Language of document : ECLI:EU:C:2024:231

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

14 de março de 2024 (*)

«Incumprimento de Estado — Processo à revelia — Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica — Artigo 127.o, n.o 1 — Período de transição — Competência do Tribunal de Justiça — Acórdão da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) — Execução de uma sentença arbitral que concede direito ao pagamento de uma indemnização — Decisão da Comissão Europeia que declara que esse pagamento constitui um auxílio estatal incompatível com o mercado interno — Artigo 4.o, n.o 3, TUE — Cooperação leal — Obrigação de suspender a instância — Artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE — Convenção internacional concluída entre Estados‑Membros e Estados terceiros antes da data da sua adesão à União — Convenção para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados (CIRDI) — Aplicação do direito da União — Artigo 267.o TFUE — Órgão jurisdicional nacional que decide em última instância — Obrigação de submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça — Artigo 108, n.o 3, do TFUE — Suspensão da execução do auxílio»

No processo C‑516/22,

que tem por objeto uma ação por incumprimento nos termos do artigo 258.o TFUE, intentada em 29 de julho de 2022,

Comissão Europeia, representada por L. Armati, P.‑J. Loewenthal e T. Maxian Rusche, na qualidade de agentes,

demandante,

contra

Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte, representado por M.S. Fuller, na qualidade de agente,

demandado,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan (relator), presidente de secção, Z. Csehi, M. Ilešič, I. Jarukaitis e D. Gratsias, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de novembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Com a sua petição, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, pelo Acórdão da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), de 19 de fevereiro de 2020, no processo Micula contra Roménia (a seguir «acórdão em causa»), o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.o, n.o 3, TUE, bem como do artigo 108.o, n.o 3, do artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, e do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, lidos em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (a seguir «Acordo de Saída»), adotado em 17 de outubro de 2019.

 Quadro jurídico

 Direito da União

2        O Acordo de Saída, aprovado em nome da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA) pela Decisão (UE) 2020/135 do Conselho, de 30 de janeiro de 2020 (JO 2020, L 29, p. 1), entrou em vigor, por força do seu artigo 185.o, em 1 de fevereiro de 2020.

3        Nos termos do artigo 2.o, alínea e), do Acordo de Saída:

«Para efeitos do presente Acordo, entende‑se por:

[…]

e)      “Período de transição”, o período previsto no artigo 126.o»

4        O artigo 86.o deste acordo, sob a epígrafe «Processos pendentes no Tribunal de Justiça da União Europeia», dispõe, no seu n.o 2:

«O Tribunal de Justiça da União Europeia continua a ser competente para decidir, a título prejudicial, sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição.»

5        O artigo 87.o do referido acordo, sob a epígrafe «Novos processos submetidos ao Tribunal de Justiça», dispõe, no seu n.o 1:

«Se a Comissão Europeia considerar que o Reino Unido não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados ou da parte IV do presente Acordo antes do termo do período de transição, pode, no prazo de quatro anos após o termo do período de transição, recorrer para o Tribunal de Justiça da União Europeia, em conformidade com os requisitos estabelecidos no artigo 258.o do TFUE ou no artigo 108.o, n.o 2, segundo parágrafo, do TFUE, consoante o caso. O Tribunal de Justiça da União Europeia tem competência para conhecer desses casos.»

6        O artigo 126.o do mesmo acordo, sob a epígrafe «Período de transição», dispõe:

«É estabelecido um período de transição ou de execução, com início na data de entrada em vigor do presente Acordo e termo em 31 de dezembro de 2020.»

7        O artigo 127.o do Acordo de Saída, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação da transição», tem a seguinte redação:

«1.      Salvo disposição em contrário do presente Acordo, o direito da União é aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição.

[…]

3.      Durante o período de transição, o direito da União aplicável nos termos do n.o 1 produz, no que respeita ao Reino Unido e no seu território, os mesmos efeitos jurídicos que produz na União e nos seus Estados‑Membros, e deve ser interpretado e aplicado em conformidade com os mesmos métodos e princípios gerais que são aplicáveis na União.

[…]

6.      Salvo disposição em contrário do presente Acordo, durante o período de transição, as referências a Estados‑Membros no direito da União aplicável nos termos do n.o 1, incluindo as disposições transpostas e aplicadas pelos Estados‑Membros, entendem‑se como incluindo o Reino Unido.»

 Direito internacional

 Convenção CIRDI

8        A Convenção para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados, celebrada em Washington em 18 de março de 1965 (a seguir «Convenção CIRDI»), que entrou em vigor em relação ao Reino Unido em 18 de janeiro de 1967 e em relação à Roménia em 12 de outubro de 1975, prevê, no seu artigo 53.o, n.o 1:

«A sentença será obrigatória para as partes e não poderá ser objeto de apelação ou qualquer outro recurso, exceto os previstos na presente Convenção. Cada parte deverá acatar os termos da sentença […]»

9        O artigo 54.o, n.o 1, desta convenção, dispõe:

«Cada Estado Contratante reconhecerá a obrigatoriedade da sentença dada em conformidade com a presente Convenção e assegurará a execução no seu território das obrigações pecuniárias impostas por essa sentença como se fosse uma decisão final de um tribunal desse Estado. […]»

10      O artigo 64.o da referida convenção enuncia:

«Qualquer diferendo que surja entre Estados Contratantes referente à interpretação ou aplicação da presente Convenção e que não seja resolvido por negociação deverá ser levado perante o Tribunal Internacional de Justiça a requerimento de qualquer das partes envolvidas no diferendo, exceto se os Estados interessados acordarem noutro método de resolução.»

11      O artigo 69.o da mesma convenção tem a seguinte redação:

«Todos os Estados Contratantes tomarão as medidas legislativas ou outras que considerem necessárias para permitir a efetivação da presente Convenção no seu território.»

 TBI

12      O Tratado Bilateral de Investimento, celebrado em 29 de maio de 2002, entre o Governo do Reino da Suécia e o Governo Romeno para a Promoção e a Proteção Recíproca dos Investimentos (a seguir «TBI»), que entrou em vigor em 1 de abril de 2003, prevê, no seu artigo 2.o, n.o 3:

«Cada parte contratante garante, a todo o momento, um tratamento justo e equitativo aos investimentos dos investidores da outra parte contratante e não cria obstáculos, através de medidas arbitrárias ou discriminatórias, à gestão, manutenção, utilização, gozo ou cessão dos referidos investimentos pelos mencionados investidores, nem à aquisição de bens e serviços ou à venda da sua produção […]»

13      O artigo 7.o do TBI enuncia que qualquer diferendo entre investidores e as partes contratantes é regulado, nomeadamente, por um tribunal arbitral que aplica a Convenção CIRDI.

 Factos na origem do litígio

 Processo arbitral

14      Em 22 de fevereiro de 2005, a Roménia revogou, com vista à sua adesão à União Europeia, um regime regional de auxílio ao investimento sob a forma de incentivos fiscais (a seguir «regime de auxílios em causa»).

15      Em 28 de julho de 2005, Ioan e Viorel Micula, cidadãos suecos, bem como a European Food SA, a Starmill SRL e a Multipack SRL (a seguir «investidores»), sociedades por estes controladas, pediram, em conformidade com o artigo 7.o do TBI, a constituição de um tribunal arbitral nos termos da Convenção CIRDI, a fim de obter a reparação do prejuízo que sofreram devido à revogação do regime de auxílios em causa de que tinham beneficiado antes dessa revogação.

16      Com a sua Sentença Arbitral de 11 de dezembro de 2013 (a seguir «sentença arbitral»), proferida após a adesão da Roménia à União, em 1 de janeiro de 2007, o tribunal arbitral considerou que, ao revogar o regime de auxílios em causa, a Roménia violou a confiança legítima dos investidores, que pensavam que os incentivos fiscais em causa estariam disponíveis até 31 de março de 2009, não agiu de forma transparente ao não avisar oportunamente os investidores e não assegurou um tratamento justo e equitativo dos investimentos efetuados por estes, na aceção do artigo 2.o, n.o 3, do TBI. Por conseguinte, o tribunal arbitral condenou a Roménia a pagar aos investidores, a título de indemnização, o montante de 791 882 452 leus romenos (RON) (cerca de 178 milhões de euros), tendo este montante sido fixado tendo principalmente em conta os prejuízos alegadamente sofridos por esses investidores no período compreendido entre 22 de fevereiro de 2005 e 31 de março de 2009.

17      Os investidores procuram, desde 2014, obter o reconhecimento e a execução da sentença arbitral na Bélgica, em França, no Luxemburgo, na Suécia, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América. A Comissão interveio em todos estes processos opondo‑se a essa pretensão.

 Tramitação processual na Comissão

18      Em 26 de maio de 2014, a Comissão adotou a Decisão C(2014) 3192 final [Auxílios de Estado SA.38‑517 (2014/NN)] — Roménia — sentença arbitral Micula/Roménia de 11 de dezembro de 2013 — Injunção de suspensão do auxílio (a seguir «injunção de suspensão»), intimando a Roménia a suspender imediatamente qualquer ação que pudesse levar ao cumprimento ou à execução da sentença arbitral, com o fundamento de que se afigurava que tal ação constituía um auxílio de Estado ilegal concedido em violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, até a Comissão adotar uma decisão final sobre a compatibilidade dessa medida com o mercado interno.

19      Em 1 de outubro de 2014, a Comissão adotou a Decisão 2014/C 393/03 [Auxílios de Estado — Roménia — Auxílio estatal SA. 38517 (2014/C) (ex 2014/NN) — Execução da sentença arbitral Micula contra Roménia, de 11 de dezembro de 2013 — Convite à apresentação de observações, nos termos do artigo 108.o, n.o 2, TFUE (JO 2014, C 393, p. 27)] (a seguir «decisão de dar início ao procedimento»), através da qual informou a Roménia do início do procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE no que respeita à execução parcial pela Roménia da sentença arbitral no início de 2014, bem como a qualquer cumprimento ou execução posterior dessa sentença.

20      Em 30 de março de 2015, a Comissão adotou a Decisão (UE) 2015/1470 da Comissão, de 30 de março de 2015, relativa ao auxílio estatal SA.38517 (2014/C) (ex 2014/NN) aplicado pela Roménia — Sentença arbitral Micula contra Roménia, de 11 de dezembro de 2013 (JO 2015, L 232, p. 43) (a seguir «decisão final»).

21      Sob a epígrafe «A aplicação das regras relativas aos auxílios estatais não afeta os direitos e obrigações protegidos pelo artigo 351.o do Tratado», os considerandos 126 a 129 desta decisão, que correspondem, em substância, aos números 51 a 54 da decisão de dar início ao procedimento, têm a seguinte redação:

«(126) O artigo 351.o do Tratado estabelece que “as disposições dos Tratados não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções concluídas […] em relação aos Estados que aderem à Comunidade, anteriormente à data da respetiva adesão, entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro”. No caso em apreço, os direitos e obrigações nos quais os [investidores] se baseiam são os decorrentes do BIT.

(127)      Decorre claramente da redação do artigo 351.o [TFUE] que o mesmo não se aplica no caso em apreço, uma vez que o BIT é um tratado celebrado entre dois Estados‑Membros da União, a Suécia e a Roménia, e não um tratado “entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro”. Por conseguinte, a aplicação da legislação em matéria de auxílios estatais ao caso em apreço não afeta os direitos e obrigações protegidos ao abrigo do artigo 351.o [TFUE].

(128)      Neste contexto, a Comissão recorda que são aplicadas regras diferentes ao abrigo do direito da União a BIT intra‑UE, por um lado, e a BIT celebrados entre um Estado‑Membro da União e um país terceiro, por outro. No caso dos BIT intra‑UE, a Comissão considera que tais acordos são contrários ao direito da União, incompatíveis com o disposto nos Tratados da União e devem, por conseguinte, ser considerados nulos. […]

(129)      A Roménia é também parte na [Convenção CIRDI], à qual aderiu antes da sua adesão à União. No entanto, dado que nenhum [Estado] terceiro que seja Parte Contratante da Convenção CIRDI é parte no BIT implicado neste processo, o artigo 351.o [TFUE] não é relevante neste caso.»

22      Nos termos do seu dispositivo, a decisão final prevê, no seu artigo 1.o, que o pagamento das indemnizações concedidas pela sentença arbitral à unidade económica única que inclui os investidores, a European Drinks, a Rieni Drinks, a Scandic Distilleries, a Transilvania General Import‑Export e a West Leasing International é considerado como «auxílio estatal» na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, sendo incompatível com o mercado interno.

23      Em conformidade com o artigo 2.o desta decisão, a Roménia não deve pagar qualquer auxílio incompatível referido no artigo 1.o da referida decisão e deve recuperar qualquer auxílio que já tenha sido pago a qualquer uma das entidades que constituem essa unidade económica, bem como qualquer auxílio pago a qualquer uma das entidades de que a Comissão não tenha tido conhecimento ao abrigo do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, ou que venha a ser pago após a data da mesma decisão.

 Tramitação processual nos órgãos jurisdicionais da União

24      Pelo Acórdão de 18 de junho de 2019, European Food e o./Comissão (T‑624/15, T‑694/15 e T‑704/15, EU:T:2019:423), o Tribunal Geral anulou, na íntegra, a decisão final, com o fundamento, em substância, de que a Comissão não era competente ratione temporis para a adotar ao abrigo do artigo 108.o TFUE (a seguir «acórdão do Tribunal Geral»).

25      Em especial, o Tribunal Geral declarou, nos n.os 91 e 92 desse acórdão, que, não tendo a Comissão feito distinção, no que respeita aos montantes a recuperar, entre os relativos ao período anterior à adesão da Roménia à União e os relativos ao período posterior a essa adesão, excedeu as suas competências em matéria de fiscalização dos auxílios de Estado ao aplicar retroativamente as competências que detém por força do artigo 108.o TFUE a factos anteriores à referida adesão e que, por conseguinte, a Comissão não podia qualificar o pagamento da indemnização concedida pela sentença arbitral de «auxílio de Estado», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

26      Além disso, o Tribunal Geral declarou, nos n.os 98 a 111 do referido acórdão, que, não sendo o direito da União aplicável ratione temporis e não sendo a Comissão competente nos termos do artigo 108.o TFUE, a decisão final, na falta de distinção entre os montantes a recuperar consoante pertençam ao período anterior ou posterior à adesão em questão, está ferida de ilegalidade uma vez que qualifica de «vantagem» e de «auxílio de Estado», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, a atribuição da referida indemnização, pelo menos no que respeita ao período anterior à data de entrada em vigor do direito da União na Roménia.

27      Em 27 de agosto de 2019, a Comissão interpôs no Tribunal de Justiça um recurso de anulação do acórdão do Tribunal Geral.

 Tramitação processual nos órgãos jurisdicionais do Reino Unido

28      Em 17 de outubro de 2014, a sentença arbitral foi registada na High Court of England and Wales (Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e País de Gales, Reino Unido), nos termos das disposições da Arbitration (International Investment Disputes) Act 1966 (Lei de 1966 sobre a Arbitragem de Litígios em Matéria de Investimento a Nível Internacional), que aplica a Convenção CIRDI no Reino Unido.

29      Em 20 de janeiro de 2017, esse órgão jurisdicional indeferiu o pedido da Roménia destinado a obter a anulação desse registo. Em contrapartida, suspendeu a execução da sentença arbitral até à conclusão do processo nos órgãos jurisdicionais da União.

30      Em 27 de julho de 2018, a Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Reino Unido) declarou que os órgãos jurisdicionais do Reino Unido não podiam, por força do princípio da cooperação leal enunciado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, ordenar a execução imediata da sentença arbitral enquanto uma decisão da Comissão proibisse a Roménia de pagar a indemnização concedida por essa sentença. Com este fundamento, esse órgão jurisdicional negou provimento ao recurso interposto pelos investidores da suspensão da execução da referida sentença ordenada pelo primeiro tribunal.

31      Em 19 de fevereiro de 2020, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) ordenou, através do acórdão em causa, a execução da sentença arbitral. A Comissão participou neste processo como interveniente.

 Acórdão em causa

32      Através do acórdão em causa, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) começou por julgar improcedente, nos seus n.os 41 a 57, o fundamento através do qual os investidores sustentavam que o acórdão do Tribunal Geral tinha como consequência que os órgãos jurisdicionais do Reino Unido deixavam de estar obrigados, por força da obrigação de cooperação leal, a suspender a execução da sentença arbitral. A este respeito, esse órgão jurisdicional declarou, no n.o 56 desse acórdão, que estava preocupado com o risco de decisões contraditórias com o mesmo objeto entre as mesmas partes, que lhe era impossível concluir que não existia nenhum risco de conflito entre essas decisões, que se o conflito entre as diferentes decisões se materializasse, isso teria como consequência entravar significativamente a aplicação do direito da União, e que a existência de um recurso pendente no Tribunal de Justiça bastava, em princípio, para desencadear a obrigação de cooperação leal.

33      Em contrapartida, nos n.os 58 a 118 do acórdão em causa, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) julgou procedente o fundamento através do qual os investidores alegavam que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE era aplicável às obrigações que incumbem ao Reino Unido por força da Convenção CIRDI, pelo que estas não estavam sujeitas aos efeitos imperativos do direito da União. Segundo este órgão jurisdicional, para determinar se esta disposição se aplica num caso particular, é necessário interpretar a convenção internacional anterior em causa para examinar se esta impõe ao Estado‑Membro em questão obrigações cuja execução pode ser exigida pelos Estados terceiros que dela são partes.

34      Ora, no caso em apreço, é claro que a obrigação de o Reino Unido executar a sentença arbitral por força dos artigos 54.o e 69.o da Convenção CIRDI lhe incumbe, não só em relação ao Reino da Suécia, mas igualmente em relação a todos os outros Estados contratantes desta convenção, e isto pelas seguintes razões, expostas nos n.os 104 a 107 do acórdão em causa:

–        primeiro, o regime da Convenção CIRDI baseia‑se na confiança mútua e depende da participação de todos os Estados contratantes, bem como do respeito por estes das regras previstas nesta convenção;

–        segundo, resulta dos artigos 53.o, 54.o e 69.o da Convenção CIRDI que as obrigações nela previstas não são acompanhadas de qualquer reserva e que o recurso previsto no artigo 64.o desta convenção está aberto a cada Estado contratante;

–        terceiro, o objetivo prosseguido pela Convenção CIRDI revela que existe uma rede de obrigações de execução mútua que um Estado contratante não pode expressamente derrogar e que, em caso de renúncia, transfere para outro Estado contratante o encargo da execução,

–        quarto, resulta dos trabalhos preparatórios que, se um Estado contratante não cumprir as obrigações que lhe incumbem por força da Convenção CIRDI, os outros Estados contratantes podem tomar as medidas adequadas.

35      Na opinião da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), uma vez que a obrigação de cooperação leal não é aplicável no caso em apreço, os órgãos jurisdicionais do Reino Unido não são obrigados a renunciar a pronunciar‑se sobre a questão dos efeitos da Convenção CIRDI, suspendendo o processo nacional enquanto se aguarda o desfecho do processo pendente nos órgãos jurisdicionais da União ou submetendo uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, e isto pelas seguintes razões, expostas nos n.os 112 a 114 do acórdão em causa:

–        primeiro, por força do direito da União, as questões relativas à existência e ao alcance das obrigações decorrentes de convenções anteriores em aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não estão reservadas aos órgãos jurisdicionais da União. Estas questões não são reguladas pelo direito da União e o Tribunal de Justiça não está em melhores condições de lhes responder do que um órgão jurisdicional nacional;

–        segundo, a questão que lhe foi submetida pelos investidores com base no artigo 351.o TFUE não é perfeitamente idêntica à que foi submetida aos órgãos jurisdicionais da União. Com efeito, perante estes últimos, os investidores sustentaram, nomeadamente, que o artigo 351.o TFUE conferia primazia às obrigações internacionais preexistentes da Roménia a que esta estava vinculada por força do TBI e do artigo 53.o da Convenção CIRDI. Em contrapartida, no âmbito do processo instaurado no Reino Unido, a questão jurídica que se colocava era a das obrigações do Reino Unido de aplicar a Convenção CIRDI e de reconhecer e executar a sentença arbitral em aplicação dos artigos 54.o e 69.o da Convenção CIRDI. Sendo específica do litígio ocorrido no Reino Unido, esta questão não foi suscitada perante os órgãos jurisdicionais da União,

–        terceiro, a probabilidade de um órgão jurisdicional da União se pronunciar sobre a aplicação do artigo 351.o TFUE às obrigações anteriores à adesão da Roménia à União decorrentes da Convenção CIRDI no que respeita à sentença arbitral é muito reduzida. O Tribunal Geral não se pronunciou sobre o fundamento relativo à violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e o recurso pendente no Tribunal de Justiça está, consequentemente, limitado a outras questões. Por conseguinte, se fosse negado provimento ao recurso, a questão da aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não seria examinada pelo juiz da União. Em contrapartida, se fosse dado provimento ao recurso, o processo seria devolvido ao Tribunal Geral, pelo que esta questão, no que respeita às obrigações que incumbem à Roménia, poderia ser examinada pelo juiz da União.

 Procedimento précontencioso

36      Em 3 de dezembro de 2020, a Comissão enviou ao Reino Unido uma notificação para cumprir relativa ao acórdão em causa, na qual acusava este último de uma violação, respetivamente, do artigo 4.o, n.o 3, TUE, do artigo 108.o, n.o 3, do artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, bem como do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, lidos em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída.

37      Por carta de 1 de abril de 2021, o Reino Unido respondeu a esta notificação para cumprir, contestando o conjunto das violações imputadas pela Comissão.

38      Em 15 de julho de 2021, considerando que os argumentos suscitados nessa resposta não eram suficientes para alterar a sua análise, a Comissão transmitiu o seu parecer fundamentado ao Reino Unido, no qual concluía que, devido ao acórdão em causa, o Reino Unido tinha violado as disposições mencionadas na notificação para cumprir.

39      Por carta de 23 de agosto de 2021, o Reino Unido pediu à Comissão uma prorrogação do prazo fixado para responder a este parecer fundamentado, a qual lhe foi concedida. No entanto, o Reino Unido acabou por não responder ao referido parecer fundamentado.

 Desenvolvimentos posteriores ao parecer fundamentado

40      Pelo Acórdão de 25 de janeiro de 2022, Comissão/European Food e o. (C‑638/19 P, EU:C:2022:50), o Tribunal de Justiça anulou o acórdão do Tribunal Geral, com o fundamento, resultante dos n.os 115 a 136 desse acórdão do Tribunal de Justiça, de que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito quando considerou que a Comissão não era competente ratione temporis para adotar a decisão final ao abrigo do artigo 108.o TFUE, tendo o direito ao auxílio de Estado objeto dessa decisão sido concedido pela sentença arbitral após a adesão da Roménia à União. O Tribunal de Justiça acrescentou, nos n.os 137 a 145 do mesmo acórdão, que, de resto, o Tribunal Geral cometeu igualmente um erro de direito quando declarou que o Acórdão de 6 de março de 2018, Achmea (C‑284/16, EU:C:2018:158) é desprovido de pertinência no caso em apreço, uma vez que o sistema de vias de recurso jurisdicionais previsto pelos Tratados UE e FUE substituiu o processo de arbitragem em causa a partir dessa adesão. O Tribunal de Justiça devolveu o processo ao Tribunal Geral para este decidir sobre os fundamentos e os argumentos perante ele suscitados sobre os quais o Tribunal de Justiça não se tinha pronunciado. Este processo, registado sob os números T‑624/15 RENV, T‑694/15 RENV e T‑704/15 RENV, está pendente no Tribunal Geral.

41      Por Despacho de 21 de setembro de 2022, Romatsa e o. (C‑333/19, EU:C:2022:749), o Tribunal de Justiça declarou, nos seus n.os 42 e 43, que decorria dos Acórdãos de 6 de março de 2018, Achmea (C‑284/16, EU:C:2018:158), e de 25 de janeiro de 2022, Comissão/European Food e o. (C‑638/19 P, EU:C:2022:50), que a sentença arbitral era incompatível com os artigos 267.o e 344.o TFUE, pelo que não podia produzir nenhum efeito. Consequentemente, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 44 desse despacho, que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro chamado a conhecer da execução coerciva dessa sentença arbitral é obrigado a afastá‑la e, portanto, não pode, em caso algum, proceder à sua execução para permitir que os seus beneficiários obtenham o pagamento das indemnizações que a sentença lhes atribui.

42      Por Despacho de 24 de novembro de 2022, European Food e o. (C‑333/19 REC, EU:C:2022:936), o Tribunal de Justiça indeferiu, por outro lado, o pedido de revogação ou de retificação do despacho neste processo e de cancelamento do processo C‑333/19.

 Tramitação processual no Tribunal de Justiça

43      Em 29 de julho de 2022, a Comissão propôs a presente ação.

44      Tendo a petição apresentada para esse efeito sido regularmente notificada ao Reino Unido, mas não tendo este último apresentado contestação, na aceção do artigo 124.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, no termo do prazo fixado para lhe responder, fixado em 14 de outubro de 2022, e tendo confirmado informalmente à Secretaria que não tinha a intenção de participar no processo nessa fase, a Comissão pediu ao Tribunal de Justiça, em conformidade com o artigo 152.o, n.o 1, do seu Regulamento de Processo, que julgasse procedentes os seus pedidos.

45      Em 14 de fevereiro de 2023, o Tribunal de Justiça perguntou à Comissão se, tendo em conta o contexto particular do presente processo, estava disposta a aceitar que fosse fixado novo prazo ao Reino Unido para a apresentação da sua contestação, precisando o Tribunal de Justiça que só aplicaria o artigo 152.o do Regulamento de Processo na falta de reação do Reino Unido no termo deste novo prazo.

46      Por carta de 3 de março de 2023, a Comissão informou o Tribunal de Justiça de que, tendo em conta as circunstâncias particulares do caso em apreço, não se opunha a que fosse concedido ao Reino Unido um novo prazo para apresentar uma contestação, acrescentando que esta tomada de posição não devia, em caso algum, constituir um precedente para outros processos.

47      Por carta de 8 de março de 2023, o Tribunal de Justiça indicou, por conseguinte, ao Reino Unido que, se desejasse aproveitar a oportunidade, oferecida de acordo com a Comissão, de apresentar contestação não obstante a falta dessa apresentação no prazo inicial, esta instituição não pediria ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse à revelia, nos termos do artigo 152.o do Regulamento de Processo. Consequentemente, o Tribunal de Justiça informou o Reino Unido de que podia apresentar uma contestação no prazo de dois meses a contar da notificação dessa carta, acrescido da dilação em razão da distância de dez dias prevista no artigo 51.o deste Regulamento de Processo, pedindo ao Reino Unido, se decidisse não invocar essa oportunidade, que o informasse o mais rapidamente possível, caso em que a fase escrita seria novamente encerrada e o processo à revelia seguiria a sua tramitação normal.

48      Por carta de 20 de abril de 2023, o Reino Unido indicou ao Tribunal de Justiça que confirmava não ter a intenção de apresentar contestação no presente processo, não obstante o novo prazo que lhe tinha sido concedido.

49      Por conseguinte, incumbe ao Tribunal de Justiça decidir à revelia, em aplicação do artigo 41.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e do artigo 152.o do Regulamento de Processo. Não havendo dúvida quanto à admissibilidade da ação, cabe, portanto, ao Tribunal de Justiça, em conformidade com o n.o 3 deste artigo 152.o, verificar se os pedidos da Comissão se afiguram procedentes.

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

50      A título preliminar, importa recordar que, em conformidade com o artigo 87.o, n.o 1, do Acordo de Saída, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer das ações que lhe são submetidas pela Comissão ao abrigo do artigo 258.o TFUE no prazo de quatro anos após o termo do período de transição, o qual, por força do artigo 2.o, alínea e), deste acordo, lido em conjugação com os artigos 126.o e 185.o do referido acordo, se estendia de 1 de fevereiro a 31 de dezembro de 2020 (a seguir «período de transição»), quando considere que o Reino Unido não cumpriu uma obrigação que lhe incumbia por força dos Tratados antes do termo desse período de transição.

51      Consequentemente, uma vez que o incumprimento imputado ao Reino Unido pela presente ação decorre, tal como resulta do n.o 1 do presente acórdão, do acórdão em causa, proferido em 19 de fevereiro de 2020, durante o período de transição, e que essa ação foi intentada pela Comissão em 29 de julho de 2022, no prazo de quatro anos após o termo desse período de transição, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer da referida ação.

 Quanto ao mérito

52      Em apoio da sua ação, a Comissão invoca quatro fundamentos, relativos a uma violação, pelo Reino Unido, quanto ao primeiro, do artigo 4.o, n.o 3, TUE, quanto ao segundo, do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, quanto ao terceiro, do artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, TFUE, e, quanto ao quarto, do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, lidos em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída, resultando cada uma dessas violações, segundo esta instituição, do acórdão em causa.

53      Para efeitos do exame destes fundamentos, importa começar por salientar que, em conformidade com o artigo 127.o, n.o 6, do Acordo de Saída, o Reino Unido, mês mo que o incumprimento que lhe é imputado seja posterior, como foi salientado no n.o 51 do presente acórdão, à sua saída da União, sendo anterior ao termo do período de transição, deve ser considerado, para efeitos do exame dos fundamentos apresentados pela Comissão em apoio do seu recurso, um «Estado‑Membro», e não um Estado terceiro, precisando, por outro lado, o n.o 1 deste artigo 127.o que o direito da União era aplicável ao Reino Unido durante esse período de transição.

54      Ora, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a obrigação de os Estados‑Membros respeitarem as disposições do Tratado FUE impõe‑se a todas as suas autoridades, incluindo, no âmbito das suas competências, às autoridades jurisdicionais. Assim, um incumprimento de um Estado‑Membro pode, em princípio, ser declarado nos termos do artigo 258.o TFUE, qualquer que seja o órgão desse Estado‑Membro cuja ação ou omissão esteja na origem do incumprimento, ainda que se trate de uma instituição constitucionalmente independente [Acórdão de 28 janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento) C‑122/18, EU:C:2020:41, n.o 55 e jurisprudência referida].

55      Há que apreciar a procedência dos fundamentos suscitados pela Comissão à luz destas considerações, examinando, em primeiro lugar, o segundo desses fundamentos.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo a uma violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída

 Argumentos da recorrente

56      A Comissão acusa o Reino Unido de ter violado o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída, na parte em que, ao interpretar e ao aplicar erradamente os conceitos de «direitos [de] um ou mais Estados terceiros» e de «as disposições dos Tratados não prejudicam», a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) declarou, no acórdão em causa, que o direito da União não se aplicava à obrigação que incumbe ao Reino Unido de executar a sentença arbitral, por força do artigo 54.o da Convenção CIRDI.

57      Com efeito, por um lado, esta obrigação não implica nenhum direito de um ou mais Estados terceiros, uma vez que o presente processo diz unicamente respeito a Estados‑Membros e aos seus nacionais. Por outro lado, os Tratados da União não prejudicam nenhuma obrigação que incumba ao Reino Unido por força da Convenção CIRDI, uma vez que todas as disposições pertinentes desta convenção podem ser interpretadas no sentido de garantir a inexistência de conflito com as normas pertinentes do direito da União.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

58      Importa recordar que, segundo o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, as disposições dos Tratados não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções internacionais anteriores à data da respetiva adesão à União, celebradas entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro.

59      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE tem por objeto esclarecer, em conformidade com os princípios de direito internacional, que a aplicação dos Tratados da União não afeta o compromisso do Estado‑Membro em causa de respeitar os direitos dos Estados terceiros decorrentes de uma convenção internacional anterior e de observar as suas obrigações correspondentes (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 outubro de 1980, Burgoa, 812/79, EU:C:1980:231, n.o 8, e de 9 de fevereiro de 2012, Luksan, C‑277/10, EU:C:2012:65, n.o 61). Esta disposição tem alcance geral, no sentido de que se aplica a qualquer convenção internacional, qualquer que seja o seu objeto, suscetível de ter incidência sobre os Tratados da União (v., neste sentido, Acórdão de 2 de agosto de 1993, Levy, C‑158/91, EU:C:1993:332, n.o 11).

60      O artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE tem, assim, por objetivo salvaguardar os direitos dos Estados terceiros (Acórdão de 13 de julho de 1966, Consten e Grundig/Comissão, 56/64 e 58/64, EU:C:1966:41, p. 500), permitindo aos Estados‑Membros em causa cumprir os compromissos que lhes incumbem por força de uma convenção internacional anterior (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o., C‑366/10, EU:C:2011:864, n.o 61).

61      Esta disposição não autoriza, em contrapartida, os Estados‑Membros a invocarem direitos decorrentes dessas convenções nas suas relações internas à União (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de julho de 1996, Comissão/Luxemburgo, C‑473/93, EU:C:1996:263, n.o 40, e de 7 de julho de 2005, Comissão/Áustria, C‑147/03, EU:C:2005:427, n.o 58).

62      Daqui resulta que, no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, a expressão «direitos e obrigações» se refere, no que respeita aos «direitos», aos direitos dos Estados terceiros e, no que respeita às «obrigações», às obrigações dos Estados‑Membros (Acórdãos de 27 de fevereiro de 1962, Comissão/Itália, 10/61, EU:C:1962:2, p. 22, e de 2 de agosto de 1993, Levy, C‑158/91, EU:C:1993:332, n.o12).

63      Consequentemente, para determinar se uma norma do direito da União pode ser tornada inoperante por uma convenção internacional anterior em aplicação desta disposição, há que examinar se esta impõe ao Estado‑Membro em causa obrigações cujo cumprimento pode ainda ser exigido pelos Estados terceiros que são partes nessa convenção (v., nomeadamente, Acórdãos de 2 de agosto de 1993, Levy, C‑158/91, EU:C:1993:332, n.o13, e de 15 de setembro de 2011, Comissão/Eslováquia, C‑264/09, EU:C:2011:580, n.o 42).

64      Se, por conseguinte, uma norma do direito da União puder ser tornada inoperante por uma convenção internacional, por força do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, é na dupla condição de se tratar de uma convenção concluída antes da entrada em vigor dos Tratados da União no Estado‑Membro em causa e de conferir ao Estado terceiro em causa direitos cujo respeito pode exigir a esse Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 1998, T. Port, C‑364/95 e C‑365/95, EU:C:1998:95, n.o 61).

65      Esta disposição não pode, portanto, ser invocada pelos Estados‑Membros quando, no caso concreto considerado, os direitos dos Estados terceiros não estejam em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de setembro de 1988, Deserbais, 286/86, EU:C:1988:434, n.o 18, e de 6 de abril de 1995, RTE e ITP/Comissão, C‑241/91 P e C‑242/91 P, EU:C:1995:98, n.o 84).

66      É à luz destes princípios que há que examinar a procedência do segundo fundamento, através do qual a Comissão acusa o Reino Unido de ter violado o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE pelo facto de, no acórdão em causa, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) ter interpretado e aplicado de forma errada esta disposição.

67      A este respeito, importa recordar que, nesse acórdão, o referido órgão jurisdicional declarou, em substância, que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE era aplicável à obrigação que incumbia ao Reino Unido, por força da Convenção CIRDI, em especial o seu artigo 54.o, de executar a sentença arbitral, pelo que, sendo inaplicável, o direito da União, nomeadamente os artigos 107.o e 108.o TFUE, que a Comissão tinha aplicado a essa sentença na injunção de suspensão, na decisão de dar início ao procedimento e na decisão final, não podia obstar a que os órgãos jurisdicionais internos dos Estados‑Membros executassem a referida decisão.

68      Para apreciar se, como sustenta a Comissão, essa interpretação e essa aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE são erradas, importa, em primeiro lugar, constatar que está demonstrado que a Convenção CIRDI, da qual a União não é parte e que, por conseguinte, não faz parte do direito da União, é um tratado multilateral que foi celebrado pelo Reino Unido antes da sua adesão à União tanto com Estados‑Membros como com Estados terceiros e que, por conseguinte, esta convenção internacional é suscetível de estar abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, que é uma disposição do direito da União em relação à qual o Tribunal de Justiça tem competência exclusiva para fornecer uma interpretação definitiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia, C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 45).

69      Conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, recordada nos n.os 59 a 65 do presente acórdão, o simples facto de uma convenção internacional anterior ter sido celebrada por um Estado‑Membro com Estados terceiros não basta, no entanto, para desencadear a aplicação desta disposição, uma vez que essas convenções internacionais só podem ser invocadas nas relações entre os Estados‑Membros quando esses Estados terceiros delas extraiam, nas circunstâncias do caso em apreço, direitos cujo respeito podem exigir do Estado‑Membro em causa.

70      Por conseguinte, há que examinar, em segundo lugar, se a Convenção CIRDI, no que respeita à execução da sentença arbitral, impõe ao Reino Unido obrigações a que este último esteja obrigado perante Estados terceiros e que estes podem invocar perante o Reino Unido, na aceção do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

71      A este respeito, importa recordar que, pela sentença arbitral, um tribunal arbitral constituído no âmbito da Convenção CIRDI, em aplicação da cláusula de arbitragem prevista no TBI celebrado entre o Reino da Suécia e a Roménia antes da adesão desta à União, condenou a Roménia a pagar uma indemnização aos investidores, nacionais suecos e sociedades controladas por estes últimos, a título de reparação do dano pretensamente sofrido por eles sofrido devido à revogação pela Roménia, em alegada violação deste TBI, de um regime regional de auxílios, antes da adesão da Roménia à União.

72      Ora, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esse tratado bilateral deve, desde a adesão da Roménia à União, ser considerado um tratado que diz respeito a dois Estados‑Membros (v., por analogia, Acórdão de 8 de setembro de 2009, Budějovický Budvar, C‑478/07, EU:C:2009:521, n.os 97 e 98).

73      Daqui decorre que o litígio submetido no caso em apreço à Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) pelos investidores, visava impor a um Estado‑Membro, a saber o Reino Unido, a obrigação de executar, em aplicação da Convenção CIRDI, uma sentença arbitral a fim de assegurar o respeito por outro Estado‑Membro, neste caso a Roménia, das obrigações que lhe incumbem por força do TBI para com um último Estado‑Membro, a saber o Reino da Suécia.

74      Resulta assim que este litígio dizia respeito à alegada obrigação, do Reino Unido, de dar cumprimento às disposições da Convenção CIRDI, em relação ao Reino da Suécia e aos seus nacionais e, correlativamente, ao pretenso direito destes últimos de exigirem do Reino Unido o respeito das mesmas.

75      Em contrapartida, um Estado terceiro não parece ter o direito de exigir do Reino Unido, ao abrigo da Convenção CIRDI, a execução da sentença arbitral. Com efeito, pelos motivos expostos pelo advogado‑geral nos n.os 133 a 137 das suas conclusões, e como sustentou a Comissão em apoio do presente fundamento, esta convenção internacional, apesar do seu caráter multilateral, tem por objeto regular relações bilaterais entre as partes contratantes de um modo análogo a um tratado bilateral (v., por analogia, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia, C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 64).

76      A este respeito, há que observar, em especial, que, embora a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) tenha concluído, nos n.os 104 a 108 do acórdão em causa, pela existência desse direito que os Estados terceiros podiam invocar contra o Reino Unido, não é menos verdade que, como salientou o advogado‑geral nos n.os 147 a 149 das suas conclusões, esse órgão jurisdicional nacional se limita, no essencial, a salientar que os Estados terceiros que celebraram a Convenção CIRDI podem ter interesse em que um Estado‑Membro, como o Reino Unido, respeite as suas obrigações para com outro Estado‑Membro, procedendo, em conformidade com as disposições dessa convenção, à execução de uma sentença arbitral abrangida pelo seu âmbito de aplicação. Ora, um interesse meramente factual dessa natureza não pode ser assimilado a um «direito», na aceção do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, suscetível de justificar a aplicação desta disposição.

77      Em contrapartida, há que constatar que, no acórdão em causa, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) não examinou a questão fundamental de saber em que medida um Estado terceiro podia, nomeadamente, por força do artigo 64.o da Convenção CIRDI, despoletar a responsabilidade internacional do Reino Unido pela violação das obrigações que lhe incumbem por força dessa convenção no âmbito da execução de uma sentença arbitral proferida no termo de um litígio entre os Estados‑Membros.

78      Ora, importa sublinhar que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE é uma norma que pode, se os respetivos requisitos de aplicação estiverem preenchidos, permitir derrogações à aplicação do direito da União, incluindo do direito primário [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 119 e jurisprudência referida].

79      Esta disposição é, assim, suscetível de ter uma incidência considerável na ordem jurídica da União, uma vez que permite, como sublinhou o advogado‑geral nos n.os 140 e 175 das suas conclusões, derrogar o princípio do primado do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 28 de março de 1995, Evans Medical e Macfarlan Smith, C‑324/93, EU:C:1995:84, n.os 26 a 28), que é uma das características essenciais do mesmo (v., nomeadamente, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia, C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 43 e jurisprudência referida).

80      Neste contexto, há que observar que, seguindo o acórdão em causa, todos os Estados‑Membros que celebraram a Convenção CIRDI antes da sua adesão à União, o que é o caso da maior parte deles, poderiam, baseando‑se no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, subtrair litígios relativos ao direito da União ao sistema jurisdicional da União, confiando‑os aos tribunais arbitrais constituídos no âmbito desta convenção. Ora, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, conforme consagrada no Acórdão de 6 de março de 2018, Achmea (C‑284/16, EU:C:2018:158), que o sistema de vias de recurso jurisdicionais previsto pelos Tratados UE e FUE se substituiu aos procedimentos de arbitragem estabelecidos entre os Estados‑Membros (Acórdão de 25 de janeiro de 2022, Comissão/European Food e o., C‑638/19 P, EU:C:2022:50, n.o 145).

81      Por conseguinte, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE deve, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, ser objeto de interpretação estrita, para que as normas gerais previstas pelos Tratados da União não sejam esvaziadas da sua substância [v., neste sentido, Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o120].

82      Nestas condições, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) estava, em todo o caso, obrigada, antes de chegar à conclusão de que o direito da União, por força do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, não é aplicável à obrigação que incumbe ao Reino Unido, por força da Convenção CIRDI, de executar a sentença arbitral, a examinar de forma aprofundada se essa obrigação, não obstante o facto de dizer respeito a uma sentença que declara a violação por um Estado‑Membro de um tratado bilateral celebrado com outro Estado‑Membro, implica igualmente direitos que Estados terceiros pudessem invocar em relação a estes.

83      Ora, essa análise aprofundada, tendo em conta o princípio segundo o qual qualquer exceção ao primado do direito da União deve ser interpretada de forma estrita, não existe no acórdão em causa, o qual não pode, por conseguinte, questionar as considerações decorrentes dos n.os 73 a 75 do presente acórdão.

84      Por conseguinte, há que considerar, sem que seja sequer necessário examinar os argumentos da Comissão relativos ao alcance da expressão «as disposições dos Tratados não prejudicam», que figura no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), através do acórdão em causa, interpretou e aplicou erradamente esta disposição ao conferir‑lhe um alcance amplo, no sentido de que era aplicável à obrigação que incumbe ao Reino Unido, por força da Convenção CIRDI, de executar a sentença arbitral, pelo que o direito da União, sendo inaplicável, não podia obstar a essa execução.

85      Ora, não se pode admitir que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, menos ainda um órgão jurisdicional cujas decisões não são suscetíveis de recurso jurisdicional de direito interno, como, no caso em apreço, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), possa adotar uma interpretação errada do direito da União cujo objeto e efeito seja excluir deliberadamente a aplicação de todo o direito da União.

86      Com efeito, essa interpretação, que, como já resulta dos n.os 78 e 79 do presente acórdão, leva a afastar o princípio do primado do direito da União, que é uma das características essenciais deste, é suscetível de pôr em causa a coerência, o pleno efeito e a autonomia do direito da União, bem como, em última instância, o caráter adequado do direito instituído pelos Tratados (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia, C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 46 e jurisprudência referida).

87      Daqui resulta que, através do acórdão em causa, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) violou de forma grave a ordem jurídica da União.

88      Consequentemente, há que julgar procedente o segundo fundamento, relativo a uma violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo a uma violação do artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída

 Argumentos da recorrente

89      Com o seu primeiro fundamento, a Comissão acusa o Reino Unido de ter violado o artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída, pelo facto de a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) se ter, através do acórdão em causa, pronunciado sobre a interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e a aplicação desta disposição à execução da sentença arbitral, apesar de a questão relativa a esta interpretação ter sido decidida por uma decisão da Comissão e estar pendente nos órgãos jurisdicionais da União.

90      Quando um órgão jurisdicional nacional é chamado a conhecer de um processo que já tenha sido objeto de investigação pela Comissão ou de um processo judicial nos órgãos jurisdicionais da União, a obrigação de cooperação leal obriga esse órgão jurisdicional nacional a suspender a instância, a menos que não exista risco de conflito entre a sua futura decisão e o futuro ato da Comissão ou o futuro acórdão dos órgãos jurisdicionais da União.

91      Ora, com o processo de execução instaurado, no caso em apreço, pelos investidores no Reino Unido, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) foi chamada a pronunciar‑se sobre um recurso que carecia de uma interpretação da mesma disposição do direito da União à luz da mesma medida sobre a qual a Comissão já se tinha pronunciado e que os órgãos jurisdicionais da União eram chamados a decidir.

92      Enquanto a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) admitiu, num primeiro momento, que a obrigação de cooperação leal continuava a aplicar‑se, tendo em conta o recurso interposto do acórdão do Tribunal Geral, enquanto aguardava o acórdão definitivo dos órgãos jurisdicionais da União, acabou por concluir que esta obrigação não é aplicável ao caso em apreço baseando‑se em fundamentos errados, dando assim lugar a um risco de conflito entre o seu acórdão e as decisões da Comissão e/ou do Tribunal de Justiça sobre a mesma questão.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

93      Importa recordar que, segundo o artigo 4.o, n.o 3, segundo e terceiro parágrafos, TUE, os Estados‑Membros, por um lado, tomam todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União e, por outro, facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm‑se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos prosseguidos pela União.

94      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, resulta do princípio da cooperação leal consagrado, nesta disposição, que os Estados‑Membros, e nomeadamente os órgãos jurisdicionais nacionais, são obrigados a adotar todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito da União [v., nomeadamente, Acórdão de 8 de março de 2022, Comissão/Reino Unido (Luta contra a fraude por subavaliação), C‑213/19, EU:C:2022:167, n.o 584].

95      Em particular, a aplicação das normas do direito da União em matéria de auxílios de Estado, previstas nos artigos 107.o e 108.o TFUE, assenta numa obrigação de cooperação leal entre, por um lado, os órgãos jurisdicionais nacionais e, por outro, a Comissão e os órgãos jurisdicionais da União, no âmbito da qual cada um atua em função da missão que lhe é atribuída pelo Tratado (Acórdão de 4 de março de 2020, Buonotourist/Comissão, C‑586/18 P, EU:C:2020:152, n.o 89).

96      A este respeito, resulta de jurisprudência constante que os órgãos jurisdicionais nacionais podem, em matéria de auxílios de Estado, ser chamados a conhecer de litígios que os obriguem a interpretar e a aplicar o conceito de «auxílio», previsto no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, em especial para determinar se uma medida estatal foi instituída em violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE. Em contrapartida, os órgãos jurisdicionais nacionais não são competentes para decidir sobre a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno. A apreciação da compatibilidade das medidas de auxílio ou de um regime de auxílios com o mercado interno é, com efeito, da competência exclusiva da Comissão, que atua sob a fiscalização do juiz da União (Acórdão de 4 de março de 2020, Buonotourist/Comissão, C‑586/18 P, EU:C:2020:152, n.o 90 e jurisprudência referida).

97      No âmbito da necessária cooperação em que assenta a aplicação dessas disposições, os órgãos jurisdicionais nacionais devem tomar todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do direito da União e abster‑se das que são suscetíveis de pôr em perigo a realização dos objetivos prosseguidos pelo Tratado, como resulta do artigo 4.o, n.o 3, TUE (Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 77). Particularmente, devem abster‑se de tomar decisões que vão contra uma decisão da Comissão, ainda que a mesma tenha natureza provisória (Acórdão de 21 de novembro de 2013, Deutsche Lufthansa, C‑284/12, EU:C:2013:755, n.o 41).

98      Consequentemente, quando a solução do litígio pendente no órgão jurisdicional nacional depende da validade da decisão da Comissão, resulta da obrigação de cooperação leal que, para evitar tomar uma decisão contrária à da Comissão, o órgão jurisdicional nacional deve suspender a instância até ser proferida pelas jurisdições da União uma decisão definitiva sobre o recurso de anulação, salvo se considerar que, nas circunstâncias do caso concreto, se justifica apresentar ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial relativa à validade da decisão da Comissão (Acórdão de 25 de julho de 2018, Georgsmarienhütte e o., C‑135/16, EU:C:2018:582, n.o 24 e jurisprudência referida).

99      Neste contexto, importa também sublinhar que os atos das instituições da União gozam, em princípio, de uma presunção de legalidade enquanto não forem anulados ou revogados [v., nomeadamente, Acórdão de 2 de abril de 2020, Comissão/Polónia, Hungria e República Checa (Mecanismo temporário de recolocação de requerentes de proteção internacional), C‑715/17, C‑718/17 e C‑719/17, EU:C:2020:257, n.o 139].

100    No caso em apreço, há que recordar que, através da decisão final, adotada no âmbito do procedimento previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE na sequência da injunção de suspensão e da decisão de dar início ao procedimento, a Comissão considerou que o pagamento da indemnização concedida pela sentença arbitral constitui um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, que é incompatível com o mercado interno.

101    Para esse efeito, tanto nos considerandos 51 a 54 da decisão de dar início ao procedimento, como nos considerandos 126 a 129 da decisão final, a Comissão entendeu, como resulta do n.o 21 do presente acórdão, que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não obstava à aplicação dos artigos 107.o e 108.o TFUE à execução da sentença arbitral. Em especial, a Comissão considerou, a este respeito, que a aplicação das normas do Tratado FUE em matéria de auxílios de Estado à indemnização concedida por esta sentença não tinha incidência nos direitos e nas obrigações previstos no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, uma vez que, por um lado, o TBI é um Tratado celebrado entre dois Estados‑Membros e, por outro, nenhum Estado terceiro que tenha assinado e ratificado a Convenção CIRDI é parte no TBI que é objeto do processo em causa.

102    Em apoio do recurso de anulação da decisão final que interpuseram no Tribunal Geral ao abrigo do artigo 263.o TFUE, os investidores, através dos seus primeiros fundamentos nos processos T‑624/15 e T‑694/15, bem como com o seu terceiro fundamento no processo T‑704/15, alegaram que este raciocínio da Comissão estava errado. No entanto, o acórdão do Tribunal Geral anulou essa decisão por outro motivo, a saber, de que a Comissão não era competente ratione temporis ao abrigo do artigo 108.o TFUE, sem se pronunciar sobre esses fundamentos.

103    Foi neste contexto que os investidores submeteram à Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) um pedido destinado a obter a execução, no Reino Unido, da sentença arbitral contra a Roménia e, por conseguinte, o pagamento da indemnização concedida por essa sentença, alegando em apoio desse pedido que nem os processos em curso nas instituições da União ao abrigo dos artigos 107.o e 108.o TFUE nem o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE constituíam um obstáculo a essa execução.

104    Daqui resulta, como salientou o advogado‑geral no n.o 79 das suas conclusões, que os processos pendentes nas instituições da União e na Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) tinham por objeto a mesma questão, a saber, em substância, a execução da sentença arbitral na União, diziam respeito à interpretação das mesmas disposições, em especial, os artigos 107.o e 108.o TFUE bem como o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, e tinham por objeto a validade ou a efetividade das decisões adotadas pela Comissão ao abrigo dos artigos 107.o e 108.o TFUE para impedir essa execução.

105    Assim, a própria Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) salienta, no n.o 51 do acórdão em causa, que o acórdão do Tribunal Geral «não afeta a investigação existente da Comissão em matéria de auxílios de Estado», pelo que «os efeitos da decisão de dar início ao procedimento subsistem», e que «não pode ter a certeza» de que o acórdão do Tribunal Geral exclui a possibilidade de a Comissão «reconfigurar a sua investigação no presente processo a fim de evitar os erros que conduziram à anulação da decisão final».

106    Nestas condições, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) sublinha, no n.o 56 do acórdão em causa, tal como já foi indicado no n.o 32 do presente acórdão, que está «preocupada com o risco de decisões contraditórias com o mesmo objeto entre as mesmas partes», uma vez que «lhe é impossível concluir que não existe qualquer risco de conflito» e que, se esse risco se materializasse, isso teria por consequência «entravar de forma significativa a aplicação do direito da União», pelo que «a existência de um recurso pendente no Tribunal de Justiça com hipóteses reais de sucesso é, por si só, suficiente para desencadear a obrigação de cooperação leal».

107    Afigura‑se, assim, que a Supremo Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) estava plenamente consciente do facto de que, se autorizasse a execução da sentença arbitral no Reino Unido, tal decisão teria por efeito contrariar tanto o processo administrativo instaurado na Comissão em aplicação dos artigos 107.o e 108.o TFUE como o processo judicial instaurado nos órgãos jurisdicionais da União ao abrigo do artigo 263.o TFUE.

108    É certo que, no momento em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) decidiu no acórdão em causa, a decisão final tinha sido anulada pelo acórdão do Tribunal Geral.

109    Todavia, essa anulação não tem incidência na obrigação de cooperação leal que incumbia à Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) por força do artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída.

110    Por um lado, como salienta acertadamente a Comissão, a anulação da decisão final não teve por efeito pôr em causa nem a injunção de suspensão nem a decisão de dar início ao procedimento. Com efeito, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a anulação de um ato da União não afeta necessariamente os atos preparatórios, podendo, em princípio, o procedimento destinado a substituir o ato anulado ser retomado no ponto exato em que a ilegalidade ocorreu (Acórdão de 21 de setembro de 2017, Riva Fire/Comissão, C‑89/15 P, EU:C:2017:713, n.o 34 e jurisprudência referida).

111    Ora, no caso em apreço, embora seja certo que o acórdão do Tribunal Geral anulou a decisão final com o fundamento de que a Comissão não era competente ratione temporis ao abrigo do artigo 108.o TFUE, foi após ter sublinhado, no n.o 108 desse acórdão, como já foi salientado no n.o 25 do presente acórdão, que a Comissão não tinha distinguido, no que respeita aos montantes de indemnização a recuperar, entre os relativos ao período anterior à adesão da Roménia à União e os relativos ao período posterior a essa adesão.

112    Daqui resulta que o acórdão do Tribunal Geral não impedia a Comissão, como salientou a própria Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), como já foi indicado no n.o 105 do presente acórdão, no n.o 51 do acórdão em causa, de retomar o procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE, concentrando‑se na indemnização relativa ao período posterior à referida adesão.

113    Desta perspetiva, a decisão de dar início ao procedimento, que afasta a pertinência do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, continuava, portanto, a produzir os seus efeitos, o que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) também admitiu no referido n.o 51.

114    Por outro lado, uma vez que a Comissão tinha interposto, antes da prolação do acórdão em causa, um recurso do acórdão do Tribunal Geral, e mesmo que um recurso, em conformidade com o artigo 278.o TFUE, não tenha efeito suspensivo, ainda não tinha sido proferida pelo juiz da União uma decisão definitiva sobre a validade da decisão final no momento em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) se pronunciou no acórdão em causa.

115    Com efeito, não se podia excluir que o Tribunal de Justiça anulasse, por sua vez, o acórdão do Tribunal Geral e devolvesse a este último o exame dos outros fundamentos de anulação da decisão final, entre os quais os relativos à violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE. Esta é, aliás, a situação ocorrida na sequência do Acórdão de 25 de janeiro de 2022, Comissão/European Food e o. (C‑638/19 P, EU:C:2022:50), proferido após o acórdão em causa e o parecer fundamentado.

116    Resulta assim do exposto que, à data em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) proferiu o acórdão em causa, a questão da incidência do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE na aplicação do direito da União, em especial, dos artigos 107.o e 108.o TFUE, na execução da sentença arbitral era objeto de um exame provisório pela Comissão na sua decisão de dar início ao procedimento, no âmbito da qual, como foi salientado no n.o 101 do presente acórdão, esta tinha excluído a aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, e podia ainda ser apreciada pelo juiz da União no âmbito do processo jurisdicional nos termos do artigo 263.o TFUE, destinado a obter a anulação da decisão final.

117    Nestas condições, há que constatar que, no momento em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) decidiu no acórdão em causa, existia um risco de decisões contraditórias, risco esse que, de resto, se concretizou, uma vez que esse acórdão concluiu pela aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e pela obrigação de proceder, por força da Convenção CIRDI, à execução da sentença arbitral, ao passo que a decisão de dar início ao procedimento tinha concluído de forma totalmente oposta, à semelhança da decisão final, cuja legalidade estava sujeita a recurso na data em que esse acórdão foi proferido.

118    Esta conclusão não é suscetível de ser posta em causa por nenhum dos fundamentos apresentados pela Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) para afastar a aplicação da obrigação de cooperação leal no caso em apreço, conforme indicados no n.o 35 do presente acórdão.

119    Em primeiro lugar, no que respeita ao fundamento segundo o qual as questões relativas à existência e ao alcance, para efeitos da aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, das obrigações resultantes de convenções internacionais anteriores, em que a União não é parte, não estão reservadas aos órgãos jurisdicionais da União, ou até escapam à sua competência, importa, antes de mais, precisar que a obrigação de cooperação leal que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais nos termos do artigo 4.o, n.o 3, TUE não assenta, de modo algum, na premissa de que determinadas questões são da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais da União ou dos órgãos jurisdicionais nacionais, mas pressupõe, pelo contrário, que uma mesma questão possa ser da competência concorrente de cada um deles, pelo que existe um risco de decisões contraditórias.

120    Ora, a questão que se encontrava submetida, no caso em apreço, simultaneamente, por um lado, à Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) e, por outro, à Comissão e aos órgãos jurisdicionais da União, era relativa ao alcance do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, que é uma disposição do direito da União cuja interpretação definitiva é, como já foi indicado no n.o 68 do presente acórdão, da competência exclusiva do Tribunal de Justiça, uma vez que o acórdão proferido por este nos termos do artigo 267.o TFUE vincula os órgãos jurisdicionais nacionais quanto à solução do litígio que lhes foi submetido (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 33).

121    Em especial, importa sublinhar, a este respeito, que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não contém nenhuma remissão para o direito dos Estados‑Membros ou para o direito internacional, pelo que as expressões que esta disposição contém devem ser consideradas conceitos autónomos do direito da União que devem ser interpretados de maneira uniforme no território desta última [v., neste sentido, Acórdão de 22 de junho de 2021, Venezuela/Conselho (Afetação de um Estado terceiro), C‑872/19 P, EU:C:2021:507, n.o 42 e jurisprudência referida].

122    Daqui resulta que os órgãos jurisdicionais da União são competentes para determinar se uma convenção internacional anterior celebrada por Estados‑Membros com Estados terceiros, como a Convenção CIRDI, impõe ao Estado‑Membro em causa, no caso em apreço, o Reino Unido, obrigações cujo respeito um Estado terceiro tem o direito de exigir e se esses direitos e obrigações são afetados pelos Tratados da União, na aceção do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

123    É esse o caso, como reconhece a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) no n.o 99 do acórdão em causa, no âmbito de um recurso de anulação nos termos do artigo 263.o TFUE ou de uma ação por incumprimento nos termos do artigo 258.o TFUE. Com efeito, sob pena de violar o princípio da proteção jurisdicional efetiva, o juiz da União, para se pronunciar sobre o mérito de um argumento relativo a uma violação, consoante o caso, por uma instituição da União ou por um Estado‑Membro, do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE relativamente a uma convenção internacional anterior, deve necessariamente examinar o alcance dessa convenção para decidir a ação que lhe foi submetida (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de abril de 1995, RTE e ITP/Comissão, C‑241/91 P e C‑242/91 P, EU:C:1995:98, n.o 84, e de 15 de setembro de 2011, Comissão/Eslováquia, C‑264/09, EU:C:2011:580, n.os 40 e 42).

124    O mesmo se aplica, contrariamente ao que sugere a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) no mesmo n.o 99 do acórdão em causa, quando o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se no âmbito do processo de reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE.

125    É certo que, nesse contexto, o Tribunal de Justiça declarou que é ao juiz nacional que cabe verificar quais são as obrigações que incumbem, por força de uma convenção internacional anterior, ao Estado‑Membro em causa e traçar os seus limites de forma a determinar em que medida essas obrigações obstam à aplicação do direito da União (v., nomeadamente, Acórdãos de 2 de agosto de 1993, Levy, C‑158/91, EU:C:1993:332, n.o 21, e de 14 de janeiro de 1997, Centro‑Com, C‑124/95, EU:C:1997:8, n.o 58).

126    No entanto, esta jurisprudência, que reflete os papéis distintos atribuídos, em princípio, ao Tribunal de Justiça e aos órgãos jurisdicionais nacionais no âmbito do processo de reenvio prejudicial, não pode ser entendida no sentido de que o Tribunal de Justiça fica, por esse facto, privado de qualquer competência para examinar, ao abrigo do artigo 267.o TFUE, o alcance das disposições de uma convenção internacional, como a Convenção CIRDI, para determinar se esta é suscetível de estar abrangida pelo artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE.

127    Menos ainda quando, como nas circunstâncias do presente processo, a aplicação desta última disposição a essa convenção internacional é suscetível de ter uma incidência determinante no resultado de um recurso direto paralelo submetido aos órgãos jurisdicionais da União nos termos do artigo 263.o TFUE, destinado a obter a anulação de uma decisão da Comissão, como a decisão final, que, à semelhança da decisão de dar início ao procedimento, concluiu que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não era aplicável à obrigação que incumbe ao Reino Unido de executar a sentença arbitral por força da Convenção CIRDI.

128    Com efeito, uma vez que, no âmbito de um recurso de anulação, o juiz da União é chamado a pronunciar‑se sobre a validade de um ato do direito da União, está em conformidade com a repartição de funções entre os juízes nacionais e o juiz da União que só o Tribunal de Justiça seja competente para interpretar a convenção internacional anterior pertinente para determinar se o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE obsta ou não à aplicação do direito da União pelo referido ato, sendo o Tribunal de Justiça exclusivamente competente, segundo jurisprudência constante, para declarar a invalidade de um ato da União [Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um tribunal constitucional), C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 71 e jurisprudência referida].

129    Em segundo lugar, no que respeita ao fundamento segundo o qual as questões suscitadas no caso em apreço nos órgãos jurisdicionais nacionais e nos órgãos jurisdicionais da União não são concordantes no que respeita às disposições em causa da Convenção CIRDI e dos Estados‑Membros envolvidos, há que constatar que, por um lado, tanto o processo conduzido pela Comissão em aplicação dos artigos 107.o e 108.o TFUE e o processo instaurado nos órgãos jurisdicionais da União como, por outro, o processo submetido aos órgãos jurisdicionais do Reino Unido diziam respeito à execução por um Estado‑Membro, por força desta convenção, da sentença arbitral proferida relativamente a um outro Estado‑Membro e colocavam a mesma questão de saber em que medida o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE era suscetível, nesse contexto, de afastar a aplicação do direito da União, uma vez que todos esses Estados‑Membros celebraram a referida convenção antes da sua adesão à União.

130    A este respeito, é irrelevante que disposições diferentes da Convenção CIRDI, a saber o seu artigo 53.o ou o seu artigo 54.o, tenham sido invocadas nos órgãos jurisdicionais nacionais e nas instituições da União ou que esteja em causa um Estado‑Membro diferente, a saber, consoante o caso, o Reino Unido ou a Roménia, que são Estados contratantes da Convenção CIRDI, uma vez que esses processos eram suscetíveis de chegar a decisões contraditórias.

131    Em todo o caso, o acórdão em causa sugere erradamente que o artigo 54.o da Convenção CIRDI não é visado perante os órgãos jurisdicionais da União. Com efeito, resulta dos considerandos 31 e 32 da decisão final que os investidores pediram a execução coerciva da sentença arbitral na Roménia com fundamento neste artigo, embora não só o artigo 53.o desta convenção, mas também o artigo 54.o desta convenção, sejam invocados perante o Tribunal Geral, o que, de resto, a própria Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) salienta no n.o 113 do acórdão em causa.

132    Em terceiro lugar, no que respeita ao fundamento segundo o qual a probabilidade de um órgão jurisdicional da União se pronunciar sobre a aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE às obrigações anteriores à adesão decorrentes da Convenção CIRDI no que respeita à sentença arbitral é muito reduzida, basta observar que, em caso de provimento do recurso interposto pela Comissão do acórdão do Tribunal Geral, o Tribunal de Justiça podia, por força do artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça, decidir definitivamente o litígio ou remeter o processo ao Tribunal Geral para julgamento, o que implica, em ambos os casos, que os órgãos jurisdicionais da União devem examinar os fundamentos invocados em primeira instância relativos à violação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE. No caso em apreço, tendo o Tribunal de Justiça anulado o acórdão do Tribunal Geral e remetido o processo a este último, estes fundamentos estão assim pendentes no Tribunal Geral.

133    Inversamente, em caso de negação de provimento a esse recurso, a Comissão teria sido obrigada a retomar o processo relativo à aplicação dos artigos 107.o e 108.o TFUE ao pagamento da indemnização fixada pela sentença arbitral e, neste contexto, a apreciar novamente a questão da incidência do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE e, por conseguinte, da Convenção CIRDI, nesse processo, sem prejuízo da interposição posterior de um recurso nos termos do artigo 263.o TFUE perante o juiz da União.

134    Daqui resulta que, independentemente do desfecho do recurso interposto pela Comissão do acórdão do Tribunal Geral, não se podia considerar, à data em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) proferiu o acórdão em causa, que a probabilidade de um órgão jurisdicional da União examinar a questão da aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE à execução da sentença arbitral ao abrigo da Convenção CIRDI era ténue.

135    Consequentemente, há que julgar procedente o primeiro fundamento, relativo a uma violação do artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída.

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo a uma violação do artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída

 Argumentos da recorrente

136    A Comissão acusa o Reino Unido de ter violado o artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída, na medida em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) proferiu o acórdão em causa sem ter previamente submetido ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial relativa, por um lado, à validade da injunção de suspensão e da decisão de dar início ao procedimento e, por outro, à interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, que não é um ato «clair» nem um ato «éclairé».

137    No que respeita, em primeiro lugar, à falta de reenvio prejudicial para apreciação da validade, a Comissão alega que o acórdão em causa teve por efeito tornar inoperantes tanto a injunção de suspensão como a decisão de dar início ao procedimento. Com efeito, ao recusar dar efeito a essas decisões, que exigiam, por força do artigo 108.o, n.o 3, último período, TFUE, a suspensão do pagamento do auxílio em causa, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) agiu como se essas decisões fossem inválidas. Ora, só o Tribunal de Justiça é competente para invalidar atos do direito da União.

138    No que respeita, em segundo lugar, à falta de reenvio prejudicial de interpretação, a Comissão sustenta que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) foi chamada a pronunciar‑se, enquanto órgão jurisdicional nacional de última instância, sobre duas questões que deveriam tê‑la levado a considerar que estava obrigada a submeter ao Tribunal de Justiça, a saber, por um lado, a questão da interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE à luz das obrigações previstas por convenções multilaterais em que tanto os Estados‑Membros como os Estados terceiros são partes contratantes e, por outro, a questão da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais e dos órgãos jurisdicionais da União para interpretar esta disposição.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

139    Antes de mais, há que salientar que, por força do artigo 86.o do Acordo de Saída, o Tribunal de Justiça continua a ser competente para decidir, a título prejudicial, sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição. Ora, como já foi referido no n.o 51 do presente acórdão, o acórdão em causa foi proferido durante esse período.

140    Importa recordar que, segundo o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, sempre que uma questão de interpretação seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, o que é o caso da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.

141    No entanto, a força da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.o TFUE pode privar de causa a obrigação prevista no terceiro parágrafo desta disposição e esvaziá‑la, assim, do seu conteúdo, designadamente quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a outra questão suscitada em processo análogo e já decidida a título prejudicial, ou, a fortiori, no âmbito do mesmo processo nacional, ou quando uma jurisprudência assente do Tribunal de Justiça resolve a questão de direito em causa, seja qual for a natureza dos processos que deram lugar a essa jurisprudência, mesmo não havendo uma estrita identidade das questões controvertidas (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 36).

142    Além disso, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso jurisdicional de direito interno pode abster‑se de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão de interpretação do direito da União e resolvê‑la sob a sua responsabilidade quando a interpretação correta do direito da União se imponha com tal evidência que não dê lugar a nenhuma dúvida razoável. Antes de concluir pela existência de uma situação dessa natureza, o órgão jurisdicional nacional que decide em última instância deve estar convencido de que a mesma evidência se imporia igualmente aos outros órgãos jurisdicionais de última instância dos Estados‑Membros e ao Tribunal de Justiça, e isto tendo em conta as características próprias do direito da União, as dificuldades particulares que a sua interpretação apresenta e o risco de divergências jurisprudenciais na União (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.os 39 a 41).

143    Em particular, o Tribunal de Justiça sublinhou, a este respeito que, quando a existência de correntes de jurisprudência divergentes — nos órgãos jurisdicionais dum mesmo Estado‑Membro ou entre órgãos jurisdicionais de Estados‑Membros diferentes — relativas à interpretação de uma disposição do direito da União aplicável ao litígio em causa for levada ao conhecimento do órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, este deve prestar especial atenção na sua apreciação relativa a uma eventual ausência de dúvida razoável quanto à interpretação correta da disposição da União em causa e ter em conta, nomeadamente, o objetivo prosseguido pelo processo prejudicial que é de assegurar a unidade de interpretação do direito da União (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 49).

144    Ora, no caso em apreço, importa constatar, em primeiro lugar, que a questão de saber se a execução, por um Estado‑Membro, de uma sentença arbitral proferida relativamente a outro Estado‑Membro ao abrigo das disposições da Convenção CIRDI, que foi celebrada pela maioria dos Estados‑Membros que nela são partes antes da sua adesão à União e constitui, portanto, para estes uma convenção internacional anterior, na aceção do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, implica que esses Estados‑Membros estão vinculados a «obrigações» perante Estados terceiros que tenham celebrado essa convenção, de modo que estes últimos retiram dela «direitos» correlativos que seriam «prejudicados» pelas disposições dos Tratados, na aceção dessa disposição, é uma questão inédita na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

145    Com efeito, embora, como resulta dos n.os 58 a 65 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça já tenha sido levado a precisar o alcance do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, não é menos verdade que a questão de saber se, no âmbito do regime instituído pela Convenção CIRDI, a execução de uma sentença arbitral por um Estado contratante nessa convenção pode ser exigida não só pelos Estados contratantes envolvidos diretamente no litígio em causa, mas também por todos os outros Estados contratantes da referida convenção é uma questão de uma certa complexidade que ainda não tinha sido abordada pelo Tribunal de Justiça quando a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) decidiu no acórdão em causa.

146    Além disso, há que observar que o alcance da expressão «as disposições dos Tratados não prejudicam», que figura no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, ainda não foi precisado pelo Tribunal de Justiça.

147    Ora, como foi salientado nos n.os 78 e 79 do presente acórdão, o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, uma vez que permite aos Estados‑Membros afastar a aplicação do direito da União e, portanto, derrogar o princípio do primado deste, que é uma das características essenciais do direito da União, é suscetível de exercer uma incidência considerável na ordem jurídica da União, prejudicando a efetividade do direito da União.

148    Em segundo lugar, importa recordar que, como resulta dos n.os 21 e 101 do presente acórdão, na decisão de dar início ao procedimento e na decisão final, a Comissão adotou uma interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE que está em contradição com a que foi adotada pela Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) no acórdão em causa.

149    A interpretação adotada pela Comissão é, por outro lado, posta em causa pelos investidores em apoio do seu recurso no Tribunal Geral destinado a obter a anulação da decisão final, não tendo o acórdão do Tribunal Geral anulado, contudo, essa decisão com o fundamento de que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, afastava a aplicação do direito da União, mas pelo facto de a referida decisão violar o artigo 108.o TFUE. Tendo em conta o recurso interposto desse acórdão no Tribunal de Justiça, a questão da incidência do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE na execução da sentença arbitral continua, portanto, pendente nos órgãos jurisdicionais da União.

150    Em terceiro lugar, importa observar que, como a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) salientou nos n.os 29, 32, 91 e 94 do acórdão em causa, tanto a High Court of England and Wales (Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e País de Gales) como a Court of Appeal (Tribunal de Recurso), chamadas previamente a pronunciar‑se pelos investidores, recusaram, no presente processo, pronunciar‑se sobre a questão da aplicação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, pelo facto de esta questão estar pendente nos órgãos jurisdicionais da União e de existir, portanto, um risco de decisões contraditórias.

151    Em quarto lugar, há que salientar que o Nacka tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância de Nacka, Suécia), por Sentença de 23 de janeiro de 2019, invocada pela Comissão nas suas observações escritas no âmbito do processo na Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), declarou que o artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE não se aplicava à execução da sentença arbitral e, por conseguinte, recusou executar essa sentença na Suécia, com o fundamento de que, do mesmo modo que não poderia, sem violar o artigo 108.o, n.o 3, TFUE e o artigo 4.o, n.o 3, TUE, executar uma decisão judicial nacional a conceder uma indemnização aos investidores, também não pode executar uma sentença arbitral que conceda a estes últimos essa indemnização.

152    Além disso, a questão da execução da sentença arbitral, como resulta do Despacho de 21 de setembro de 2022, Romatsa e o. (C‑333/19, EU:C:2022:749), estava pendente nos órgãos jurisdicionais belgas no momento em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) se pronunciou, o que a Comissão tinha igualmente sublinhado nas suas observações escritas apresentadas a esta última.

153    Resulta, assim, do que precede que existiam, no caso em apreço, elementos suficientes suscetíveis de suscitar dúvidas quanto à interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, os quais, tendo em conta a incidência desta disposição numa das características essenciais do direito da União e o risco de decisões contraditórias na União, deveriam ter levado a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) a considerar que a interpretação da referida disposição não se impunha com uma evidência tal que não desse lugar a nenhuma dúvida razoável.

154    Nestas condições, sem que seja necessário decidir sobre o mérito dos outros argumentos apresentados pela Comissão em apoio do presente fundamento, há que declarar que incumbia à Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), enquanto órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, interrogar o Tribunal de Justiça sobre o fundamento do artigo 267.o TFUE a respeito da interpretação do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, a fim de afastar o risco de uma interpretação errada do direito da União, à qual, como resulta dos n.os 71 a 84 do presente acórdão, esta chegou efetivamente no acórdão em causa [v., por analogia, Acórdão de 4 de outubro de 2018, Comissão/França (Imposto sobre os rendimentos mobiliários retido na fonte), C‑416/17, EU:C:2018:811, n.o 113].

155    Consequentemente, por este único motivo, há que julgar procedente o terceiro fundamento, relativo a uma violação do artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída.

 Quanto ao quarto fundamento, relativo a uma violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída

 Argumentos da recorrente

156    A Comissão censura o acórdão em causa por ter violado o artigo 108.o, n.o 3, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída, ao ordenar à Roménia que violasse as suas obrigações ao abrigo do direito da União decorrentes da injunção de suspensão e da decisão de dar início ao procedimento.

157    Com efeito, pelo levantamento da suspensão da execução da sentença arbitral ordenada pelos órgãos jurisdicionais das instâncias inferiores do Reino Unido que tinham decidido o processo em questão, esta sentença tornava‑se executória. A decisão da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) teve, portanto, por efeito tornar possível o pagamento da indemnização fixada na referida sentença. Este efeito está em contradição direta com a obrigação de suspensão prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE, conforme consagrada na injunção de suspensão e na decisão de dar início ao procedimento.

158    A Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) também ignorou a jurisprudência do Tribunal de Justiça, conforme resulta do Acórdão de 18 de julho de 2007, Lucchini (C‑119/05, EU:C:2007:434, n.os 62 e 63), segundo a qual a proibição de conceder um auxílio de Estado que não tenha sido devidamente autorizado pode ser invocada para impedir a execução de decisões definitivas de órgãos jurisdicionais nacionais que violem essa proibição.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

159    Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, conforme recordada nos n.os 95 e 97 do presente acórdão, uma vez que a aplicação das normas do direito da União em matéria de auxílios de Estado assenta numa obrigação de cooperação leal entre, por um lado, os órgãos jurisdicionais nacionais e, por outro, a Comissão e o juiz da União, esses órgãos jurisdicionais devem abster‑se de tomar decisões contrárias a uma decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado, mesmo que esta decisão tenha caráter provisório.

160    Neste contexto, importa recordar que os Estados‑Membros estão obrigados, por um lado, a notificar à Comissão cada medida destinada a criar ou a modificar um auxílio, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, e, por outro, a não implementar essa medida, nos termos do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, último período, TFUE, enquanto a Comissão não tiver tomado uma decisão final no que respeita à referida medida (Acórdão de 5 de março de 2019, Eesti Pagar, C‑349/17, EU:C:2019:172, n.o 56).

161    Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma medida de auxílio executada sem o cumprimento das obrigações decorrentes desta disposição é ilegal (Acórdão de 19 de março de 2015, OTP Bank, C‑672/13, EU:C:2015:185, n.o 66 e jurisprudência referida).

162    A este respeito, o Tribunal de Justiça esclareceu que a proibição de execução dos projetos de auxílio prevista no artigo 108.o, n.o 3, último período, TFUE, tem efeito direto e que a natureza imediatamente aplicável da proibição de execução contida nesse artigo abrange qualquer auxílio que tenha sido executado sem ser notificado (Acórdão de 5 de março de 2019, Eesti Pagar, C‑349/17, EU:C:2019:172, n.o 88).

163    Consequentemente, como resulta da jurisprudência recordada no n.o 96 do presente acórdão, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais extrair as consequências da violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, em conformidade com o seu direito nacional, quer no que diz respeito à validade dos atos que executam as medidas de auxílio, quer à recuperação dos apoios financeiros concedidos em violação dessa disposição (Acórdão de 19 de março de 2015, OTP Bank, C‑672/13, EU:C:2015:185, n.o 69 e jurisprudência referida).

164    Por conseguinte, os órgãos jurisdicionais nacionais são competentes para impor a recuperação de um auxílio ilegal aos seus beneficiários (v., neste sentido, Acórdão de 5 de março de 2019, Eesti Pagar, C‑349/17, EU:C:2019:172, n.o 89 e jurisprudência referida).

165    Por outro lado, no caso de lhes ser apresentado um pedido destinado a obter o pagamento de um auxílio ilegal, os órgãos jurisdicionais nacionais devem, em princípio, indeferir esse pedido (v., neste sentido, Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 121).

166    No caso em apreço, há que recordar que, na decisão final, a Comissão considerou que o pagamento da indemnização concedida pela sentença arbitral, que não lhe tinha sido notificada, constituía um auxílio de Estado ilegal e incompatível com o mercado interno. Embora esta decisão tenha, é certo, sido anulada pelo acórdão do Tribunal Geral, não deixa de ser verdade que estava pendente no Tribunal de Justiça um recurso desse acórdão no momento em que a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) proferiu o acórdão em causa.

167    Além disso, como já foi salientado nos n.os 110 a 113 do presente acórdão, o acórdão do Tribunal Geral não afetou a legalidade da injunção de suspensão e da decisão de dar início ao procedimento, através das quais a Comissão tinha igualmente considerado que o pagamento da indemnização concedida pela sentença arbitral constituía um auxílio de Estado ilegal e incompatível com o mercado interno e tinha ordenado à Roménia que não executasse essa sentença antes da adoção da sua decisão final.

168    Ora, há que constatar que, ao ordenar a execução da sentença arbitral, o acórdão em causa exige que a Roménia proceda ao pagamento da indemnização atribuída por essa sentença arbitral em violação da obrigação enunciada no artigo 108.o, n.o 3, último período, TFUE.

169    Daqui resulta que a Roménia se encontra, assim, confrontada com decisões contraditórias no que respeita à execução da referida sentença. Por conseguinte, longe de assegurar o respeito desta disposição, em conformidade com a jurisprudência recordada nos n.os 163 a 165 do presente acórdão, o acórdão em causa viola a referida disposição ao ordenar a um outro Estado‑Membro que a infrinja.

170    A este respeito, é irrelevante que o artigo 108.o, n.o 3, último período, TFUE preveja uma obrigação a cargo do «Estado‑Membro em causa», a saber, em princípio, aquele que procede ao pagamento do auxílio, no caso em apreço a Roménia.

171    Com efeito, como acertadamente alega a Comissão, a obrigação de cooperação leal consagrada no artigo 4.o, n.o 3, TUE, subjacente à aplicação das normas do direito da União em matéria de auxílios de Estado, impunha ao Reino Unido, e nomeadamente aos seus órgãos jurisdicionais nacionais, que facilitasse o cumprimento pela Roménia das obrigações que lhe incumbem por força do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, sob pena de privar esta disposição do seu efeito útil (v., neste sentido, Acórdão de 27 de setembro de 1988, Matteucci, 235/87, EU:C:1988:460, n.o 19).

172    Esta conclusão também não pode ser infirmada pelo facto de a sentença arbitral se ter tornado definitiva. Com efeito, a regra da competência exclusiva da Comissão para apreciar a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno impõe‑se na ordem jurídica interna em consequência do princípio do primado do direito da União. Ora, o direito da União opõe‑se a que a aplicação do princípio da força de caso julgado obste a que os órgãos jurisdicionais nacionais extraiam todas as consequências da violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de julho de 2007, Lucchini, C‑119/05, EU:C:2007:434, n.os 62 e 63, e de 4 de março de 2020, Buonotourist/Comissão, C‑586/18 P, EU:C:2020:152, n.os 94 e 95).

173    Quanto ao artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, também não é suscetível de obstar à aplicação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, uma vez que, como resulta dos n.os 71 a 84 do presente acórdão, este artigo 351.o, primeiro parágrafo, não era aplicável ao litígio submetido à Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), pelo que as normas do direito da União em matéria de auxílios de Estado não podiam ser afastadas por efeito desta última disposição.

174    Consequentemente, há que julgar procedente o quarto fundamento, relativo a uma violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, lido em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída.

175    Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que declarar que o Reino Unido, no acórdão em causa, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.o, n.o 3, TUE, bem como do artigo 108.o, n.o 3, do artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, e do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, lidos em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo de Saída.

 Quanto às despesas

176    Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Reino Unido e tendo este sido vencido, há que condená‑lo nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) decide:

1)      No Acórdão da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), de 19 de fevereiro de 2020, proferido no processo Micula contra Roménia, o Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.o, n.o 3, TUE, bem como do artigo 108.o, n.o 3, do artigo 267.o, primeiro e terceiro parágrafos, e do artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, lidos em conjugação com o artigo 127.o, n.o 1, do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, adotado em 17 de outubro de 2019.

2)      O Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte é condenado nas despesas.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.