Language of document : ECLI:EU:T:2022:725

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Nona Secção alargada)

23 de novembro de 2022 (*)

«Ambiente e proteção da saúde humana — Regulamento (CE) n.o 1272/2008 — Classificação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas — Regulamento Delegado (UE) 2020/217 — Classificação do dióxido de titânio em pó contendo 1 % ou mais de partículas com diâmetro igual ou inferior a 10 μm — Critérios de classificação de uma substância como cancerígena — Fiabilidade e aceitabilidade dos estudos — Substância que tenha propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro — Cálculo da sobrecarga pulmonar em partículas — Erros manifestos de apreciação»

Nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20 e no processo T‑283/20,

CWS Powder Coatings GmbH, com sede em Düren (Alemanha), representada por R. van der Hout, C. Wagner e V. Lemonnier, advogados,

recorrente no processo T‑279/20,

apoiada por:

Billions Europe Ltd, com sede em Stockton‑on‑Tees (Reino Unido), e os outros intervenientes cujos nomes figuram anexos (1), representados por J.‑P. Montfort, T. Delille e P. Chopova‑Leprest, advogados,

por

Ettengruber GmbH Abbruch und Tiefbau, com sede em Dachau (Alemanha),

Ettengruber GmbH Recycling und Verwertung, com sede em Dachau,

representadas por R. van der Hout, C. Wagner e V. Lemonnier, advogados,

e por

TIGER Coatings GmbH & Co. KG, com sede em Wels (Áustria), representada por R. van der Hout, C. Wagner e V. Lemonnier, advogados,

intervenientes no processo T‑279/20,

Billions Europe Ltd, com sede em Stockton‑on‑Tees, e os outros recorrentes cujos nomes figuram anexos (2), representados por J.‑P. Montfort, T. Delille e P. Chopova‑Leprest, advogados,

recorrentes no processo T‑283/20,

apoiadas por:

Conselho Europeu da Indústria Química — European Chemical Industry Council (Cefic), com sede em Bruxelas (Bélgica), representado por D. Abrahams, Z. Romata e H. Widemann, advogados,

por

Confederação Europeia das Associações de Fabricantes de Tintas, Tintas de Impressão e Tintas para Artistas (CEPE), com sede em Bruxelas,

British Coatings Federation Ltd (BCF), com sede em Coventry (Reino Unido),

American Coatings Association, Inc. (ACA), com sede em Washington, DC (Estados Unidos),

representadas por D. Waelbroeck e I. Antypas, advogados,

e por

Mytilineos SA, com sede em Maroussi (Grécia),

DelfiDistomon Anonymos Metalleftiki Etaireia, com sede em Maroussi,

representadas por J.‑P. Montfort, T. Delille e P. Chopova‑Leprest, advogados,

intervenientes no processo T‑283/20,

Brillux GmbH & Co. KG, com sede em Münster (Alemanha),

Daw SE, com sede em Ober‑Ramstadt (Alemanha),

representadas por van der Hout, Wagner e Lemonnier, advogados,

recorrentes no processo T‑288/20,

apoiadas por:

Billions Europe Ltd, com sede em Stockton‑on‑Tees, e os outros intervenientes cujos nomes figuram anexos (3), representados por J.‑P. Montfort, T. Delille e P. Chopova‑Leprest, advogados,

por

Sto SE & Co. KGaA, com sede em Stühlingen (Alemanha), representada por R. van der Hout, C. Wagner e V. Lemonnier, advogados,

e por

Rembrandtin Coatings GmbH, com sede em Viena (Áustria), representada por R. van der Hout, C. Wagner e V. Lemonnier, advogados,

intervenientes no processo T‑288/20,

contra

Comissão Europeia, representada, nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, por S. Delaude, R. Lindenthal e M. Noll‑Ehlers e, no processo T‑283/20, por A. Dawes, S. Delaude e R. Lindenthal, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por:

Reino da Dinamarca, representado por M. Søndahl Wolff, na qualidade de agente,

por

República Francesa, representada, nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, por T. Stéhelin, W. Zemamta, G. Bain e J.‑L. Carré e, no processo T‑283/20, por E. de Moustier e M. Zemamta, na qualidade de agentes,

por

Reino dos Países Baixos, representado, no processo T‑279/20, por M. Bulterman e C. Schillemans, no processo T‑283/20, por M. Bulterman e J. Langer e, no processo T‑288/20, por M. Bulterman, J. Langer e C. Schillemans, na qualidade de agentes,

por

Reino da Suécia, representado, nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, por C. Meyer‑Seitz e, no processo T‑283/20, por O. Simonsson, C. Meyer‑Seitz, A. Runeskjöld, M. Salborn Hodgson, H. Shev, H. Eklinder e R. Shahsavan Eriksson, na qualidade de agentes,

por

Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA), representada por A. Hautamäki e J.‑P. Trnka, na qualidade de agentes,

intervenientes nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20 e no processo T‑283/20,

por

República da Eslovénia, representada por V. Klemenc, na qualidade de agente,

interveniente no processo T‑283/20,

por

Parlamento Europeu, representado por C. Ionescu Dima, W. Kuzmienko e B. Schäfer, na qualidade de agentes,

e por

Conselho da União Europeia, representado por A.‑L. Meyer e T. Haas, na qualidade de agentes,

intervenientes nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20,

O TRIBUNAL GERAL (Nona Secção alargada),

composto, na deliberação, por: M. J. Costeira (relatora), presidente, M. Kancheva, T. Perišin, P. Zilgalvis e I. Dimitrakopoulos, juízes,

secretário: S. Jund e I. Kurme, administradoras,

vistos os autos, nomeadamente, o Despacho de 11 de março de 2022, que apensou os processos T‑279/20 e T‑288/20 para efeitos da fase oral e da decisão que ponha termo à instância,

na sequência das audiências de 12 de maio de 2022, nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, e de 18 de maio de 2022, no processo T‑283/20,

profere o presente

Acórdão

1        Com os seus recursos baseados no artigo 263.o TFUE, as recorrentes, CWS Powder Coatings GmbH (a seguir «primeira recorrente»), Billions Europe Ltd e os outros recorrentes cujos nomes figuram anexos (a seguir «segundas recorrentes») e Brillux GmbH & Co. KG e Daw SE (a seguir «terceiras recorrentes»), pedem a anulação do Regulamento Delegado (UE) 2020/217 da Comissão, de 4 de outubro de 2019, que altera, para efeitos de adaptação ao progresso técnico e científico, o Regulamento (CE) n.o 1272/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à classificação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas e que retifica o referido regulamento (JO 2020 L 44, p. 1, a seguir «regulamento impugnado»), no que respeita à classificação e rotulagem harmonizadas do dióxido de titânio em pó contendo 1 % ou mais de partículas com diâmetro igual ou inferior a 10 μm.

I.      Antecedentes do litígio

2        As recorrentes são fabricantes, importadoras, utilizadoras a jusante e fornecedoras de dióxido de titânio.

3        O dióxido de titânio é uma substância química inorgânica, cuja fórmula molecular é TiO2, que pode ser encontrada na natureza ou produzida industrialmente e que é utilizada, nomeadamente, na forma de um pigmento branco, pelas suas propriedades de coloração e cobertura, em diversos produtos, como tintas, materiais de revestimento, vernizes, plásticos, papel laminado, cosméticos, medicamentos ou brinquedos.

4        Em maio de 2016, a agence nationale de sécurité sanitaire de l’alimentation, de l’environnement et du travail [Agência Nacional de Segurança Sanitária da Alimentação, do Ambiente e do Trabalho (ANSES, França; a seguir «autoridade francesa competente»)] submeteu à Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA), em conformidade com o artigo 37.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1272/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativo à classificação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas, que altera e revoga as Diretivas 67/548/CEE e 1999/45/CE, e altera o Regulamento (CE) n.o 1907/2006 (JO 2008, L 353, p. 1), uma proposta de classificação e rotulagem harmonizadas do dióxido de titânio como substância cancerígena da categoria 1B por inalação (Carc. 1B, H350i) (a seguir «proposta de classificação»).

5        Em 31 de maio de 2016, a proposta apresentada à ECHA pela autoridade francesa competente foi divulgada, em conformidade com o artigo 37.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1272/2008. Várias partes interessadas apresentaram as observações no prazo fixado.

6        Em 14 de setembro de 2017, em conformidade com o artigo 37.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1272/2008, o Comité de Avaliação dos Riscos da ECHA (a seguir «RAC») emitiu um parecer relativo ao dióxido de titânio (a seguir «parecer do RAC»). O parecer do RAC, adotado por consenso, concluiu que a classificação do dióxido de titânio como substância cancerígena da categoria 2, com a menção de perigo «H351 (inalação)», era justificada.

7        Com base no parecer do RAC, a Comissão Europeia elaborou um projeto de regulamento relativo à classificação e rotulagem harmonizadas, nomeadamente, do dióxido de titânio, que foi submetido a consulta pública entre 11 de janeiro e 8 de fevereiro de 2019.

8        Em 18 de fevereiro de 2020, com base no parecer do RAC, a Comissão adotou o regulamento impugnado, pelo qual procedeu, nomeadamente, à classificação e rotulagem harmonizadas do dióxido de titânio (considerandos 2 e 5 do regulamento impugnado).

9        A este respeito, em primeiro lugar, o regulamento impugnado inseriu, no anexo VI, parte 3, quadro 3, do Regulamento n.o 1272/2008, que contém a lista das classificações e rotulagens harmonizadas, uma nova linha com a identificação química «dióxido de titânio (em pó, contendo 1 % ou mais de partículas com diâmetro aerodinâmico ≤ 10 μm)», a classe de perigo «carcinogenicidade», a categoria de perigo «2», o código de pictograma de perigo «GHS 08 Wng» e o código da advertência de perigo «H351 (inalação)» [artigo 1.o, ponto 3, e anexo III, ponto 2, alínea c), do regulamento impugnado].

10      Além disso, o regulamento impugnado acrescentou, no anexo VI, parte 1, ponto 1.1.3.1, do Regulamento n.o 1272/2008, a seguinte nota [artigo 1.o, ponto 3, e anexo III, ponto 1, alínea a), do regulamento impugnado]:

«Nota W:

Constatou‑se que o perigo cancerígeno desta substância se manifesta quando são inaladas poeiras inaláveis em quantidades que danificam consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas nos pulmões.

A presente nota visa descrever a toxicidade específica da substância, não constituindo um critério de classificação nos termos do presente regulamento» (a seguir «nota W»).

11      Em segundo lugar, o regulamento impugnado acrescentou, no anexo VI, parte 1, ponto 1.1.3.2, do Regulamento n.o 1272/2008, a seguinte nota [artigo 1.o, ponto 3, e anexo III, ponto 1, alínea b), do regulamento impugnado]:

«Nota 10:

A classificação como cancerígeno por inalação aplica‑se unicamente a misturas em pó contendo 1 % ou mais de dióxido de titânio em forma de partículas, ou incorporado em partículas, com diâmetro aerodinâmico ≤ 10 μm.»

12      Em terceiro lugar, o regulamento impugnado inseriu, no anexo II, parte 2, do Regulamento n.o 1272/2008, um novo ponto 2.12 relativo às advertências EUH211 e EUH212 que devem figurar no rótulo das embalagens de misturas, respetivamente, líquidas e sólidas, que contenham dióxido de titânio. Este ponto 2.12 tem a seguinte redação (artigo 1.o, n.o 1, e anexo I do regulamento impugnado):

«2:12. Misturas que contenham dióxido de titânio

No rótulo das embalagens de misturas líquidas que contenham 1 % ou mais de partículas de dióxido de titânio com um diâmetro aerodinâmico igual ou inferior a 10 μm deve figurar a seguinte advertência:

EUH211: “Atenção! Podem formar‑se gotículas inaláveis perigosas ao pulverizar. Não respirar a pulverização ou névoas.”

No rótulo das embalagens de misturas sólidas que contenham 1 % ou mais de dióxido de titânio deve figurar a seguinte advertência:

EUH212: “Atenção! Podem formar‑se poeiras inaláveis perigosas ao pulverizar. Não respirar as poeiras.”

No rótulo das embalagens de misturas líquidas e sólidas não destinadas ao público em geral e não classificadas como perigosas em que figure a menção EUH211 ou EUH212 deve figurar igualmente a menção EUH210.»

13      Em quarto lugar, o regulamento impugnado aditou, ao anexo III, parte 3, do Regulamento n.o 1272/2008, relativo aos «[elementos de rotulagem/informações suplementares sobre determinadas misturas]», as referidas advertências de perigo EUH211 e EUH212 em todas as línguas oficiais da União Europeia (artigo 1.o, ponto 2, e anexo II do regulamento impugnado).

14      Por outro lado, o regulamento impugnado introduziu, atualizou ou suprimiu a classificação e rotulagem harmonizadas de determinas outras substâncias, com base noutros pareceres adotados pelo RAC (considerandos 3, 4, 6 e 8 e artigo 1.o do regulamento impugnado).

15      Por força do artigo 3.o do regulamento impugnado, as alterações ao Regulamento n.o 1272/2008, relativas à classificação e rotulagem harmonizadas do dióxido de titânio em pó contendo 1 % ou mais de partículas com diâmetro igual ou inferior a 10 μm (a seguir «classificação e rotulagem controvertidas»), são aplicáveis a partir de 1 de outubro de 2021.

II.    Pedidos das partes

16      A primeira recorrente, apoiada pelas segundas recorrentes, Ettengruber GmbH Abbruch und Tiefbau, Ettengruber GmbH Recycling und Verwertung e TIGER Coatings GmbH Co. KG, as segundas recorrentes, apoiadas pelo Conselho Europeu da Indústria Química — European Chemical Industry Council (Cefic), pela Confederação Europeia das Associações de Fabricantes de Tintas, Tintas de Impressão e Tintas para Artistas (CEPE), pela British Coatings Federation Ltd (BCF), pela American Coatings Association, Inc. (ACA), pela Mytilineos SA e pela Delfi‑Distomon Anonymos Metalleftiki Etaireia, e as terceiras recorrentes, apoiadas pelas segundas recorrentes, pela Sto SE & Co KGaA e pela Rembrandtin Coatings GmbH, concluem pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular o regulamento impugnado no que respeita à classificação e rotulagem controvertidas;

–        condenar a recorrida nas despesas.

17      A Comissão, apoiada pelo Reino da Dinamarca, pela República Francesa, pelo Reino dos Países Baixos, pelo Reino da Suécia, pela República da Eslovénia e pela ECHA, conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento aos recursos;

–        condenar as recorrentes nas despesas.

18      O Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia concluem pedindo, em apoio da Comissão, que a exceção de ilegalidade suscitada no âmbito do nono fundamento no processo T‑279/20 e no processo T‑288/20 seja julgada improcedente.

III. Questão de direito

19      Ouvidas as partes a este respeito e não tendo estas suscitado objeções, o Tribunal Geral decidiu apensar o processo T‑283/20 aos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20 para efeitos da decisão que ponha termo à instância, em conformidade com o artigo 68.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral.

20      Em apoio dos seus recursos, a primeira e as terceiras recorrentes invocam, respetivamente, no processo T‑279/20 e no processo T‑288/20, os mesmos nove fundamentos, que se sobrepõem em grande parte aos seis fundamentos invocados pelas segundas recorrentes no processo T‑283/20. Em substância, os fundamentos podem ser apresentados do seguinte modo.

21      Em primeiro lugar, no âmbito do segundo fundamento, da primeira e quinta partes do sétimo fundamento e do oitavo fundamento nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20 e dos argumentos suscitados pelas segundas recorrentes no âmbito dos seus articulados de intervenção nesses processos, bem como do primeiro fundamento no processo T‑283/20, as recorrentes e os intervenientes em seu apoio alegam, em substância, que a classificação e rotulagem controvertidas estão viciadas por erros manifestos de apreciação e não respeitam os critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação de uma substância como cancerígena.

22      Em segundo lugar, no âmbito do terceiro e quarto fundamentos, da sétima e oitava partes do sétimo fundamento e do oitavo fundamento nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, bem como do segundo fundamento no processo T‑283/20, as recorrentes alegam, em substância, que a imposição das advertências EUH211 e EUH212 no rótulo das misturas líquidas e sólidas que contenham dióxido de titânio viola o artigo 25.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1272/2008 e o princípio da segurança jurídica.

23      Em terceiro lugar, no âmbito do sexto fundamento e da sexta parte do sétimo fundamento nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, bem como do terceiro fundamento no processo T‑283/20 as recorrentes sustentam que a classificação e rotulagem controvertidas violam o princípio da proporcionalidade.

24      Em quarto lugar, no âmbito do quinto fundamento e da segunda parte do sétimo fundamento nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, bem como do sexto fundamento no processo T‑283/20, as recorrentes invocam a violação do Acordo interinstitucional de 13 de abril de 2016 entre o Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia sobre legislar melhor (JO 2016, L 123, p. 1) e a falta de uma análise de impacto antes da adoção do regulamento impugnado.

25      Em quinto lugar, no âmbito da terceira parte do sétimo fundamento nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20 e do quarto fundamento no processo T‑283/20, as recorrentes sustentam que a Comissão exerceu erradamente o seu poder de apreciação e violou o dever de diligência. Estes fundamentos sobrepõem‑se na maior parte aos referidos no n.o 21, supra, visto que são relativos a erros manifestos de apreciação.

26      Em sexto lugar, no âmbito do primeiro fundamento nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, a primeira recorrente e as terceiras recorrentes invocam a violação do artigo 53.o‑C do Regulamento n.o 1272/2008, no âmbito da quarta parte do sétimo fundamento, invocam a violação do princípio da igualdade de tratamento e, no âmbito do nono fundamento, suscitam, a título subsidiário e por via de exceção, a inaplicabilidade do Regulamento n.o 1272/2008, em razão da violação do artigo 290.o TFUE.

27      Em sétimo lugar, no âmbito do quinto fundamento no processo T‑283/20, as segundas recorrentes invocam a violação do artigo 37.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1272/2008, do princípio da boa administração e do direito de ser ouvido.

A.      Considerações preliminares sobre a classificação e a rotulagem harmonizadas de substâncias na classe de perigo de carcinogenicidade.

28      A título preliminar, importa observar que, em conformidade com o seu considerando 1 e com o seu artigo 1.o, n.o 1, o Regulamento n.o 1272/2008 tem por objetivo garantir um nível elevado de proteção da saúde humana e do ambiente, bem como a livre circulação das substâncias, das misturas e de certos artigos específicos no mercado da União. Como resulta nomeadamente dos seus considerandos 5 a 8, 10 e 27, o objetivo deste regulamento é determinar as propriedades intrínsecas das substâncias que devem conduzir à sua classificação como produtos perigosos, a fim de que os perigos apresentados por essas substâncias (e misturas que contenham essas substâncias) possam ser corretamente identificados e comunicados. Para este efeito, em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 1, alínea a), o referido regulamento visa nomeadamente a «harmonização dos critérios de classificação de substâncias e misturas e das regras em matéria de rotulagem e embalagem de substâncias e misturas perigosas».

29      Além disso, resulta dos considerandos 4 a 8 do Regulamento n.o 1272/2008 que o legislador da União pretendeu contribuir para a harmonização global dos critérios relativos à classificação e rotulagem, não só ao nível da Organização das Nações Unidas mas também através da inclusão, no direito da União, dos critérios do Sistema Mundial Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos (a seguir «GHS») internacionalmente acordados. Para este efeito, o anexo I deste regulamento reproduz de forma idêntica a quase totalidade das disposições do GHS (Acórdão de 22 de novembro de 2017, Comissão/Bilbaína de Alquitranes e o., C‑691/15 P, EU:C:2017:882, n.o 42).

30      No que respeita à classificação de substâncias e misturas perigosas, importa recordar que, segundo o artigo 3.o do Regulamento n.o 1272/2008, as substâncias ou misturas que preencham os critérios relativos aos perigos físicos, para a saúde ou para o ambiente, estabelecidos no anexo I, são perigosas e devem ser classificadas nas respetivas classes de perigo definidas nesse anexo.

31      A este respeito, o Regulamento n.o 1272/2008 prevê, no seu título V, um procedimento de harmonização, em toda a União, da classificação e rotulagem de substâncias, que tem por objeto as substâncias que preencham os critérios fixados no anexo I para os perigos indicados no artigo 36.o, n.o 1, deste regulamento, incluindo para o perigo de carcinogenicidade. Este regulamento prevê ainda, nomeadamente nos seus artigos 5.o, 9.o e 13.o, uma obrigação de autoclassificação imposta aos fabricantes, importadores e utilizadores a jusante, que incide sobre as substâncias e as misturas.

32      O procedimento de harmonização da classificação e rotulagem de substâncias é, antes de mais, iniciado pelos fabricantes, importadores e utilizadores a jusante de uma substância ou pela autoridade competente de um Estado‑Membro, mediante a apresentação de uma proposta à ECHA, em conformidade com o artigo 37.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1272/2008. Em seguida, o RAC adota um parecer sobre a proposta apresentada, facultando às partes interessadas a oportunidade de apresentar observações, e a ECHA transmite esse parecer e as eventuais observações à Comissão, em conformidade com o mesmo artigo 37.o, n.o 4. Por último, se a Comissão considerar que a harmonização da classificação e rotulagem da substância em causa é adequada, adota um ato delegado, em conformidade com o artigo 37.o, n.o 5, e o artigo 53.o‑A deste regulamento, a fim de alterar o anexo VI através da inclusão dessa substância e dos elementos de classificação e rotulagem pertinentes no anexo VI, parte 3, quadro 3, do mesmo regulamento.

33      A referida classificação e rotulagem harmonizadas de substâncias, em aplicação do título V do Regulamento n.o 1272/2008, visam determinar as propriedades intrínsecas das substâncias que devem conduzir à sua classificação como produtos perigosos, a fim de que os perigos dessas substâncias, bem como das misturas que contenham tais substâncias, possam ser corretamente identificados e comunicados.

34      Quanto ao perigo de carcinogenicidade, o artigo 36.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1272/2008 prevê que, se uma substância preencher os critérios fixados no anexo I deste regulamento para o perigo de carcinogenicidade, está em princípio sujeita a classificação e rotulagem harmonizadas. Estes critérios estão definidos no anexo I, parte 3, secção 3.6, do Regulamento n.o 1272/2008.

35      Particularmente, o ponto 3.6.1.1 da parte 3 desse anexo, na sua versão inicial, em vigor à data da adoção do regulamento impugnado, previa o seguinte:

«3.6.1.1. Os cancerígenos são substâncias ou misturas de substâncias que induzem cancro ou aumentam a sua incidência. Considera‑se também que as substâncias que induziram a formação de tumores benignos e malignos em estudos experimentais corretamente realizados em animais são potenciais cancerígenos para o ser humano, a menos que existam fortes provas de que o mecanismo de formação dos tumores não é relevante para o ser humano.»

36      O mesmo ponto 3.6.1.1, na versão resultante do Regulamento (UE) 2019/521 da Comissão, de 27 de março de 2019, que altera, para efeitos de adaptação ao progresso técnico e científico, o Regulamento n.o 1272/2008 (JO 2019, L 86, p. 1), prevê o seguinte:

«3.6.1.1. A carcinogenicidade é a indução de cancro, ou ao aumento da incidência de cancro, que surge após exposição a uma substância ou mistura. Considera‑se também que as substâncias e misturas que induziram a formação de tumores benignos e malignos em estudos experimentais corretamente realizados em animais são potenciais cancerígenos para o ser humano, a menos que existam fortes provas de que o mecanismo de formação dos tumores não é relevante para o ser humano.

A classificação de uma substância ou mistura como apresentando um perigo carcinogénico tem por base as suas propriedades intrínsecas e não fornece informações sobre o nível de risco de cancro humano associado à utilização da substância ou mistura.»

37      Além disso, o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008 prevê o seguinte:

«3.6.2.2.1. A classificação como cancerígeno faz‑se com base em provas obtidas com estudos fiáveis e aceitáveis, destinando‑se a ser usada para substâncias que tenham propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro. As avaliações basear‑se‑ão em todos os dados existentes, estudos publicados e revistos por pares e dados suplementares aceitáveis.»

38      Além disso, o ponto 3.6.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008 prevê que, para efeitos desta classificação, «as substâncias são incluídas numa de duas categorias, com base na suficiência das provas e de considerações suplementares (ponderação da suficiência da prova)» e que, «[e]m certos casos, pode justificar‑se uma classificação em função da via de exposição, se existirem provas de que nenhuma outra via de exposição representa um perigo». No que respeita à categoria 2, resulta do quadro 3.6.1 deste ponto 3.6.2.1 que «[a] classificação de uma substância na categoria 2 faz‑se com base em provas obtidas em estudos com seres humanos e/ou animais, mas que não são suficientemente convincentes para colocar a substância nas categorias 1A ou 1B, apoiando‑se na suficiência das provas e em considerações suplementares [referidas no ponto 3.6.2.2]» e que «[e]ssas provas podem provir de provas limitadas de carcinogenicidade em estudos com seres humanos ou de provas limitadas de carcinogenicidade em estudos com animais».

39      Por outro lado, importa recordar que o Regulamento n.o 1272/2008 tem por objeto a avaliação dos perigos das substâncias e que esta avaliação deve ser diferenciada da avaliação dos riscos prevista no Regulamento (CE) n.o 1907/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro de 2006, relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas (REACH), que cria a Agência Europeia das Substâncias Químicas, que altera a Diretiva 1999/45/CE e revoga o Regulamento (CEE) n.o 793/93 do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 1488/94 da Comissão, bem como a Diretiva 76/769/CEE do Conselho e as Diretivas 91/155/CEE, 93/67/CEE, 93/105/CE e 2000/21/CE da Comissão (JO 2006, L 396, p. 1). A avaliação dos perigos constitui a primeira etapa do processo de avaliação dos riscos, a qual representa um conceito mais preciso. Assim, uma avaliação dos perigos ligados às propriedades intrínsecas das substâncias não deve ser limitada tendo em conta circunstâncias de utilização específicas, como no caso de uma avaliação dos riscos, e pode ser validamente realizada independentemente do lugar de utilização da substância (laboratório ou outro) ou dos níveis eventuais de exposição à substância (v., neste sentido, Acórdão de 21 de julho de 2011, Nickel Institute, C‑14/10, EU:C:2011:503, n.os 81 e 82).

B.      Considerações preliminares sobre a intensidade da fiscalização do Tribunal Geral

40      Quanto à intensidade da fiscalização do Tribunal Geral, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, para poder proceder à classificação de uma substância ao abrigo do Regulamento n.o 1272/2008, e tomando em consideração as avaliações científicas e técnicas complexas que deve efetuar, deve ser reconhecido à Comissão um amplo poder de apreciação (v. Acórdão de 22 de novembro de 2017, Comissão/Bilbaína de Alquitranes e o., C‑691/15 P, EU:C:2017:882, n.o 34 e jurisprudência referida).

41      Todavia, o exercício desse poder não está subtraído à fiscalização jurisdicional. Com efeito, resulta de jurisprudência constante que, no quadro dessa fiscalização, o juiz da União deve verificar a observância das regras processuais, a exatidão material dos factos considerados pela Comissão, a inexistência de erro manifesto na apreciação desses factos ou a inexistência de desvio de poder (v. Acórdão de 18 de julho de 2007, Industrias Químicas del Vallés/Comissão, C‑326/05 P, EU:C:2007:443, n.o 76 e jurisprudência referida).

42      Especialmente, quando uma parte invoca um erro manifesto de apreciação cometido pela instituição competente, o juiz da União deve fiscalizar se esta instituição examinou, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto em que assenta essa apreciação. Este dever de diligência é inerente ao princípio da boa administração e aplica‑se, de modo geral, à atuação da administração da União (v. Acórdão de 22 de novembro de 2017, Comissão/Bilbaína de Alquitranes e o., C‑691/15 P, EU:C:2017:882, n.o 34 e jurisprudência referida).

43      Além disso, a limitação da fiscalização do juiz da União não afeta o dever deste de verificar a exatidão material dos elementos de prova invocados, a sua fiabilidade e a sua coerência, bem como de fiscalizar se esses elementos constituem a totalidade dos dados pertinentes que devem ser tomados em consideração para apreciar uma situação complexa e se são suscetíveis de fundamentar as conclusões deles retiradas (v., neste sentido, Acórdão de 6 de novembro de 2008, Países Baixos/Comissão, C‑405/07 P, EU:C:2008:613, n.o 55 e jurisprudência referida).

44      Por outro lado, no que respeita à avaliação de estudos científicos, o Tribunal Geral já salientou que há que reconhecer à Comissão uma ampla margem de apreciação no que respeita a essa avaliação, bem como à escolha dos estudos que devem prevalecer sobre os outros, independentemente da sua cronologia. Assim, não basta que o recorrente invoque a antiguidade de um estudo científico para pôr em causa a sua fiabilidade, mas deve ainda fornecer indícios suficientemente precisos e objetivos suscetíveis de sustentar que eventuais evoluções científicas recentes põem em causa o mérito das conclusões desse estudo (v., neste sentido, Acórdão de 24 de outubro de 2018, Deza/Comissão, T‑400/17, não publicado, EU:T:2018:712, n.o 95).

45      No caso em apreço, o regulamento impugnado, na medida em que procede à classificação e rotulagem controvertidas, foi adotado pela Comissão com base no parecer do RAC e na sequência da proposta de classificação apresentada à ECHA pela autoridade francesa competente (v. n.os 4, 6 e 8, supra).

46      A classificação e rotulagem controvertidas têm por objeto a substância com a identificação química de «dióxido de titânio (em pó, contendo 1 % ou mais de partículas com diâmetro aerodinâmico ≤ 10 μm)», que foi classificada como cancerígena de categoria 2, por inalação, isto é, como substância suspeita de ser cancerígena para o ser humano, por inalação (v. n.o 9, supra).

47      É à luz destas considerações que há que examinar, antes de mais, os fundamentos e argumentos relativos a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação de uma substância como cancerígena.

C.      Quanto aos fundamentos e argumentos relativos a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação de uma substância como cancerígena

48      Como exposto no n.o 21, supra, com o segundo fundamento, a primeira e quinta partes do sétimo fundamento e o oitavo fundamento nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20 e com os argumentos invocados pelas segundas recorrentes no âmbito dos seus articulados de intervenção nesses processos, bem como com o primeiro fundamento no processo T‑283/20 as recorrentes e os intervenientes em seu apoio alegam, em substância, por um lado, que a classificação e rotulagem controvertidas estão viciadas por erros manifestos de apreciação e, por outro, que não respeitam os critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação de uma substância como cancerígena.

49      Os presentes fundamentos e argumentos dividem‑se em duas partes. A primeira parte é relativa a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação e rotulagem de uma substância como cancerígena, no que respeita à aceitabilidade e à fiabilidade do estudo Heinrich e o. (1995) (a seguir «estudo Heinrich») no qual se baseou o parecer do RAC. A segunda parte é relativa a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação e rotulagem de uma substância como cancerígena, uma vez que a classificação e rotulagem controvertidas não têm por objeto uma substância que tenha propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro.

1.      Quanto à primeira parte, relativa a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação e rotulagem de uma substância como cancerígena, no que respeita à aceitabilidade e à fiabilidade do estudo Heinrich no qual se baseou o parecer do RAC

50      As recorrentes alegam, em substância, que o parecer do RAC assenta no estudo Heinrich e que o RAC cometeu vários erros manifestos na apreciação da fiabilidade e da aceitabilidade desse estudo. Por conseguinte, a classificação e rotulagem controvertidas não assentam em dados obtidos com estudos fiáveis e aceitáveis, como exigido pelo ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008. Sustentam, nomeadamente, que o estudo Heinrich tinha sido considerado não fiável pela autoridade francesa competente, tendo em conta o facto de ter sido realizado unicamente em ratos fêmeas e se ter utilizado uma única dose de teste excessiva.

51      As recorrentes alegam, além disso, que a classificação e rotulagem controvertidas assentam numa carcinogenicidade devida aos efeitos de uma sobrecarga pulmonar de partículas de dióxido de titânio (a seguir «sobrecarga pulmonar») e que o RAC cometeu erros manifestos na avaliação do nível de sobrecarga pulmonar que se produziu durante o estudo Heinrich, ao concluir, erradamente, que não era excessiva.

52      A este respeito, as segundas recorrentes alegam, no âmbito da sua petição no processo T‑283/20 e dos seus articulados de intervenção nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, que o RAC cometeu um erro na densidade das partículas que escolheu para calcular a sobrecarga pulmonar. A fim de verificar o nível de sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich e no estudo Lee e o. (1985) (a seguir «estudo Lee»), o RAC adotou o método proposto pelos estudos Morrow (1988 e 1992) (a seguir «cálculo de sobrecarga de Morrow») e, com esta base, considerou que a sobrecarga pulmonar do estudo Lee tinha sido excessiva e que a do estudo Heinrich era aceitável. Esta conclusão baseia‑se num erro material de facto no que respeita à densidade das partículas utilizada, pelo RAC, no cálculo de sobrecarga de Morrow.

53      Efetivamente, para efeitos da aplicação do cálculo de sobrecarga de Morrow aos estudos Heinrich e Lee, o RAC fixou o mesmo valor de densidade de 4,3 g/cm³, correspondente à densidade das partículas primárias não aglomeradas (a seguir «densidade das partículas»), quando deveria ter considerado a densidade dos aglomerados das partículas (a seguir «densidade dos aglomerados»), cujo valor está indicado em estudos científicos como sendo de 1,6 g/cm³ para partículas nanométricas do tipo «P25». A este respeito, está demonstrado, nomeadamente pelos estudos Laux e o. (2017), Gebel e o. (2012) e Pauluhn (2011), que as partículas de tamanho nanométrico se aglomeram e que a densidade dos aglomerados é inferior à densidade das partículas, tendo em conta a menor densidade dos espaços vazios entre as partículas nos aglomerados. Além disso, está demonstrado que a densidade dos aglomerados para as partículas de dióxido de titânio de tipo «P25» é de 1,6 g/cm³. Acresce que, uma vez que a densidade dos aglomerados é inferior à das partículas primárias, os aglomerados de partículas têm mais volume do que as partículas não aglomeradas. Consequentemente, o volume de sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich é bastante superior ao calculado pelo RAC. Se o RAC tivesse utilizado a densidade correta no cálculo de sobrecarga de Morrow, a saber, a densidade dos aglomerados, deveria ter concluído que o estudo Heinrich tinha sido realizado em condições de sobrecarga pulmonar excessiva.

54      A Comissão contesta estes argumentos. A título preliminar, alega, por um lado, que a argumentação das recorrentes excede os limites da fiscalização jurisdicional restrita, dado que as recorrentes não sustentam que o RAC ou a Comissão não tiveram em conta todos os elementos pertinentes, mas que se limitam a chegar a uma conclusão científica diferente da contida no parecer do RAC. Ora, o Tribunal Geral não pode substituir a apreciação do RAC relativa a elementos factuais de ordem científica e técnica pela sua própria apreciação. Por outro lado, a Comissão sustenta que o parecer do RAC não se baseia unicamente no estudo Heinrich mas também no estudo Lee, bem como noutros dados disponíveis e numa abordagem baseada na suficiência probatória desses dados, em conformidade com o ponto 3.6.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008.

55      No que respeita ao erro manifesto de apreciação relativo à densidade das partículas, a Comissão sustenta, em substância, que o RAC não cometeu um erro no cálculo da sobrecarga pulmonar do estudo Heinrich. Em primeiro lugar, o RAC aplicou corretamente o valor de densidade de 4,3 g/cm³, que é um valor padrão de densidade das partículas de dióxido de titânio, independentemente do seu tamanho ou da sua forma. O RAC pode validamente basear‑se nesse valor num contexto em que a extensão real da aglomeração e da compactação das partículas no estudo Heinrich não era conhecida. Do mesmo modo, as partículas maiores testadas no estudo Lee também se podem aglomerar e a sua densidade efetiva é provavelmente inferior.

56      Em segundo lugar e consequentemente, ao utilizar a densidade padrão de 4,3 g/cm³, tanto para o estudo Heinrich como para o estudo Lee, o RAC evitou introduzir um fator de incerteza que teria prejudicado a fiabilidade das comparações entre estes dois estudos.

57      Em terceiro lugar, a Comissão sustenta que, embora a densidade de 1,6 g/cm3 esteja indicada no estudo Pauluhn (2011) como o valor da densidade dos aglomerados de partículas nanométricas de dióxido de titânio, o RAC não podia utilizar esta densidade para o estudo Heinrich, dado que havia diferenças entre os estudos e que, no estudo Heinrich, nem a densidade das partículas nem a extensão da aglomeração e da compactação das partículas eram conhecidas, pelo que não se podia assumir que a densidade dos aglomerados era de 1,6 g/cm3.

58      Em quarto lugar, a Comissão sustenta que as condições de sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich não foram avaliadas pelo RAC unicamente com base no cálculo de sobrecarga de Morrow mas também com base noutros pontos de referência. Por um lado, o RAC teve em conta que o meio‑tempo de depuração pulmonar neste estudo era pouco superior a um ano e, portanto, próximo do limite recomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Por outro lado, ao comparar os níveis de exposição nos estudos Heinrich e Lee, o RAC teve em conta a concentração da substância, bem como o diâmetro aerodinâmico médio (DAM), o qual está compreendido, nos dois estudos, dentro do intervalo de valores recomendados no ponto 3.1.2.3.2 do anexo I do referido regulamento.

59      A ECHA acrescenta que nem a densidade das partículas nem a extensão da aglomeração das partículas no estudo Heinrich eram conhecidas, mas que estes elementos não faziam parte dos principais fatores a tomar em consideração. Além disso, não se pode presumir à partida que a densidade dos aglomerados no estudo Heinrich é de 1,6 g/cm³, tendo em conta as diferenças entre o estudo científico que indicou este valor e o estudo Heinrich. Além disso, as partículas de tamanho micrométrico utilizadas no estudo Lee têm igualmente tendência para se aglomerarem e, portanto, a densidade dos aglomerados, que também era desconhecida, pode igualmente ser inferior. Assim, na falta de informações sobre a densidade dos aglomerados de dióxido de titânio nos estudos Heinrich e Lee e para calcular a sobrecarga pulmonar segundo o cálculo de sobrecarga de Morrow, há que aplicar a densidade das partículas de 4,3 g/cm³, bem conhecida por estes dois estudos.

60      A ECHA acrescenta ainda que o grau de sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich não podia ser superior ao do estudo Lee, tendo em conta o nível inferior de exposição diária à substância. Além disso, os valores do DAM são muito próximos dos valores indicados no ponto 3.1.2.3.2 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008, que são os valores recomendados para os estudos de inalação. Acresce que, no estudo Heinrich, sobreviveu um número suficiente de ratos até ao fim do período experimental para permitir tirar conclusões sobre a carcinogenicidade, o que é apoiado igualmente pelo tempo de meia‑vida de depuração no final do estudo que está próximo do recomendado pela OCDE.

61      O Tribunal Geral considera oportuno começar por examinar o erro manifesto de apreciação, alegado pelas recorrentes, relativo ao valor da densidade das partículas. No entanto, a título preliminar, importa examinar certos argumentos da Comissão e da ECHA relativos à intensidade da fiscalização do Tribunal Geral e à pertinência do estudo Heinrich para a classificação e rotulagem controvertidas, uma vez que são suscetíveis de tornar a argumentação das recorrentes inoperante.

1)      Quanto à intensidade da fiscalização do Tribunal Geral

62      A Comissão sustenta, a título preliminar, que a argumentação das recorrentes excede os limites da fiscalização jurisdicional restrita, dado que se limitam a chegar a uma conclusão científica diferente da contida no parecer do RAC (v. n.o 54, supra). No entanto, contrariamente ao que alega a Comissão, a argumentação das recorrentes não se limita a chegar a uma conclusão científica diferente da contida no parecer do RAC.

63      Com efeito, as recorrentes alegam que o parecer do RAC e, consequentemente, o regulamento impugnado estão viciados por um erro manifesto de apreciação no que respeita à avaliação da fiabilidade e da aceitabilidade do estudo Heinrich e especialmente à avaliação do nível de sobrecarga pulmonar que se produziu durante este estudo. A este respeito, alegam, nomeadamente, um erro material de facto, bem como a não tomada em conta de todos os elementos pertinentes. Além disso, as recorrentes sustentam que, em razão do alegado erro, a classificação e rotulagem controvertidas violam o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008, uma vez que este exige que a classificação de uma substância assente em provas obtidas com estudos fiáveis e aceitáveis.

64      Daqui resulta que a argumentação das recorrentes suscita, simultaneamente, uma questão relacionada com a verificação do respeito da condição estabelecida no ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008, relativa à fiabilidade e à aceitabilidade dos estudos nos quais deve assentar a classificação, e um erro manifesto na apreciação dessa fiabilidade e aceitabilidade no que respeita ao estudo Heinrich. Por conseguinte, trata‑se de questões que não estão subtraídas à fiscalização jurisdicional, cuja intensidade tem os limites recordados nos n.os 41 a 44, supra.

65      Portanto, há que rejeitar o argumento da Comissão segundo o qual a argumentação das recorrentes no âmbito da primeira parte excede os limites da fiscalização jurisdicional.

2)      Quanto à pertinência do estudo Heinrich para a classificação e rotulagem controvertidas

66      A Comissão sustenta que o parecer do RAC não se baseia unicamente no estudo Heinrich mas também no estudo Lee e noutras informações disponíveis (v. n.o 54, supra). Além disso, em resposta a uma questão do Tribunal Geral, na audiência de 12 de maio de 2022 nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, a Comissão alegou que, entre os quatro estudos por inalação mencionados no parecer do RAC, os estudos Heinrich e Lee foram os únicos a revelar efeitos cancerígenos e, consequentemente, foram considerados pertinentes, a título principal, para avaliar as propriedades do dióxido de titânio.

67      Nestas circunstâncias, há que examinar se o estudo Heinrich foi, por si só, determinante para a classificação e rotulagem controvertidas, sem o que a argumentação das recorrentes destinada a contestar a fiabilidade e a aceitabilidade deste estudo deve ser rejeitada por ser inoperante.

68      Como recordado no n.o 37, supra, o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008 prevê, nomeadamente, que a classificação como cancerígeno faz‑se com base em provas obtidas com estudos fiáveis e aceitáveis e que as avaliações basear‑se‑ão em todos os dados existentes, estudos publicados e revistos por pares e dados suplementares aceitáveis.

69      No caso em apreço e em primeiro lugar, há que declarar que tanto a proposta de classificação apresentada pela autoridade francesa competente como o parecer do RAC se baseiam, em substância, em estudos em animais de laboratório realizados por inalação.

70      Em segundo lugar, resulta do parecer do RAC que este mencionou quatro estudos por inalação nos animais, entre os quais realçou os estudos Lee e Heinrich. Estes dois estudos, que foram os únicos a revelar o desenvolvimento de tumores na sequência da exposição ao dióxido de titânio, incluindo, para o primeiro estudo, tumores benignos e, para o segundo, tumores malignos, eram, segundo o RAC, os «estudos chave da carcinogenicidade por inalação» que justificavam uma análise comparativa dos seus resultados. Em contrapartida, os dois outros estudos que não tinham revelado tumores, a saber, os estudos Muhle (1989) e Thyssen (1978), caracterizavam‑se, segundo o RAC, por um nível ou uma duração de exposição insuficientes.

71      Em terceiro lugar, no que respeita aos estudos Lee e Heinrich, resulta dos autos dos presentes processos que as avaliações destes estudos pelo RAC e pela autoridade francesa competente não coincidem.

72      Quanto à autoridade francesa competente, esta baseou a sua proposta de classificação do dióxido de titânio como cancerígeno da categoria 1B por inalação, essencialmente, no estudo Lee, ao qual atribuiu uma pontuação de 2, correspondente a «fiável com restrições», na escala de pontuação de Klimisch (conforme descrita no artigo de Klimisch, H. J., Andreae, M., e Tillmann, U., «A Systematic Approach for Evaluating the Quality of Experimental Toxicological and Ecotoxicological Data», Regulatory Toxicology and Pharmacology, Elsevier, 1997, vol. 25, p. 1 a 5) (a seguir «escala de Klimisch»).

73      No que respeita ao estudo Heinrich, a autoridade francesa competente considerou que este estudo era de «menor qualidade», tendo em conta a falta de informação sobre o grau de pureza da substância, bem como as deficiências do protocolo de exposição, uma vez que o estudo foi realizado unicamente em animais fêmeas e foi testado um único nível de exposição, o qual tinha variado ao longo da experiência. Atribuiu‑lhe a pontuação de 3 na escala de Klimisch. Segundo a indicação das recorrentes, não contestada neste aspeto pela Comissão ou pela ECHA, a pontuação de 3 na escala de Klimisch corresponde à categoria «não fiável». No entanto, a autoridade francesa competente considerou que, apesar dessas deficiências, os efeitos cancerígenos observados no estudo Heinrich deviam ser considerados «pertinentes», dado que eram «coerentes» com os de outros estudos.

74      Quanto ao RAC, este baseou a sua proposta de classificação do dióxido de titânio como cancerígena de categoria 2, por inalação, essencialmente, no estudo Heinrich. Com efeito, resulta do parecer do RAC que este considerou que o estudo Lee não devia ter uma «influência determinante» na classificação do dióxido de titânio, dado que as condições de exposição durante esse estudo tinham sido excessivas, conduzindo a uma paragem total dos mecanismos de depuramento de partículas ao nível dos macrófagos alveolares dos pulmões (a seguir «mecanismos de depuramento de partículas»), o que, segundo o RAC, correspondia a uma «exposição excessiva de pertinência duvidosa para o ser humano». Além disso, é indicado no parecer do RAC que este considerava que essas condições de exposição excessivas durante o estudo Lee «invalidavam, por si só, os resultados deste estudo para efeitos de classificação».

75      No que respeita ao estudo Heinrich, o RAC considerou que o nível de sobrecarga pulmonar durante este estudo tinha sido claramente inferior ao do estudo Lee, visto que não provocou a paragem total dos mecanismos de depuramento de partículas e que, apesar de o estudo Heinrich não ter sido realizado em conformidade com as recomendações de teste padrão, os seus resultados eram «suficientemente fiáveis, pertinentes e adequados para a avaliação do potencial cancerígeno do [dióxido de titânio]».

76      Daqui resulta que, entre os dois estudos que, segundo o RAC, eram os estudos‑chaves da carcinogenicidade por inalação, o RAC considerou que o estudo Heinrich primava sobre o estudo Lee, uma vez que este último não era, por si só, decisivo ou suficiente para apoiar a proposta de classificação do dióxido de titânio, como, aliás, admitiu a Comissão em resposta a uma questão do Tribunal Geral, na audiência de 12 de maio de 2022 nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20.

77      Em quarto lugar, há que declarar que, além destes dois estudos‑chaves, o parecer do RAC menciona outros estudos, mas apenas o faz em apoio ou complemento dos resultados do estudo Heinrich. Assim, o RAC indicou, nomeadamente, que os resultados do estudo Heinrich eram «coerentes» com os resultados do estudo Gebel (2012), que tinha por objeto a carcinogenicidade por inalação em ratos de outras substâncias ditas «partículas pouco solúveis com grau de toxicidade baixo».

78      Resulta do exposto que o estudo Heinrich foi o estudo decisivo em que se baseou o parecer do RAC e, por conseguinte, a classificação e rotulagem controvertidas. Com efeito, os outros estudos, incluindo o estudo Lee, foram tidos em conta unicamente a título complementar, tendo o RAC considerado que estes últimos estudos não eram, por si só, suficientes para fundamentar a sua proposta de classificação.

79      Consequentemente, há que rejeitar o argumento da Comissão segundo o qual o parecer do RAC não se baseou unicamente no estudo Heinrich.

3)      Quanto ao erro manifesto de apreciação relativo ao valor da densidade das partículas

80      As segundas recorrentes alegam, no âmbito da sua petição no processo T‑283/20 e dos seus articulados de intervenção nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, que o RAC cometeu um erro ao utilizar um valor de densidade das partículas de 4,3 g/cm³, quando aplicou o cálculo de sobrecarga de Morrow ao estudo Heinrich e que este erro levou o RAC a concluir, erradamente, que este estudo tinha sido realizado em condições de sobrecarga pulmonar aceitáveis.

81      A título preliminar e em primeiro lugar, importa salientar que este estudo se intitula «Chronic inhalation exposure of wistar rats and two different strains of mice to diesel engine exhaust, carbon black and titanium dioxide» («Exposição crónica por inalação de ratos wistar e de duas estirpes diferentes de ratos a gases de escape de motores Diesel, negro de carbono e dióxido de titânio») e teve por objeto a exposição, por inalação, de ratos a gases de escape de motores Diesel, negro de carbono e dióxido de titânio.

82      Em segundo lugar, no que respeita à pertinência da sobrecarga pulmonar no contexto da classificação e rotulagem controvertidas, importa, antes de mais, recordar que a substância classificada tem a identificação química «dióxido de titânio (em pó, contendo 1 % ou mais de partículas com diâmetro aerodinâmico ≤ 10 μm)» e que foi classificada como substância suspeita de ser cancerígena de categoria 2, por inalação (v. n.o 9, supra).

83      Em seguida, importa observar que resulta do considerando 5 do regulamento impugnado que a classificação e rotulagem controvertidas se baseiam numa carcinogenicidade por inalação, associada à inalação de partículas de dióxido de titânio inaláveis e à retenção e à fraca solubilidade destas partículas nos pulmões. Além disso, a nota W, que o regulamento impugnado aditou ao anexo VI do Regulamento n.o 1272/2008 (v. n.o 10, supra), refere que «[se constatou] que o perigo cancerígeno [do dióxido de titânio] se manifesta[va] quando [eram] inaladas poeiras inaláveis em quantidades que danificam consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas nos pulmões».

84      Por último, no parecer do RAC, este reconhece que os tumores observados nos pulmões dos ratos nos estudos Heinrich e Lee só se desenvolviam em condições que «danificam marcadamente os mecanismos de depuramento de partículas».

85      Em terceiro lugar, no que respeita ao cálculo de sobrecarga de Morrow, o RAC considerou que, mesmo que esse cálculo não fosse um conceito geralmente aceite, devia ser utilizado para avaliar se o nível de sobrecarga pulmonar a que os animais tinham sido submetidos quando dos estudos Lee e Heinrich tinha sido marcado ou excessivo.

86      A este respeito, resulta do parecer do RAC, bem como da resposta da Comissão a uma questão colocada pelo Tribunal Geral através de uma medida de organização do processo no âmbito dos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, que o cálculo de sobrecarga de Morrow relaciona a quantidade de partículas inaladas e a redução do funcionamento dos mecanismos de depuramento de partículas com o volume ocupado pelas partículas nos macrófagos alveolares dos pulmões.

87      Acresce que o RAC precisou, no seu parecer, que o cálculo de sobrecarga de Morrow permitia determinar que se produzia uma sobrecarga pulmonar adequada nos animais de laboratório quando 6 a 60 % do volume dos macrófagos alveolares era ocupado por partículas. Por um lado, o volume dos macrófagos alveolares ocupado tinha de ser superior a 6 % para danificar consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas, sendo este dano indispensável para o aparecimento de uma inflamação crónica e os efeitos cancerígenos observados. Por outro lado, o volume ocupado pelas partículas tinha de ser inferior a 60 %, uma vez que, neste nível, ocorria uma paragem quase total dos mecanismos de depuramento de partículas, o que demonstrava uma sobrecarga pulmonar excessiva que invalidava os resultados.

88      Em quarto lugar, no que respeita à avaliação do nível de sobrecarga pulmonar durante os estudos Lee e Heinrich com base no cálculo de sobrecarga de Morrow, resulta do parecer do RAC que, antes de mais, este efetuou esse cálculo tendo em conta, em substância, dois elementos, a saber, em primeiro lugar, o «nível de exposição», que tem em conta a dose e a concentração da substância em miligramas por metro cúbico e, em segundo lugar, a densidade de partículas em gramas por centímetro cúbico. No que respeita ao estudo Lee, o RAC indicou que os níveis de exposição se situavam em 10, 50 e 250 mg/m³ e que a densidade das partículas era de 4,3 g/cm³. No que respeita ao estudo Heinrich, o RAC considerou um nível de exposição de 10 mg/m³ e a mesma densidade de 4,3 g/cm³.

89      Em seguida, o RAC indicou que, no caso da exposição às partículas de dióxido de titânio com uma densidade de 4,3 g/cm³, a sobrecarga pulmonar aceitável (situada, segundo o cálculo de sobrecarga Morrow, entre 6 a 60 % da carga volumétrica dos macrófagos alveolares, como indicado no n.o 87, supra) equivalia a uma carga compreendida entre 6,5 e 65 mg de partículas por pulmão de rato.

90      Por último, baseando‑se nestas premissas, o RAC concluiu que, no âmbito do estudo Heinrich, a sobrecarga pulmonar tinha sido de cerca de 40 %, portanto, dentro do intervalo aceitável, ao passo que, no âmbito do estudo Lee, a sobrecarga pulmonar tinha ultrapassado 60 % da carga volumétrica dos macrófagos alveolares, o que correspondia a uma paragem quase total dos mecanismos de depuramento de partículas.

91      É à luz destas considerações que há que examinar o erro invocado pelas segundas recorrentes, relativo à densidade das partículas.

92      No caso em apreço, é pacífico que os estudos Heinrich e Lee não indicavam a densidade das partículas testadas. Estes estudos indicavam unicamente algumas características dessas partículas, a saber, no que respeita ao estudo Lee, partículas de tamanho micrométrico e, no que respeita ao estudo Heinrich, partículas de tamanho nanométrico e de tipo «P25». Estas diferentes características das partículas testadas nos estudos Lee e Heinrich são, aliás, mencionadas no parecer do RAC, nomeadamente, no que se refere às partículas nanométricas de tipo «P25» testadas neste último estudo.

93      É igualmente pacífico que o RAC adotou o valor de densidade de 4,3 g/cm³, quando aplicou o cálculo de sobrecarga de Morrow a estes dois estudos (v. n.o 88, supra).

94      Além disso, resulta dos articulados da Comissão e da ECHA, bem como das suas respostas a questões do Tribunal Geral nas audiências de 12 e 18 de maio de 2022, que o valor de 4,3 g/cm³ é um valor padrão, habitualmente indicado na comunidade científica como correspondendo à densidade das partículas de dióxido de titânio, o que, de resto, as recorrentes não contestam.

95      No entanto, as recorrentes alegam que foi erradamente que o RAC, para efeitos do cálculo de sobrecarga de Morrow, considerou a densidade das partículas de 4,3 g/cm³, quando deveria ter tido em conta a densidade dos aglomerados de partículas nanométricas de dióxido de titânio de tipo «P25», sendo esta densidade, segundo os estudos científicos indicados pelas recorrentes, de 1,6 g/cm³ (v. n.o 53, supra).

96      A Comissão e a ECHA sustentam, em substância, que foi acertadamente que o RAC teve em conta a densidade das partículas, dado que o estudo Heinrich não indicava a densidade das partículas testadas nem a extensão da aglomeração e da compactação dessas partículas e que, nestas circunstâncias, era adequado o RAC ter em conta o valor padrão de densidade das partículas de dióxido de titânio.

97      A este respeito, saliente‑se que, independentemente da questão de saber qual é o valor exato de densidade que deveria ter sido tido em conta pelo RAC para efeitos do cálculo da sobrecarga de Morrow, questão que, em todo o caso, não cabe ao Tribunal Geral examinar, a argumentação das recorrentes suscita, antes de mais, a questão de saber se o RAC cometeu um erro manifesto de apreciação relativamente ao tipo de densidade considerado, uma vez que teve em conta a densidade das partículas em vez de considerar a densidade dos aglomerados de partículas nanométricas de dióxido de titânio.

98      No caso em apreço, o facto, invocado pelas recorrentes, de as partículas de dióxido de titânio e, especialmente, as partículas de tamanho nanométrico e de tipo «P25», como as testadas no estudo Heinrich, terem tendência para se aglomerar não é contestado. Com efeito, a Comissão e a ECHA não contestam este aspeto específico, como resulta dos seus articulados e das suas respostas às questões do Tribunal Geral nas audiências de 12 e 18 de maio de 2022. Além disso, como sustentam as segundas recorrentes no âmbito dos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, o estudo Heinrich mencionava os aglomerados de partículas de dióxido de titânio e indicava que estes eram «particularmente adequados para produzir efeitos tóxicos principalmente nos macrófagos alveolares e na depuração alveolar das partículas». Acresce que, a respeito dos aerossóis, ou seja, das partículas em suspensão no ar, cujo ambiente é reconhecidamente diferente do dos pulmões, o parecer do RAC menciona igualmente que as «partículas primárias, nomeadamente as de tamanho nanométrico, tendem a aglomerar‑se».

99      Além disso, é pacífico entre as partes, como resulta dos seus articulados, das suas respostas escritas a questões colocadas através de uma medida de organização do processo nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, bem como das suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal Geral nas audiências de 12 e 18 de maio de 2022, que a densidade dos aglomerados de partículas nanométricas de dióxido de titânio é inferior à densidade das partículas, dado que a aglomeração cria espaços vazios que são menos densos do que a matéria. Consequentemente, visto que a densidade dos aglomerados é inferior à das partículas primárias, os aglomerados de partículas ocupam mais volume do que as partículas não aglomeradas.

100    É verdade que, como alegam a Comissão e a ECHA sem que isso seja contestado pelas recorrentes, o estudo Heinrich não fornecia indicações sobre a densidade nem sobre a extensão da aglomeração e da compactação das partículas de dióxido de titânio testadas. Todavia, ao considerar um valor de densidade correspondente à densidade das partículas de 4,3 g/cm3 e, portanto, uma densidade em todo o caso mais elevada do que a densidade dos aglomerados de partículas nanométricas de dióxido de titânio (v. n.o 99, supra), o RAC não teve em conta todos os elementos pertinentes do caso em apreço, a saber, as características das partículas testadas no estudo Heinrich, nomeadamente, o seu tamanho nanométrico e o seu tipo «P25», o facto de essas partículas terem tendência para se aglomerar, bem como o facto de a densidade dos aglomerados das partículas ser inferior à densidade das partículas e, consequentemente, os aglomerados de partículas ocuparem mais volume nos macrófagos alveolares dos pulmões (v. n.os 98 e 99, supra).

101    Além disso, contrariamente ao que parece alegar a ECHA, estes elementos eram pertinentes para o cálculo de sobrecarga de Morrow, uma vez que o valor de densidade era um dos dois valores a considerar para efetuar esse cálculo, o qual foi adotado pelo RAC para avaliar o nível de sobrecarga pulmonar nos estudos Lee e Heinrich (v. n.o 88, supra). Em resposta a uma questão do Tribunal Geral na audiência de 12 de maio de 2022, a Comissão também admitiu que a densidade era importante para o cálculo de sobrecarga de Morrow.

102    Daqui resulta que a densidade das partículas era um elemento essencial para o cálculo de sobrecarga de Morrow adotado pelo RAC e que, sob pena evidente de desacreditar os resultados do referido cálculo, não se podia presumir que a referida densidade era a densidade das partículas, quando era sabido que as partículas nanométricas em causa formavam aglomerados, que a densidade dos aglomerados era inferior e que, consequentemente, o volume ocupado pelas partículas nos pulmões era superior.

103    Por conseguinte, ao não ter em conta os elementos indicados no n.o 100, supra, o RAC não teve em conta todos os elementos pertinentes para calcular a sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich através do cálculo de sobrecarga de Morrow e, portanto, cometeu um erro manifesto de apreciação. Este erro priva de qualquer plausibilidade o resultado da aplicação do referido cálculo a esse estudo e, consequentemente, as conclusões do RAC segundo as quais a sobrecarga pulmonar no âmbito do referido estudo era aceitável e os resultados do referido estudo eram suficientemente fiáveis, pertinentes e adequados para a avaliação do potencial cancerígeno do dióxido de titânio (v. n.os 75 e 90, supra) estão, também elas, viciadas por um erro manifesto de apreciação. Consequentemente, na medida em que a Comissão baseou a classificação e rotulagem controvertidas no parecer do RAC (v. n.o 8, supra), cometeu um erro manifesto de apreciação quando adotou o regulamento impugnado.

104    Os argumentos da Comissão e da ECHA não põem em causa esta conclusão.

105    Em primeiro lugar, importa afastar os seus argumentos segundo os quais o RAC podia validamente basear‑se numa densidade correspondente à densidade das partículas pelo facto de, no estudo Heinrich, a densidade das partículas e a extensão dos aglomerados de partículas não serem conhecidas. Estes argumentos não invalidam o facto de que o RAC não teve em conta todos os elementos necessários para a determinação da densidade, nomeadamente, o tamanho nanométrico das partículas em causa e a sua tendência para formar aglomerados, facto de que o RAC tinha conhecimento e que, aliás, mencionou no seu parecer (v. n.o 98, supra).

106    Além disso, importa salientar que a questão suscitada pelo erro manifesto de apreciação invocado pelas recorrentes não é se o RAC tinha na sua posse os elementos necessários para determinar a densidade dos aglomerados, mas, em contrapartida, se o RAC teve em conta todos os elementos pertinentes para verificar o nível da sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich através do cálculo de sobrecarga de Morrow.

107    Ora, como resulta dos n.os 92 e 100, supra, o RAC considerou um valor correspondente à densidade das partículas que não estava indicado no estudo e negligenciou os elementos indicados no mesmo, nomeadamente, o tamanho nanométrico das partículas e a sua tendência para se aglomerarem, quando era certo que estes elementos, especialmente a aglomeração, tinham impacto no valor da densidade e que, por sua vez, o valor da densidade tinha impacto no volume ocupado pelas partículas nos pulmões dos ratos e, portanto, no nível de sobrecarga pulmonar.

108    Estes elementos eram determinantes no caso em apreço, uma vez que o cálculo de sobrecarga de Morrow, que o RAC decidiu adotar, visava precisamente calcular o volume dos macrófagos alveolares ocupado pelas partículas nos pulmões de ratos, a fim de determinar se o estudo Heinrich tinha sido realizado em condições de sobrecarga pulmonar marcada ou de sobrecarga pulmonar excessiva e, portanto, determinar se os resultados desse estudo podiam servir de base para a classificação do dióxido de titânio.

109    Por conseguinte, o argumento da Comissão e da ECHA segundo o qual, nas circunstâncias do caso em apreço, seria «adequado» que o RAC tivesse em conta a densidade das partículas não é convincente e não permite suprir a não tomada em conta de todos os elementos pertinentes para efeitos do cálculo da sobrecarga pulmonar, tanto mais que estes elementos demonstravam que o valor de densidade utilizado pelo RAC não refletia a realidade das partículas testadas no estudo Heinrich.

110    Em segundo lugar, contrariamente ao que parecem alegar a Comissão e a ECHA, os objetivos de facilitar uma comparação entre os estudos Lee e Heinrich e evitar introduzir um fator de incerteza nesta comparação não podem justificar a não tomada em conta de todos os elementos necessários para a determinação do valor de densidade. Com efeito, as necessidades de comparação entre estes dois estudos não podem prevalecer sobre a necessidade, invocada pelo próprio RAC, de examinar, à luz do cálculo de sobrecarga de Morrow, se, nesses estudos, a sobrecarga pulmonar tinha sido, ou não, excessiva, uma vez que, nesta última hipótese, os resultados dos referidos estudos não poderiam, por si só, justificar a proposta de classificação do dióxido de titânio. Foi, aliás, por esta mesma razão e em aplicação deste mesmo cálculo que o RAC considerou que a sobrecarga pulmonar no estudo Lee tinha sido excessiva (v. n.o 74, supra).

111    Em terceiro lugar, no que respeita ao argumento da ECHA segundo o qual as partículas de tamanho micrométrico, como as testadas no estudo Lee, têm igualmente tendência para se aglomerar, por um lado, basta salientar que este estudo não foi decisivo para a proposta de classificação do RAC (v. n.o 76, supra). Por outro lado, a aplicação do cálculo de sobrecarga de Morrow a este estudo tinha, segundo o RAC, demonstrado que a sobrecarga pulmonar era excessiva, mesmo tendo em conta o valor de densidade das partículas, que era em todo o caso mais elevado do que o da densidade dos aglomerados. Por conseguinte, eventuais erros do RAC na apreciação deste estudo não podem ter influência no erro manifesto de apreciação constatado no n.o 103, supra.

112    Em quarto lugar, quanto aos argumentos da Comissão e da ECHA segundo os quais a avaliação do estudo Heinrich pelo RAC não foi feita unicamente com base no cálculo de sobrecarga de Morrow, ou não dependia desse cálculo, há que salientar que o parecer do RAC contradiz estes argumentos.

113    É certo que o RAC salientou vários elementos relativos às condições de exposição durante os estudos Lee e Heinrich, nomeadamente, o meio‑tempo de depuração pulmonar e o nível de exposição com base na dose e na concentração da substância. Recordou estes elementos num capítulo do seu parecer intitulado «Conclusão geral», no qual concluiu que as condições de exposição excessivas no estudo Lee «invalidavam, por si só, os resultados deste estudo para efeitos de classificação» e que os resultados do estudo Heinrich eram «suficientemente fiáveis, pertinentes e adequados para a avaliação do potencial cancerígeno do [dióxido de titânio]» (v. n.os 74 e 75, supra). Especialmente, no que respeita ao estudo Lee, o RAC mencionou um meio‑tempo de depuração pulmonar excessivo em relação ao nível de exposição máximo de 250 mg/m³ e, quanto ao estudo Heinrich, salientou que o nível de exposição de 10 mg/m³ era relativamente baixo.

114    Todavia, quando desta conclusão geral, o RAC recordou igualmente que a sobrecarga pulmonar no estudo Lee não estava dentro do intervalo aceitável, tendo conduzido a uma paragem quase total dos mecanismos de depuração das partículas, o que não era o caso do estudo Heinrich, cuja sobrecarga pulmonar estava dentro do intervalo aceitável (v. n.o 90, supra).

115    Daqui resulta que, para verificar o nível de sobrecarga pulmonar nos estudos Lee e Heinrich e, mais precisamente, o volume dos macrófagos alveolares ocupado pelas partículas, o RAC adotou o cálculo de sobrecarga de Morrow e foi com base nesse cálculo que retirou as suas conclusões no que respeita à questão de saber se a sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich tinha sido aceitável (v. n.os 87 a 90, supra).

116    Nestas circunstâncias, embora seja verdade que o RAC mencionou a dose e a concentração da substância, bem como o meio‑tempo de depuração pulmonar, não é menos verdade que não foi com base nestes elementos que retirou as suas conclusões sobre o nível de sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich e, por conseguinte, sobre a aceitabilidade dos resultados deste estudo.

117    Do mesmo modo, os argumentos da Comissão e da ECHA relativos ao facto de os valores do DAM serem comparáveis entre os dois estudos em causa e de esses valores estarem próximos dos indicados no ponto 3.1.2.3.2 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008 não podem ser acolhidos. Mesmo admitindo que, como alega a Comissão, o valor do DAM pode ter influência na distribuição e no depósito das partículas nas vias respiratórias, há que declarar que, em todo o caso, o valor do DAM não foi tido em conta pelo RAC para efetuar o cálculo de sobrecarga de Morrow e, portanto, não podia ter uma influência determinante nas conclusões do RAC relativas ao nível de sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich e na aceitação dos seus resultados.

118    Além disso, há que rejeitar o argumento da ECHA relativo ao número de ratos que sobreviveram até ao fim do período experimental do estudo Heinrich, uma vez que resulta do parecer do RAC que este não considerou que este dado era, por si só, suficiente para chegar a uma conclusão sobre a questão de saber se o nível de sobrecarga pulmonar neste estudo era aceitável.

119    Pelas mesmas razões, há que rejeitar o argumento da Comissão relativo ao facto de o RAC ter confirmado a validade do estudo Heinrich com base no estudo Thompson e o. (2016). Mesmo admitindo que este estudo pudesse validar o estudo Heinrich, o que não é pacífico no caso em apreço, essa validação nada retira ao facto de que foi com base no cálculo de sobrecarga de Morrow que o RAC retirou as suas conclusões sobre a aceitabilidade do nível de sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich.

120    Por conseguinte, contrariamente ao que alegam a Comissão e a ECHA, o cálculo de sobrecarga de Morrow foi decisivo para suportar as conclusões do RAC segundo as quais a sobrecarga pulmonar no estudo Heinrich estava dentro do intervalo aceitável e os resultados do referido estudo eram suficientemente fiáveis, pertinentes e adequados, pelo que estas conclusões enfermam de um erro manifesto de apreciação, como referido no n.o 103, supra.

121    Resulta do que precede que, tendo em conta que o regulamento impugnado, no que diz respeito à classificação e rotulagem controvertidas, se baseia no parecer do RAC (v. n.o 8, supra) e uma vez que o estudo de Heinrich foi decisivo para a proposta do RAC de classificação do dióxido de titânio (v. n.o 78, supra), o erro manifesto de apreciação indicado no n.o 103, supra, priva de qualquer plausibilidade a conclusão do RAC, seguida pela Comissão quando da adoção do regulamento impugnado, segundo a qual os resultados do estudo Heinrich eram suficientemente fiáveis e adequados, na aceção do ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008, para fundamentar a classificação e rotulagem controvertidas.

122    Por conseguinte, há que acolher a primeira parte, sem que seja necessário examinar os outros argumentos invocados pelas recorrentes no âmbito desta parte do fundamento.

123    No entanto, por razões de boa administração da justiça, há que prosseguir o exame do recurso e decidir sobre a segunda parte, a fim de dar uma solução completa ao litígio.

2.      Quanto à segunda parte, relativa a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação e rotulagem de uma substância como cancerígena, uma vez que a classificação e rotulagem controvertidas não visam uma substância que tenha propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro

124    No âmbito da segunda parte, as recorrentes alegam, nomeadamente, que a classificação e rotulagem controvertidas violam o critério estabelecido no artigo 3.o, n.o 1, e no artigo 36.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1272/2008, em conjugação com o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I deste regulamento, para a classificação de uma substância como cancerígena, dado que não visam uma substância que tenha propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro.

125    A este respeito, a primeira recorrente e as terceiras recorrentes alegam, nomeadamente, no âmbito dos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, que a classificação e rotulagem controvertidas se baseiam unicamente na forma e no tamanho das partículas de dióxido de titânio, que não são propriedades intrínsecas do dióxido de titânio, uma vez que são modificáveis e resultam do tratamento desta substância. Além disso, no seu parecer, o RAC admitiu que a classificação e rotulagem controvertidas não visavam um perigo intrínseco no sentido clássico do termo. Acresce que decorre do parecer do RAC e do considerando 5 do regulamento impugnado que a toxicidade observada é uma «toxicidade das partículas», resultante da simples acumulação nos pulmões de partículas de um certo tamanho, donde se depreende que os responsáveis pela toxicidade observada eram as partículas depositadas e não os solutos das moléculas de dióxido de titânio.

126    A este respeito, as segundas recorrentes sustentam, no âmbito da sua petição no processo T‑283/20 e dos seus articulados de intervenção nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, que o facto de os responsáveis pela toxicidade observada serem as partículas depositadas demonstra que se trata de uma «toxicidade das partículas», que não constitui um perigo intrínseco na aceção do Regulamento n.o 1272/2008, mas que, em contrapartida, é um conceito novo, não contemplado neste regulamento.

127    Além disso, as segundas recorrentes alegam que o desenvolvimento de tumores nos pulmões dos ratos, que está na origem do parecer do RAC e da classificação e rotulagem controvertidas, é um efeito que cria confusão ou secundário, comum, aliás, a outras poeiras, que resulta de uma sobrecarga pulmonar excessiva e não de um pretenso potencial cancerígeno do dióxido de titânio.

128    A Comissão contesta estes argumentos. Em primeiro lugar, no âmbito dos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, alega que é certo que resulta do parecer do RAC que a forma do dióxido de titânio foi determinante para a classificação. Todavia, a carcinogenicidade de determinada forma de pó de dióxido de titânio devia ser considerada uma propriedade intrínseca para efeitos da classificação segundo os critérios do Regulamento n.o 1272/2008. O conceito de propriedade «intrínseca» deve ser entendido no sentido de que remete para o perigo intrínseco que emana tanto de uma substância como de uma determinada forma ou de um determinado estado físico de uma substância, incluindo a toxicidade das partículas, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 1, o artigo 6.o, n.o 1, o artigo 8.o, n.o 6, e o artigo 9.o, n.o 5, do Regulamento n.o 1272/2008. O enunciado sistemático desta regra nas disposições deste regulamento sublinha a importância primordial das formas e dos estados físicos e da utilização previsível das substâncias. Com efeito, é possível que uma substância seja perigosa numa determinada forma e não noutra forma, como é o caso do dióxido de titânio.

129    Além disso, a Comissão alega que o tamanho das partículas pode ser pertinente para determinar o perigo no âmbito do Regulamento n.o 1272/2008, como resulta nomeadamente da parte do guia da ECHA sobre a aplicação dos critérios do Regulamento n.o 1272/2008, no que se refere à classe de perigo relativa à toxicidade específica para certos órgãos por exposição repetida, denominada «STOT‑RE».

130    Além disso, a Comissão alega que, embora o parecer do RAC tenha observado a inexistência de propriedade intrínseca no sentido clássico do termo, acabou por concluir pela existência de uma toxicidade intrínseca, pertinente para a classificação e rotulagem harmonizadas ao abrigo do Regulamento n.o 1272/2008.

131    Além disso, a Comissão sustenta, no âmbito do processo T‑283/20, que os efeitos cancerígenos mencionados no parecer do RAC não constituem um «efeito de confusão», mas que se devem às características físico‑químicas das partículas inaláveis de dióxido de titânio, nomeadamente, ao seu tamanho e, portanto, a propriedades intrínsecas da substância. Além disso, a carcinogenicidade do dióxido de titânio foi comprovada, em estudos sobre animais, com base numa sobrecarga pulmonar marcada, mas não excessiva, que é pertinente para o ser humano.

132    Por outro lado, a Comissão sustenta, no âmbito dos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, que outras substâncias em forma de pó já foram objeto de classificação, como é o caso do pó de chumbo ou do pó de níquel, que figuram no anexo VI, parte 3, do Regulamento n.o 1272/2008.

133    A este respeito, o Reino da Dinamarca e o Reino da Suécia acrescentam que várias substâncias foram classificadas como cancerígenas com base nas suas propriedades físicas, nomeadamente as fibras cerâmicas refratárias e as fibras de amianto, cuja classificação assenta na sua forma e na sua fraca solubilidade.

134    A ECHA acrescenta que os exemplos do chumbo e do níquel citados pela Comissão, bem como o das microfibras de vidro ilustram casos em que o tamanho das partículas, entre outras propriedades intrínsecas pertinentes, foi tido em conta para a classificação, sem que esta abordagem tenha tido como consequência tornar a classificação ilegal.

135    A título preliminar, antes de mais, há que observar que resulta do Regulamento n.o 1272/2008 que a classificação e rotulagem harmonizadas visam determinar as propriedades intrínsecas das substâncias que devem conduzir à sua classificação como produtos perigosos, a fim de que os perigos dessas substâncias (e das misturas que as contêm) possam ser corretamente identificados e comunicados (v. n.o 28, supra).

136    Assim, a classificação e rotulagem harmonizadas ao abrigo do Regulamento n.o 1272/2088 visam a transmissão de informações sobre os perigos ligados às propriedades intrínsecas das substâncias (v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 21 de julho de 2011, Nickel Institute, C‑14/10, EU:C:2011:503, n.o 81).

137    Em seguida, no que respeita à classificação de uma substância como cancerígena, importa recordar que esta classificação visa substâncias que tenham propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro, em conformidade com o artigo 36.o do Regulamento n.o 1272/2008 e com o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I deste regulamento (v. n.os 34 a 37, supra).

138    Por último, no que respeita ao conceito de «propriedades intrínsecas», há que salientar que, embora este conceito não conste do Regulamento n.o 1272/2008, deve ser interpretado no seu sentido literal, que designa as «propriedades de uma substância que lhe são próprias».

139    Com efeito, esta interpretação da expressão «propriedades intrínsecas» está em conformidade com os objetivos e com o objeto da classificação e rotulagem harmonizadas ao abrigo do Regulamento n.o 1272/2008, do qual resulta que só as propriedades próprias de uma substância devem conduzir à sua classificação como produto perigoso, a fim de que o perigo ligado a tais propriedades possa ser corretamente identificado e comunicado (v. n.os 135 e 136, supra).

140    Esta interpretação está igualmente de acordo com os critérios do GHS, integrados no direito da União (v. n.o 29, supra), cujo ponto 1.1.1.6, a nota de pé de página n.o 1 e o ponto 1.1.3.1.1, na sua versão de 2013 em vigor à data da adoção do regulamento impugnado, fazem nomeadamente uma distinção entre as propriedades intrínsecas de uma substância, sobre as quais incide o processo de classificação dos perigos, e outras propriedades que não são próprias da substância.

141    Além disso, esta interpretação está em conformidade com o facto de que a classificação e rotulagem harmonizadas ao abrigo do Regulamento n.o 1272/2008 visam a avaliação dos perigos e não a avaliação dos riscos prevista no Regulamento n.o 1907/2006. Como resulta da jurisprudência recordada no n.o 39, supra, a avaliação dos perigos ligados às propriedades intrínsecas de uma substância não deve ser limitada em função de circunstâncias de utilização específicas, como no caso de uma avaliação dos riscos, e pode ser realizada de forma válida independentemente do lugar de utilização da substância ou dos eventuais níveis de exposição à substância.

142    Por conseguinte, é à luz deste conceito de propriedades intrínsecas que há que interpretar o artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 36.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1272/2008, lidos em conjugação com o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I deste regulamento, do qual resulta que a classificação e a rotulagem harmonizadas de uma substância como cancerígena só se podem basear em propriedades intrínsecas da substância que determinam a sua capacidade intrínseca para provocar cancro, isto é, as propriedades próprias da substância que determinam a sua capacidade para, por si só, provocar cancro.

143    No caso em apreço, há que declarar que a classificação e rotulagem controvertidas visam identificar e comunicar um perigo de carcinogenicidade de categoria 2, por inalação, que foi descrito no parecer do RAC com base, em substância, nos resultados do estudo Heinrich, no qual foram observados tumores malignos nos pulmões dos ratos de laboratório na sequência de uma sobrecarga pulmonar de partículas de dióxido de titânio de tamanho nanométrico (v. n.os 70 e 78, supra).

144    O risco de carcinogenicidade referido no n.o 143, supra, é qualificado, pelo parecer do RAC, de «não intrínseco no sentido clássico», tendo o RAC concluído que «o modo de ação da carcinogenicidade nos ratos não podia ser considerado uma toxicidade intrínseca no sentido clássico». Além disso, resulta da nota W que a Comissão considerou necessário fazer acompanhar a classificação e rotulagem controvertidas de uma descrição da «toxicidade específica da substância» (v. n.o 39, supra).

145    A referida natureza «não intrínseca no sentido clássico» ou «específica» do perigo de carcinogenicidade visado pela classificação e rotulagem controvertidas decorre de vários elementos, mencionados no parecer do RAC e no regulamento impugnado.

146    Com efeito, e em primeiro lugar, o perigo de carcinogenicidade visado pela classificação e rotulagem controvertidas está ligado unicamente a determinadas partículas de dióxido de titânio inaláveis, quando estão presentes em determinadas formas, estado físico, tamanho e quantidade. Foi por esta razão que a Comissão considerou necessário «definir o que são partículas de dióxido de titânio inaláveis na entrada dedicada ao dióxido de titânio» (v. considerando 5 do regulamento impugnado), afastando‑se da proposta do RAC de classificar a substância com o nome químico «dióxido de titânio» sem qualquer outra descrição físico‑química.

147    Assim, resulta da identificação química da substância, que figura na entrada do quadro 3 do anexo VI, parte 3, do Regulamento n.o 1272/2008 aditada pelo regulamento impugnado, que o perigo de carcinogenicidade visado pela classificação e rotulagem controvertidas está ligado unicamente a partículas de dióxido de titânio que, cumulativamente, têm uma forma e um estado físico determinados (pó), um certo tamanho (diâmetro aerodinâmico igual ou inferior a 10 micrómetros), estão presentes numa certa quantidade (1 % ou mais) e são inaláveis (via de exposição por inalação).

148    Em segundo lugar, o perigo de carcinogenicidade visado pela classificação e rotulagem controvertidas só se manifesta em condições de sobrecarga pulmonar, isto é, quando da inalação de grandes quantidades de partículas que danificam consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas nos pulmões.

149    Com efeito, importa salientar que a nota W indica expressamente que o perigo cancerígeno «se manifesta quando são inaladas poeiras inaláveis em quantidades que danificam consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas nos pulmões». Do mesmo modo, o considerando 5 do regulamento impugnado, indica que a carcinogenicidade do dióxido de titânio nos pulmões está associada à inalação de partículas inaláveis da substância e à retenção e fraca solubilidade das mesmas neste órgão (v. n.o 83, supra).

150    Além disso, resulta do parecer do RAC que os tumores nos ratos foram observados sempre em condições de sobrecarga pulmonar. Foi, aliás, tendo em conta este contexto de sobrecarga pulmonar que o RAC considerou necessário utilizar o cálculo de sobrecarga de Morrow para avaliar se a sobrecarga pulmonar, a que os animais foram submetidos nos estudos Lee e Heinrich, tinha sido marcada ou excessiva (v. n.o 85, supra).

151    Em terceiro lugar, o perigo de carcinogenicidade visado pela classificação e rotulagem controvertidas corresponde, segundo os próprios termos do parecer do RAC, a uma «toxicidade das partículas», cujos responsáveis «são as partículas depositadas e não os solutos das moléculas de dióxido de titânio». Além disso, resulta do parecer do RAC que o desenvolvimento dos tumores observado nos ratos não era provocado pelo contacto direto das partículas de dióxido de titânio com as células epiteliais do pulmão, mas pela elevada carga em partículas nos macrófagos alveolares dos pulmões e pelo dano considerável nos mecanismos de depuramento de partículas daí decorrente, o que causava reações inflamatórias marcadas e prolongadas.

152    Estas apreciações são corroboradas pela nota W, da qual resulta que o perigo cancerígeno se manifesta quando são inaladas poeiras inaláveis em quantidades que danificam consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas nos pulmões.

153    Por outro lado, resulta do parecer do RAC que a toxicidade observada, que não é exclusiva das partículas de dióxido de titânio, mas é comum a outras partículas pouco solúveis com um reduzido grau de toxicidade, não está ligada nem aos perigos próprios de certas fibras, identificadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (a seguir «fibras OMS») nem a uma toxicidade específica suplementar das partículas de dióxido de titânio em razão dos revestimentos de superfície.

154    Foi à luz dos elementos indicados nos n.os 146 a 153, supra, que, antes de mais, o RAC concluiu que «o modo de ação da carcinogenicidade nos ratos não podia ser considerado uma toxicidade intrínseca no sentido clássico», em seguida, considerou que, não obstante, devia ser tomado em consideração no âmbito da classificação e rotulagem harmonizadas ao abrigo do Regulamento n.o 1272/2008 e, por último, a Comissão seguiu este parecer, ao adotar o regulamento impugnado e considerar necessário introduzir a nota W para descrever a «toxicidade específica da substância» (v. n.o 144, supra).

155    A questão que se coloca no caso em apreço é se a Comissão, ao adotar o regulamento impugnado, cometeu um erro manifesto de apreciação na aplicação do critério de «substância que tenha propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro», previsto no ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008.

156    É certo que o perigo de carcinogenicidade visado pela classificação e rotulagem controvertidas está associado a partículas de dióxido de titânio com determinadas propriedades, a saber, um determinado tamanho, uma determinada forma e uma fraca solubilidade (v. n.o 83, supra). Todavia, há que declarar que, segundo o parecer do RAC, os responsáveis pela toxicidade observada não são as propriedades das partículas de dióxido de titânio em si mesmas, mas o depósito e a retenção dessas partículas nos macrófagos alveolares dos pulmões em quantidades suficientes para dar lugar a uma sobrecarga pulmonar que danifica consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas nos pulmões (v. n.os 151 e 152, supra).

157    Assim, mesmo admitindo que as propriedades das partículas, como o seu tamanho, a sua forma e a sua fraca solubilidade, desempenham um papel na sua acumulação nos pulmões, e independentemente da questão de saber se as referidas propriedades são intrínsecas na aceção do Regulamento n.o 1272/2008, como sustenta a Comissão, não deixa de ser verdade que o modo de ação da carcinogenicidade descrita no parecer do RAC que, segundo este, não podia ser considerado uma toxicidade «intrínseca no sentido clássico», não corresponde a uma capacidade intrínseca das partículas de dióxido de titânio para provocar cancro.

158    Com efeito, um dos elementos‑chaves da toxicidade observada é a quantidade de partículas inalada, que deve ser suficiente para danificar consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas e é este dano que é indispensável para o aparecimento de uma inflamação crónica, a qual, por sua vez, provoca os efeitos cancerígenos observados (v. n.os 146 e 153, supra). Ora, não se pode considerar que uma acumulação de partículas nos pulmões em quantidades suficientes para danificar consideravelmente os mecanismos de depuramento de partículas, que só se verifica quando são inaladas determinadas quantidades de partículas, faz parte das propriedades intrínsecas das partículas em causa.

159    Assim, contrariamente à redação do segundo parágrafo da nota W, esta não se limita a descrever uma «toxicidade específica» da substância, que «não [constitui] um critério de classificação nos termos do [Regulamento n.o 1272/2008]». Em contrapartida, esta nota descreve um perigo que não é abrangido pelo critério de classificação para o perigo de carcinogenicidade, referido no ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008, segundo o qual a substância deve ter propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro.

160    Por conseguinte, ao acolher a conclusão do RAC segundo a qual «o modo de ação da carcinogenicidade nos ratos não podia ser considerado uma toxicidade intrínseca no sentido clássico», mas devia ser tomado em consideração no âmbito da classificação e rotulagem harmonizadas ao abrigo do Regulamento n.o 1272/2008, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação na aplicação do critério de classificação de uma substância como cancerígena estabelecido no artigo 3.o, n.o 1, e no artigo 36.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1272/2008, lidos em conjugação com o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008.

161    Portanto, há que concluir que o regulamento impugnado, no que respeita à classificação e rotulagem controvertidas, foi adotado em violação do artigo 3.o, n.o 1, e do artigo 36.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1272/2008, lidos em conjugação com o ponto 3.6.2.2.1 do anexo I deste regulamento.

162    Por outro lado, o facto de a classificação e rotulagem controvertidas se referirem à categoria 2 da classe de perigo de carcinogenicidade (v. n.o 46, supra) não põe em causa estas conclusões. Com efeito, o critério de classificação para a classe de perigo de carcinogenicidade indicado no n.o 160, supra, é, em todo o caso, o mesmo para as duas categorias de perigo respetivas, sendo que estas duas categorias apenas diferem em função da suficiência das provas e da respetiva ponderação, em conformidade com as disposições do ponto 3.6.2.1 e do quadro 3.6.1 do anexo I do Regulamento n.o 1272/2008, recordadas no n.o 38, supra.

163    Os argumentos apresentados pela Comissão e pelos intervenientes em seu apoio não põem em causa estas conclusões.

164    Em primeiro lugar, a Comissão sustenta, em substância, que o conceito de capacidade ou de propriedade «intrínseca» deve ser entendido no sentido de que remete para o perigo intrínseco que emana tanto de uma substância como de uma determinada forma ou de um determinado estado físico de uma substância ou de uma mistura, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 1, o artigo 6.o, n.o 1, o artigo 8.o, n.o 6, e o artigo 9.o, n.o 5, do Regulamento n.o 1272/2008.

165    A este respeito, importa observar que o artigo 5.o, n.o 1, o artigo 6.o, n.o 1, o artigo 8.o, n.o 6, e o artigo 9.o, n.o 5, do Regulamento n.o 1272/2008, invocados pela Comissão, não dizem diretamente respeito ao procedimento de harmonização da classificação e rotulagem de substâncias, previsto no título V do referido regulamento nem, menos ainda, se inserem nos critérios estabelecidos para a classificação e rotulagem harmonizadas de uma substância como cancerígena.

166    Em contrapartida, estas disposições dizem respeito à obrigação, referida no n.o 31, supra, de autoclassificação de uma substância ou de uma mistura pelo fabricante, pelo importador ou pelo utilizador a jusante, quando a substância ou mistura em causa não possua uma classificação harmonizada e apresente propriedades perigosas. É por esta razão que as informações pertinentes para determinar se uma substância comporta um perigo, bem como a avaliação dessas informações e, se for caso disso, a aplicação dos critérios de classificação para cada classe de perigo devem estar relacionadas com as formas ou os estados físicos em que a substância é colocada no mercado ou é utilizada pelos indivíduos ou empresas aos quais tal obrigação é imposta.

167    Além disso, mesmo admitindo que, como alega a Comissão, a classificação e rotulagem harmonizadas possam dizer respeito a um perigo intrínseco decorrente de uma determinada forma ou de um determinado estado físico de uma substância, não deixa de ser verdade que, para respeitar os critérios estabelecidos para a classificação e rotulagem harmonizadas, é essencial que o perigo decorra das propriedades intrínsecas da substância ou das propriedades intrínsecas de um determinado estado físico ou de uma determinada forma da substância, o que não acontece no caso em apreço, pelas razões indicadas nos n.os 157 e 158, supra.

168    Em segundo lugar, a Comissão sustenta que a classificação e rotulagem controvertidas se basearam em características físico‑químicas das partículas de dióxido de titânio, sem, no entanto, apresentar um argumento concreto suscetível de pôr em causa o facto de a toxicidade observada ser atribuída, segundo os próprios termos do parecer do RAC, não às partículas propriamente ditas, mas ao seu depósito nos pulmões em quantidades que danificam consideravelmente os mecanismos de depuração de partículas, o que só se verifica se se atingir um certo limiar de exposição às partículas.

169    Acresce que, como resulta do parecer do RAC, a carcinogenicidade observada não é atribuída aos solutos das moléculas de dióxido de titânio, nem ao contacto direto das partículas de dióxido de titânio com as células epiteliais do pulmão, nem à morfologia fibrosa, nem a um revestimento de superfície destas partículas pertinente do ponto de vista toxicológico (v. n.os 151 e 153, supra).

170    Em terceiro lugar, importa declarar que, contrariamente ao que alegam a Comissão e os intervenientes em seu apoio, a classificação e rotulagem controvertidas não são semelhantes às classificações e rotulagens harmonizadas a que os mesmos se referem.

171    Assim, no que respeita ao chumbo, observe‑se que tanto o chumbo maciço como o pó de chumbo são objeto de classificação e que, em ambos os casos, a classificação foi feita para a classe de perigo «tóxico para a reprodução», com a diferença de que foi estabelecido um limite de concentração específico para o pó de chumbo (v. anexo VI, parte 3, quadro 3, do Regulamento n.o 1272/2008).

172    Do mesmo modo, tanto o níquel maciço como o pó de níquel foram ambos classificados na classe de perigo de carcinogenicidade, categoria 2, com a diferença de que o pó de níquel também foi classificado como «perigoso para o ambiente aquático» (v. anexo VI, parte 3, quadro 3, do Regulamento n.o 1272/2008).

173    Daqui resulta que as classificações do níquel e do chumbo, bem como dos respetivos pós não são comparáveis à do dióxido de titânio, do qual só as partículas com um certo tamanho, mas não a substância maciça, são objeto da classificação e rotulagem controvertidas que, além disso, dizem respeito a uma classe de perigo diferente para a saúde.

174    No que respeita às fibras de amianto, é a própria substância, e não as suas partículas de um determinado tamanho, que é classificada como cancerígena (v. anexo VI, parte 3, quadro 3, do Regulamento n.o 1272/2008).

175    Quanto às microfibras de vidro, resulta dos pareceres do RAC de 4 de dezembro de 2014, com base nos quais foram classificadas [v. Regulamento (UE) 2016/1179 da Comissão, de 19 de julho de 2016, que altera, para efeitos de adaptação ao progresso técnico e científico, o Regulamento n.o 1272/2008 (JO 2016, L 195, p. 11)], que a classificação dessas fibras como cancerígenas resulta de uma toxicidade determinada, em substância, pela sua forma e o seu tamanho, mas também pelas suas propriedades químicas de superfície e a sua biopersistência. Daqui resulta que esta classificação não é comparável à do dióxido de titânio, cujas partículas testadas tinham um revestimento de superfície menor ou inexistente do ponto de vista toxicológico (v. n.o 153, supra).

176    No que respeita às fibras cerâmicas refratárias, foram classificadas como cancerígenas de categoria 1B (v. anexo VI, parte 3, quadro 3, do Regulamento n.o 1272/2008). Como resulta da resposta da Comissão a uma questão colocada através de uma medida de organização do processo no âmbito dos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, bem como da sua resposta a uma questão do Tribunal Geral na audiência de 12 de maio de 2022, esta classificação baseou‑se num modo de ação da carcinogenicidade ligado às propriedades dessas fibras, como o comprimento, o diâmetro e a biopersistência, à semelhança das fibras OMS. Ora, contrariamente às fibras cerâmicas refratárias, as partículas de dióxido de titânio testadas não tinham como característica a biopersistência e tinham uma morfologia não fibrosa, que não satisfazia os critérios da OMS relativos às fibras OMS, como resulta do parecer do RAC (v. n.o 153, supra).

177    Por conseguinte, os exemplos acima mencionados apenas ilustram casos em que a forma e o tamanho das partículas foram, é certo, tomados em consideração, mas em que, no entanto, certas propriedades próprias das substâncias em causa foram determinantes para a sua classificação, o que não corresponde ao caso em apreço. Assim, a classificação e rotulagem controvertidas não são semelhantes a nenhum dos exemplos mencionados, contrariamente ao que alega a Comissão.

178    Tendo em conta o que precede, há que acolher a segunda parte, sem que seja necessário examinar os outros argumentos das recorrentes no âmbito desta parte.

179    Resulta do exposto que o segundo fundamento, a primeira e quinta partes do sétimo fundamento e os argumentos invocados pelas segundas recorrentes no âmbito dos seus articulados de intervenção nos processos apensos T‑279/20 e T‑288/20, bem como o primeiro fundamento no processo T‑283/20, relativos a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008, para a classificação e rotulagem de uma substância como cancerígena, devem ser acolhidos.

180    Por conseguinte, o regulamento impugnado deve ser anulado no que respeita à classificação e rotulagem controvertidas, sem que seja necessário examinar os outros fundamentos e argumentos das recorrentes.

 Quanto às despesas

181    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas, no processo T‑279/20, pela primeira recorrente e pelas segundas recorrentes, pela Ettengruber GmbH Abbruch und Tiefbau, pela Ettengruber GmbH Recycling und Verwertung e pela TIGER Coatings, no processo T‑283/20, pelas segundas recorrentes, pelo Cefic, pela CEPE, pela BCF, pela ACA, pela Mytilineos e pela Delfil‑Distomon e, no processo T‑288/20, pelas terceiras recorrentes, pelas segundas recorrentes, pela Sto SE & Co. Co. e pela Rembrandtin Coatings, em conformidade com os seus pedidos.

182    Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, os Estados‑Membros e as instituições que intervenham no processo devem suportar as respetivas despesas. Segundo o artigo 1.o, n.o 2, alínea f), do Regulamento de Processo, o termo «instituições» designa quer as instituições da União referidas no artigo 13.o, n.o 1, TUE quer os órgãos ou organismos criados pelos Tratados ou por um ato adotado em sua execução, que podem ser partes no Tribunal Geral. Segundo o artigo 100.o do Regulamento n.o 1907/2006, a ECHA é um organismo da União. Daqui resulta que o Reino da Dinamarca, a República Francesa, o Reino dos Países Baixos, o Reino da Suécia, a República da Eslovénia, o Parlamento, o Conselho e a ECHA suportarão as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Nona Secção alargada)

decide:

1)      Os processos apensos T279/20 e T288/20 e o processo T283/20 são apensados para efeitos do acórdão.

2)      O Regulamento (UE) n.o 2020/217 da Comissão, de 4 de outubro de 2019, que altera, para efeitos de adaptação ao progresso técnico e científico, o Regulamento (CE) n.o 1272/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à classificação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas e que retifica o referido regulamento, é anulado no que respeita à classificação e rotulagem harmonizadas do dióxido de titânio em pó, contendo 1 % ou mais de partículas com diâmetro igual ou inferior a 10 μm.

3)      A Comissão Europeia é condenada a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas, no processo T279/20, pela CWS Powder Coatings GmbH, pela Billions Europe Ltd e pelas outras intervenientes cujos nomes figuram anexos, pela Ettengruber GmbH Abbruch und Tiefbau, pela Ettengruber GmbH Recycling und Verwertung e pela TIGER Coatings GmbH & Co. KG, no processo T283/20, pela Billions Europe e pelas outras recorrentes cujos nomes figuram anexos, pelo Conselho Europeu da Indústria Química — European Chemical Industry Council (Cefic), pela Confederação Europeia das Associações de Fabricantes de Tintas, Tintas de Impressão e Tintas para Artistas (CEPE), pela British Coatings Federation Ltd (BCF), pela American Coatings Association, Inc. (ACA), pela Mytilineos SA e pela DelfiDistomon Anonymos Metalleftiki Etaireia e, no processo T288/20, pela Brillux GmbH & Co. KG, pela Daw SE, pela Billions Europe e pelos outros intervenientes cujos nomes figuram anexos, pela Sto SE & Co. KGaA e pela Rembrandtin Coatings GmbH.

4)      O Reino da Dinamarca, a República Francesa, o Reino dos Países Baixos, o Reino da Suécia, a República da Eslovénia, o Parlamento Europeu, o Conselho da União europeia e a Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA) suportarão as suas próprias despesas.

Costeira

Kancheva

Perišin

Zilgalvis

 

      Dimitrakopoulos

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 23 de novembro de 2022.

Assinaturas


Índice


I. Antecedentes do litígio

II. Pedidos das partes

III. Questão de direito

A. Considerações preliminares sobre a classificação e a rotulagem harmonizadas de substâncias na classe de perigo de carcinogenicidade.

B. Considerações preliminares sobre a intensidade da fiscalização do Tribunal Geral

C. Quanto aos fundamentos e argumentos relativos a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação de uma substância como cancerígena

1. Quanto à primeira parte, relativa a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação e rotulagem de uma substância como cancerígena, no que respeita à aceitabilidade e à fiabilidade do estudo Heinrich no qual se baseou o parecer do RAC

1) Quanto à intensidade da fiscalização do Tribunal Geral

2) Quanto à pertinência do estudo Heinrich para a classificação e rotulagem controvertidas

3) Quanto ao erro manifesto de apreciação relativo ao valor da densidade das partículas

2. Quanto à segunda parte, relativa a erros manifestos de apreciação e à violação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento n.o 1272/2008 para a classificação e rotulagem de uma substância como cancerígena, uma vez que a classificação e rotulagem controvertidas não visam uma substância que tenha propriedades intrínsecas capazes de provocar cancro

Quanto às despesas


*      Línguas do processo: alemão e inglês.


1      A lista dos outros intervenientes foi anexada apenas à versão notificada às partes.


2      A lista dos outros recorrentes foi anexada apenas à versão notificada às partes.


3      A lista dos outros intervenientes foi anexada apenas à versão notificada às partes.