Language of document : ECLI:EU:T:2022:713


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Sétima Secção alargada)

16 de novembro de 2022 (*)

«Auxílios de Estado — Lei neerlandesa que proíbe a utilização de carvão na produção de eletricidade — Encerramento antecipado de uma central elétrica a carvão — Atribuição de uma indemnização — Decisão de não levantar objeções — Decisão que declara a indemnização compatível com o mercado interno — Não qualificação expressa de “auxílio de Estado” — Recurso de anulação — Ato impugnável — Admissibilidade — Artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento (UE) 2015/1589 — Segurança jurídica»

No processo T‑469/20,

Reino dos Países Baixos, representado por M. Bulterman, M. de Ree e J. Langer, na qualidade de agentes,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por H. van Vliet, B. Stromsky e D. Recchia, na qualidade de agentes,

recorrida,

O TRIBUNAL GERAL (Sétima Secção alargada),

composto, na deliberação, por R. da Silva Passos, presidente, V. Valančius (relator), I. Reine, L. Truchot e M. Sampol Pucurull, juízes,

secretário: L. Ramette, administrador,

vistos os autos, nomeadamente:

–        a exceção de inadmissibilidade ao abrigo do artigo 130.o do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, suscitada pela Comissão por requerimento separado apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 5 de outubro de 2020,

–        o Despacho de 23 de fevereiro de 2021 que apensa a exceção à questão do mérito,

após a audiência de 15 de junho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso baseado no artigo 263.o TFUE, o Reino dos Países Baixos pede a anulação da Decisão C(2020) 2998 final da Comissão, de 12 de maio de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA. 54537 (2020/NN) — Países Baixos, Proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade nos Países Baixos (a seguir «decisão impugnada»).

 Antecedentes do litígio

2        Em 27 de março de 2019, as autoridades neerlandesas notificaram a Comissão Europeia do seu projeto de wet verbod op kolen bij elektriciteitsproductie [Lei relativa à Proibição da Utilização de Carvão na Produção de Eletricidade (a seguir «Lei»)], em conformidade com a Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO 2015, L 241, p. 1).

3        Essa Lei, que tem por objeto reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2) nos Países Baixos e que prevê a possibilidade de conceder a compensação pelo prejuízo causado a uma central que, em relação às outras centrais, seja, de forma desproporcionada, afetada pela proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade, não foi objeto de notificação à Comissão nos termos do artigo 108.o, n.o 3, TFUE.

4        Todavia, na sequência da notificação do projeto de Lei pelo Reino dos Países Baixos em aplicação da Diretiva 2015/1535, a Comissão começou, por sua própria iniciativa, a análise das informações relativas a um alegado auxílio e pediu às autoridades neerlandesas, em 4 de junho, 25 de junho, 2 de agosto e 23 de setembro de 2019, que lhe fornecessem informações suplementares. O Reino dos Países Baixos respondeu aos pedidos da Comissão, respetivamente em 13 de junho, 18 de julho, 30 de agosto, 8 de outubro, 29 de novembro, 1 de dezembro de 2019 e 10 de março de 2020.

5        Nessa correspondência, o Reino dos Países Baixos afirmou reiteradamente que a indemnização prevista na Lei estava estritamente limitada aos prejuízos causados pela proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade e não constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

6        Em 11 de dezembro de 2019, o Reino dos Países Baixos adotou a Lei, a qual entrou em vigor em 20 de dezembro de 2019.

7        Aquando da adoção da Lei, existiam cinco centrais elétricas a carvão nos Países Baixos, a saber, a Amercentrale 9, a Eemshaven A/B, a Engie Maasvlakte, a MPP3 e a Hemweg 8 (a seguir «Hemweg»).

8        Segundo os artigos 3 e 3a da Lei, a proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade é progressivamente aplicada, em função da rendibilidade de cada central, da utilização da biomassa e do rendimento elétrico. A proibição total da utilização de carvão na produção de eletricidade foi fixada, o mais tardar, em 1 de janeiro de 2030.

9        Quatro das cinco centrais elétricas beneficiaram de um período transitório de cinco a dez anos, sendo‑lhes assim dada a possibilidade de recuperar os investimentos realizados, de se adaptar a outra matéria‑prima ou de se preparar para fechar.

10      A Hemweg, que não queimava biomassa, não produzia nenhuma energia renovável e cujo rendimento era o mais baixo das cinco centrais, não beneficiou de um período transitório. Segundo o artigo 3a da Lei, deveria ter deixado de utilizar carvão a partir de 1 de janeiro de 2020. Como esta central não tinha a possibilidade de se adaptar a outra matéria‑prima, devia ser encerrada no final de 2019.

11      O artigo 4 da Lei prevê a possibilidade de conceder uma indemnização a uma central que, relativamente às outras centrais, seja, de forma desproporcionada, afetada pela proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade.

12      O artigo 4 foi adotado, segundo o Reino dos Países Baixos, porque a proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade afeta o direito de propriedade, na aceção do artigo 1.o do Protocolo n.o 1 à Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), e em razão das exigências do princípio da igualdade perante os encargos públicos, sendo o objetivo, nomeadamente, o de criar um justo equilíbrio entre o interesse geral prosseguido pelo Estado e o interesse individual das centrais em causa.

13      Não tendo a Hemweg beneficiado de um período transitório, foi, segundo o Governo neerlandês, afetada de forma muito desproporcionada pela introdução, a muito curto prazo, da proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade. Para assegurar o justo equilíbrio exigido pela CEDH, as autoridades neerlandesas contactaram a Vattenfall NV, gestora da Hemweg, a fim de obter informações que permitissem avaliar a extensão do prejuízo e determinar a indemnização devida a título do encerramento antecipado.

14      Após uma análise efetuada em cooperação com um gabinete de auditoria, o ministro dos Assuntos Económicos e do Clima neerlandês concedeu à Vattenfall, por decisão de 20 de dezembro de 2019, uma indemnização de 52,5 milhões de euros (a seguir «medida em causa»).

15      Em 12 de maio de 2020, a Comissão adotou a decisão impugnada, na qual declarou a medida em causa compatível com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE.

16      Na decisão impugnada, a Comissão considerou, no n.o 40, que a Lei «prejudic[ava] os direitos de propriedade da Vattenfall, visto que lhe imp[unha] a obrigação de encerrar a Hemweg antecipadamente, a fim de reduzir as emissões de CO2, no interesse público», tendo igualmente considerado que um «órgão jurisdicional nacional [neerlandês] concederia, portanto, provavelmente, uma indemnização à [Vattenfall]».

17      Quanto à existência de um auxílio de Estado, a Comissão concluiu, no n.o 48 da decisão impugnada, que, «tendo em conta as informações fornecidas pelas autoridades neerlandesas, não pod[ia] concluir‑se, com suficiente grau de certeza, que nesse processo [havia] direito a indemnização num montante de 52,5 milhões de euros». A Comissão deduziu daí que «não pod[ia] ser excluído que a medida em questão concede um auxílio de Estado à empresa em causa».

18      Todavia, a Comissão entendeu, no n.o 49 da decisão impugnada, que «não [havia], no entanto, que retirar uma conclusão definitiva, no caso em apreço, quanto à questão de saber se a medida confer[ia] ou não uma vantagem ao gestor e constitu[ía], portanto, um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, uma vez que, mesmo na presença de um auxílio de Estado, [ela] considera[va] que a medida [era] compatível com o mercado interno».

 Pedidos das partes

19      O Reino dos Países Baixos conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas.

20      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        julgar o recurso inadmissível ou improcedente;

–        condenar o Reino dos Países Baixos nas despesas.

 Questão de direito

 Quanto à admissibilidade

21      Na sua exceção de inadmissibilidade, a Comissão recorda, antes de mais, que, uma vez que nenhuma regra de direito da União Europeia a obriga a fornecer uma decisão expressa quanto à qualificação da medida, não se pronunciou sobre a questão de saber se a medida em causa constituía um auxílio de Estado.

22      Em seguida, fazendo referência, por um lado, ao Despacho de 28 de janeiro de 2004, Países Baixos/Comissão (C‑164/02, EU:C:2004:54), e, por outro, ao Acórdão de 8 de setembro de 2011, Comissão/Países Baixos (C‑279/08 P, EU:C:2011:551), a Comissão extrai as duas conclusões que se seguem. Em primeiro lugar, quando um Estado‑Membro notifica um regime de auxílios e não contesta que se trata de um auxílio, não pode interpor recurso de anulação da decisão da Comissão que declara esse regime compatível com o mercado interno. Em segundo lugar, se o Estado‑Membro pedir expressamente à Comissão que tome uma decisão que declare a inexistência de auxílio, mas esta concluir, ao invés, pela existência de um regime de auxílios compatível com o mercado interno, o Estado‑Membro pode interpor um recurso de anulação, porque essa decisão produz efeitos jurídicos, uma vez que o regime de auxílios está sujeito ao controlo constante da Comissão.

23      Ora, segundo a Comissão, por um lado, o Reino dos Países Baixos nunca notificou a medida em causa nem pediu à Comissão que adotasse uma decisão que declarasse a inexistência de auxílio. Por outro lado, a decisão impugnada não diz respeito a um regime de auxílios, mas ao pagamento de uma indemnização pontual a uma única empresa, pagamento que, de resto, já fora efetuado.

24      Por último, no que respeita aos efeitos jurídicos da decisão impugnada em relação à Vattenfall, a Comissão sustenta que a medida em causa, se for constitutiva de um auxílio, é um auxílio existente, já que se trata de um auxílio individual por si autorizado, na aceção do artigo 1.o, alínea b), ii), do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o TFUE (JO 2015, L 248, p. 9). A Vattenfall não teria de temer, durante um período de pelo menos dez anos, uma possível recuperação do montante principal da indemnização que lhe foi concedida, acrescida de juros, ao abrigo dos artigos 16.o e 17.o do Regulamento 2015/1589, visto que estes artigos só são aplicáveis em caso de auxílios ilegais, o que a medida em causa não é, uma vez que a Comissão a declarou compatível com o mercado interno.

25      Por conseguinte, da decisão impugnada não resulta nenhum efeito jurídico vinculativo para o Reino dos Países Baixos.

26      O Reino dos Países Baixos contesta os argumentos da Comissão.

27      Segundo jurisprudência constante, podem ser objeto de um recurso de anulação ao abrigo do artigo 263.o TFUE todas as disposições adotadas pelas instituições, independentemente da sua forma, que se destinem a produzir efeitos jurídicos vinculativos (v. Acórdão de 26 de março de 2019, Comissão/Itália, C‑621/16 P, EU:C:2019:251, n.o 44 e jurisprudência referida).

28      A este respeito, o artigo 263.o TFUE estabelece uma nítida distinção entre o direito de recurso de anulação das instituições da União e dos Estados‑Membros, por um lado, e o das pessoas singulares e coletivas, por outro, atribuindo, o segundo parágrafo do artigo, nomeadamente, a qualquer Estado‑Membro, o direito de impugnar, através de um recurso de anulação, a legalidade das decisões da Comissão, sem fazer depender o exercício desse direito da prévia justificação de um interesse em agir. Diversamente das pessoas singulares e coletivas, um Estado‑Membro não tem, pois, de demonstrar que um ato da Comissão por ele impugnado produz efeitos na sua própria esfera jurídica para que o seu recurso seja admissível. Contudo, para que um ato da Comissão possa ser objeto de recurso de anulação, é necessário que se destine à produção de efeitos jurídicos vinculativos (v., neste sentido, Despacho de 27 de novembro de 2001, Portugal/Comissão, C‑208/99, EU:C:2001:638, n.os 22 a 24, e Acórdão de 13 de outubro de 2011, Deutsche Post e Alemanha/Comissão, C‑463/10 P e C‑475/10 P, EU:C:2011:656, n.os 36 a 38), o que importa determinar tendo em atenção a sua essência (v. Acórdão de 22 de junho de 2000, Países Baixos/Comissão, C‑147/96, EU:C:2000:335, n.o 27 e jurisprudência referida).

29      A aptidão de um ato para a produção de efeitos jurídicos e, por conseguinte, para ser objeto de um recurso de anulação com base no artigo 263.o TFUE deve ser apreciada em função de critérios objetivos, como o conteúdo desse ato, tendo em conta, se for caso disso, o contexto da sua adoção e os poderes da instituição autora do ato (Acórdão de 25 de outubro de 2017, Eslováquia/Comissão, C‑593/15 P e C‑594/15 P, EU:C:2017:800, n.o 47).

30      Em matéria de auxílios de Estado, já foi declarado que uma decisão baseada nos n.os 1 e 3 do artigo 107.o TFUE, que, ao qualificar uma medida de auxílio de Estado, a declarava compatível com o mercado interno, deve ser considerada um ato impugnável ao abrigo do artigo 263.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 8 de setembro de 2011, Comissão/Países Baixos, C‑279/08 P, EU:C:2011:551, n.o 42; de 25 de março de 2015, Bélgica/Comissão, T‑538/11, EU:T:2015:188, n.o 53, e de 28 de janeiro de 2016, Áustria/Comissão, T‑427/12, não publicado, EU:T:2016:41, n.o 36).

31      É certo que, no caso em apreço, a decisão impugnada não se pronuncia sobre a existência de um auxílio, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, o que, de resto, a Comissão confirmou na audiência. Com efeito, resulta do n.o 48 da decisão impugnada que a Comissão não excluiu que a medida em causa concede um auxílio de Estado à Vattenfall. No n.o 4 dessa decisão, a Comissão também não indicou expressamente que essa medida devia ser qualificada de auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, tendo concluído que essa medida era compatível com o artigo 107.o, n.o 3, TFUE.

32      Todavia, à semelhança de uma decisão da Comissão que qualifique a medida em causa de auxílio de Estado, declarando‑a simultaneamente compatível com o mercado interno, a decisão impugnada tem por consequência que a medida em causa, que só é considerada compatível com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE, é autorizada pela Comissão e pode, por conseguinte, ser posta em execução em conformidade com o artigo 108.o, n.o 3, do referido Tratado.

33      Assim, com a decisão impugnada, adotada com base no artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, a Comissão decidiu pôr termo ao procedimento de análise preliminar que tinha desencadeado e recusou‑se implicitamente a dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE (a seguir «procedimento formal de investigação»). A Comissão adotou assim uma posição definitiva sobre a compatibilidade da medida em causa com o mercado interno, o que tem efeitos jurídicos vinculativos (v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2010, Athinaïki Techniki/Comissão, C‑362/09 P, EU:C:2010:783, n.os 65 e 66).

34      Consequentemente, o presente recurso deve ser julgado admissível, sem que seja necessário examinar se os efeitos jurídicos vinculativos produzidos pela decisão impugnada são suscetíveis de afetar os interesses do Reino dos Países Baixos.

 Quanto ao mérito

35      Em apoio do seu recurso, o Reino dos Países Baixos invoca cinco fundamentos, sendo o primeiro relativo à violação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, quanto à existência de uma vantagem, o segundo a uma aplicação errada do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, quanto ao ónus da prova, o terceiro a uma violação do dever de fundamentação, o quarto à incompetência da Comissão para declarar uma medida compatível com o mercado interno, ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, sem a ter previamente qualificado de auxílio e o quinto a uma violação do princípio da segurança jurídica.

36      Os três primeiros fundamentos são invocados na hipótese de se dever entender que a decisão impugnada implica necessariamente a qualificação da medida em causa como auxílio. Os outros dois são dirigidos contra a decisão impugnada por não se pronunciar sobre a questão de saber se a medida em causa constitui ou não um auxílio de Estado.

37      Ora, no caso em apreço, conforme constatado no n.o 31, supra, na decisão impugnada, a Comissão não se pronunciou sobre a questão de saber se a medida em causa constituía um auxílio, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Assim, há que examinar, juntamente, o quarto e quinto fundamentos.

38      A este respeito, em primeiro lugar, o Reino dos Países Baixos sustenta que decorre da economia do artigo 107.o TFUE que só os auxílios de Estado podem ser declarados compatíveis com o mercado interno.

39      Esta leitura é corroborada pelo artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, ao abrigo do qual a Comissão pode declarar uma medida compatível com o mercado interno, contanto que esteja abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

40      Ora, a Comissão não demonstrou que a medida em causa, que declara compatível com o mercado interno, constituía um auxílio, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, e estava, por esse motivo, abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição.

41      O Reino dos Países Baixos deduz daí que a Comissão agiu além das suas competências.

42      Em segundo lugar, ao decidir não se pronunciar sobre a questão de saber se a medida em causa devia ser qualificada de auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, a Comissão criou insegurança jurídica. Segundo o Reino dos Países Baixos, as exigências de clareza e de previsibilidade exigidas à luz do princípio da segurança jurídica só estão preenchidas no caso de a Comissão decidir expressamente que a medida em causa constitui um auxílio ou não.

43      A Comissão responde que não resulta do artigo 107.o, n.o 3, TFUE nem do artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 que a Comissão não pode declarar uma medida compatível com o mercado interno sem decidir definitivamente sobre a questão de saber se essa medida constitui ou não um auxílio. Pelo contrário, se a medida não suscitar dúvidas quanto à sua compatibilidade, o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 impõe‑lhe que decida que a medida é compatível com o mercado interno. A abertura do procedimento formal de investigação, na aceção do artigo 108.o, n.o 2, TFUE, com o único objetivo de determinar se uma medida constitui um auxílio de Estado, é contrária ao espírito desta disposição.

44      Esta interpretação é confirmada, segundo a Comissão, pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento 2015/1589, segundo o qual a Comissão só pode dar início ao procedimento formal de investigação se considerar, após análise preliminar, que a medida notificada suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno.

45      Além disso, o artigo 4.o, n.o 2, do Regulamento 2015/1589 não permite à Comissão decidir que a medida em causa não constitui um auxílio se, após a análise preliminar, não tiver efetivamente chegado a tal conclusão.

46      Explica que pode por vezes ser mais eficaz e vantajoso para as partes em causa que a Comissão declare uma medida compatível com o mercado interno sem proceder a um procedimento formal de investigação previsto no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento 2015/1589 para determinar se a medida constitui um auxílio.

47      Assim, nessa situação, ao adotar a decisão de não levantar objeções à medida que não pode ser facilmente qualificada de auxílio, a Comissão aplica o princípio da boa administração.

48      A decisão impugnada cria uma segurança jurídica para o Reino dos Países Baixos e para a Vattenfall, dado que põe termo à incerteza quanto à legalidade do auxílio, à possível abertura do procedimento formal de investigação e à possível recuperação de uma parte da indemnização concedida à Vattenfall a título da medida em causa.

49      A este respeito, em primeiro lugar, importa sublinhar que a Comissão adotou a decisão impugnada com base no artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 e concluiu, no seu dispositivo, que «a [medida em causa era] compatível com o mercado interno, ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), [TFUE]».

50      A Comissão alega que nem o artigo 107.o, n.o 3, TFUE nem o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 lhe impõem a obrigação de declarar definitivamente que uma medida constitui um auxílio, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, antes de poder considerar que essa medida é compatível com o mercado interno.

51      Importa recordar que, nos termos do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, desde que afetem as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.

52      Nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE, em derrogação da proibição estabelecida no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, podem ser considerados compatíveis com o mercado interno os «auxílios» destinados a facilitar o desenvolvimento de certas atividades ou regiões económicas, quando não alterem as condições das trocas comerciais de maneira que contrariem o interesse comum.

53      A utilização do termo «auxílio», no artigo 107.o, n.o 3, TFUE, implica que a compatibilidade de uma medida nacional com o mercado interno só pode ser apreciada depois de essa medida ter sido qualificada de auxílio.

54      Além disso, é jurisprudência constante que, quando a Comissão não puder adquirir a convicção, no termo da fase preliminar de investigação, de que uma medida estatal não constitui um «auxílio» na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE ou de que, se for qualificada como auxílio, é compatível com o Tratado, ou quando este procedimento não lhe permitir ultrapassar todas as dificuldades levantadas pela apreciação da compatibilidade da medida em causa, esta instituição tem o dever de dar início ao procedimento previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE sem dispor, nesta matéria, de uma margem de apreciação (v. Acórdão de 22 de dezembro de 2008, British Aggregates/Comissão, C‑487/06 P, EU:C:2008:757, n.o 113 e jurisprudência referida).

55      Resulta das considerações precedentes que só uma medida abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, ou seja, uma medida qualificada de auxílio de Estado, pode ser considerada pela Comissão compatível com o mercado interno.

56      Por outro lado, esta conclusão é corroborada pelas disposições pertinentes do Regulamento 2015/1589.

57      Com efeito, o artigo 4.o do Regulamento 2015/1589 dispõe:

«1. A Comissão procederá à análise da notificação imediatamente após a sua receção. Sem prejuízo do disposto no artigo 10.o, a Comissão tomará uma decisão nos termos dos n.os 2, 3 ou 4, do presente artigo.

2. Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que a medida notificada não constitui um auxílio, fará constar esse facto por via de decisão.

3. Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que não há dúvidas quanto à compatibilidade da medida notificada com o mercado interno, na medida em que está abrangida pelo artigo 107.o, n.o 1, do TFUE, decidirá que essa medida é compatível com o mercado interno […]

4. Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que a medida notificada suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno, decidirá dar início ao procedimento formal de investigação nos termos do artigo 108.o, n.o 2, do TFUE […]»

58      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 4.o do Regulamento 2015/1589 instaura uma fase preliminar de análise das medidas de auxílio que tem por objeto permitir à Comissão formar uma primeira opinião sobre a medida que examina. No final dessa fase, a Comissão constata que a medida estatal em questão ou não constitui um «auxílio», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, ou entra no âmbito de aplicação desta disposição. Nesta última hipótese, a referida medida pode não suscitar dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno ou, pelo contrário, suscitá‑las. Caso a Comissão constate, após a análise preliminar, que a medida notificada, uma vez que entra no âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, não suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno, toma uma decisão de não levantar objeções de acordo com o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 (v., neste sentido, Acórdão de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex, C‑83/09 P, EU:C:2011:341, n.os 43 e 44).

59      Daqui resulta que o artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, aplicável ao caso em apreço por força do artigo 15.o, n.o 1, do referido regulamento, relativo às decisões da Comissão em matéria de auxílios ilegais, fixa, portanto, uma lista exaustiva das decisões que a Comissão pode adotar no termo da análise preliminar da medida nacional em causa, entre as quais não figura a possibilidade de adotar uma decisão que declara uma medida nacional compatível com o mercado interno sem que a Comissão se tenha previamente pronunciado sobre a qualificação dessa medida como auxílio de Estado. Especialmente, o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 prevê que a Comissão pode declarar uma medida compatível com o mercado interno, «na medida em que est[eja] abrangida pelo artigo 107.o, n.o 1, TFUE».

60      Ora, no caso em apreço, é pacífico que a Comissão tinha dúvidas quanto à qualificação da medida em causa como auxílio, o que confirmou na audiência, pelo que, após e apesar de um grande número de trocas de correspondência entre o Reino dos Países Baixos e os seus serviços durante o procedimento administrativo, decidiu não se pronunciar sobre essa questão na decisão impugnada, concluindo que a medida em causa era compatível com o mercado interno.

61      Resulta do exposto que a Comissão adotou uma decisão contrária tanto ao artigo 107.o, n.o 3, TFUE como ao artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589.

62      Por conseguinte, ao considerar, na decisão impugnada, que a medida em causa era compatível com o mercado interno, sem se pronunciar previamente sobre a questão de saber se tal medida constituía um auxílio, a Comissão excedeu as suas competências.

63      Em segundo lugar, cumpre recordar que o princípio da segurança jurídica, que faz parte da ordem jurídica da União, visa garantir a previsibilidade das situações e das relações jurídicas abrangidas pelo direito da União e exige que qualquer ato da Administração que produza efeitos jurídicos seja claro e preciso, a fim de que os interessados possam conhecer sem ambiguidade os seus direitos e obrigações e agir em conformidade (v. Acórdão de 28 de abril de 2021, Correia/CESE, T‑843/19, EU:T:2021:221, n.o 47 e jurisprudência referida; v. igualmente, neste sentido, Acórdão de 30 de novembro de 2009, França e France Télécom/Comissão, T‑427/04 e T‑17/05, EU:T:2009:474, n.o 300 e jurisprudência referida).

64      No caso em apreço, é verdade que a Comissão declarou, na decisão impugnada, que a medida em causa era compatível com o mercado interno. Todavia, não se procedeu à qualificação dessa medida, quando resulta do n.o 63, supra, que se trata de um pressuposto necessário ao exame da compatibilidade da referida medida com o mercado interno.

65      Além disso, em primeiro lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, numa situação em que a Comissão, a respeito de um auxílio executado em violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, adotou uma decisão final que declara a compatibilidade desse auxílio com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.o TFUE, o juiz nacional está obrigado, em aplicação do direito da União, a ordenar ao beneficiário do auxílio o pagamento de juros relativos ao período de ilegalidade desse auxílio (v., neste sentido, Acórdão de 12 de fevereiro de 2008, CELF e ministre de la Culture et de la Communication, C‑199/06, EU:C:2008:79, n.os 52 e 55). Assim, na hipótese de os concorrentes da Vattenfall intentarem um processo nos órgãos jurisdicionais nacionais sobre a legalidade da medida em causa e se estes a qualificarem de auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, daí resultaria uma violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE devido à falta de notificação da medida em causa à Comissão e incumbiria ao Reino dos Países Baixos exigir da Vattenfall juros relativos ao período de ilegalidade.

66      Em segundo lugar, a falta de qualificação da medida em causa deixou o Reino dos Países Baixos numa situação incerta quanto à concessão de um novo auxílio ao abrigo das regras relativas à cumulação de auxílios, em aplicação das Orientações relativas a auxílios estatais à proteção ambiental e à energia 2014‑2020 (2014/C 200/01) (JO 2014, C 200, p. 1, a seguir «Orientações»), e do Regulamento (UE) n.o 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o e 108.o [TFUE] (JO 2014, L 187, p. 1).

67      Com efeito, nos termos do artigo 8.o do referido regulamento, intitulado «Cumulação», deve ser tido em conta o montante total dos auxílios estatais à atividade ou ao projeto ou à empresa objeto de auxílio.

68      O ponto 81 das Orientações prevê que os auxílios podem ser concedidos simultaneamente ao abrigo de vários regimes de auxílio ou cumulados com auxílios ad hoc, desde que o montante total do auxílio estatal não exceda os limites fixados pelos tetos de auxílio previstos nas referidas Orientações.

69      Assim, o Reino dos Países Baixos poderia ser afetado pelas regras de cumulação em vigor, na hipótese de pretender conceder um auxílio à Vattenfall para reutilizar o sítio Hemweg.

70      Não se pode, portanto, concluir que a decisão impugnada permitia ao Reino dos Países Baixos, destinatário da decisão impugnada, conhecer com exatidão os seus direitos e obrigações e agir em conformidade.

71      Nestas circunstâncias, há que declarar que a Comissão, ao decidir não se pronunciar sobre a questão de saber se a medida em causa devia ser qualificada de auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, violou o princípio da segurança jurídica.

72      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que julgar procedentes o quarto e quinto fundamentos e, por conseguinte, anular a decisão impugnada, sem que seja necessário decidir sobre os outros fundamentos invocados pelo Reino dos Países Baixos.

 Quanto às despesas

73      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com o pedido do Reino dos Países Baixos.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Sétima Secção alargada)

decide:

1)      A Decisão C(2020) 2998 final da Comissão, de 12 de maio de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA. 54537 (2020/NN) — Países Baixos, Proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade nos Países Baixos, é anulada.

2)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas.

Da Silva Passos

Valančius

Reine

Truchot

 

      Sampol Pucurull

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 16 de novembro de 2022.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.