Language of document : ECLI:EU:C:2020:715

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

16 de setembro de 2020 (*)

«Reenvio prejudicial — Conceito de “órgão jurisdicional” na aceção do artigo 267.o TFUE — Critérios — Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência, Espanha) — Inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial»

No processo C‑462/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência, Espanha), por Decisão de 12 de junho de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de junho de 2019, no processo contra

Asociación Nacional de Empresas Estibadoras y Consignatarios de Buques (Anesco),

Comisiones Obreras,

Coordinadora Estatal de Trabajadores del Mar (CETM),

Confederación Intersindical Gallega,

Eusko Langileen Alkartasuna,

Langile Abertzaleen Batzordeak,

Unión General de Trabajadores (UGT),

sendo interveniente:

Asociación Estatal de Empresas Operadoras Portuarias (Asoport),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: S. Rodin, presidente de secção, M. Vilaras (relator), presidente da Quarta Secção, e D. Šváby, juiz,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Asociación Nacional de Empresas Estibadoras y Consignatarios de Buques (Anesco), por T. Arranz Fernández‑Bravo, D. Sarmiento Ramírez‑Escudero e A. Gutiérrez Hernández, abogados,

–        em representação das Comisiones Obreras, por R. González Rozas, abogada,

–        em representação da Coordinadora Estatal de Trabajadores del Mar (CETM), por S. Martínez Lage, P. Martínez‑Lage Sobredo e V. M. Díaz Domínguez, abogados,

–        em representação da Confederación Intersindical Gallega, por H. López de Castro Ruiz, abogado,

–        em representação da Unión General de Trabajadores (UGT), por D. Martín Jordedo, abogado,

–        em representação da Asociación Estatal de Empresas Operadoras Portuarias (Asoport), por E. Van Hooydonk, advocaat, e J. Puigbó, abogado,

–        em representação do Governo espanhol, por S. Centeno Huerta, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Baches Opi e C. Urraca Caviedes, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 101.o TFUE e do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.o e 102.o TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo instaurado pela Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (CNMC) (Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência, Espanha) contra a Asociación Nacional de Empresas Estibadoras y Consignatarias de Buques (Anesco), as Comisiones Obreras, a Coordinadora Estatal de Trabajadores del Mar (CETM), a Confederación Intersindical Gallega, Eusko Langileen Alkartasuna, Langile Abertzaleen Batzordeak e a Unión General de Trabajadores (UGT) respeitante à celebração de uma convenção coletiva que impõe uma sub‑rogação nos contratos dos trabalhadores para a prestação de serviços portuários de movimentação de mercadorias, com o fundamento de que a referida convenção é contrária ao artigo 101.o TFUE e à legislação nacional correspondente.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos dos considerandos 17 e 18 do Regulamento n.o 1/2003:

«(17)      A fim de assegurar tanto a aplicação coerente das regras de concorrência como uma gestão otimizada da rede, é indispensável introduzir a regra segundo a qual, quando a Comissão der início a um processo, este sai automaticamente da alçada das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência. Sempre que uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência já esteja a instruir um processo e a Comissão tencione dar início a um processo, esta instituição esforçar‑se‑á por concretizar a sua intenção o mais rapidamente possível. Antes de dar início ao processo, a Comissão deverá consultar a autoridade nacional competente.

(18)      A fim de assegurar uma distribuição otimizada dos processos no âmbito da rede, é necessário prever uma disposição geral que permita a uma autoridade responsável em matéria de concorrência suspender ou arquivar um processo por motivo de outra autoridade o estar a instruir, por forma a que cada processo apenas seja apreciado por uma única autoridade. Essa disposição não deve prejudicar a faculdade de a Comissão rejeitar uma denúncia por falta de interesse comunitário, mesmo quando nenhuma autoridade responsável em matéria de concorrência tenha indicado a sua intenção de se ocupar do processo, faculdade que lhe é reconhecida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.»

4        O artigo 11.o, n.o 6, do referido regulamento dispõe:

«O início por parte da Comissão da tramitação conducente à aprovação de uma decisão nos termos do capítulo III priva as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência da competência para aplicarem os artigos 101.o [TFUE] e 102.o [TFUE]. Se a autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência já estiver a instruir um processo, a Comissão só dará início a um processo após ter consultado essa autoridade nacional responsável em matéria de concorrência.»

 Direito espanhol

 Lei de Defesa da Concorrência

5        O artigo 1.o, n.o 1, da Ley 15/2007 de Defensa de la Competencia (Lei 15/2007, relativa à Defesa da Concorrência), de 3 de julho de 2007 (BOE n.o 159, de 4 de julho de 2007, p. 12946, a seguir «Lei de Defesa da Concorrência»), dispõe:

«É proibido qualquer acordo, decisão ou recomendação coletiva, ou prática concertada ou deliberadamente paralela, que vise, cause ou possa ter o efeito de impedir, restringir ou distorcer a concorrência em todo ou parte do mercado nacional […]»

6        O artigo 36.o, n.o 1, desta lei prevê:

«O prazo máximo para a adoção e notificação da decisão que põe termo ao procedimento sancionatório em caso de comportamento anticoncorrencial é de dezoito meses a partir da data de início do referido procedimento […]»

7        O artigo 38.o, n.o 1, da referida lei dispõe:

«O termo do prazo máximo de dezoito meses previsto no artigo 36.o, n.o 1, para pôr termo ao procedimento sancionatório em relação a acordos e práticas proibidas implica a caducidade do processo.»

8        Nos termos do artigo 44.o da mesma lei:

«A [CNMC] pode abster‑se de instaurar processos ou retirar do registo as ações ou processos instaurados por falta ou perda de competência ou de objeto. Em particular, qualquer uma destas condições será considerada preenchida nos seguintes casos:

a)      quando a [CNMC] não seja competente para julgar os comportamentos verificados ou denunciados ao abrigo do Regulamento [n.o 1/2003], ou quando estejam preenchidas as condições estabelecidas no Regulamento [n.o 1/2003] para a rejeição de denúncias.

[…]»

9        O artigo 45.o da Lei de Defesa da Concorrência dispõe:

«Os procedimentos administrativos relativos à defesa da concorrência regem‑se pelo disposto na presente lei e na sua legislação de aplicação e, a título subsidiário, pela Lei 30/1992, de 26 de novembro de 1992, relativa ao Regime Jurídico das Administrações Públicas e ao Procedimento Administrativo Comum […]»

10      O artigo 48.o, n.o 1, da mesma lei dispõe:

«As decisões e atos do presidente e do Conselho da [CNMC] não podem ser objeto de recurso administrativo, sendo unicamente suscetíveis de recurso contencioso administrativo […]»

11      O artigo 49.o, n.o 1, da referida lei enuncia:

«O processo é instaurado oficiosamente pela Direção [da Concorrência], por sua própria iniciativa ou do Conselho da [CNMC], ou na sequência de uma denúncia […]»

 Lei relativa à Criação da CNMC

12      O artigo 1.o, n.o 2, da Ley 3/2013 de creación de la Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (Lei 3/2013 relativa à Criação da Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência), de 4 de junho de 2013 (BOE n.o 134, de 5 de junho de 2013, p. 42191, a seguir «Lei relativa à Criação da CNMC»), prevê:

«A [CNMC] tem por objeto assegurar, preservar e promover o bom funcionamento, a transparência e a existência de uma concorrência efetiva em todos os mercados e setores produtivos, em benefício dos consumidores e utilizadores.»

13      O artigo 2.o, n.o 1, da mesma lei dispõe:

«A [CNMC] tem personalidade jurídica e plena capacidade pública e privada, e dispõe, no exercício das suas funções e para o cumprimento dos seus objetivos, de autonomia orgânica e funcional e de total independência em relação ao Governo, à Administração Pública e aos agentes do mercado. Além disso, está sujeita a fiscalização parlamentar e judicial.»

14      O artigo 3.o da referida lei enuncia:

«1.      A [CNMC] atua, no exercício das suas funções e para o cumprimento dos seus objetivos, independentemente de qualquer interesse empresarial ou comercial.

2.      No desempenho das funções que lhes são atribuídas pela legislação, e sem prejuízo da cooperação com outros órgãos e dos poderes de direção da política geral do Governo exercidos através das suas competências regulamentares, nem o pessoal nem os membros dos órgãos da [CNMC] podem solicitar ou aceitar instruções de qualquer entidade pública ou privada.»

15      O artigo 15.o da mesma lei prevê:

«1.      Os membros do Conselho [da CNMC], incluindo o presidente e vice‑presidente, são nomeados por real decreto do Governo, sob proposta do Ministro de Economía y Competitividad [(ministro da Economia e da Concorrência, Espanha)], entre pessoas de reconhecido prestígio e competência profissional no âmbito da atividade da [CNMC], depois de a pessoa proposta para o cargo ter comparecido perante a comissão correspondente do Congresso dos Deputados. O Congresso, através da comissão competente e mediante acordo obtido por maioria absoluta, pode vetar a nomeação do candidato proposto no prazo de um mês a contar da receção da respetiva comunicação. Após o decurso deste prazo sem manifestação expressa do Congresso, as nomeações serão consideradas aceites.

2.      O mandato dos membros do Conselho é de seis anos sem possibilidade de renovação. A composição do Conselho é parcialmente renovada a cada dois anos, de modo que nenhum membro do Conselho permaneça no cargo por mais de seis anos.»

16      O artigo 17.o, n.o 1, da Lei relativa à Criação da CNMC dispõe:

«A Secção Plenária do Conselho é composta por todos os membros do Conselho. É presidida pelo presidente da [CNMC]. Em caso de vaga, ausência ou doença do presidente, este será substituído pelo vice‑presidente ou, na falta deste, pelo conselheiro mais antigo ou, em caso de igual antiguidade, pelo mais velho.»

17      O artigo 19.o, n.o 1, desta lei enuncia:

«O presidente da [CNMC] é competente para:

[…]

f)      impulsionar as ações da [CNMC] e desempenhar as funções pelas quais é responsável. Em particular, a proposta de planos de ação anuais ou plurianuais que estabelecem os seus objetivos e prioridades;

g)      exercer funções de direção do pessoal da [CNMC], em conformidade com os poderes que lhe são conferidos por legislação específica;

h)      dirigir, coordenar, avaliar e supervisionar as diversas unidades da [CNMC], sem prejuízo das funções do Conselho; em particular, coordenar, com a assistência do secretário do Conselho, o bom funcionamento das unidades da [CNMC].

[…]»

18      O artigo 20.o da referida lei prevê:

«O Conselho da [CNMC] é o órgão decisório no que respeita às funções de resolução, consulta, promoção da concorrência e de arbitragem e resolução de conflitos previstas na presente lei. Em particular, o Conselho é o órgão competente para:

[…]

13.      nomear e aprovar a cessação de funções do pessoal dirigente, sob proposta do presidente do Conselho.

[…]»

19      O artigo 25.o da mesma lei, sob a epígrafe «Órgãos de direção», prevê, no seu n.o 1, que a CNMC tem quatro direções de instrução, entre as quais figura a Direção da Concorrência (Dirección de Competencia). Esta é responsável pela análise de processos relativos às funções da CNMC na preservação e promoção de uma concorrência efetiva em todos os mercados e setores produtivos.

20      Nos termos do artigo 29.o da referida lei, relativo ao poder sancionatório:

«1.      A [CNMC] exerce o poder de inspeção e sancionatório em conformidade com o disposto no título IV, capítulo II da [Lei de Defesa da Concorrência], no título VI da [Ley 7/2010 General de la Comunicación Audiovisual (Lei Geral 7/2010, relativa à Comunicação Audiovisual), de 31 de março de 2010 (BOE n.o 70, de 1 de abril de 2010)], no título VIII da [Ley 32/2003 General de Telecomunicaciones (Lei Geral 32/2003, relativa às Telecomunicações), de 3 de novembro de 2003 (BOE n.o 264, de 4 de novembro de 2003)], no título X da [Ley 54/1997 del Sector Eléctrico (Lei 54/1997 relativa ao Setor Elétrico), de 27 de novembro de 1997 (BOE n.o 285, de 28 de novembro de 1997, p. 35097)], no título VI da [Ley 34/1998 del sector de hidrocarburos (Lei 34/1998 relativa ao Setor dos Hidrocarbonetos), de 7 de outubro de 1998 (BOE n.o 241, de 8 de outubro de 1998)], no título VII da [Ley 43/2010 del servicio postal universal, de los derechos de los usuarios y del mercado postal (Lei 43/2010 relativa ao Serviço Postal Universal, aos Direitos dos Utilizadores e ao Mercado Postal), de 30 de dezembro de 2010 (BOE n.o 318, de 31 de dezembro de 2010, p. 109195)], e no título VII da [Ley 39/2003 del Sector Ferroviario (Lei 39/2003 relativa ao Setor Ferroviário), de 17 de novembro de 2003 (BOE n.o 276, de 17 de novembro de 2003)].

2.      Para efeitos do exercício do poder sancionatório, é garantida a necessária separação funcional entre a fase de instrução, que é da responsabilidade do pessoal da direção competente em razão da matéria, e a fase de decisão, que é da responsabilidade do Conselho.

3.      O procedimento para o exercício do poder sancionatório é regulado pelo disposto na presente lei, nas leis referidas no n.o 1 e, no que não esteja previsto nas normas anteriores, pela [Ley 30/1992 de Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común (Lei 30/1992 relativa ao Regime Jurídico da Administração Pública e ao Procedimento Administrativo Comum), de 26 de novembro de 1992 (BOE n.o 285, de 27 de novembro de 1992)], e respetivas normas de execução. Concretamente, o procedimento sancionatório em matéria de defesa da concorrência rege‑se pelas disposições específicas da Lei 15/2007, de 3 de julho de 2007.

4.      A decisão põe termo ao procedimento administrativo e pode ser objeto de recurso contencioso administrativo.»

 Real Decreto 657/2013

21      O artigo 4.o do Estatuto Orgânico da Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência, aprovado pelo Real Decreto 657/2013 por el que se aprueba el Estatuto Orgánico de la Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (Real Decreto 657/2013 que Aprova o Estatuto Orgânico da Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência), de 30 de agosto de 2013 (BOE n.o 209, de 31 de agosto de 2013, p. 63623, a seguir «Estatuto Orgânico da CNMC»), sob a epígrafe «Coordenação e cooperação institucional», dispõe:

«Sempre que decorra da legislação da União Europeia ou nacional, a [CNMC] é considerada:

a)      Autoridade nacional da concorrência.

[…]»

22      O artigo 15.o, n.o 2, do referido estatuto prevê:

«O presidente da [CNMC], que é igualmente presidente da Secção Plenária do seu Conselho e da Secção da Concorrência, exerce as funções de direção e representação desta última nos termos do disposto no artigo 19.o da [Lei relativa à Criação da CNMC]. No exercício das suas funções, é o órgão competente para:

[…]

b)      propor à Secção Plenária da [CNMC] a nomeação e a cessação de funções do secretário do Conselho, dos diretores de investigação e do restante pessoal de direção da [CNMC].

[…]»

 Lei relativa ao Contencioso Administrativo

23      O artigo 75.o, n.os 1 e 2, da Ley 29/1998 reguladora de la Jurisdicción Contencioso Administrativo (Lei 29/1998, relativa ao Contencioso Administrativo), de 13 de julho de 1998 (BOE n.o 167, de 14 de julho de 1998), dispõe:

«1.      Os recorridos podem exercer o direito de retratação cumprindo as exigências previstas no n.o 2 do artigo anterior.

2.      Após a retratação, o juiz ou o tribunal proferirá, sem mais formalidades, uma decisão conforme às pretensões do recorrente, exceto se daí resultar uma violação manifesta da ordem jurídica, caso em que o tribunal informa as partes dos fundamentos que podem ser deduzidos contra o acolhimento das pretensões e as ouve num prazo ordinário de dez dias, findo o qual proferirá uma decisão que considere conforme ao direito.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

24      Por Acórdão de 11 de dezembro de 2014, Comissão/Espanha (C‑576/13, não publicado, EU:C:2014:2430), o Tribunal de Justiça declarou, num processo em que estava em causa o regime de gestão dos trabalhadores para os serviços de movimentação de mercadorias no setor portuário então em vigor em Espanha, que, ao impor às empresas de outros Estados‑Membros que pretendam exercer a atividade de movimentação de mercadorias nos portos espanhóis de interesse geral, por um lado, a obrigação de inscrição numa Sociedad Anónima de Gestion de Estibadores Portuarios (sociedade anónima de gestão de estivadores portuários, a seguir «SAGEP»), bem como, no caso em apreço, a participação no capital desta, e, por outro, a contratação, com caráter prioritário, de trabalhadores disponibilizados por essa sociedade, um número mínimo dos quais de forma permanente, o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.o TFUE.

25      Para dar cumprimento ao Acórdão de 11 de dezembro de 2014, Comissão/Espanha (C‑576/13, não publicado, EU:C:2014:2430), o Reino de Espanha adotou o Real Decreto‑ley 8/2017 por el que se modifica el régimen de los trabajadores para la prestación del servicio portuario de manipulación de mercancías dando cumplimiento a la Sentencia del Tribunal de Justicia de la Unión Europea de 11 de diciembre de 2014, recaída no Asunto C‑576/13 (procedimiento de infracción 2009/4052) [Real Decreto‑Lei 8/2017, que Altera o Regime dos Trabalhadores para a Prestação de Serviços de Movimentação de Mercadorias, em cumprimento do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 11 de dezembro de 2014, proferido no processo C‑576/13 (processo de infração 2009/4052)], de 12 de maio de 2017 (BOE n.o 114, de 13 de maio de 2017). Este diploma prevê o livre recrutamento de trabalhadores portuários para a prestação do serviço de movimentação de mercadorias e declara, em substância, que, para a prestação deste serviço, não é necessário que as empresas que prestam o serviço portuário de movimentação de mercadorias (a seguir «empresas de movimentação de mercadorias») participem no capital de uma SAGEP.

26      No entanto, o Real Decreto‑Lei 8/2017 instituiu um período transitório de adaptação de três anos, que expirou em 14 de maio de 2020, durante o qual as empresas de movimentação de mercadorias estavam obrigadas a recorrer a trabalhadores de uma SAGEP para uma determinada percentagem das suas atividades, independentemente de serem ou não acionistas dessa SAGEP. Especificou que, no final desse período transitório, as SAGEP teriam a opção de se extinguir ou de prosseguir as suas atividades em regime de livre concorrência, se for o caso, com os centros de emprego portuário e as outras empresas de trabalho temporário.

27      Em 6 de julho de 2017, a Anesco, associação das empresas do setor portuário, por um lado, e várias organizações sindicais (a CETM, a UGT, as Comisiones Obreras, a Confederación Intersindical Gallega, Langile Abertzaleen Batzordeak e Eusko Langileen Alkartasuna), por outro, celebraram uma convenção coletiva com o objetivo de «preservar a paz social» e garantir a manutenção de todos os empregos dos estivadores portuários recrutados pelas SAGEP antes de 30 de setembro de 2017. Com essa convenção coletiva, a Anesco e as referidas organizações sindicais alteraram o quarto acordo‑quadro nacional pela inclusão de uma sétima disposição adicional que prevê que as empresas de movimentação de mercadorias que deixem uma SAGEP integrem o pessoal da estiva portuária ligado a essa SAGEP nas mesmas condições de trabalho, na proporção da sua participação no capital da SAGEP em questão.

28      Em 3 de novembro de 2017, a Direção da Concorrência instaurou o processo de infração S/DC/0619/17, Acuerdo Marco de la Estiba (acordo‑quadro relativo à estiva), contra a Anesco e as referidas organizações sindicais. Entre as razões que justificaram este processo figurava o facto de a única empresa que pediu para sair de uma SAGEP durante o período transitório ter sido objeto de uma série de atos que afetaram gravemente a sua atividade e competitividade, e que podiam ser considerados como constituindo um boicote.

29      Em 12 de novembro de 2018, a Direção da Concorrência submeteu à Secção da Concorrência do Conselho da CNMC uma proposta de decisão na qual concluía que a convenção coletiva celebrada entre a Anesco e as organizações sindicais em causa no processo principal constituía um comportamento proibido pelo artigo 1.o da Lei de Defesa da Concorrência e pelo artigo 101.o TFUE, na medida em que as obrigações suplementares impostas pela referida convenção excediam o domínio próprio da negociação coletiva e restringiam, por esse motivo, o exercício do direito de separação das SAGEP e, consequentemente, as condições de livre concorrência.

30      Em 29 de março de 2019, o Reino de Espanha adotou o Real Decreto‑Ley 9/2019 por el que se modifica la Ley 14/1994, de 1 de junio, por la que se regulan las empresas de trabajo temporal, para su adaptación a la actividad de la estiba portuaria y se concluye la adaptación legal del régimen de los trabajadores para la prestación del servicio portuario de manipulación de mercancías (Real Decreto‑Lei 9/2019 que Altera a Lei 14/1994, de 1 de junho de 1994, relativa à Regulação das Empresas de Trabalho Temporário, para a sua Adaptação à Atividade da Estiva Portuária e que Conclui a Adaptação Legal do Regime dos Trabalhadores para a Prestação do Serviço Portuário de Movimentação de Mercadorias), de 29 de março de 2019 (BOE n.o 77, de 30 de março de 2019, p. 32836). Este real decreto‑lei dava a possibilidade de, durante o período transitório, prever, através de acordos ou convenções coletivas, a sub‑rogação obrigatória do pessoal das SAGEP nos casos em que as empresas de movimentação de mercadorias decidissem deixá‑los ou decidissem desaparecer.

31      A CNMC observa que a adoção deste ato, que tem força de lei, teve por efeito aumentar o prazo para o exercício do direito de separação das SAGEP a todo o período transitório previsto no Real Decreto‑Lei 8/2017, ou seja, até 14 de maio de 2020.

32      Consequentemente, a CNMC questiona‑se sobre a compatibilidade das convenções coletivas que alteram o quarto acordo‑quadro nacional, por um lado, e do Real Decreto‑Lei 9/2019, por outro, com o artigo 101.o TFUE, o que, na sua opinião, justifica o recurso ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.o TFUE.

33      Para o efeito, a CNMC considera que tem a natureza de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE, uma vez que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, tem origem legal, caráter permanente, jurisdição com natureza vinculativa, decide segundo um procedimento contraditório, constitui um órgão independente e exerce as suas funções no pleno respeito pela objetividade e imparcialidade em relação às partes em litígio e aos respetivos interesses em relação ao objeto do litígio.

34      Nestas condições, a CNMC decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 101.o TFUE ser interpretado no sentido de que proíbe os acordos entre operadores e representantes dos trabalhadores, mesmo quando denominados convenções coletivas, quando determinam a sub‑rogação nos contratos dos trabalhadores vinculados [a uma] SAGEP por parte das empresas que dela se separam e o modo como a referida sub‑rogação se realiza?

2)      Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, deve o artigo 101.o TFUE ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições de direito interno como as constantes do Real Decreto‑Lei [9/2019], na medida em que servem de base às convenções coletivas que impõem uma determinada forma de sub‑rogação nos contratos dos trabalhadores postos à disposição que extravasa das questões laborais e gera uma harmonização das condições comerciais?

3)      Caso as referidas disposições legais sejam consideradas contrárias ao direito da União, devem a jurisprudência desse Tribunal de Justiça sobre o primado do direito da União e as suas consequências, contidas, nomeadamente, nos Acórdãos [de 15 de dezembro de 1976, Simmenthal (35/76, EU:C:1976:180), e 22 de junho de 1989, Costanzo (103/88, EU:C:1989:256)], ser interpretadas no sentido de que obrigam um organismo de direito público como a [CNMC] a não aplicar as disposições do direito interno contrárias ao artigo 101.o TFUE?

4)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, devem o artigo 101.o TFUE e o Regulamento [n.o 1/2003] e a obrigação de garantir a eficácia das normas da União[…] ser interpretados no sentido de que impõem a uma autoridade administrativa como a [CNMC] a aplicação de coimas e de sanções pecuniárias compulsórias às entidades que adotem comportamentos como os acima descritos?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

35      Embora, na decisão de reenvio, a CNMC exponha as razões pelas quais, do seu ponto de vista, tem a natureza de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE e, nas suas observações, a Asoport afirme que subscreve essa apreciação, as outras partes no processo principal, bem como o Governo espanhol e a Comissão, têm dúvidas a esse respeito. Estes últimos alegam, em particular, que os processos perante a CNMC, como o que está em causa no processo principal, não se destinam a dar lugar a uma decisão de caráter jurisdicional, pelo que não se pode considerar que este organismo tenha a qualidade de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE.

36      Segundo jurisprudência constante, para apreciar se o organismo de reenvio tem a natureza de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE, questão que deve ser decidida exclusivamente no âmbito do direito da União, o Tribunal de Justiça toma em consideração um conjunto de elementos, como a origem legal do organismo, a sua permanência, o caráter vinculativo da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, pelo organismo, das regras de direito, bem como a sua independência. Além disso, os órgãos jurisdicionais nacionais só estão habilitados a recorrer ao Tribunal de Justiça se perante eles estiver pendente um litígio e se forem chamados a pronunciar‑se no âmbito de um processo que deva conduzir a uma decisão de caráter jurisdicional (Acórdão de 31 de maio de 2005, Syfait e o., C‑53/03, EU:C:2005:333, n.o 29 e jurisprudência referida).

37      Por último, no que respeita ao conceito de «órgão jurisdicional nacional» na aceção do artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça afirmou reiteradamente que, pela sua própria natureza, só pode designar uma autoridade que tenha a qualidade de terceiro em relação à que adotou a decisão objeto da ação (Acórdãos de 30 de março de 1993, Corbiau, C‑24/92, EU:C:1993:118, n.o 15, e de 19 de setembro de 2006, Wilson, C‑506/04, EU:C:2006:587, n.o 49).

38      Ora, em primeiro lugar, no que diz respeito à qualidade de «terceiro» da CNMC, decorre dos artigos 17.o, n.o 1, e 19.o, n.o 1, alíneas f) a h), da Lei relativa à Criação da CNMC que o presidente da CNMC preside o Conselho da CNMC, o qual adota as decisões em nome da CNMC, e que, nessa qualidade, exerce as funções de direção do pessoal da CNMC e dirige, coordena, avalia e supervisiona todas as unidades da CNMC, incluindo a Direção da Concorrência, que é a autora da proposta de decisão na origem do presente pedido de decisão prejudicial. Além disso, decorre do artigo 20.o, primeiro parágrafo, ponto 13, da Lei relativa à Criação da CNMC e do artigo 15.o, n.o 2, alínea b), do Estatuto Orgânico da CNMC que cabe ao presidente da CNMC propor ao Conselho da CNMC a nomeação e a demissão do pessoal de direção, incluindo o da Direção da Concorrência.

39      Assim, à semelhança do entendimento do Tribunal de Justiça no n.o 33 do Acórdão de 31 de maio de 2005, Syfait e o. (C‑53/03, EU:C:2005:333), relativamente ao Epitropi Antagonismou (Comissão da Concorrência, Grécia), que tinha uma ligação funcional com o seu Secretariado, um órgão de instrução que emite as propostas com base nas quais decidia, o Conselho da CNMC tem uma ligação orgânica e funcional com a Direção da Concorrência da mesma, da qual emanam as propostas de decisão sobre as quais é chamado a pronunciar‑se.

40      Por consequência, contrariamente ao que alega a CNMC, não se pode considerar que esta tenha a qualidade de «terceiro» relativamente à autoridade que adota a decisão suscetível de ser objeto de recurso nem, por conseguinte, que seja qualificada de «órgão jurisdicional nacional» na aceção do artigo 267.o TFUE.

41      Em segundo lugar, importa observar que as decisões que a CNMC é chamada a proferir em litígios como o que está em causa no processo principal se assemelham a decisões de natureza administrativa, o que exclui que sejam proferidas no exercício de funções jurisdicionais (v., por analogia, Despacho de 14 de novembro de 2013, MF 7, C‑49/13, EU:C:2013:767, n.o 17).

42      Neste sentido, cumpre observar que, como resulta do artigo 4.o do Estatuto Orgânico da CNMC, a CNMC é a autoridade de concorrência responsável, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, da Lei relativa à Criação da CNMC, por assegurar, preservar e promover o bom funcionamento, a transparência e a existência de uma concorrência efetiva em todos os mercados e setores produtivos, em benefício dos consumidores e utilizadores em Espanha.

43      O litígio em causa no processo principal é um processo sancionatório instaurado oficiosamente, em conformidade com o artigo 49.o, n.o 1, da Lei de Defesa da Concorrência, pela Direção da Concorrência da CNMC contra a Anesco e as organizações sindicais em causa no processo principal, o que é confirmado pelo facto de a Asoport ter a qualidade de parte interessada no âmbito do processo instaurado pela CNMC.

44      Assim, o facto de a CNMC agir oficiosamente, enquanto administração especializada que exerce o poder sancionatório em matérias da sua competência, constitui um indício da natureza administrativa e não jurisdicional da decisão que é chamada a proferir no processo que deu lugar ao presente pedido de decisão prejudicial (v., por analogia, Despacho de 14 de novembro de 2013, MF 7, C‑49/13, EU:C:2013:767, n.o 18).

45      O mesmo sucede relativamente ao facto de a CNMC estar obrigada a trabalhar em estreita colaboração com a Comissão e poder perder competências a favor desta, nos termos do artigo 11.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1/2003, ainda que apenas nos casos em que as regras do direito da União sejam aplicáveis e a Comissão esteja em melhor posição para tratar do processo.

46      Além disso, o artigo 36.o, n.o 1, da Lei de Defesa da Concorrência exige que a CNMC adote e notifique a decisão que conclui o procedimento sancionatório em caso de comportamento anticoncorrencial num prazo máximo de 18 meses, e o artigo 38.o, n.o 1, da mesma lei especifica que o termo do referido prazo implica a caducidade do procedimento, independentemente da vontade das partes interessadas no mesmo procedimento e, em particular, dos eventuais denunciantes.

47      Saliente‑se igualmente que, de acordo com o artigo 75.o da Lei relativa ao Contencioso Administrativo, quando for interposto recurso para os tribunais administrativos contra uma decisão da CNMC, esta pode exercer o direito de retratação, isto é, pode retirar a sua própria decisão, desde que obtenha o acordo da parte que interpôs o recurso da decisão da CNMC perante os tribunais competentes.

48      Decorre do que antecede que o procedimento sancionatório perante a CNMC se situa à margem do sistema jurisdicional nacional e não corresponde ao exercício de funções jurisdicionais. Com efeito, a decisão da CNMC que põe termo ao processo é uma decisão com natureza administrativa que, sendo definitiva e imediatamente executória, não é suscetível de se revestir das características de uma decisão judicial, nomeadamente da autoridade de caso julgado (v., neste sentido, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, Margarit Panicello, C‑503/15, EU:C:2017:126, n.o 34 e jurisprudência referida).

49      A natureza administrativa do procedimento em causa no processo principal é igualmente confirmada pelo artigo 29.o, n.o 4, da Lei relativa à Criação da CNMC, que prevê que a adoção de uma decisão pelo Conselho da CNMC põe termo ao procedimento expressamente qualificado de «administrativo». Além disso, nos termos do artigo 48.o, n.o 1, da Lei de Defesa da Concorrência, pode ser interposto recurso contencioso administrativo da referida decisão, no qual a CNMC, conforme precisou, nomeadamente, o Governo espanhol nas suas observações escritas, intervém como recorrida no âmbito do processo judicial em primeira instância na Audiencia Nacional (Audiência Nacional, Espanha) ou como recorrente ou recorrida em caso de recurso do acórdão da Audiencia Nacional para o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha).

50      As considerações precedentes não podem ser postas em causa pelo Acórdão de 16 de julho de 1992, Asociación Española de Banca Privada e o. (C‑67/91, EU:C:1992:330), no qual o Tribunal de Justiça implicitamente admitiu a admissibilidade de um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal de Defensa de la Competencia (Tribunal de Defesa da Concorrência, Espanha). A este respeito, cumpre salientar que o acórdão foi proferido no contexto da antiga Lei relativa à Proteção da Concorrência espanhola, nos termos da qual este órgão era distinto do órgão de instrução em matéria de concorrência instituído por essa lei, concretamente a Dirección General de Defensa de la Competencia (Serviço de Defesa da Concorrência, Espanha). No presente caso, porém, como resulta claramente do artigo 29.o, n.o 1, da Lei relativa à Criação da CNMC, esta exerce tanto as funções anteriormente atribuídas ao Tribunal de Defesa da Concorrência como as anteriormente atribuídas ao Serviço de Defesa da Concorrência.

51      Tendo em conta o que antecede, há que concluir que o pedido de decisão prejudicial apresentado pela CNMC é inadmissível.

 Quanto às despesas

52      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o organismo de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

O pedido de decisão prejudicial apresentado pela Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência, Espanha), por Decisão de 12 de junho de 2019, é inadmissível.

Assinaturas


*      Língua do processo: espanhol.