comissão sobre a apreciação do princípio da cooperação leal no acórdão recorrido afigura‑se procedente. Considero que os argumentos apresentados pela Supreme Court para evitar a suspensão da instância — apesar de, como a própria Supreme Court tinha reconhecido, o princípio da cooperação leal ter continuado a aplicar‑se — não são convincentes.

1)      Jurisprudência Masterfoods

75.      Em primeiro lugar, o facto de as questões relativas à existência e ao alcance das obrigações decorrentes de acordos anteriores nos termos do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não estarem «reservadas aos órgãos jurisdicionais da União» ou de o juiz da União «não estar mais bem colocado do que um órgão jurisdicional nacional para lhes dar resposta» é irrelevante para efeitos da aplicação do princípio da cooperação leal.

76.      A jurisprudência Masterfoods não assenta na ideia de que a interpretação de determinadas disposições do direito da União deve ser «reservada» aos órgãos jurisdicionais da União. O que se verifica é o contrário: esta jurisprudência baseia‑se precisamente na premissa de que os dois tipos de órgãos jurisdicionais são, salvo exceções, competentes e capazes de tratar as questões de interpretação e de aplicação do direito da União que podem ser suscitadas no âmbito dos litígios que lhes são submetidos, nomeadamente em matéria de concorrência. Com efeito, decorre do artigo 19.o TUE que o juiz nacional deve ser, para os cidadãos que pedem a proteção dos direitos que lhes são conferidos pelo direito da União, o juiz de direito comum da União (46).

77.      A lógica da jurisprudência Masterfoods tem uma dupla vertente. Por um lado, visa preservar os poderes executivos conferidos à Comissão em matéria de concorrência (no caso em apreço, para demonstrar a existência e a compatibilidade de um auxílio suspeito), evitando um conflito de decisões (administrativas e/ou judiciais) sobre questões jurídicas que são examinadas pela Comissão, ou que foram examinadas pela Comissão e estão atualmente sujeitas a fiscalização jurisdicional nos órgãos jurisdicionais da União. Por outro lado, destina‑se a preservar a competência exclusiva do juiz da União para fiscalizar a validade dos atos jurídicos adotados pelas instituições da União, evitando que um órgão jurisdicional nacional possa proferir uma decisão que, na prática, implique a invalidade de um destes atos.

78.      Tendo em conta estas considerações, parece‑me que o presente processo se inscreve perfeitamente no tipo de processos a que a jurisprudência Masterfoods era aplicável (47).

79.      Os processos da UE e do Reino Unido diziam ambos respeito, em termos gerais, à mesma questão (a capacidade dos investidores para executar a sentença na União Europeia), tinham por objeto a interpretação das mesmas disposições e princípios gerais do direito da União (nomeadamente, o artigo 351.o TFUE, os artigos 107.o e 108.o TFUE e o princípio da cooperação leal) e afetavam a validade e/ou a eficácia de três decisões em matéria de auxílios estatais adotadas pela Comissão (48).

80.      Resulta também do acórdão recorrido que era absolutamente claro para a Supreme Court que, se tivesse de «dar luz verde» à execução da sentença no Reino Unido, tanto o processo administrativo na Comissão acerca de um alegado auxílio de Estado como o processo de anulação nos órgãos jurisdicionais da União teriam, em grande medida, perdido o seu objeto (49).

81.      Se for este o caso, a questão de saber se uma questão jurídica suscitada pelos investidores nos órgãos jurisdicionais britânicos era ou não uma questão relativamente à qual os órgãos jurisdicionais da União gozavam de uma competência reservada ou estavam em melhor posição para decidir é irrelevante para a aplicabilidade da jurisprudência Masterfoods.

82.      O risco de decisões contraditórias, nas duas situações, não seria diferente e o potencial prejuízo para a boa execução das tarefas confiadas pelos redatores dos Tratados à Comissão e aos órgãos jurisdicionais da União ocorreria em ambos os casos. Por um lado, o acórdão recorrido permitiu aos investidores executar a sentença, contornando assim os «efeitos de bloqueio» decorrentes não só da decisão final de 2015 mas também da decisão de iniciar o procedimento e da injunção de suspensão. Por outro lado, a interpretação e a aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE pela Supreme Court também se afastaram do que tinha sido propugnado pela Comissão na decisão final de 2015 (50). Portanto, o acórdão recorrido implicava de facto que esta decisão era ilegal, uma vez que a Comissão não tinha respeitado uma disposição do direito primário da União. No entanto, a validade desta decisão continuava ainda a ser sujeita à fiscalização dos órgãos jurisdicionais da União.

2)      Interpretação dos acordos anteriores e do artigo 351.o TFUE

83.      Em segundo lugar, pode ser verdade que a determinação da existência e do alcance das obrigações de um Estado‑Membro decorrentes de um determinado acordo, para efeitos do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, não é uma questão regulada pelo direito da União. Em princípio, é certo que não compete ao Tribunal de Justiça interpretar acordos internacionais em que a União não seja parte.

84.      Todavia, a determinação do sentido e do alcance do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE — a saber, em especial, as condições em que esta disposição permite que uma regra do direito da União seja destituída de efeito por um acordo anterior — constitui, manifestamente, uma questão de interpretação do direito da União.

85.      Trata‑se também de uma questão que tinha sido especificamente suscitada perante a Supreme Court (51) e que, logicamente, precede qualquer inquérito sobre os efeitos de um acordo internacional em relação a um Estado‑Membro. É evidente que um órgão jurisdicional não pode demonstrar inequivocamente o que decorre de uma determinada disposição de um acordo anterior, a menos que tenha previamente constatado que este acordo (e/ou algumas das suas disposições) está abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

86.      Com efeito, a determinação do âmbito de aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE foi uma questão que a Supreme Court teve de analisar amplamente antes de apreciar as consequências jurídicas das disposições da Convenção CIRDI invocadas pelos investidores. No n.o 98 do acórdão recorrido, a Supreme Court salientou acertadamente que, para esse efeito, havia que examinar se o acordo internacional em apreço impunha ao Estado‑Membro em causa obrigações cujo cumprimento pode ainda ser exigido pelos Estados terceiros que nele são partes. Seguidamente, nos n.os 98 a 100 do acórdão, interpretou a expressão «obrigações cujo cumprimento pode ainda ser exigido por Estados terceiros».

87.      Esta expressão — cujo sentido preciso foi controverso entre as partes — figura na jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE (52), que se refere aos «direitos e obrigações decorrentes de convenções […] entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro».

88.      Importa salientar, neste contexto, que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não contém nenhuma remissão para os direitos dos Estados‑Membros nem para o direito internacional. Daqui resulta que os conceitos que aí figuram constituem conceitos autónomos do direito da União cujo sentido e alcance devem ser interpretados uniformemente no território desta última, tendo em conta não só os termos desta disposição mas também o seu objetivo e o seu contexto (53). Isso não significa, evidentemente, que os redatores dos Tratados da União tenham pretendido violar os princípios pertinentes do direito internacional nesta matéria (54). Isto significa apenas que as condições e os limites dentro dos quais os Estados‑Membros estão autorizados (ao abrigo dos Tratados da UE) a não aplicar as regras da UE para dar cumprimento aos acordos anteriores são determinados pelo próprio direito da União (55).

89.      A este respeito, importa recordar que, além das condições expressamente enunciadas no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, o segundo parágrafo da mesma disposição introduz uma obrigação específica de eliminar os conflitos no futuro e o terceiro parágrafo comporta a proibição de conceder um tratamento preferencial a Estados terceiros. Além disso, certos limites ao âmbito de aplicação desta disposição decorrem das características específicas da ordem jurídica da União. Como o Tribunal de Justiça declarou no seu Acórdão Kadi, o artigo 351.o TFUE «em caso algum poderia permitir que fossem postos em causa princípios que fazem parte dos próprios fundamentos do ordenamento jurídico [da União], entre os quais o da proteção dos direitos fundamentais, que inclui a fiscalização, pelo juiz [da União], da legalidade dos atos [da União] quanto à respetiva conformidade com esses direitos fundamentais» (56).

90.      No caso em apreço, a questão essencial sobre a qual a Supreme Court se devia pronunciar era, simplesmente, a de saber em que circunstâncias o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE era aplicável nos casos em que: i) o acordo anterior invocado era um acordo multilateral; e ii) o litígio parecia puramente interno da União, uma vez que nenhum Estado terceiro ou nacional de um Estado terceiro estava envolvido.

91.      À luz das considerações que antecedem, no acórdão recorrido a Supreme Court não só interpretou (e aplicou) um acordo anterior mas também uma disposição do direito da União. O facto de, no caso em apreço, a interpretação de um desses dois tipos de disposições ser indissociável da interpretação do outro não pode pôr em causa a competência do Tribunal de Justiça para apreciar o aspeto da questão que está relacionado com a União.

92.      Quando tal seja necessário para a resolução de um litígio abrangido pela sua competência, o Tribunal de Justiça deve poder proceder a uma interpretação incidental das cláusulas dos acordos internacionais, mesmo que estes acordos não façam parte do direito da União. Isto explica que, nas ações e recursos diretos, o Tribunal de Justiça não tenha manifestado nenhuma hesitação em empreender esta tarefa, na medida do necessário para decidir o litígio (57).

93.      Pelo contrário, no âmbito dos processos prejudiciais, o Tribunal de Justiça não tem normalmente necessidade de interpretar o acordo internacional em causa, uma vez que esta tarefa pode ser deixada aos órgãos jurisdicionais nacionais do Estado‑Membro em causa (58). No entanto, a competência incidental do Tribunal de Justiça para interpretar um acordo internacional de que a União não é parte pode também estabelecer‑se no âmbito de um processo prejudicial (59). É o que acontece quando, para chegar a uma interpretação do direito da União que possa ser útil a um órgão jurisdicional nacional, o Tribunal de Justiça é chamado a tomar em consideração o contexto jurídico em que se inscreve uma norma da União.

94.      Por exemplo, quando, como no caso em apreço, se coloca a questão de saber se um dado acordo ou uma cláusula de um acordo podem ser abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, não é possível sustentar seriamente que o Tribunal de Justiça só possa interpretar a disposição da União a um nível elevado de abstração, estando impedido de ter em conta as características específicas do acordo ou da cláusula em questão (60).

95.      Além disso, no caso em apreço, existia outra razão que poderia justificar o exame pelo Tribunal de Justiça, mesmo a título incidental, das disposições da Convenção CIRDI invocadas pelos investidores: a interpretação a dar a estas disposições teria tido um impacto direto na validade e/ou na eficácia de três decisões da Comissão (61).

3)      Diferentes questões jurídicas suscitadas nos processos britânicos e da União

96.      Em terceiro lugar, a afirmação da Supreme Court de que a questão suscitada pelos investidores ao abrigo do artigo 351.o TFUE não era inteiramente a mesma que foi suscitada perante os órgãos jurisdicionais da União é, repito, pouco relevante e, em certa medida, também imprecisa.

97.      Antes de mais, não vejo por que razão importa saber se, nos diferentes processos instaurados nos órgãos jurisdicionais da União e nos órgãos jurisdicionais nacionais, os investidores invocaram o artigo 53.o e/ou o artigo 54.o da Convenção CIRDI. Ambas as disposições respeitam ao reconhecimento e à execução das sentenças. Em substância, estas disposições abordam assuntos diferentes, que preveem vias de recurso diferentes para a execução das sentenças, a fim de criar uma obrigação simétrica entre os Estados e os investidores nesta matéria (62).

98.      O risco de criar um «entrave substancial ao funcionamento do direito da União» (63) existia independentemente da base jurídica específica invocada pelos investidores nos diferentes processos. A coexistência de vários processos administrativos e judiciais na União Europeia — todos respeitantes a uma mesma sentença e com o objetivo comum de pôr termo aos efeitos da decisão final de 2015 da Comissão (anulando‑a, a nível da União, e contornando‑a, a nível nacional) — é que verdadeiramente teve impacto para efeitos do artigo 4.o, n.o 3, TUE e da jurisprudência Masterfoods.

99.      Além disso, a conclusão da Supreme Court sobre a diferença nas alegações dos investidores não é totalmente exata. A própria Supreme Court reconheceu que os investidores tinham efetivamente invocado não só o artigo 53.o mas também o artigo 54.o da Convenção CIRDI no processo perante os órgãos jurisdicionais da União (64). O mesmo se aplica ao procedimento administrativo na Comissão: com efeito, a decisão final de 2015 faz referência às duas disposições (65).

100. Do mesmo modo, o facto de as questões relativas à existência e ao alcance das obrigações que incumbem ao Reino Unido por força da Convenção CIRDI não terem sido suscitadas nos órgãos jurisdicionais da União parece também irrelevante para o caso em apreço. É evidente que, não tendo o Reino Unido estado de modo algum envolvido no procedimento em matéria de auxílios de Estado que conduziu à decisão final de 2015, não havia nenhuma razão para abordar a situação específica deste Estado‑Membro.

101. Todavia, pelo que vejo, as obrigações que incumbem ao Reino Unido por força da Convenção CIRDI não são diferentes das dos outros Estados‑Membros da União, que, com exceção da Polónia, são todos também partes nesta Convenção. Isso inclui não só a Roménia (o Estado‑Membro que concedeu o alegado auxílio) mas também a Bélgica, o Luxemburgo e a Suécia (onde estavam pendentes processos paralelos). Assim, qualquer conclusão dos órgãos jurisdicionais da União em relação à aplicabilidade da Convenção CIRDI, nos termos do artigo 351.o TFUE, ao litígio neles pendente (ou nos órgãos jurisdicionais nacionais) teria sido aplicável, mutatis mutandis, ao processo britânico.

102. É certo que a aplicabilidade do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não fazia parte das questões sobre as quais o Tribunal Geral se pronunciou quando anulou a decisão final de 2015 e que, por conseguinte, tinham sido suscitadas no âmbito do recurso então pendente no Tribunal de Justiça.

103. No entanto, isso não implicava que, como indicou a Supreme Court, «a perspetiva de [os órgãos jurisdicionais da União] abordarem a aplicabilidade do artigo 351.o TFUE às obrigações prévias à adesão nos termos da Convenção CIRDI […] [estivesse] afastada» ou, por outras palavras, que «a possibilidade de os órgãos jurisdicionais da União [poderem] considerar [esta] questão em determinado momento no futuro [fosse] simultaneamente contingente e remota» (66). A própria Supreme Court tinha declarado que a obrigação de cooperação leal era, em princípio, desencadeada pela «existência de um recurso pendente no Tribunal de Justiça com uma possibilidade real de sucesso» (67).

104. Se a Comissão tivesse saído vencedora no seu recurso (o que efetivamente aconteceu (68)), o Tribunal de Justiça poderia ter remetido o processo ao Tribunal Geral para nova apreciação ou ter decidido definitivamente o litígio. Em ambos os processos, isso implicaria apreciar os fundamentos de anulação dos investidores sobre os quais o acórdão anulado pelo Tribunal de Justiça não tinha decidido (69). Um destes fundamentos respeitava precisamente à alegada violação pela Comissão do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE (70).

105. Em contrapartida, se a Comissão tivesse perdido o recurso, teria tido de recomeçar a sua análise da alegada medida de auxílio e avaliar os argumentos dos investidores ex novo, incluindo os que se baseiam na aplicabilidade do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e, por força desta disposição, da Convenção CIRDI (71). Escusado será dizer que tal conclusão poderia ter sido contestada pelos investidores perante os órgãos jurisdicionais da União.

106. Assim, numa ou noutra fase do processo da União, os argumentos dos investidores relativos à aplicabilidade do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e da Convenção CIRDI viriam a ser expressamente apreciados pelos órgãos jurisdicionais da União. Rectius, uma vez que os investidores tinham apresentado expressamente tais argumentos, não seria possível que uma decisão da Comissão que lhes fosse desfavorável se tornasse definitiva sem que o juiz da União os examinasse.

107. Por último, mas não menos importante, se a Supreme Court entendesse que as especificidades do processo que lhe foi submetido — relativas à disposição da Convenção CIRDI invocada pelos investidores e/ou à posição do Reino Unido em relação à Convenção CIRDI — suscitavam questões pertinentes para a resolução do litígio e pouco suscetíveis de serem tratadas pelos órgãos jurisdicionais da União no âmbito do processo European Food, poderia ter submetido a questão ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.o TFUE. Conforme já explicado, estas questões foram suscitadas em relação ao âmbito de aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, estando por conseguinte abrangidas pela competência do Tribunal de Justiça. O artigo 86.o, n.o 2, do Acordo de Saída, designadamente, permitia o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça nestas circunstâncias.

108. Em conclusão, a Supreme Court pronunciou‑se sobre questões relativas à interpretação do direito da União que tinham sido abordadas numa decisão da Comissão cuja validade era objeto de reapreciação no âmbito de um processo então pendente nos órgãos jurisdicionais da União. Os argumentos invocados pelos investidores a este respeito, tanto na Supreme Court como nos órgãos jurisdicionais da União, implicavam necessariamente a invalidade da decisão em causa da Comissão. Existia um risco real e efetivo de decisões (administrativas e/ou judiciais) contraditórias na mesma matéria na União Europeia. Assim, ao recusar suspender a instância, como exige a jurisprudência Masterfoods, a Supreme Court violou a obrigação de cooperação leal consagrada no artigo 4.o, n.o 3, TUE. O primeiro fundamento da Comissão é, portanto, procedente.

D.      Segundo fundamento: violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE

1.      Argumentos das partes

109. Com o seu segundo fundamento, a Comissão alega que, ao considerar que o direito da União não se aplicava à execução da sentença no Reino Unido, porque o Reino Unido estava obrigado a executar a sentença nos termos do artigo 54.o da Convenção CIRDI relativamente a todos os outros Estados contratantes desta Convenção, incluindo Estados terceiros, o acórdão recorrido deu origem a uma violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

110. A Comissão defende que, no caso em apreço, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não era aplicável e que, ao declarar o contrário, a Supreme Court alargou indevidamente o âmbito de aplicação desta disposição. Esta conclusão decorre, segundo a Comissão, de uma interpretação errada de duas expressões constantes do artigo 351.o TFUE, que são ambas conceitos autónomos do direito da União: «direitos […] [de] um ou mais Estados terceiros» e «[a]s disposições dos Tratados não prejudicam».

111. Em primeiro lugar, a Comissão sustenta que nenhum «direito […] [de] um ou mais Estados terceiros» estava em causa no que respeita à obrigação do Reino Unido de executar a sentença nos termos do artigo 54.o da Convenção CIRDI, uma vez que o caso em apreço apenas dizia respeito aos Estados‑Membros da União. Em segundo lugar, a Comissão alega que «[a]s disposições dos Tratados não prejudica[ram]» nenhuma obrigação do Reino Unido por força da Convenção CIRDI, uma vez que as disposições pertinentes desta Convenção podem ser interpretadas no sentido de evitar qualquer conflito com as normas pertinentes dos Tratados da União.

2.      Apreciação

112. Pelas razões a seguir expostas, considero que o segundo fundamento da Comissão deve ser julgado improcedente.

a)      Pode um EstadoMembro violar o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE?

113. Na sua resposta à notificação para cumprir, o Governo do Reino Unido opôs‑se à acusação da Comissão relativa à violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, salientando a redação desta disposição, que parece não impor nenhuma obrigação aos Estados‑Membros.

114. Antes de mais, pode ser útil recordar que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE introduz uma regra destinada a reger eventuais conflitos resultantes da aplicação concomitante de dois conjuntos de regras (72): os Tratados da UE, por um lado, e os acordos anteriores, por outro. Esta disposição reflete princípios bem assentes de direito internacional, relativos à aplicação de tratados sucessivos e aos efeitos dos Tratados em relação a Estados terceiros, como os princípios pacta sunt servanda, pacta tertiis nec nocent nec prosunt e res inter alios acta (73). Trata‑se de princípios que foram codificados na CVDT (74) e cujo valor na ordem jurídica da União foi reconhecido de forma constante pelo Tribunal de Justiça (75).

115. Por conseguinte, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE tem como objetivo precisar, em conformidade com os princípios do direito internacional acima referidos, que a aplicação dos Tratados da União não prejudica o compromisso dos Estados‑Membros de respeitar os direitos dos Estados terceiros resultantes de acordos anteriores e de cumprir as suas obrigações decorrentes destes acordos (76). Consequentemente, se estiverem preenchidas as condições pertinentes, os Estados‑Membros são autorizados a não aplicar as regras da União, desde que isso seja necessário para dar cumprimento a acordos anteriores (77).

116. Dito isto, o Tribunal de Justiça declarou que a regra consagrada no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE «não alcançaria o seu objetivo se não implicasse para as instituições [da União] a obrigação de não obstar ao cumprimento das obrigações dos Estados‑Membros decorrentes de um acordo anterior» (78). Se for este o caso, é verdade que esta disposição implica uma obrigação para as instituições da União.

117. É certo que se poderia interpretar o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE no sentido de que prevê também, ainda que implicitamente, uma obrigação para os Estados‑Membros, que poderia ser considerada como a «imagem simétrica» da obrigação das instituições da União: não obstar à aplicação do direito da União quando as condições do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não estejam preenchidas. Por outras palavras, os Estados‑Membros estão proibidos de fazer prevalecer as disposições de acordos anteriores sobre regras da União com as quais sejam contraditórias, nos casos que não estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação desta disposição do Tratado. Esta leitura «bidirecional» da disposição poderia talvez ser justificada pelo facto de o artigo 351.o TFUE ser frequentemente considerado uma manifestação, neste domínio, do princípio da cooperação leal (79): um princípio que, como vimos, impõe tanto às instituições da União como aos Estados‑Membros que atuem de boa‑fé.

118. Todavia, a importância e, se me é permitido dizê‑lo, o valor acrescentado de tal obrigação afigura‑se próximo de nada. Por outras palavras, a obrigação enunciada no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE seria, para os Estados‑Membros, simplesmente a obrigação de cumprir o direito da União quando a exceção nele prevista é inaplicável: um truísmo. De facto, não pode haver violação autónoma do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE: tal violação decorreria, automática e implicitamente, da violação de outra norma do direito da União.

119. Mais importante ainda, a leitura feita pela Comissão dificilmente pode ser conciliada com a razão de ser e com o texto do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE (80). Esta disposição é fundamentalmente uma regra permissiva, que admite que os Estados‑Membros afastem a aplicação do direito da União em certos casos. Enquanto tal, a sua função é a de um «escudo», ou seja, de uma eventual defesa que pode ser invocada por um Estado‑Membro que seja acusado de violar uma regra da União. Em contrapartida, ao contrário dos segundo e terceiro parágrafos da mesma disposição — que, conforme acima explicado, preveem certas obrigações específicas para os Estados‑Membros —, não vejo de que forma o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE poderia ser utilizado de forma significativa como «espada» no âmbito de uma ação por incumprimento (81).

120. Em conclusão, considero que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não pode servir de base a um pedido no âmbito de um processo nos termos do artigo 258.o TFUE e que, por conseguinte, o segundo fundamento da Comissão deve ser julgado improcedente.

121. No entanto, caso o Tribunal de Justiça discorde da minha apreciação desta questão preliminar, e tendo em conta as ligações evidentes que existem entre a problemática suscitada pela Comissão no âmbito do seu segundo fundamento e as suscitadas nos três outros fundamentos, explicarei, em todo o caso, as razões pelas quais considero que a Supreme Court cometeu um erro na sua interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

b)      Alcance do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE

122. Segundo a redação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, para que esta disposição seja aplicável, devem estar preenchidos dois requisitos: i) o acordo deve ter sido celebrado antes da entrada em vigor do, à época, Tratado CEE, ou da adesão do Estado‑Membro à União Europeia: e ii) ao abrigo deste acordo, devem assistir a um Estado terceiro direitos cuja observância o mesmo pode exigir ao Estado‑Membro em causa (82).

123. No acórdão recorrido, a Supreme Court considerou que estes requisitos estavam preenchidos, uma vez que: i) a Convenção CIRDI é, no tocante ao Reino Unido, um «acordo anterior» na aceção do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE; e ii) o Reino Unido teve de cumprir as obrigações decorrentes do artigo 54.o da Convenção CIRDI em relação a todos os outros Estados Contratantes. Por conseguinte, concluiu que os investidores podem legitimamente basear‑se na disposição da UE para pedir aos órgãos jurisdicionais do Reino Unido que executem a sentença.

124. Concordo seguramente com a primeira condição: o Reino Unido ratificou a Convenção CIRDI em 1966, ou seja, antes da sua adesão às (à data) Comunidades em 1973 (83).

125. Pelo contrário, por várias razões, não estou convencido da bondade das conclusões da Supreme Court no que respeita ao segundo requisito.

126. Para explicar por que razão tenho este entendimento, tentarei, antes de mais, esclarecer o alcance do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, uma questão que pode, é certo, não ser totalmente clara com base na jurisprudência existente. A este respeito, parece‑me razoável começar a análise examinando o objetivo e a redação desta disposição.

1)      Objetivo e redação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE

127. O objetivo imediato do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE é proteger os direitos dos Estados terceiros (84) ao permitir que os Estados‑Membros cumpram os acordos anteriores na parte em que entram em conflito com as normas da União (85), sem que daí resulte uma violação do direito da União (86). Contudo, o principal objetivo desta disposição é proteger os Estados‑Membros de cometerem, devido a obrigações contraídas subsequentemente, por força do direito da União, qualquer falta que implique a sua responsabilidade internacional à luz das regras do direito internacional público e que possa ser invocada por Estados terceiros.

128. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não é aplicável quando os direitos dos Estados terceiros não estão em causa (87). Por conseguinte, esta disposição não pode ser validamente invocada no caso de acordos celebrados unicamente entre Estados‑Membros (88), nem no caso de acordos celebrados com Estados terceiros quando são invocados nas relações entre Estados‑Membros (89). Como sublinhou a doutrina, o Tribunal de Justiça sempre adotou o princípio segundo o qual o artigo 351.o TFUE não pode ser aplicado nas relações internas da União (90).

129. Foi por esta razão que o Tribunal de Justiça precisou, desde muito cedo, que a expressão «direitos e obrigações decorrentes de convenções», que figura no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, deve ser entendida no sentido de que visa os direitos dos Estados terceiros e as obrigações dos Estados‑Membros (91). Os Estados‑Membros não podem reivindicar nenhum «direito» decorrente de acordos anteriores (92).

130. Existe uma ligação indissociável entre estes dois elementos. Só nos casos em que assiste a um Estado terceiro um direito que pode ser invocado contra um Estado‑Membro é que o direito da União permite (mas não obriga (93)) que este último cumpra as «obrigações correspondentes» (94). Com efeito, quando um acordo anterior permite, mas não obriga, que um Estado‑Membro adote uma medida contrária ao direito da União, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não dispensa este Estado‑Membro de cumprir as regras pertinentes da União (95). No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não é aplicável quando um Estado terceiro tenha expresso a sua intenção de que o acordo anterior termine (96). Na minha opinião, o mesmo deve acontecer em relação a um Estado terceiro que tenha expressamente consentido no incumprimento do acordo anterior ou que tenha renunciado aos seus direitos (97).

131. A identificação do direito do Estado terceiro e da obrigação conexa do Estado‑Membro é, portanto, crucial para determinar a aplicabilidade do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE a um caso concreto.

132. Nesta fase, afigura‑se importante estabelecer uma distinção entre diferentes tipos de acordos.

133. No que diz respeito aos acordos bilaterais — ou seja, os acordos entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro —, determinar se existem um direito específico de um Estado terceiro e a correspondente obrigação de um Estado‑Membro, na aceção do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, não deveria, em princípio, suscitar problemas de maior.

134. Em contrapartida, quando estão em causa acordos multilaterais, ou seja, os acordos em que um ou mais Estados‑Membros são partes juntamente com um ou mais Estados terceiros, a situação pode nem sempre ser tão simples. Com efeito, é possível que questões relativas à aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE sejam suscitadas em situações internas da União em que, como no caso em apreço, apenas dois ou mais Estados‑Membros são diretamente afetados (98). Nesse caso, em que circunstâncias é aplicável o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE?

135. A este respeito, partilho da opinião da Comissão segundo a qual, por força do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, há que distinguir os acordos multilaterais que contêm obrigações de natureza coletiva dos acordos multilaterais que contêm obrigações de natureza bilateral ou recíproca (99).

136. Na primeira categoria de acordos, o incumprimento por uma parte contratante de uma obrigação prevista no acordo pode afetar o gozo pelas outras partes dos seus direitos decorrentes do acordo, ou comprometer a realização do objetivo do acordo (100). Nestes casos, as obrigações que daí decorrem são devidas a um grupo de Estados (erga omnes partes) ou à comunidade internacional no seu conjunto (erga omnes). Em tais casos, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE pode efetivamente ser aplicável e, por conseguinte, ser invocado para contestar a validade de um ato da União, mesmo em litígios que envolvam apenas atores da União (101). Com efeito, estas situações podem ser puramente internas à União no plano factual, mas não no plano jurídico.

137. Inversamente, na segunda categoria de acordos, o incumprimento por um Estado contratante de uma obrigação decorrente do acordo anterior afetará geralmente apenas um ou mais Estados contratantes específicos: aqueles que estão abrangidos pela situação em causa. Nestes casos, não há ingerência no gozo dos direitos de que são titulares outros Estados Contratantes ao abrigo do acordo (102). Se for este o caso, daqui resulta que, nessas situações, quando os Estados contratantes afetados pelo incumprimento de um Estado‑Membro são outros Estados‑Membros, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não é aplicável. Dado que não está em jogo nenhum direito de um Estado terceiro, não há que afastar a aplicação do direito da União para escapar à decorrente responsabilidade internacional de um Estado‑Membro.

138. Gostaria de acrescentar, neste contexto, que mais uma vez concordo com a Comissão quando alega que o mero interesse factual (por oposição a um interesse jurídico) dos Estados contratantes em garantir que todos os outros Estados contratantes respeitam um acordo multilateral é insuficiente para desencadear a aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE (103). O texto desta disposição faz referência a «direitos», um conceito que também tem sido reiteradamente referido na jurisprudência do Tribunal de Justiça nesta matéria (104).

2)      Uma disposição com implicações profundas e de alcance geral, mas não demasiado amplo

139. Conforme a Supreme Court declarou com razão, o artigo 351.o TFUE tem um alcance geral: aplica‑se a qualquer convenção internacional, qualquer que seja o seu objeto, suscetível de ter incidência sobre a aplicação dos Tratados da União (105).

140. No entanto, isto não significa que a exceção prevista no seu primeiro parágrafo tenha um alcance amplo. Importa recordar que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE derroga o princípio do primado, um dos pilares centrais em que assenta a ordem jurídica da União. Quando os requisitos estão preenchidos, salvo em circunstâncias excecionais (106), qualquer disposição de um acordo anterior pode prevalecer sobre qualquer disposição em contrário do direito da União, incluindo o direito primário (107). Isto é verdade independentemente do impacto que a não aplicação dessas regras da União pode ter nos direitos e interesses dos outros Estados‑Membros, bem como no bom funcionamento da própria União.

141. Tendo em conta as implicações potencialmente muito importantes que decorrem da aplicação desta disposição, o princípio de interpretação segundo o qual as exceções devem ser objeto de uma interpretação estrita, de modo que as regras gerais não sejam esvaziadas de conteúdo, reveste evidentemente especial pertinência neste contexto (108).

142. À luz das considerações precedentes, debruçar‑me‑ei agora sobre as passagens pertinentes do acórdão recorrido.

c)      O artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE no acórdão recorrido

143. No caso em apreço, o cerne da questão consistia — como referiu a Supreme Court (109) — em determinar se o acordo anterior em apreço impunha ao Estado‑Membro em causa obrigações cujo cumprimento ainda podia ser exigido por Estados terceiros que nela eram partes. No acórdão recorrido, a Supreme Court procedeu a esta apreciação ao examinar a obrigação de executar a sentença que incumbe a um Estado‑Membro (o Reino Unido) por força de um acordo internacional (a Convenção CIRDI).

144. Considero que a abordagem seguida pela Supreme Court a este respeito é problemática em três aspetos.

145. Em primeiro lugar, a análise da Supreme Court, centrada quase exclusivamente nas obrigações que impendem sobre o Reino Unido por força do artigo 54.o da Convenção CIRDI, não identifica nenhum direito correspondente de Estados terceiros.

146. Tal como acima explicado, não será demais referir a importância da ligação entre estes dois elementos, para efeitos do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE. Com efeito, esta disposição exige que um Estado terceiro que seja parte no acordo obtenha, ao abrigo deste, um direito cujo respeito pode exigir ao Estado‑Membro em causa.

147. Não se trata, portanto, de uma questão despicienda. Por exemplo, admitindo que os órgãos jurisdicionais britânicos se tenham recusado a executar a sentença em questão (110), pode cada um dos Estados terceiros que são partes na Convenção CIRDI (atualmente, bem mais de 150) invocar a responsabilidade internacional do Reino Unido por essa recusa e intentar uma ação contra esse Estado, através dos processos previstos no direito internacional (111), para pôr cobro ao ato ilícito e/ou obter a reparação do prejuízo causado? Esta questão, não obstante a sua importância, não foi abordada no acórdão recorrido.

148. Em segundo lugar, parece‑me que o critério aplicado pela Supreme Court para identificar uma obrigação face a um Estado terceiro era bastante baixo. O que pretendo dizer é que os requisitos exigidos para que uma obrigação decorrente de um acordo internacional possa ser considerada coletiva (no caso em apreço, erga omnes partes), e não bilateral ou recíproca, parecem facilmente preenchidos de acordo com o raciocínio seguido pela Supreme Court.

149. Não há certamente no acórdão recorrido escassez de referências a fontes internacionais e académicas, mas, numa análise mais aprofundada, nenhuma destas fontes parece específica ou conclusiva nesta matéria. Com exceção de duas declarações (112), todas as outras fontes são bastante vagas sobre este tema e as conclusões da Supreme Court são deduzidas de forma implícita (113). Diria que estas fontes parecem, na sua maioria, evidenciar a existência de um interesse de caráter geral das partes contratantes da Convenção CIRDI em que o acordo seja respeitado em todas as circunstâncias (114). No entanto, conforme acima referido, isso não é suficiente para desencadear a aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

150. Em terceiro lugar, embora compreenda que a principal questão submetida à Supreme Court respeitava aos efeitos da Convenção CIRDI em relação ao Reino Unido (simplificando: «o Reino Unido é obrigado a executar a sentença por força desta convenção?»), esta questão não pode ser examinada em «isolamento clínico» relativamente ao contexto do litígio.

151. A situação jurídica e factual do litígio era, na realidade, bastante complexa — implicava três Estados diferentes (o Reino Unido, a Roménia e a Suécia) e dois acordos internacionais diferentes (o TBI e a Convenção CIRDI).

152. A sentença atribuía uma indemnização aos investidores pelo facto de a Roménia, segundo o tribunal arbitral, ter violado os termos do TBI ao não garantir um tratamento justo e equitativo, ao não respeitar a confiança legítima dos investidores e ao não agir de forma transparente (115). Por conseguinte, era o TBI que fixava as obrigações substantivas que a Roménia tinha contraído em relação à Suécia. Era também nos termos do artigo 8.o, n.o 6, do TBI que a Roménia estava obrigada perante a Suécia a pagar a indemnização concedida aos nacionais suecos em causa (116).

153. Essencialmente, ao limitar a sua apreciação a uma única questão processual emergente do litígio e ao deixar de fora um acordo internacional, a Supreme Court perdeu de vista a relação jurídica de base que deu origem do litígio — a relação entre a Roménia, por um lado, e a Suécia e os seus nacionais, por outro.

154. Segundo a interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE adotada pela Supreme Court, certas situações que são puramente internas à União — uma vez que só os Estados‑Membros e os seus nacionais são afetados, não só de facto mas também juridicamente — seriam reguladas pelas disposições dos acordos internacionais anteriores, apesar de estarem abrangidos pelo âmbito de aplicação dos Tratados da União e contrariarem certas normas da União. Na minha opinião, isso seria incompatível com a redação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e inútil para alcançar o seu objetivo. Tão‑pouco estaria em conformidade com a jurisprudência anterior, que excluía a sua aplicação nas relações puramente internas da União.

155. Esta interpretação ampla do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE criaria também, em determinadas circunstâncias, uma forma relativamente fácil de os particulares contornarem o caráter vinculativo das regras da União (117). A este respeito, importa não esquecer que o artigo 351.o TFUE é, antes de mais, uma disposição relativa às relações interestaduais. Como o Tribunal de Justiça já declarou, é uma disposição neutra que não pode ter por efeito a alteração da natureza dos direitos que podem decorrer de acordos anteriores. Daqui resulta que «esta disposição não tem por efeito conferir aos particulares que invocam [um acordo anterior] […] direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais dos Estados‑Membros devem salvaguardar. Também não prejudica os direitos que os particulares podem retirar de tal acordo» (118).

156. Por conseguinte, a questão de saber se um acordo anterior confere um direito a determinados particulares (como os investidores) é, em grande parte, irrelevante para efeitos da aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE. Os particulares só podem beneficiar desta disposição indiretamente, desde que possam demonstrar que certas disposições ou medidas da União impõem a um Estado‑Membro o incumprimento de uma obrigação para com um Estado terceiro imposta por um acordo anterior, o que pode desencadear a responsabilidade internacional desse Estado‑Membro.

157. Em conclusão, considero que, no acórdão recorrido, a Supreme Court cometeu um erro na interpretação e aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, ao conferir a esta disposição um alcance demasiado amplo. Em especial, interpretou erradamente o conceito de «direitos e obrigações decorrentes de convenções» ao não apreciar corretamente a forma como este conceito deve ser analisado no âmbito de acordos multilaterais, mormente quando não está em causa um Estado terceiro ou um nacional de um Estado terceiro.

158. Feitas estas considerações, pela razão exposta nos n.o os 113 a 120, supra, o segundo fundamento da Comissão deve ser julgado improcedente.

E.      Terceiro fundamento: violação do artigo 267.o TFUE

1.      Argumentos das partes

159. Com o seu terceiro fundamento, a Comissão alega que a prolação do acórdão recorrido pela Supreme Court, sem submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, deu origem a uma violação do artigo 267.o TFUE, por duas razões.

160. A Comissão alega que, ao não apresentar um pedido de decisão prejudicial sobre a validade da decisão de iniciar o procedimento e da injunção de suspensão, a Supreme Court violou a obrigação prevista no artigo 267.o TFUE, alínea b), primeiro parágrafo. A Comissão precisa que o acórdão recorrido tem por efeito tornar inoperantes estas decisões. Assim, ao ter recusado dar efeito a essas decisões — que implicavam respeitar a obrigação de não execução, impedindo o pagamento do auxílio em causa —, a Supreme Court agiu como se esses atos fossem inválidos.

161. Além disso, a Comissão alega que, ao não submeter uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, a Supreme Court, enquanto órgão jurisdicional de última instância, violou a obrigação estabelecida no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE. No acórdão recorrido, a Supreme Court teve de fazer uma interpretação dos conceitos de direito da União em causa, que eram controversos e não tinham sido suficientemente tratados na jurisprudência da União.

2.      Apreciação

162. Começarei a minha análise deste fundamento com o segundo argumento apresentado pela Comissão.

163. Antes de mais, escusado será dizer que a Supreme Court é «um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não [são] suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno» na aceção do artigo 267.o TFUE. Por conseguinte, este órgão jurisdicional está, em princípio, obrigado a proceder a um reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE quando tenha de resolver uma questão relativa à interpretação de uma disposição da União para julgar a causa.

164. Todavia, segundo jurisprudência constante, não obstante a obrigação de reenvio prevista no artigo 267.o TFUE, os órgãos jurisdicionais de última instância podem abster‑se de o fazer em dois tipos de circunstâncias.

165. Em primeiro lugar, não se justifica um reenvio prejudicial nas situações que constituem o chamado «ato claro»: quando a aplicação correta do direito da União se impõe com tal evidência que não deixa margem para nenhuma dúvida razoável sobre a forma de resolver a questão suscitada A este respeito, o Tribunal de Justiça acrescentou que, antes de concluir que a interpretação de uma disposição não dá lugar a nenhuma dúvida razoável, o órgão jurisdicional nacional que decide em última instância deve, todavia, estar convencido de que a mesma evidência se imporia também aos outros órgãos jurisdicionais de última instância dos Estados‑Membros e ao Tribunal de Justiça (119).

166. Em segundo lugar, a obrigação de reenvio é dispensada nas situações ditas de «ato aclarado» — quando «a questão suscitada seja materialmente idêntica a uma questão que foi já objeto de uma decisão a título prejudicial num processo análogo» ou «de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que resolva a questão de direito em causa, independentemente da natureza dos processos que deram origem a essa jurisprudência, mesmo na falta de uma identidade estrita das questões em litígio» (120).

167. Mais genericamente, o Tribunal de Justiça declarou que a questão de saber se um órgão jurisdicional de última instância pode abster‑se de submeter uma questão prejudicial «deve ser avaliada em função das características próprias do direito da União, das dificuldades particulares que a sua interpretação apresenta e do risco de divergências jurisprudenciais na União Europeia» (121).

168. Acima expliquei por que razão, na minha opinião, a Supreme Court interpretou incorretamente o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE no caso em apreço. No entanto, o simples facto de um órgão jurisdicional de última instância ter cometido um erro na interpretação de uma disposição do direito da União, sem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.o TFUE, não significa que tenha necessariamente violado a sua obrigação de reenvio. Trata‑se, quando muito, de um indício de que isso pode ter acontecido.

169. Ora, no caso em apreço, diversos outros elementos indicam que nem a redação da própria disposição, nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça deram uma resposta evidente às questões de interpretação com que a Supreme Court se confrontava.

170. Em primeiro lugar, é evidente que a redação relativamente sucinta do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não presta indicações inequívocas sobre as questões de interpretação que tinham sido suscitadas na Supreme Court. Como salientou a Comissão, as partes manifestaram fortemente o seu desacordo quanto a estas questões. Parece‑me que ambas as partes tiveram de apresentar argumentos que, pelo menos à primeira vista, não podiam ser considerados manifestamente improcedentes.

171. Em segundo lugar, as decisões dos órgãos jurisdicionais da União relativas ao artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, referidas pelas partes e examinadas pela Supreme Court, eram limitadas tanto em número como em pertinência. Em concreto, nenhuma destas decisões tinha abordado, expressa e diretamente, questões que eram cruciais no caso em apreço. Com efeito, a fundamentação do acórdão recorrido mostra que a interpretação adotada pela Supreme Court foi construída (se assim posso dizer) através da colagem de «fragmentos» de vários acórdãos do Tribunal de Justiça. Por outro lado, esta fundamentação mostra também que alguns «fragmentos» de outros acórdãos do Tribunal de Justiça talvez sugerissem uma outra leitura do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE (122).

172. Em terceiro lugar, também é difícil vislumbrar como se poderia concluir com segurança que os órgãos jurisdicionais da União e os órgãos jurisdicionais de última instância dos outros Estados‑Membros provavelmente considerariam, em relação à interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE adotada pela Supreme Court que «a mesma evidência se imporia». A Supreme Court sabia que os argumentos baseados no artigo 351.o TFUE e na Convenção CIRDI tinham sido invocados não só perante os órgãos jurisdicionais da União, mas também nos processos nacionais em curso. A própria quantidade destes processos, bem como o facto de estarem pendentes em órgãos jurisdicionais de diferentes jurisdições, devia levado a Supreme Court a ser, pelo menos, particularmente prudente a esse respeito.

173. Além disso, a Supreme Court tinha sido informada pela Comissão de que um órgão jurisdicional nacional, o Nacka Tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância de Nacka, Suécia), tinha proferido um acórdão no qual tinha julgado improcedentes os pedidos dos investidores baseados no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, na sequência de uma interpretação desta disposição que era contrária à que veio a ser adotada pela Supreme Court. O risco de entendimentos divergentes sobre o sentido e o alcance do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e, logo, de decisões judiciais contraditórias nesta matéria, era, portanto, simultaneamente real e atual.

174. A este respeito, devo recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, quando um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância tem conhecimento da existência de correntes jurisprudenciais divergentes — nos órgãos jurisdicionais de um mesmo Estado‑Membro ou entre órgãos jurisdicionais de Estados‑Membros diferentes — relativas à interpretação de uma disposição do direito da União aplicável ao litígio no processo principal, esse órgão jurisdicional deve prestar especial atenção na sua apreciação relativa a uma eventual ausência de dúvida razoável quanto à interpretação correta da disposição da União em causa e ter em conta, nomeadamente, o objetivo prosseguido pelo processo prejudicial que é assegurar a unidade de interpretação do direito da União (123).

175. Em quarto lugar, a Supreme Court parece não ter tido em conta a importância constitucional da questão jurídica sobre a qual decidiu pronunciar‑se e o eventual impacto da sua decisão na ordem jurídica da União no seu todo. Conforme já referido, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE constitui quase uma limitação aberta à aplicação do princípio do primado do direito da União. Tendo em conta a importância deste princípio para a ordem jurídica da União, as possíveis consequências da interpretação ampla desta disposição do Tratado não poderiam ter escapado à Supreme Court.

176. Além disso, saliento que, contrariamente à Supreme Court, tanto a High Court como a Court of Appeal tinham recusado apreciar a aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, por se tratar de uma questão suscitada no âmbito do processo European Food nos órgãos jurisdicionais da União e, por conseguinte, poder gerar um risco de decisões contraditórias sobre a matéria (124).

177. Por conseguinte, considero que, ao decidir sobre o mérito do pedido dos investidores com base no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, a Supreme Court ignorou i) as «características do direito da União» e ii) «o risco de divergências jurisprudenciais na União». São elementos que, em conformidade com a jurisprudência acima referida, os órgãos jurisdicionais nacionais que decidem em última instância devem ter em conta quando apreciam se, numa situação concreta, têm a obrigação de submeter uma questão nos termos do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE.

178. Em quinto e último lugar, considero que, tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço, a decisão da Supreme Court de não proceder a um reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE escapa à margem de manobra que deve necessariamente ser reconhecida aos órgãos que exercem funções jurisdicionais. Os elementos analisados nas presentes conclusões revelam um processo juridicamente complexo, agravado pela coexistência de vários processos administrativos e judiciais em toda a União Europeia, em que as questões centrais diziam respeito à aplicação de diversas regras e princípios da União. Em especial, a interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não constituía uma questão acessória ou secundária — que poderia, portanto, ter sugerido o recurso à economia processual — mas uma questão que «afeta o cerne do presente litígio» (125).

179. Além disso, tão‑pouco vislumbro elemento concreto suscetível de sugerir a existência de razões especiais para submeter o processo a tramitação urgente. Nem é possível considerar que a omissão da Supreme Court em apresentar um pedido de decisão prejudicial seja o resultado de um esquecimento menor, como pode ser o caso, por exemplo, quando uma questão jurídica não foi suscitada pelas partes ou integralmente debatida entre elas. Com efeito, algumas das partes no processo tinham, várias vezes, convidado a Supreme Court a submeter ao Tribunal de Justiça uma questão relativa à interpretação correta do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

180. Assim, considero que, tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço, a Supreme Court não podia concluir de forma plausível que, devido à sua redação e/ou à jurisprudência existente da União, i) a interpretação a dar ao artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não deixava margem para dúvidas razoáveis; e ii) a interpretação adotada teria sido também evidente para os órgãos jurisdicionais da União e para os órgãos jurisdicionais de última instância dos outros Estados‑Membros. Consequentemente, ao não submeter ao Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, a Supreme Court não cumpriu a obrigação que lhe incumbe por força do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE.

181. Nestas condições, considero que o terceiro fundamento se afigura procedente, sem que seja necessário examinar as outras críticas formuladas pela Comissão (126).

F.      Quarto fundamento: violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE

1.      Argumentos das partes

182. Com o seu quarto fundamento, a Comissão alega que o Reino Unido violou o artigo 108.o, n.o 3, TFUE.

183. A Comissão sublinha que, ao levantar a suspensão da execução da sentença, que tinha sido ordenada pelos órgãos jurisdicionais britânicos chamados a conhecer do processo em instâncias inferiores, esta decisão se tornou executória. Assim, por efeito do acórdão da Supreme Court, venceram‑se os montantes indicados na sentença. Tal efeito, alega a Comissão, está em contradição direta com a obrigação de não execução prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE.

184. A Comissão acrescenta que a Supreme Court também ignorou a jurisprudência assente segundo a qual a proibição de conceder auxílios de Estado que não tenham sido devidamente autorizados pode ser invocada para impedir a execução de decisões definitivas de órgãos jurisdicionais nacionais que estejam em contradição direta com a obrigação de suspensão (127).

2.      Apreciação

185. Embora a argumentação jurídica da Comissão pareça, em princípio, fundada, considero que este fundamento deve ser julgado improcedente.

186. De acordo com o artigo 108.o, n.o 3, TFUE, os Estados‑Membros estão obrigados, por um lado, a notificar a Comissão de qualquer medida destinada a criar ou a modificar um auxílio e, por outro, a não implementar esta medida enquanto a referida instituição não tiver tomado uma decisão final. Esta dupla obrigação (de notificação e de não execução) das medidas visa garantir que os efeitos de um auxílio não se produzem antes de a Comissão ter tido um prazo razoável para examinar o projeto em pormenor e, eventualmente, dar início ao procedimento formal de exame. O objetivo final é, evidentemente, evitar que um auxílio incompatível possa ser concedido aos beneficiários (128).

187. No caso em apreço, a medida em causa (o pagamento pela Roménia da indemnização atribuída na sentença aos investidores (129)) já tinha sido examinada pela Comissão e considerada um auxílio estatal incompatível na decisão final de 2015.

188. É verdade que a decisão final da Comissão, no momento em que a Supreme Court proferiu o acórdão recorrido, tinha sido anulada pelo Tribunal Geral. Porém, já estava pendente no Tribunal de Justiça um recurso do acórdão do Tribunal Geral.

189. Além disso, o processo de anulação perante o juiz da União não tinha por objeto a legalidade da decisão de iniciar o procedimento e/ou da injunção de suspensão. Pode ser útil sublinhar que a legalidade da decisão de iniciar o procedimento não tinha sido contestada pelos investidores, embora tal fosse possível, em princípio(130). Por sua vez, a legalidade da injunção de suspensão tinha sido inicialmente contestada pelos investidores, mas a ação foi posteriormente retirada (131).

190. Neste contexto, importa recordar que os atos das instituições da União gozam, em princípio, de uma presunção de legalidade e produzem, portanto, efeitos jurídicos enquanto não forem revogados, anulados no âmbito de um recurso de anulação ou declarados inválidos na sequência de um pedido prejudicial ou de uma questão prévia de ilegalidade (132).

191. Além disso, o acórdão do Tribunal Geral não pode ser lido no sentido de significar, mesmo implicitamente, que a decisão de iniciar o procedimento e a injunção de suspensão também eram ilegais. Constitui jurisprudência assente que a anulação de um ato da União não afeta necessariamente os atos preparatórios, podendo, em princípio, o procedimento destinado a substituir o ato anulado ser retomado no ponto exato em que a ilegalidade ocorreu (133).

192. No caso em apreço, o motivo pelo qual o Tribunal Geral anulou a decisão final de 2015 era específico da decisão objeto de reapreciação (134). Esse erro da Comissão, mesmo que tivesse sido confirmado pelo juiz de recurso, não teria afetado a legalidade das decisões da Comissão adotadas numa fase anterior do processo. Com efeito, a consequência para a Comissão teria sido a obrigação de recomeçar o seu exame aprofundado do alegado auxílio e, em seguida, adotar uma nova decisão de encerramento do processo, que teria de ser conforme com as conclusões dos órgãos jurisdicionais da União.

193. Por conseguinte, independentemente do estado da decisão final de 2015, uma vez que a decisão de iniciar o procedimento e a injunção de suspensão eram atos em vigor e produziam efeitos jurídicos, a obrigação de não execução do alegado auxílio continuava em vigor (135).

194. A este respeito, devo recordar que, segundo jurisprudência constante, a proibição de pagamento dos projetos de auxílio prevista no último período do artigo 108.o, n.o 3, TFUE tem efeito direto e, como tal, é imediatamente executória (136), incluindo pelos órgãos jurisdicionais nacionais (137). Por conseguinte, um órgão jurisdicional nacional não pode, sem violar o artigo 108.o, n.o 3, ordenar o pagamento de um auxílio que não tenha sido notificado à Comissão, cuja compatibilidade com o mercado interno esteja a ser examinada pela Comissão ou, pior, que já tenha sido declarado incompatível com o mercado interno. Qualquer pedido deste tipo deve, em princípio, ser indeferido (138).

195. Assim, ao levantar a suspensão da execução da sentença, o acórdão recorrido teve como consequência inelutável que a Roménia ficou, em princípio, obrigada a pagar o alegado auxílio, em incumprimento da obrigação de não execução. Tal situação afigura‑se suscetível de implicar uma violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE.

196. É certo que — como o Reino Unido salientou na sua resposta à notificação para cumprir da Comissão — o artigo 108.o, n.o 3, TFUE estabelece uma obrigação que, em princípio, impende sobre o Estado‑Membro que concede o alegado auxílio (139). Todavia, tal como a Comissão acertadamente observou, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, TUE, os Estados‑Membros devem assistir‑se mutuamente para facilitar o cumprimento do direito da União e abster‑se de adotar medidas suscetíveis de dificultar ou comprometer esse cumprimento (140).

197. Por conseguinte, subscrevo o entendimento da Comissão de que o Reino Unido pode ser considerado responsável por uma violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, lido em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, se for uma das suas medidas a desencadear um incumprimento da obrigação de não execução relativamente a uma alegada medida de auxílio.

198. Dito isto, devo salientar que, no caso em apreço, a Comissão não forneceu nenhuma informação quanto à forma e à data em que a execução da sentença no Reino Unido, tornada possível pelo acórdão recorrido, conduziu ao pagamento efetivo das quantias nela fixadas.

199. Recordo, a este respeito, que, no âmbito de uma ação por incumprimento, incumbe à Comissão demonstrar a existência dos alegados incumprimentos e apresentar ao Tribunal de Justiça todos os elementos necessários para esse efeito, não podendo fundar‑se numa qualquer presunção (141). Além disso, é jurisprudência constante que uma ação por incumprimento só pode ser utilizada contra violações efetivas do direito da União. Em contrapartida, simples alegações de potenciais violações futuras ou do risco destas violações não podem ser acolhidas (142).

200. Assim, embora concorde com a Comissão quanto ao facto de o acórdão recorrido parecer, em princípio, suscetível de conduzir a uma violação da obrigação de não execução prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE que poderia ser imputável ao Reino Unido, não encontro nenhuma prova de que tal violação tenha efetivamente ocorrido.

201. Por esta razão, o quarto fundamento da Comissão não se afigura, em meu entender, procedente.

VI.    Quanto às despesas

202. Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

203. Por conseguinte, dado que a Comissão formulou um pedido nesse sentido e que a sua ação foi julgada procedente no essencial, há que condenar o Reino Unido nas despesas.

VII. Conclusão

204. À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que:

–        declare que, uma vez que, no seu Acórdão de 19 de fevereiro de 2020, Micula/Roménia, a Supreme Court recusou suspender a instância e se pronunciou sobre a interpretação do primeiro parágrafo do artigo 351.o TFUE, quando o mesmo assunto já tinha sido decidido por decisões da Comissão em vigor e aguardava decisão dos órgãos jurisdicionais da União, o Reino Unido violou o artigo 4.o, n.o 3, TUE, em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída;

–        declare que, não tendo a Supreme Court (Supremo Tribunal), enquanto órgão jurisdicional de última instância, submetido uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação de direito da União que não era nem um ato claro nem um ato aclarado, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte violou o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída;

–        julgar a ação improcedente quanto ao restante;

–        condenar o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte nas despesas do presente processo.


1      Língua original: inglês.


2      Mertens de Wilmars, J., e Verougstraete, I. M., Proceedings against Member States for failure to fulfil their obligations, Common Market Law Review, Vol. 7, 4.a Edição, 1970, pp. 389 e 390. No mesmo sentido, alguns anos mais tarde, v. Conclusões do advogado‑geral J.‑P. Warner no processo Bouchereau (30/77, EU:C:1977:141, p. 2020).


3      V., recentemente, Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva luta contra os atrasos de pagamento) (C‑122/18, EU:C:2020:41, n.o 55 e jurisprudência referida).


4      V., em especial, Acórdãos de 12 de novembro de 2009, Comissão/Espanha (C‑154/08, EU:C:2009:695), e de 4 de outubro de 2018, Comissão/França (Imposto retido na fonte) (C‑416/17, EU:C:2018:811). V., igualmente, Parecer 1/09 (Acordo sobre a criação de um sistema unificado de resolução de litígios em matéria de patentes), de 8 de março de 2011 (EU:C:2011:123, n.o 87).


5      Um ponto sublinhado pelo Tribunal de Justiça em várias ocasiões e com o qual estou inteiramente de acordo. V., por exemplo, Acórdãos de 9 de dezembro de 2003, Comissão/Itália (C‑129/00, EU:C:2003:656, n.o 32), e de 7 de junho de 2007, Comissão/Grécia (C‑156/04, EU:C:2007:316, n.o 52).


6      Estas convenções internacionais serão a seguir designadas por «acordos anteriores».


7      A seguir «Acordo de Saída» (JO 2020, L 29, p. 7).


8      T‑624/15, T‑694/15 e T‑704/15, EU:T:2019:423.


9      Acórdão Comissão/European Food e o. (C‑638/19 P, EU:C:2022:50).


10      Acórdão de 6 de março de 2018 (C‑284/16, EU:C:2018:158). Neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que uma cláusula de arbitragem contida num tratado bilateral de investimento celebrado entre o Reino dos Países Baixos e a República da Eslováquia era incompatível com o direito da União.


11      C‑333/19, EU:C:2022:749.


12      [2017] EWHC 31 (Comm).


13      [2018] EWCA 1801.


14      V., em especial, artigos 92.o a 95.o do Acordo de Saída.


15      V., em especial, artigos 86.o a 91.o do Acordo de Saída.


16      O sublinhado é meu.


17      Conclusões no processo Portugal/Comissão (C‑365/99, EU:C:2001:184, n.o 16).


18      V., entre outros, Acórdão de 28 de março de 2019, Comissão/Irlanda (Sistema coletor e de tratamento de águas residuais) (C‑427/17, EU:C:2019:269, n.o 43 e jurisprudência referida).


19      V., por exemplo, Despacho de 8 de abril de 2020, Comissão/Polónia (C‑791/19 R, EU:C:2020:277, n.o 52 e jurisprudência referida). O sublinhado é meu.


20      V., neste sentido, Acórdãos de 20 de março de 2014, Comissão/Polónia (C‑639/11, EU:C:2014:173, n.o 57), e de 20 de março de 2014, Comissão/Lituânia (C‑61/12, EU:C:2014:172, n.o 62).


21      Sobre este princípio, v., por exemplo, Acórdão de 20 de janeiro de 2021, Comissão/Printeos (C‑301/19 P, EU:C:2021:39, n.o 54).


22      V., neste sentido, Acórdãos de 21 de setembro de 1989, Comissão/Grécia (68/88, EU:C:1989:339, n.o 9), e de 1 de outubro de 1998, Comissão/Itália (C‑285/96, EU:C:1998:453, n.o 13).


23      Para um contexto histórico e comparativo deste processo, v., por exemplo, Guyomar, G., Le défaut des parties à un différend devant les juridictions internationales, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1960; e Acórdão do Supremo Tribunal dos EUA, de 30 de março de 1885, Thomson e o. c. Wooster, 114 U.S. 104 (1885).


24      Artigo 41.o do Estatuto do Tribunal de Justiça e artigo 156.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.


25      Do mesmo modo, Conclusões do advogado‑geral J. Mischo no processo Portugal/Comissão (C‑365/99, EU:C:2001:184, n.o 17).


26      Diz‑se que este provérbio tem origem numa fábula de Esopo (620‑564 a.C.), autor da Grécia antiga.


27      V., neste sentido, Acórdão de 22 de outubro de 2002, Roquette Frères (C‑94/00, EU:C:2002:603, n.o 31 e jurisprudência referida).


28      Artigo 3.o, n.o 3, primeiro parágrafo, TUE.


29      Artigo 26.o, n.o 2, TFUE.


30      Protocolo (n.o 27) relativo ao mercado interno e à concorrência.


31      Artigos 101.o a 106.o TFUE.


32      Artigos 107.o a 109.o TFUE.


33      V., em especial, Acórdão de 18 de julho de 2007, Lucchini (C‑119/05, EU:C:2007:434, n.o 52 e jurisprudência referida).


34      V., em especial, Acórdão de 21 de novembro de 2013, Deutsche Lufthansa (C‑284/12, EU:C:2013:755, n.o 41). V., igualmente, neste sentido, Acórdão de 23 de janeiro de 2019, Fallimento Traghetti del Mediterraneo (C‑387/17, EU:C:2019:51, n.o 54 e jurisprudência referida).


35      V. Acórdão de 21 de novembro de 2013, Deutsche Lufthansa (C‑284/12, EU:C:2013:755, n.os 28 a 31 e jurisprudência referida).


36      Ibidem, n.o 41.


37      V., neste sentido, Acórdãos de 25 de julho de 2018, Georgsmarienhütte e o. (C‑135/16, EU:C:2018:582, n.o 24), e, por analogia, de 14 de dezembro de 2000, Masterfoods e HB (C‑344/98, EU:C:2000:689, n.o 57).


38      O sublinhado é meu.


39      N.o 25 do acórdão recorrido. No que respeita à decisão do Tribunal de Justiça neste processo, v. Despacho de 21 de setembro de 2022, Romatsa e o. (C‑333/19, EU:C:2022:749).


40      V., supra, n.os 21 e 22 das presentes conclusões.


41      N.o 97 do acórdão recorrido.


42      N.os 98 a 100 do acórdão recorrido.


43      N.os 101 a 108 do acórdão recorrido.


44      N.os 109 a 117 do acórdão recorrido.


45      No que respeita aos artigos 53.o e 54.o da Convenção CIRDI, v. n.os 13 e 14 das presentes conclusões. O artigo 69.o desta convenção limita‑se a afirmar que «[t]odos os Estados Contratantes tomarão as medidas legislativas ou outras que considerem necessárias para permitir a efetivação da presente Convenção no seu território».


46      No mesmo sentido, Conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:207, n.o 66).


47      Considero também que foi também isso que, no processo britânico, a High Court e a Court of Appeal tinham concluído a este respeito (v. n.o 42 do acórdão recorrido).


48      V., em especial, n.o 56 do acórdão recorrido.


49      V. n.os 2, 51, 52, 56 e 116 do acórdão recorrido.


50      V., nomeadamente, considerandos 44 e 126 a 129 da decisão final de 2015. A Comissão também afastou a aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE na decisão de iniciar o procedimento.


51      V., nomeadamente, n.o 100 do acórdão recorrido.


52      Acrescento, de passagem, que nenhuma expressão semelhante figura nas fontes internacionais mais pertinentes, como a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (a seguir «CVDT»), e o Projeto da Comissão de artigos de direito internacional sobre a responsabilidade dos Estados por atos internacionalmente ilícitos (a seguir «ARSIWA»).


53      V., neste sentido, Acórdão de 22 de junho de 2021, Venezuela/Conselho (Afetação de um Estado terceiro) (C‑872/19 P, EU:C:2021:507, n.o 42 e jurisprudência referida).


54      V., infra, n.o 114 das presentes conclusões.


55      Por conseguinte, não concordo inteiramente com o advogado‑geral J. Mischo quando, nas suas Conclusões nos processos Comissão/Portugal (C‑62/98 e C‑84/98, EU:C:1999:509, n.o 56), refere que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE tem um caráter «meramente declaratório».


56      Acórdão de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461, n.o 304). V., igualmente, Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no mesmo processo (EU:C:2008:11, n.os 30 e 31). V. também, de forma mais geral, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia (C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 42).


57      V., entre outros, Acórdãos de 6 de abril de 1995, RTE e ITP/Comissão (C‑241/91 P e C‑242/91 P, EU:C:1995:98), e de 15 de setembro de 2011, Comissão/Eslováquia (C‑264/09, EU:C:2011:580).


58      Tal como nos Acórdãos, referidos pela Supreme Court, de 2 de agosto de 1993, Levy (C‑158/91, EU:C:1993:332), e de 28 de março de 1995, Evans Medical e Macfarlan Smith (C‑324/93, EU:C:1995:84).


59      Isto resulta muito claramente do Acórdão de 18 de novembro de 2003, Budějovický Budvar (C‑216/01, EU:C:2003:618, n.os 134 e 143). V., igualmente, por analogia, Acórdão de 27 de novembro de 1973, Vandeweghe e o. (130/73, EU:C:1973:131, n.os 2 e 3).


60      Sobre esta questão, v., na doutrina, Klabbers, J., Treaty Conflict and the European Union, Cambridge University Press, 2009, pp. 142 a 148; Manzini, P., «The Priority of Pre‑Existing Treaties of EC Member States within the Framework of International Law», European Journal of International Law, 2001, pp. 785 a 788; e Schermers, H. G., «Annotation of Case 812/79 Attorney General (of Ireland) v Burgoa», Common Market Law Review, 1981, pp. 229 e 230.


61      V., supra, n.o 82, e infra, n.o 193 das presentes conclusões. De um modo geral, sobre este ponto, v. Conclusões do advogado‑geral F. Capotorti no processo Burgoa (812/79, EU:C:1980:196, p. 2817), bem como conclusões do advogado‑geral C. O. Lenz no processo Evans Medical e Macfarlan Smith (C‑324/93, EU:C:1994:357, n.o 42).


62      V., com referência a decisões de organismos internacionais competentes, Alexandrov, S. A., «Enforcement of ICSID Awards: Articles 53 and 54 of the ICSID Convention», in Binder C., et al. (EE.), International Investment Law for the 21st Century Essays in Honour of Christoph Schreuer, Oxford University Press, 2009, p. 328.


63      Para empregar a expressão da própria Supreme Court no n.o 56 do acórdão recorrido.


64      V. n.o 113 do acórdão recorrido.


65      V. considerando 45 da decisão final de 2015.


66      N.os 114 e 117, respetivamente, do acórdão recorrido.


67      N.o 56 do acórdão recorrido. O sublinhado é meu.


68      V., supra, n.o 22 das presentes conclusões.


69      Conforme foi corretamente indicado no n.o 114 do acórdão recorrido.


70      Acórdão de 18 de junho de 2019, European Food e o./Comissão (T‑624/15, T‑694/15 e T‑704/15, EU:T:2019:423, n.o 58).


71      V., por exemplo, considerandos 64 a 66 da decisão final de 2015.


72      Do mesmo modo, Conclusões do advogado‑geral N. Jääskinen no processo Comissão/Eslováquia (C‑264/09, EU:C:2011:150, n.o 48).


73      Do mesmo modo, conclusões do advogado‑geral M. Lagrange no processo Comissão/Itália (10/61, não publicado, EU:C:1961:26, p. 17).


74      V., a este respeito, artigo 26.o, artigo 30.o, n.o 4, alínea b), e artigos 34.o a 36.o da CVDT.


75      Por exemplo, no que respeita à relação entre o artigo 351.o TFUE e o artigo 30.o, n.o 4, alínea b), da CVDT, v. Acórdão de 9 de fevereiro de 2012, Luksan (C‑277/10, EU:C:2012:65, n.o 61 e jurisprudência referida).


76      V., nomeadamente, Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Centro‑Com (C‑124/95, EU:C:1997:8, n.o 56 e jurisprudência referida).


77      V., neste sentido, Acórdão de 3 de fevereiro de 1994, Minne (C‑13/93, EU:C:1994:39, n.o 17).


78      Acórdão de 14 de outubro de 1980, Burgoa (812/79, EU:C:1980:231, n.o 9).


79      V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral A. Tizzano no processo Comissão/Reino Unido (C‑466/98, EU:C:2002:63, n.o 38). Na doutrina, v. Koutrakos, P., «International agreements concluded by Member States prior to their EU accession: Burgoa’, in Butler, G., Wessel, R. (EE.), EU external relations law, Hart Publishing, Oxford, 2022, p. 137.


80      V., infra, mais pormenorizadamente, n.os 127 e seguintes das presentes conclusões.


81      Mutatis mutandis, seria como considerar que um Estado‑Membro que introduza uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa que não preenche as condições para ser justificada nos termos do artigo 36.o TFUE viola esta disposição, e não a proibição (geral) das restrições quantitativas prevista no artigo 34.o TFUE.


82      V., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 1998, T. Port (C‑364/95 e C‑365/95, EU:C:1998:95, n.o 61).


83      V., no mesmo sentido, Acórdão de 5 de novembro de 2002, Comissão/Reino Unido (C‑466/98, EU:C:2002:624, n.o 25).


84      V., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 1966, Consten e Grundig/Comissão (56/64 e 58/64, EU:C:1966:41, p. 346).


85      V., neste sentido, Acórdão de 12 de fevereiro de 2009, Comissão/Grécia (C‑45/07, EU:C:2009:81, n.o 35).


86      V., neste sentido, nomeadamente, Parecer 2/15 (Acordo de Comércio Livre entre a União Europeia e Singapura), de 16 de maio de 2017 (EU:C:2017:376, n.o 254).


87      V., por exemplo, Acórdão de 22 de setembro de 1988, Deserbais (286/86, EU:C:1988:434, n.o 18), e Conclusões do advogado‑geral G. Tesauro no processo Levy (C‑158/91, EU:C:1992:411, n.o 4).


88      V., entre outros, Acórdãos de 27 de fevereiro de 1962, Comissão/Itália (10/61, EU:C:1962:2, p. 10), e de 27 de setembro de 1988, Matteucci (235/87, EU:C:1988:460, n.o 21).


89      V. Acórdãos de 11 de março de 1986, Conegate (121/85, EU:C:1986:114, n.o 25), e de 2 de julho de 1996, Comissão/Luxemburgo (C‑473/93, EU:C:1996:263, n.o 40).


90      Eeckhout, P., EU external relations law, 2.a edição, Oxford University Press, 2011, p. 426.


91      Acórdão de 27 de fevereiro de 1962, Comissão/Itália (10/61, EU:C:1962:2, p. 10).


92      V. Acórdão de 2 de julho de 1996, Comissão/Luxemburgo (C‑473/93, EU:C:1996:263, n.o 40).


93      V., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864, n.o 61).


94      V., nomeadamente, Acórdãos de 2 de agosto de 1993, Levy (C‑158/91, EU:C:1993:332, n.o 12), e de 10 de março de 1998, T. Port (C‑364/95 e C‑365/95, EU:C:1998:95, n.o 60). O sublinhado é meu.


95      V. Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Centro‑Com (C‑124/95, EU:C:1997:8, n.o 60 e jurisprudência referida).


96      V., neste sentido, Parecer 2/15 (Acordo de Comércio Livre entre a União Europeia e Singapura), de 16 de maio de 2017 (EU:C:2017:376, n.o 254).


97      V., a este respeito, artigos 20.o e 45.o do ARSIWA.


98      É evidente que, no caso em apreço, a situação diz também respeito a um Estado terceiro (o Reino Unido) que, à data dos factos, porém, se devia considerar, à luz da disposição pertinente do direito da União, na mesma situação dos Estados‑Membros.


99      Para efeitos das presentes conclusões, não é necessário aprofundar este domínio (reconhecidamente complexo) do direito internacional, uma vez que a distinção de base aí utilizada é prontamente aceite nas fontes jurídicas internacionais. V., entre outros, Acórdão do Tribunal Internacional de Justiça de 5 de fevereiro de 1970, Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited (Bélgica/Espanha), CIJ Recueil 1970, p. 3, n.os 33 e 35; e artigo 33.o (e ponto 2 dos comentários), artigo 42.o (e ponto 8 dos comentários) e artigo 48.o (e ponto 8 dos comentários) do ARSIWA. Para referências a esta distinção na jurisprudência da União, v. Conclusões do advogado‑geral J. P. Warner no processo Henn e Darby (34/79, EU:C:1979:246, p. 3833); Conclusões do advogado‑geral G. Tesauro no processo Levy (C‑158/91, EU:C:1992:411, n.o 5); Conclusões do advogado‑geral F. Lenz no processo Levy e Macfarlan Smith (C‑324/93, EU:C:1994:357, n.o 33); e Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo República da Moldávia (C‑741/19, EU:C:2021:164, n.o 42). Obviamente, alguns acordos podem conter cláusulas destas duas categorias e, nesses casos, portanto, o intérprete deve examinar a natureza de cada cláusula.


100      Os acordos em matéria de direitos humanos são frequentemente citados como um exemplo ilustrativo.


101      Do mesmo modo, na doutrina, Mastroianni, R., Comment to Article 351 TFEU, in Tizzano, A. (E.), Trattati dell’Unione Europea, 2.a edição, 2014, p. 2545.


102      Os acordos de proteção dos investimentos constituem um bom exemplo.


103      V., a este respeito, comentários ao artigo 42.o (especialmente o ponto 9) e ao artigo 48.o (em especial o ponto 2) da ARSIWA.


104      V., entre outros, Acórdãos de 22 de setembro de 1988, Deserbais (286/86, EU:C:1988:434, n.o 18); de 6 de abril de 1995, RTE e ITP/Comissão (C‑241/91 P e C‑242/91 P, EU:C:1995:98, n.o 84); de 10 de março de 1998, T. Port (C‑364/95 e C‑365/95, EU:C:1998:95, n.o 60); e de 18 de novembro de 2003, Budějovický Budvar (C‑216/01, EU:C:2003:618, n.o 148).


105      N.o 97 do acórdão recorrido, que remete para o Acórdão de 2 de agosto de 1993, Levy (C‑158/91, EU:C:1993:332, n.o 11).


106      V., supra, n.o 89 das presentes conclusões.


107      Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem) (C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 119).


108      Ibidem, n.os 120 e 121.


109      N.o 98 do acórdão recorrido.


110      Conforme a Supreme Court acertadamente salientou, o litígio em causa tinha unicamente por objeto a questão de saber se, por força da Convenção CIRDI, o Reino Unido estava obrigado a executar a sentença em causa em relação a Estados terceiros (n.o 101 do acórdão recorrido).


111      Por exemplo, submetendo o litígio ao Tribunal Internacional de Justiça.


112      Declarações feitas pelo seu presidente durante a quinta e sexta sessões de trabalhos das Reuniões Consultivas de Peritos Legais designados por governos membros (mencionadas no n.o 107 do acórdão recorrido).


113      V., em especial, as mencionadas nos n.os 104 e 105 do acórdão recorrido.


114      Parece‑me ser especialmente esta a tónica dos argumentos dos investidores sobre esta matéria, os quais a Supreme Court parece subscrever no n.o 106 do acórdão recorrido.


115      V., entre outros, n.o 15 do acórdão recorrido.


116      Segundo esta disposição, a sentença é «final e vinculativa».


117      Neste contexto, refiro de passagem que, na sequência das decisões do Tribunal de Justiça nos processos Achmea, European Food e Romatsa (v., supra, n.os 22 e 23 das presentes conclusões), a cláusula de arbitragem que consta do TBI deve agora ser considerada nula.


118      V. Acórdão de 14 de outubro de 1980, Burgoa (812/79, EU:C:1980:231, n.o 10).


119      V., nomeadamente, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi (C‑561/19, EU:C:2021:799, n.os 39 e 40 e jurisprudência referida).


120      Ibidem, n.o 36 e jurisprudência referida.


121      Ibidem, n.o 41 e jurisprudência referida.


122      V., em particular, n.os 99 e 102 do acórdão recorrido.


123      V., neste sentido, Acórdãos de 9 de setembro de 2015, Ferreira da Silva e Brito e o. (C‑160/14, EU:C:2015:565, n.os 42 a 44), e de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi (C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 49).


124      V. n.os 29, 32, 91 e 94 do acórdão recorrido.


125      Como a Supreme Court indicou no n.o 96 do acórdão recorrido.


126      V., neste sentido, Acórdão de 4 de outubro de 2018, Comissão/França (Imposto retido na fonte) (C‑416/17, EU:C:2018:811, n.o 113).


127      A Comissão refere‑se, em especial, ao Acórdão de 18 de julho de 2007, Lucchini (C‑119/05, EU:C:2007:434, n.os 62 e 63).


128      V., em termos gerais e com outras referências, Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Viasat Broadcasting UK (C‑445/19, EU:C:2020:644, n.os 17 e 18).


129      V. considerando 39 da decisão final de 2015.


130      V., por exemplo, Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Comissão/Hansestadt Lübeck (C‑524/14 P, EU:C:2016:971).


131      Despacho de 29 de fevereiro de 2016, Micula e o./Comissão (T‑646/14, não publicado, EU:T:2016:135).


132      V., nomeadamente, Acórdão de 10 de setembro de 2019, HTTS/Conselho (C‑123/18 P, EU:C:2019:694, n.o 100 e jurisprudência referida).


133      V., entre outros, Acórdão de 21 de setembro de 2017, Riva Fire/Comissão (C‑89/15 P, EU:C:2017:713, n.o 34).


134      Essencialmente, no seu acórdão, o Tribunal Geral tinha declarado que a indemnização concedida aos investidores abrangia, pelo menos em parte, um período anterior à adesão da Roménia à União. Segundo o Tribunal Geral, a Comissão cometeu um erro ao qualificar como auxílio a totalidade da compensação, sem distinguir, de entre os montantes a recuperar, os relativos ao período anterior à adesão e os relativos ao período posterior à adesão.


135      A Supreme Court assim o reconheceu, em substância, no n.o 51 do acórdão recorrido. Sobre esta questão, v., em termos gerais, Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Deutsche Lufthansa (C‑284/12, EU:C:2013:442, n.os 27 a 29).


136      V., por exemplo, Acórdão de 5 de março de 2019, Eesti Pagar (C‑349/17, EU:C:2019:172, n.o 88).


137      Ibidem, n.os 89 a 91.


138      V., entre muitos outros, Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES (C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 121).


139      Esta disposição estabelece, na parte pertinente: «[o] Estado‑Membro em causa não pode pôr em execução as medidas projetadas antes de [o auxílio de Estado] haver sido objeto de uma decisão final» (o sublinhado é meu).


140      V., neste sentido, Acórdão de 27 de setembro de 1988, Matteucci (235/87, EU:C:1988:460, n.o 19).


141      V., por exemplo, acórdão de 10 de novembro de 2020, Comissão/Itália (Valores‑limite — PM10) (C‑644/18, EU:C:2020:895, n.o 83 e jurisprudência referida).


142      V., neste sentido, Acórdão de 16 de outubro de 2012, Hungria/Eslováquia (C‑364/10, EU:C:2012:630, n.os 68 a 71).