Language of document : ECLI:EU:C:2024:269

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 21 de março de 2024 (1)

Processos apensos C498/22 a C500/22

Novo Banco, S. A. — Sucursal en España,

Banco de Portugal,

Fundo de Resolução

contra

C.F.O. (C498/22),

J.M.F.T.,

M.H.D.S. (C499/22)

e

Proyectos, Obras y Servicios de Badajoz, S. L. (C500/22)

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha)]

«Reenvio prejudicial — Saneamento e liquidação das instituições de crédito — Diretiva 2001/24/CE — Artigos 3.° e 6.° — Transmissão de direitos, de ativos ou de obrigações para uma instituição de transição — Retransmissão para a instituição de crédito sujeita à medida de saneamento — Lex concursus — Efeito de uma medida de saneamento noutros Estados‑Membros — Reconhecimento mútuo — Efeito de uma violação da obrigação de publicidade da medida de saneamento — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 17.°, 21.°, 38.° e 47.° — Direito de propriedade — Proteção jurisdicional efetiva — Defesa dos consumidores — Princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima, da igualdade e da proibição de qualquer discriminação em razão da nacionalidade — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas»






I.      Introdução

1.        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação dos artigos 3.°, n.° 2, e 6.° da Diretiva 2001/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de abril de 2001, relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito (2), e do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (3), lidos à luz dos artigos 17.°, 21.°, 38.° e 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (4), e dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima.

2.        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem o Novo Banco, S. A. — Sucursal en España (a seguir «Novo Banco Espanha»), apoiado pelo Banco de Portugal e pelo Fundo de Resolução, a vários clientes do Novo Banco Espanha, que sucedeu ao Banco Espírito Santo, S. A. — Sucursal en España (a seguir «BES Espanha»), sucursal da instituição de crédito portuguesa Banco Espírito Santo, S. A. (a seguir «BES»), à qual o Novo Banco, S. A., sucedeu na sequência das medidas de saneamento adotadas pelo Banco de Portugal. Os referidos pedidos respeitam ao impacto, em diferentes contratos de produtos e serviços financeiros, destas medidas de saneamento.

3.        Proponho ao Tribunal de Justiça, primeiro, que considere que a falta de publicação prevista no artigo 6.° da Diretiva 2001/24, que tem por finalidade permitir que os terceiros recorram da medida de saneamento no Estado‑Membro de origem, não tem impacto nos efeitos do reconhecimento mútuo dessa medida nos Estados‑Membros de acolhimento. Segundo, proponho ao Tribunal de Justiça que considere que os particulares não podem invocar a confiança legítima relativamente a um banco de transição criado no quadro de uma medida de saneamento. Terceiro, proponho ao Tribunal de Justiça que considere que os créditos indemnizatórios associados a um contrato podem ser deixados no passivo de um banco objeto de uma medida de saneamento com a criação de um banco de transição para o qual são transferidos apenas certos ativos e certos passivos.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Diretiva 93/13

4.        O artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 dispõe:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

2.      Diretiva 2001/24

5.        Os considerandos 4, 6, 7, 11, 12 e 16 da Diretiva 2001/24 enunciam:

«(4)      Será particularmente inoportuno renunciar a essa unidade que a instituição forma com as suas sucursais quando for necessário adotar medidas de saneamento ou instaurar um processo de liquidação.

[...]

(6)      Convém confiar às autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem a competência exclusiva para decidir e aplicar as medidas de saneamento previstas na legislação e nos usos em vigor nesse Estado‑Membro; dada a dificuldade em harmonizar as legislações e usos dos Estados‑Membros, torna‑se necessário recorrer ao reconhecimento mútuo, pelos Estados‑Membros, das medidas adotadas por cada um deles para restabelecer a viabilidade das instituições por eles autorizadas.

(7)      É imprescindível garantir que as medidas de saneamento das instituições de crédito adotadas pelas autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem, bem como as medidas adotadas pelas pessoas ou órgãos designados por essas autoridades para gerir essas medidas de saneamento [...] produzam os seus efeitos em todos os Estados‑Membros.

[...]

(11)      Nos Estados‑Membros onde existam sucursais, é necessária uma publicidade que informe terceiros da aplicação de medidas de saneamento, quando essas medidas forem suscetíveis de dificultar o exercício de alguns dos seus direitos.

(12)      O princípio da igualdade de tratamento entre os credores, quanto às suas possibilidades de recurso, obriga a que as autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem adotem as medidas necessárias para que os credores do Estado‑Membro de acolhimento possam exercer os seus direitos de recurso no prazo previsto para esse efeito.

[...]

(16)      A igualdade dos credores exige que a instituição de crédito seja liquidada de acordo com os princípios da unidade e universalidade, que requerem a competência exclusiva das autoridades administrativas e judiciais do Estado‑Membro de origem e o reconhecimento das suas decisões que devem poder produzir em todos os outros Estados‑Membros, sem qualquer formalidade, os efeitos que a lei lhes atribui no Estado‑Membro de origem, salvo disposição em contrário da presente diretiva.»

6.        O artigo 1.°, n.° 1, desta diretiva prevê:

«A presente diretiva é aplicável às instituições de crédito e às suas sucursais criadas num Estado‑Membro que não o da sede estatutária, tal como definidas nos primeiro e terceiro pontos do artigo 1.° da Diretiva 2000/12/CE [(5)], sem prejuízo das condições e isenções previstas no n.° 3 do artigo 2.° da referida diretiva.»

7.        Nos termos do artigo 2.°, sétimo travessão, da Diretiva 2001/24, entende‑se por «medidas de saneamento», as «medidas destinadas a preservar ou restabelecer a situação financeira de uma instituição de crédito, suscetíveis de afetar direitos preexistentes de terceiros, incluindo medidas que impliquem a possibilidade de suspensão de pagamentos, suspensão de medidas de execução ou redução dos créditos».

8.        O título II dessa diretiva, intitulado «Medidas de saneamento», compreende os artigos 3.° a 8.°

9.        O artigo 3.° da referida diretiva, com a epígrafe «Adoção de medidas de saneamento — lei aplicável», dispõe:

«1.      Só as autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem têm competência para determinar a aplicação, numa instituição de crédito, inclusivamente em relação às sucursais estabelecidas noutros Estados‑Membros, de uma ou mais medidas de saneamento.

2.      Salvo disposição em contrário da presente diretiva, as medidas de saneamento são aplicadas de acordo com as leis, regulamentos e procedimentos aplicáveis no Estado‑Membro de origem.

As referidas medidas produzem todos os seus efeitos de acordo com a legislação desse Estado‑Membro, em toda a [União Europeia], sem nenhuma outra formalidade, inclusivamente em relação a terceiros nos outros Estados‑Membros, mesmo que as normas do Estado‑Membro de acolhimento que lhes sejam aplicáveis não prevejam tais medidas ou sujeitem a sua aplicação a condições que não se encontrem preenchidas.

As medidas de saneamento produzirão os seus efeitos em toda a [União] logo que produzam os seus efeitos no Estado‑Membro em que foram tomadas.»

10.      O artigo 6.° da Diretiva 2001/24, com a epígrafe «Publicação», tem a seguinte redação:

«1.      Se a aplicação das medidas de saneamento determinadas nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 3.° for suscetível de afetar os direitos de terceiros num Estado‑Membro de acolhimento e se, no Estado‑Membro de origem, for possível interpor recurso da decisão de aplicação de tais medidas, as autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem, o administrador ou qualquer pessoa habilitada para o efeito no Estado‑Membro de origem devem publicar um extrato da sua decisão no Jornal Oficial da[União Europeia (6)] e em dois jornais de circulação nacional de cada um dos Estados‑Membros de acolhimento, por forma, nomeadamente, a permitir o exercício atempado dos direitos de recurso.

2.      O extrato da decisão referido no n.° 1 será enviado, o mais rapidamente possível e pelas vias mais adequadas, ao Serviço das Publicações Oficiais da[União Europeia] e a dois jornais de circulação nacional de cada Estado‑Membro de acolhimento.

[...]

4.      O extrato da decisão a publicar deve mencionar, na ou nas línguas oficiais dos Estados‑Membros em causa, designadamente, o objeto e o fundamento jurídico da decisão tomada, os prazos de recurso, em particular e de forma facilmente compreensível o termo desses prazos e, de forma precisa, o endereço das autoridades ou do órgão jurisdicional competentes para conhecer do recurso.

5.      As medidas de saneamento são aplicáveis independentemente das medidas previstas nos n.os 1 a 3 e produzem todos os seus efeitos em relação aos credores, salvo disposição em contrário das autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem ou da legislação desse Estado relativa a essas medidas.»

11.      O artigo 7.° desta diretiva, intitulado «Dever de informar os credores conhecidos e direito de reclamar créditos», prevê, no seu n.° 1:

«Quando a legislação do Estado‑Membro de origem exigir a reclamação de um crédito para efeitos do seu reconhecimento, ou previr uma notificação obrigatória da medida aos credores que tenham o seu domicílio, a sua residência habitual ou a sua sede estatutária nesse Estado, as autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem ou o administrador informarão também os credores conhecidos que tenham o seu domicílio, a sua residência habitual ou a sua sede estatutária nos outros Estados‑Membros, de acordo com as regras previstas no artigo 14.° e no n.° 1 do artigo 17.° da presente diretiva.»

12.      Nos termos do artigo 23.°, n.° 1, da referida diretiva, a adoção de medidas de saneamento não afeta o direito dos credores à compensação dos seus créditos contra os da instituição de crédito desde que essa compensação seja autorizada pela lei aplicável aos créditos da instituição de crédito.

13.      O artigo 32.° da mesma diretiva, sob a epígrafe «Processos pendentes», dispõe:

«Os efeitos de medidas de saneamento ou de um processo de liquidação sobre um processo pendente relativo a um bem ou direito de que a instituição de crédito tenha sido privada regulam‑se exclusivamente pela lei do Estado‑Membro em que se encontra pendente o processo.»

3.      Diretiva 2014/59/UE

14.      O artigo 83.° da Diretiva 2014/59/UE (7), sob a epígrafe «Obrigações procedimentais das autoridades de resolução», dispõe, nos seus n.os 4 e 5:

«4.      As autoridades de resolução publicam ou garantem a publicação de uma cópia da decisão ou do instrumento pelo qual são tomadas as medidas de resolução ou de um aviso que resuma os efeitos das medidas de resolução e, em particular, os efeitos para os clientes de retalho e, se for caso disso, os termos e o período da suspensão ou restrição previstos nos artigos 69.°, 70.° e 71.°, pelos seguintes meios:

a)      No seu sítio Web oficial;

b)      No sítio Web da autoridade competente, se for diferente da autoridade de resolução, e no sítio Web da [Autoridade Bancária Europeia (EBA)];

c)      No sítio Web da instituição objeto de resolução;

d)      Caso as ações, outros instrumentos de propriedade ou instrumentos de dívida da instituição objeto de resolução se encontrem admitidos à negociação num mercado regulamentado, os meios utilizados para a divulgação das informações regulamentares relativas à instituição objeto de resolução nos termos do artigo 21.°, n.° 1, da Diretiva 2004/109/CE [(8)].

5.      Se as ações, os instrumentos de propriedade ou os instrumentos de dívida não se encontrarem admitidos à negociação num mercado regulamentado, a autoridade de resolução deve assegurar que os documentos comprovativos dos instrumentos referidos no n.° 4 sejam enviados aos acionistas e aos credores da instituição objeto de resolução, conhecidos através dos registos ou das bases de dados da instituição objeto de resolução que estejam à disposição da autoridade de resolução.»

15.      O artigo 117.° dessa diretiva, sob a epígrafe «Alteração da Diretiva [2001/24]», prevê, no seu ponto 1, o aditamento, ao artigo 1.° dessa diretiva, de um n.° 5, nos termos do qual « [o]s artigos 4.° e 7.° da presente diretiva não são aplicáveis caso se aplique o artigo 83.° da Diretiva [2014/59]».

16.      Nos termos do artigo 130.°, n.° 1, da Diretiva 2014/59, o prazo de transposição da mesma era 31 de dezembro de 2014.

17.      Nos termos do seu artigo 131.°, esta entrou em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia, ou seja, em 2 de julho de 2014.

B.      Direito espanhol

18.      O artigo 19.°, n.° 1, da Ley 6/2005 sobre saneamiento y liquidación de las entidades de crédito (Lei n.° 6/2005 relativa ao Saneamento e à Liquidação das Instituições de Crédito) (9), de 22 de abril de 2005, que transpôs a Diretiva 2001/24 para a ordem jurídica espanhola, prevê:

«Nos casos em que tenha sido adotada uma medida de saneamento ou instaurado um processo de liquidação em relação a uma instituição de crédito, autorizada num Estado‑Membro [...], que possua pelo menos uma sucursal ou que preste serviços em Espanha, a referida medida ou o referido processo produzirão todos os seus efeitos em Espanha, sem nenhuma outra formalidade, logo que produzam todos os seus efeitos no Estado‑Membro em que a medida foi adotada ou em que o processo foi instaurado.»

C.      Direito português

19.      Os artigos 145.°‑C e seguintes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, introduzidos pelo Decreto‑Lei n.° 31‑A/2012 (10), de 10 de fevereiro de 2012, regem as medidas de saneamento e de resolução das instituições de crédito e das sociedades financeiras.

III. Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

A.      Processo C498/22

20.      Em 11 de dezembro de 2006, C.F.O. contratou, na qualidade de consumidor, com o BES Espanha um mútuo hipotecário em que figurava uma cláusula de taxa de juro mínima ou «cláusula de taxa mínima» de 2 %.

21.      Por Acórdão de 9 de maio de 2013, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) declarou abusivas por falta de transparência essas «cláusulas de taxa mínima». C.F.O. pediu ao BES Espanha que deixasse de aplicar a «cláusula de taxa mínima» constante do seu mútuo, o que o BES Espanha fez a partir do mês de junho de 2013.

22.      Em aplicação do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, e no contexto das graves dificuldades financeiras do BES, o conselho de administração do Banco de Portugal adotou, por decisão de 3 de agosto de 2014, alterada pela decisão de 11 de agosto de 2014 (a seguir «decisão de agosto de 2014»), medidas ditas «de resolução» dessa instituição de crédito.

23.      Através desta decisão, o Banco de Portugal decidiu criar um «banco de transição», o Novo Banco, para o qual foram transferidos os ativos, passivos e outros elementos extrapatrimoniais do BES descritos no anexo 2 da referida decisão.

24.      Entre os elementos do passivo excluídos da transferência para o Novo Banco figuravam designadamente «quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais».

25.      Após esta transferência, o Novo Banco Espanha tornou‑se o credor hipotecário do mútuo contratado em 11 de dezembro de 2006 e começou a faturar a C.F.O as prestações mensais para o seu reembolso.

26.      Em 3 de outubro de 2014, o Banco de España (Banco de Espanha) publicou no Boletín Oficial del Estado um anúncio no qual indicava que, com a decisão de agosto de 2014, o Banco de Portugal tinha aplicado ao BES uma medida de resolução que consistia na transferência parcial das suas atividades para o banco de transição Novo Banco, que continuaria sem interrupção com a atividade ordinária do BES, classificando‑se esta medida de medida de saneamento, na aceção do artigo 2.° da Diretiva 2001/24.

27.      Em 29 de dezembro de 2015, o Banco de Portugal adotou duas decisões para alterar e clarificar o anexo 2 da decisão de agosto de 2014 (a seguir «decisões de 29 de dezembro de 2015»), que esclareciam nomeadamente que, a partir desse dia, «os créditos e as indemnizações relacionados com a alegada anulação de determinadas cláusulas de contratos de mútuo em que o BES era o mutuante» não eram transmitidos ao Novo Banco.

28.      Em janeiro de 2017, C.F.O. reclamou ao Novo Banco Espanha o reembolso dos montantes cobrados pelo BES Espanha devido à aplicação da «cláusula de taxa mínima» do seu mútuo hipotecário.

29.      Por carta de 21 de março de 2017, o Novo Banco recusou este pedido, indicando que o banco tinha atuado com toda a transparência no âmbito da prestação das informações relativas a essa «cláusula de taxa mínima», que tinha sido subscrita em 24 de novembro de 2006, ou seja, antes da assinatura do ato notarial do mútuo hipotecário.

30.      Em 4 de maio de 2017, C.F.O. intentou uma ação contra o Novo Banco Espanha com vista a obter a declaração de nulidade, por abusiva, da «cláusula de taxa mínima» do mútuo hipotecário que tinha celebrado com o BES Espanha e a condenação do Novo Banco Espanha a reembolsar‑lhe os montantes indevidamente pagos em aplicação dessa cláusula.

31.      O Novo Banco Espanha opôs‑se à ação invocando uma exceção relativa à ilegitimidade passiva, já que o crédito que poderia ter surgido a favor de C.F.O., e que consistia na restituição dos montantes recebidos pelo BES Espanha a título da aplicação da «cláusula de taxa mínima», não tinha sido transferido para o Novo Banco pelas medidas de saneamento adotadas pelo Banco de Portugal em relação ao BES.

32.      Quer o tribunal de primeira instância quer, em sede de recurso, a Audiencia Provincial (Audiência Provincial, Espanha) julgaram improcedente a exceção invocada pelo Novo Banco Espanha e deram provimento ao recurso de C.F.O.

33.      O Novo Banco Espanha recorreu para o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal), que aceitou o pedido de intervenção do Banco de Portugal e do Fundo de Resolução em apoio do recurso.

34.      Num primeiro momento, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que, embora as decisões do Banco de Portugal de agosto de 2014 e de 29 de dezembro de 2015 se considerem medidas de saneamento, na aceção da Diretiva 2001/24 (11), e possam afetar terceiros, não existiu qualquer publicação dessas decisões, contrariamente ao que o artigo 6.°, n.os 1 a 4 dessa diretiva exige. A este propósito, este órgão jurisdicional sublinha que as informações comunicadas pelo Banco de Portugal no seu sítio Internet, em inglês e em português, bem como nos meios de comunicação espanhóis, sobre a crise do BES e a criação do Novo Banco eram muito genéricas e não permitiam aos clientes em causa identificar os passivos excluídos da transferência de património, e ter consciência da limitação dos seus direitos que essa exclusão implicava. De resto, o referido órgão jurisdicional salienta que o anúncio público pelo Banco de Espanha, referido no n.° 26 das presentes conclusões, também não preenche os requisitos desta disposição.

35.      Esta falta de publicação nos termos exigidos pela referida disposição impediu a quase totalidade dos clientes do BES Espanha que residem em Espanha de recorrerem das decisões do Banco de Portugal e conduziu‑os a interpor recursos contra o Novo Banco Espanha no decurso dos quais este invocou, no entanto, a ilegitimidade passiva já que as medidas de saneamento não tinham transferido a obrigação de reembolsar os montantes pagos por estes clientes devido à aplicação de uma cláusula abusiva.

36.      O órgão jurisdicional de reenvio duvida que o artigo 6.°, n.° 5, da Diretiva 2001/24, nos termos do qual as medidas de saneamento são aplicáveis e produzem todos os seus efeitos independentemente das medidas de publicidade previstas nos n.os 1 a 3 desta disposição, possa cobrir uma falta prolongada de publicação, no Estado‑Membro de acolhimento, das limitações ou privações de direitos que essas medidas impõem aos clientes da entidade em causa, e das vias e modalidades de recurso de que dispõem.

37.      Assim, interroga‑se sobre o facto de a obrigação de reconhecimento, no Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos das medidas de saneamento adotadas no Estado‑Membro de origem, enunciada no artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24, poder ser conforme com o princípio da proteção jurisdicional efetiva consagrado no artigo 47.° da Carta, a proibição de toda a discriminação em razão da nacionalidade, prevista no seu artigo 21.°, n.° 2, e o princípio da segurança jurídica, quando tais medidas não foram publicadas nos termos exigidos pelo artigo 6.°, n.os 1 a 4, dessa diretiva.

38.      Num segundo momento, o órgão jurisdicional de reenvio observa que a resposta do Novo Banco Espanha à reclamação de C.F.O. não punha em causa a transferência da responsabilidade pelo passivo, em particular a obrigação de reembolsar os montantes pagos por C.F.O. ao BES Espanha, a título da aplicação de uma «cláusula de taxa mínima» considerada, em seguida, abusiva. Pelo contrário, o Novo Banco Espanha respondeu quanto ao fundo, sublinhando que o «banco tinha atuado com toda a transparência», num momento em que era controlado pelo Fundo de Resolução, que era, ele próprio, um organismo público dependente do Banco de Portugal. Por conseguinte, C.F.O. intentou a sua ação considerando, com toda a confiança, que o Novo Banco Espanha, enquanto sucursal de uma instituição bancária controlada por uma autoridade pública que agia em aplicação do direito da União, ocupava a posição de mutuante no contrato de mútuo hipotecário.

39.      Logo, este órgão jurisdicional pergunta‑se se, numa situação em que um consumidor, que reside no Estado‑Membro de acolhimento, pôde basear a sua confiança legítima no comportamento do banco de transição, controlado por uma autoridade pública do Estado‑Membro de origem, a obrigação de reconhecimento dos efeitos das medidas de saneamento, enunciada no artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24, é conforme ao artigo 47.° da Carta e ao princípio da segurança jurídica.

40.      Num terceiro momento, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a legalidade, à luz do direito da União, em particular do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, da fragmentação da relação contratual que resulta das medidas de saneamento em causa no processo principal, ou seja, que o consumidor se encontra vinculado pelas suas obrigações para com o Novo Banco Espanha, pagando a este último as prestações mensais do mútuo hipotecário inicialmente contratado com o BES Espanha, enquanto, simultaneamente, o Novo Banco Espanha é liberto da obrigação de reembolsar os montantes recebidos pelo BES Espanha em aplicação da «cláusula de taxa mínima», o que leva a que esse consumidor esteja vinculado por essa cláusula abusiva, pois não pode recuperar os seus montantes junto do BES, dada a situação de insolvência deste. Esta situação pode constituir uma ingerência desproporcionada no direito de propriedade desse consumidor, contrária ao artigo 17.° da Carta.

41.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio considera duvidoso que os direitos dos consumidores não prevaleçam sobre a estabilidade do sistema financeiro (12).

42.      Nestas circunstâncias, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      É compatível com o direito fundamental à ação, previsto no artigo 47.° da [Carta], com o princípio geral da segurança jurídica e com o princípio da igualdade e da proibição de toda a discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 21.°, n.° 2, da Carta, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que não foi publicada nos termos previstos no artigo 6.°, n.os 1 a 4, d[essa diretiva]?

2.      É compatível com o direito fundamental à ação, previsto no artigo 47.° da Carta e com o princípio geral da segurança jurídica, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que excluiu determinadas obrigações e responsabilidades da transferência para um “banco de transição” da atividade ordinária e de uma série de elementos patrimoniais do banco ao qual são aplicáveis as medidas de saneamento, quando a própria atuação posterior do “banco de transição”, controlado por uma autoridade pública que aplica o direito da União, criou nos clientes do Estado‑Membro de acolhimento a confiança legítima de que tinha assumido o passivo correspondente às responsabilidades e obrigações que o banco objeto da medida de saneamento tinha relativamente a esses clientes?

3.      É compatível com o direito fundamental de propriedade do artigo 17.° da Carta, com o princípio de um elevado nível de defesa dos consumidores do artigo 38.° da Carta, com o artigo 6.°, n.° 1, da [Diretiva 1993/13], e com o princípio geral da segurança jurídica, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que transfere para um “banco de transição” a posição credora num contrato de mútuo hipotecário mas deixa no banco inviável a obrigação de restituir ao mutuário consumidor os montantes cobrados pela aplicação de uma cláusula abusiva desse contrato?»

B.      Processo C499/22

43.      J.M.F.T. e M.H.D.S. abriram uma conta de valores mobiliários e celebraram um contrato de gestão de carteira de investimentos com o BES Espanha. Em 3 de outubro de 2007, celebraram um contrato financeiro atípico (a seguir «CFA») com o BES Espanha com termo em 11 de outubro de 2014, data em que foi rescindido e liquidado pelo Novo Banco, que tinha, entretanto, sucedido ao BES. Celebraram também com o BES Espanha, em 28 de abril de 2008, um contrato relativo a um produto financeiro estruturado com termo a 28 de abril de 2013 e que foi liquidado com perdas pelo BES Espanha.

44.      Em agosto de 2014, J.M.F.T. recebeu várias comunicações da parte do Novo Banco dando conta, na sequência das decisões adotadas pelo Banco de Portugal face ao BES, da continuidade das relações bancárias entre os clientes BES Espanha e a nova entidade Novo Banco Espanha, bem como o extrato do estado financeiro do CFA.

45.      Em 17 de abril de 2017, J.M.F.T. e M.H.D.S. intentaram uma ação contra o Novo Banco, pedindo, a título principal, a anulação dos dois produtos financeiros por erro no consentimento, devido à insuficiência das informações que o BES lhes forneceu, e a restituição recíproca dos montantes recebidos por cada uma das partes, acrescidos dos juros a contar da data de cada pagamento e, a título subsidiário, a indemnização dos prejuízos sofridos ao adquirirem os dois produtos financeiros, acrescida dos juros calculados à taxa de juro legal a contar da notificação da ação.

46.      O Novo Banco Espanha opôs‑se à ação invocando uma exceção de ilegitimidade passiva já que o crédito que poderia ter surgido a favor de J.M.F.T. e M.H.D.S., e que consistia na restituição dos montantes pagos por estes últimos a título dos produtos financeiros devido à possível nulidade dos contratos ou na indemnização das perdas sofridas pelo facto de esses clientes não terem sido informados dos riscos dos instrumentos financeiros em causa, não tinha sido transferido para o Novo Banco pelas medidas de saneamento adotadas pelo Banco de Portugal em relação ao BES.

47.      A ação foi julgada procedente em primeira instância.

48.      Na sequência do recurso interposto pelo Novo Banco Espanha, a Audiencia Provincial (Audiência Provincial) deu provimento ao recurso na parte em que respeita ao contrato celebrado em 28 de abril de 2008, por ter sido liquidado pelo BES Espanha em 28 de abril de 2013, ou seja, antes da criação do Novo Banco no quadro das medidas de saneamento do BES. Tratava‑se, portanto, de uma operação que esgotou os seus efeitos antes destas medidas, pelo que nenhuma obrigação ou responsabilidade decorrente desse contrato tinha sido transferida para o Novo Banco.

49.      Em contrapartida, a Audiencia Provincial (Audiência Provincial) negou provimento ao recurso na parte em que respeita ao CFA, cuja gestão e liquidação em outubro de 2014 foram geridos pelo Novo Banco. Este órgão jurisdicional também indicou que a decisão de agosto de 2014 não excluía da transferência um produto estruturado como o CFA, mas os instrumentos de dívida emitidos pelas instituições do BES. Acrescentou que os esclarecimentos fornecidos pelas decisões ulteriores do Banco de Portugal eram irrelevantes uma vez que o contrato tinha sido declarado terminado e liquidado anteriormente.

50.      Tanto J.M.F.T. e M.H.D.S., por um lado, como o Novo Banco Espanha, apoiado pelo Banco de Portugal e pelo Fundo de Resolução, por outro, recorreram para o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal), que justifica o seu pedido de decisão prejudicial da mesma maneira que no processo C‑498/22 (13).

51.      Nestas circunstâncias, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      É compatível com o direito fundamental à ação, previsto no artigo 47.° da [Carta], com o princípio geral da segurança jurídica e com o princípio da igualdade e da proibição de toda a discriminação em razão da nacionalidade, consagrado no artigo 21.°, n.° 2, da Carta, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que não foi publicada nos termos previstos no artigo 6.°, n.os 1 a 4, d[essa diretiva]?

2.      É compatível com o direito fundamental à ação, previsto no artigo 47.° da Carta e com o princípio geral da segurança jurídica, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que excluiu determinadas obrigações e responsabilidades da transferência para um “banco de transição” da atividade ordinária e de uma série de elementos patrimoniais do banco ao qual são aplicáveis as medidas de saneamento, quando a própria atuação posterior do “banco de transição”, controlado por uma autoridade pública que aplica o direito da União, criou nos clientes do Estado‑Membro de acolhimento a confiança legítima de que tinha assumido o passivo correspondente às responsabilidades e obrigações que o banco objeto da medida de saneamento tinha relativamente a esses clientes?

3.      É compatível com o direito fundamental de propriedade do artigo 17.° da Carta, com o princípio de um elevado nível de defesa dos consumidores do artigo 38.° da Carta e com o princípio geral da segurança jurídica, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que transfere para um “banco de transição” a posição credora nas relações contratuais acordadas pelo banco objeto das medidas de saneamento mas deixa no banco inviável a obrigação de restituir ao cliente os montantes pagos por este no âmbito dos contratos anulados por erro no consentimento provocado pela insuficiência das informações fornecidas pelo banco?»

C.      Processo C500/22

52.      Em 17 de novembro de 2014, a sociedade Proyectos, Obras y Servicios de Badajoz, S. L. (a seguir «POSB»), adquiriu, no mercado secundário, uma obrigação do tipo «Senior Bond NB 6,875 % maturity July 2016», com termo em 15 de julho de 2016.

53.      Esta obrigação tinha sido emitida pelo BES, mas, no momento da sua aquisição pela POSB, através de uma empresa de investimento, este instrumento de dívida não subordinada fazia parte do património do Novo Banco, para o qual tinha sido transferido por força da decisão de agosto de 2014.

54.      Em julho de 2015, o Novo Banco pagou à POSB um rendimento a título do rendimento obrigatório correspondente à anuidade 2014‑2015.

55.      Quando a obrigação chegou ao seu termo em 15 de julho de 2016, o Novo Banco nem pagou o rendimento obrigatório a título de 2015‑2016 nem restituiu o valor nominal dessa obrigação à POSB.

56.      Em resposta à reclamação desta última, o Novo Banco indicou que a recusa de pagamento se baseava nas decisões de 29 de dezembro de 2015, que tinham «retransmitido» o passivo associado a esta obrigação do Novo Banco ao BES. Com efeito, essas decisões previam nomeadamente a «retransmissão» de obrigações não subordinadas do Novo Banco ao BES, cujos direitos e responsabilidades decorrem, entre outros, das «Senior Bond NB 6,875 % maturity July 2016».

57.      Em 25 de junho de 2017, a POSB intentou uma ação contra o Novo Banco, pedindo o pagamento do rendimento correspondente à anuidade 2016‑2016 da obrigação e a restituição do montante correspondente ao seu valor nominal.

58.      O Novo Banco opôs‑se ao recurso invocando uma exceção de ilegitimidade passiva já que o passivo associado à obrigação tinha sido «retransmitido» ao BES.

59.      Quer o tribunal de primeira instância quer, em sede de recurso, a Audiencia Provincial (Audiência Provincial) julgaram improcedente a exceção invocada pelo Novo Banco e deram provimento ao recurso.

60.      O Novo Banco Espanha, apoiado pelo Banco de Portugal e pelo Fundo de Resolução, recorreu para o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal), que observa, nomeadamente, que a posse de um título de crédito não subordinado confere à POSB a proteção do direito fundamental de propriedade reconhecido no artigo 17.° da Carta. Ora, a «retransmissão» ao BES das responsabilidades e das obrigações associadas a este título de crédito acarreta, na prática, uma privação do seu direito de propriedade, uma vez que o BES é um banco inviável, privado dos seus ativos. Esta privação, sem justa indemnização em tempo útil, pode também constituir uma violação do princípio da segurança jurídica (14).

61.      Nestas circunstâncias, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      É compatível com o direito fundamental à ação, previsto no artigo 47.° da [Carta], com o princípio geral da segurança jurídica e com o princípio da igualdade e da proibição de toda a discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 21.°, n.° 2, da Carta, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que não foi publicada nos termos previstos no artigo 6.°, n.os 1 a 4, d[essa diretiva]?

2.      É compatível com o direito fundamental de propriedade do artigo 17.° da Carta e com o princípio geral da segurança jurídica, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que retransmitiu para o banco inviável ao qual foram aplicadas as medidas de resolução as obrigações e as responsabilidades derivadas de uma obrigação não subordinada que foi adquirida por um terceiro quando essas obrigações e responsabilidades se encontravam no património do “banco de transição”?»

62.      Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 29 de setembro de 2022, os processos C‑498/22, C‑499/22 e C‑500/22 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão.

63.      C.F.O., J.M.F.T. e M.H.D.S., o Novo Banco Espanha, o Banco de Portugal, os Governos Espanhol e Português e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

64.      C.F.O., a POSB, o Novo Banco Espanha, o Banco de Portugal, os Governos Espanhol e Português, o Conselho da União Europeia, a Comissão e o Parlamento Europeu participaram na audiência que teve lugar em 26 de outubro de 2023, durante a qual responderam às perguntas para resposta oral feitas pelo Tribunal de Justiça.

IV.    Análise

A.      Quanto às primeiras questões nos processos C498/22, C499/22 e C500/22

65.      Em cada um dos três processos, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se é compatível com o direito fundamental à ação, previsto no artigo 47.° da Carta, com o princípio geral da segurança jurídica e com o princípio da igualdade e da proibição de toda a discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 21.°, n.° 2, da Carta, uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que não foi publicada nos termos previstos no artigo 6.°, n.os 1 a 4, dessa diretiva.

66.      Por outras palavras, o órgão jurisdicional de reenvio deseja saber quais são os efeitos da falta de publicação, prevista nesse artigo 6.°, do extrato da decisão nacional que ordena a medidas de saneamento pelas autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem, o administrador ou qualquer outra pessoa habilitada para o efeito no Estado‑Membro de origem, no JO e em dois jornais de circulação nacional de cada um dos Estados‑Membros de acolhimento.

67.      Importa, antes de mais, observar que, segundo o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2001/24, esta publicação deve ocorrer se se verificarem duas condições: por um lado, a medida de saneamento deve poder afetar os direitos dos terceiros num Estado‑Membro de acolhimento e, por outro, deve ser possível recorrer da decisão que ordena a medida no Estado‑Membro de origem. As duas condições parecem preenchidas no caso em apreço, uma vez que existe um recurso em Portugal contra a medida de saneamento (15) e os recorrentes no processo principal são credores afetados por essa medida.

68.      Resulta, em seguida, da própria letra desse artigo 6.°, n.° 1, que esta publicação se destina a proteger o direito de recurso dos credores nos Estados‑Membros de acolhimento, contra a medidas de saneamento, perante o juiz competente no Estado‑Membro de origem, uma vez que termina com os termos «por forma, nomeadamente, a permitir o exercício atempado dos direitos de recurso».

69.      Por fim, a utilização do plural, bem como a redação dos considerandos 11 e 12 da Diretiva 2001/24, podia levar a pensar que todos os recursos dos credores, contra a própria medida de saneamento, mas também contra o seu devedor, deviam ser protegidos. Todavia, o requisito relativo à existência de um recurso contra a medida de saneamento não permite ter uma visão extensiva dos direitos aos recursos que é suposto a publicação proteger. Com efeito, a publicação não é obrigatória quando não existe recurso contra a medida de saneamento no Estado‑Membro de origem. Ora, nessa hipótese, os credores continuam a ter direitos que podem invocar contra o seu devedor. Além disso, a natureza das informações que devem ser publicadas segundo o artigo 6.°, n.° 4, dessa diretiva, ou seja, um extrato da decisão que menciona «o objeto e o fundamento jurídico da decisão tomada, os prazos de recurso, em particular e de forma facilmente compreensível o termo desses prazos e, de forma precisa, o endereço das autoridades ou do órgão jurisdicional competentes para conhecer do recurso», reforça a interpretação segundo a qual os recursos em causa são os que se dirigem à medida de saneamento e não todos os recursos possíveis dos credores contra a instituição de crédito ou o banco de transição.

70.      Esta interpretação é a única suscetível de garantir coerência com os princípios constantes dos artigos 3.°, n.° 2, e 6.°, n.° 5, da Diretiva 2001/24. Resulta desta primeira disposição que as medidas de saneamento produzem todos os seus efeitos, em toda a União, sem nenhuma outra formalidade, inclusivamente em relação a terceiros logo que produzam os seus efeitos no Estado‑Membro em que foram tomadas. A segunda disposição enuncia que as medidas de saneamento são aplicáveis independentemente das publicações previstas no artigo 6.°, n.os 1 a 3, dessa diretiva e produzem todos os seus efeitos em relação aos credores.

71.      Estes princípios traduzem concretamente o objetivo prosseguido pela Diretiva 2001/24, que é uma diretiva de reconhecimento mútuo dos efeitos de uma medida de saneamento adotada num Estado‑Membro de origem nos outros Estados‑Membros de acolhimento, nos quais estão instaladas sucursais com, como corolário, a aplicação dos princípios da unicidade e da universalidade do processo (um só juiz competente e um só direito aplicável, os do Estado‑Membro de origem) (16), salvo exceções, nomeadamente em caso de processos pendentes no Estado‑Membro de acolhimento que continuam exclusivamente regulados pela lei desse Estado‑Membro (17).

72.      Além disso, a notificação individual aos credores só é prevista, no artigo 7.° dessa diretiva, quando a legislação do Estado‑Membro de origem exigir a reclamação de um crédito para efeitos do seu reconhecimento, ou previr uma notificação obrigatória da medida de saneamento aos credores que tenham o seu domicílio, a sua residência habitual ou a sua sede estatutária nesse Estado. Daqui resulta, como já indiquei nos n.os 68 e 69 das presentes conclusões, que essa notificação não tem por finalidade proteger todos os recursos dos credores contra o devedor, mas garantir que esses credores poderão invocar os seus direitos no quadro dessa medida segundo o direito nacional do Estado‑Membro de origem.

73.      Assim, de modo geral, a Diretiva 2001/24 não trata dos recursos individuais dos credores contra a instituição de crédito ou o banco de transição, na hipótese de uma medida de saneamento, salvo se se tratar de certos contratos ou direitos (nomeadamente contrato de trabalho, direitos sobre um bem imóvel inscrito num registo público, certos direitos reais, direitos baseados numa cláusula de reserva de propriedade (18)) ou se se tratar de um processo pendente que continue regulado pela lei do Estado‑Membro de acolhimento em que se encontra pendente o processo (19).

74.      Nos processos principais, é pacífico que a publicação exigida pelo artigo 6.° dessa diretiva não foi feita e, assim, coloca‑se a questão da sanção para essa falta de publicação.

75.      Várias hipóteses são avançadas pelos diversos intervenientes no Tribunal de Justiça. Alguns defendem que, na falta de publicação, a medida de saneamento não tem efeitos fora do Estado‑Membro de origem. A Comissão acrescenta que essa sanção só se aplica passado um certo prazo associado às contingências inerentes aos prazos de publicação no JO. Outros defendem a irrelevância da falta de publicação nos termos do artigo 6.° da Diretiva 2001/24, uma vez foi feita publicidade nos termos do artigo 83.° da Diretiva 2014/59.

76.      Considero que a primeira hipótese relativa à falta de efeitos das medidas de saneamento nos Estados‑Membros de acolhimento é contrária à letra da Diretiva 2011/24 e não corresponde ao seu objetivo, que é assegurar um reconhecimento mútuo dessas medidas com, como corolário, a aplicação dos princípios da unidade e da universalidade dos processos. Além disso, não se concebe que tenham efeitos imediatos mas só perdurem durante «um certo período», o tempo necessário à publicação no JO. Com efeito, na falta de publicação ou em caso de publicação tardia, seria impossível determinar a data em que o reconhecimento mútuo deixaria de produzir efeitos. Assim, esse prazo aproximativo iria diretamente contra objetivos da Diretiva 2001/24, de restabelecer a viabilidade das instituições de crédito (20).

77.      Quanto à segunda hipótese, que consiste em substituir a publicação prevista no artigo 6.° da Diretiva 2001/24 pela prevista no artigo 83.°, n.° 4, da Diretiva 2014/59, também não me parece compatível com o artigo 117.° dessa diretiva, que altera o artigo 1.° da Diretiva 2001/24 para precisar, num novo n.° 5, que «[o]s artigos 4.° e 7.° da presente diretiva não são aplicáveis caso se aplique o artigo 83.° da Diretiva [2014/59]». Daqui resulta, a contrario, que a publicação do artigo 6.° da Diretiva 2001/24 deve ter lugar mesmo que a publicidade prevista no artigo 83.° da Diretiva 2014/59 tenha sido feita. Por conseguinte, a questão de saber se a Diretiva 2014/59 é aplicável ratione temporis no caso em apreço é irrelevante.

78.      Acresce que, na falta de indicação concreta de ordem processual prevista pelo direito da União para ratificar um direito, e em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União. Estas modalidades não devem, todavia, ser menos favoráveis do que as vias semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) e não devem tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (21).

79.      Ora, como foi já exposto, a publicação prevista no artigo 6.° da Diretiva 2001/24 garante a proteção do direito de contestar a medida de saneamento no tribunal do Estado‑Membro de origem devido ao reconhecimento mútuo que essa diretiva implementa. Na hipótese de tal recurso ser interposto pelos recorrentes nos processos principais, o tribunal português deve ter em conta a falta de publicação prevista nesse artigo 6.° para apreciar se essa falta não tornou praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício desse recurso à luz das regras nacionais relativas ao prazo de exercício dos recursos contra esse tipo de decisão.

80.      Esta análise é corroborada pela análise da génese do artigo 6.° da Diretiva 2001/24. Com efeito, no projeto inicial do Conselho (22), primeiro, a publicação no JO e as notificações individuais eram deixadas à apreciação das autoridades competentes do país da sede da instituição de crédito em causa. Segundo, era indicado que as medidas de saneamento se aplicavam independentemente das medidas de publicidade e produziam todos os seus efeitos face aos credores. Terceiro, salvo em caso de notificação individual, os prazos de recurso corriam a partir da publicação no JO. Assim, contrariamente ao projeto inicial, o ponto de partida do prazo de recurso era deixado à apreciação dos Estados‑Membros no quadro da sua autonomia processual, mas respeitando os princípios da equivalência e da efetividade.

81.      O Conselho e o Parlamento intervieram na audiência para recordar que a Diretiva 2001/24 era o resultado de quinze anos de negociações e que as medidas de harmonização só apareceram na Diretiva 2014/59. Acrescentaram, por um lado, que o mecanismo de reconhecimento mútuo implementado tinha por finalidade permitir a aplicação rápida e coerente de medidas urgentes destinadas a evitar efeitos em cadeia e garantir a estabilidade do sistema financeiro (23), nomeadamente a continuidade das funções essenciais da banca e a proteção dos fundos públicos e, por outro, que incumbia aos Estados‑Membros publicitar suficientemente as medidas adotadas. Notaram que a publicidade organizada pelo artigo 83.°, n.° 4, dessa diretiva era adequada para informar os terceiros dos outros Estados‑Membros. A sua intervenção tinha por finalidade demonstrar a compatibilidade dos mecanismos implementados pela Diretiva 2001/24 com o direito primário.

82.      A interpretação dos artigos 3.° e 6.° da Diretiva 2001/24 que proponho demonstra esta compatibilidade (24).

83.      Mesmo que a publicação prevista no artigo 6.° da Diretiva 2001/24 só vise proteger os direitos de recurso diferentes do dirigido contra a medida de saneamento, os recorrentes no processo principal estão numa situação abrangida pelo direito da União. Com efeito, o reconhecimento mútuo das medidas de saneamento implementado por esta diretiva conduziu à extensão dos efeitos da criação do banco de transição Novo Banco em Portugal à sua sucursal espanhola, sendo esta criação acompanhada de uma transmissão apenas parcial dos ativos e passivos do BES para o banco de transição e as suas sucursais. Neste sentido, os direitos dos recorrentes nos processos principais foram afetados, pois os seus alegados créditos não foram transmitidos, in fine, à sucursal espanhola, Novo Banco Espanha, do banco de transição. Por conseguinte, podem invocar o direito à proteção jurisdicional efetiva, como garantida pelo artigo 47.° da Carta, o princípio geral da segurança jurídica e a proibição de qualquer discriminação baseada na nacionalidade como exigida pelo artigo 21.°, n.° 2, da Carta.

84.      No que respeita à proteção jurisdicional efetiva, o Tribunal de Justiça lembra que a efetividade da fiscalização jurisdicional garantida pelo artigo 47.°, primeiro parágrafo, da Carta exige, nomeadamente, que o interessado possa defender os seus direitos nas melhores condições possíveis e decidir, com pleno conhecimento de causa, se é útil apresentar ao juiz competente uma ação contra uma determinada entidade (25).

85.      Na ausência de sanção prevista pelo direito da União para uma falta de publicação como a que consta no artigo 6.° da Diretiva 2001/24 que, recordo, não tem por objetivo informar todos os credores das modalidades dos seus recursos contra a instituição de crédito, incumbe ao tribunal aplicar o seu direito nacional e ter em conta todas as informações disponíveis suscetíveis de esclarecer a escolha do credor nos limites impostos pelos princípios da equivalência e da efetividade.

86.      Ora, antes de mais, como indicou o Governo Espanhol nas suas observações escritas, uma disposição do direito espanhol prevê uma publicação no Boletín Oficial del Estado em caso de medida de saneamento de uma instituição de crédito com uma sucursal em Espanha (26). Em seguida, os clientes nos processos C‑498/22 e C‑499/22 foram informados da criação do banco de transição pelas cartas enviadas pelo Novo Banco que lhes comunicavam a manutenção da relação comercial com um banco liberto dos imponderáveis que ameaçavam a sustentabilidade do BES. Por fim, independentemente da questão de saber se a Diretiva 2014/59 é aplicável no caso em apreço, o tribunal nacional deve ter em conta informações publicadas em aplicação do artigo 83.°, n.° 4, dessa diretiva para avaliar a capacidade do litigante para decidir o que fazer quanto ao exercício do direito de recurso.

87.      Quando o Tribunal de Justiça se pronunciou noutro processo relativo à criação do banco de transição Novo Banco, no atinente a um processo pendente no dia em que o crédito em causa no litígio foi «retransmitido» para o BES, com efeitos retroativos a uma data anterior à do recurso, pelas decisões de 29 de dezembro de 2015, declarou que o litigante dispunha, em 4 de fevereiro de 2015, de todos os elementos necessários para tomar com pleno conhecimento de causa uma decisão quanto à propositura dessa ação e para identificar com certeza a pessoa contra a qual esta última devia ser dirigida (27). Nessa ocasião, o Tribunal de Justiça reconheceu também a possibilidade de o Estado‑Membro de origem alterar, mesmo com efeito retroativo, o regime jurídico aplicável às medidas de saneamento (28). Concluiu, no entanto, que os artigos 3.°, n.° 2, e 32.° da Diretiva 2001/24, lidos à luz do artigo 47.°, primeiro parágrafo, da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem ao reconhecimento, sem outra condição, dos efeitos da segunda medida de saneamento que «retransmite» o crédito ao BES, quando tal reconhecimento conduzia a que o Novo Banco perdesse, com efeito retroativo, a sua legitimidade passiva para efeitos desse processo pendente, pondo assim em causa as decisões judiciais já proferidas em favor da autora (29).

88.      Todavia, as ações judiciais, nos processos principais, foram intentadas no tribunal espanhol num contexto muito diferente, após a determinação do devedor dos créditos alegados pelas medidas de saneamento (incluindo pelas decisões de 29 de dezembro de 2015) e, por conseguinte, num quadro jurídico estabilizado e relevante. Incumbia, por conseguinte, aos recorrentes nos processos principais determinar qual, entre o Novo Banco Espanha e o BES Espanha, era o seu devedor tendo em conta informações disponíveis quer nos termos da legislação nacional quer da aplicação voluntária do artigo 83.°, n.° 4, da Diretiva 2014/59.

89.      Na realidade, a medida de saneamento não alterou a identidade do devedor, mas a sua situação financeira, em razão da qual esta medida foi adotada, afetou o valor do seu alegado crédito. Além disso, estes recorrentes não explicam por que razão teria sido impossível um processo contra o BES. O seu direito de recurso não foi, portanto, posto em causa pela medida de saneamento.

90.      No que respeita ao princípio de não discriminação garantido pelo artigo 21.° da Carta, não é alegado que as disposições nacionais aplicáveis no caso em apreço se aplicam de modo diferente consoante o litigante seja de uma ou outra nacionalidade.

91.      No que se refere ao princípio da segurança jurídica, o Tribunal de Justiça recorda que, segundo jurisprudência constante, este princípio exige, por um lado, que as regras jurídicas sejam claras e precisas e, por outro, que a sua aplicação seja previsível para os litigantes, em particular quando possam ter consequências desfavoráveis para os indivíduos e as empresas. Mais precisamente, o referido princípio exige que a legislação permita aos interessados conhecer com exatidão a extensão das obrigações que essa legislação lhes impõe e conhecer sem ambiguidade os seus direitos e obrigações, e agir em conformidade (30).

92.      No caso em apreço, é claro, segundo as disposições da Diretiva 2001/24, que existe um reconhecimento em Espanha dos efeitos da medida de saneamento adotada em Portugal e que incumbia ao litigante verificar as disposições precisas da medida de saneamento para verificar quem é o seu devedor após a transmissão parcial dos passivos para o banco de transição criado ex novo.

93.      Por todas estas razões, proponho ao Tribunal de Justiça que responda que os artigos 3.°, n.° 2, e 6.° da Diretiva 2001/24, lidos à luz dos artigos 21.°, n.° 2, e 47.°, primeiro parágrafo, da Carta, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem, na falta da publicação prevista no artigo 6.°, n.° 1, dessa diretiva, ao reconhecimento, num Estado‑Membro que não o Estado‑Membro de origem, dos efeitos de uma medida de saneamento que criou um banco de transição com uma transmissão parcial das obrigações e responsabilidades, antes da propositura de uma ação judicial destinada a obter o reconhecimento e o pagamento de um crédito inicialmente detido por parte da instituição bancária que foi objeto da medida de saneamento, desde que os princípios da equivalência e da efetividade sejam respeitados, o que incumbe ao tribunal de reenvio verificar.

B.      Quanto às segundas questões nos processos C498/22 e C499/22

94.      O órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se é compatível com o direito fundamental à ação previsto no artigo 47.° da Carta e com o princípio geral da segurança jurídica uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 que implique o reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade competente do Estado‑Membro de origem que excluiu determinadas obrigações e responsabilidades da transferência para um banco de transição da atividade ordinária e de uma série de elementos patrimoniais do banco ao qual são aplicáveis as medidas de saneamento, quando a própria atuação posterior do banco de transição, controlado por uma autoridade pública que aplica o direito da União, criou nos clientes do Estado‑Membro de acolhimento a confiança legítima de que tinha assumido o passivo correspondente às responsabilidades e obrigações que o banco objeto da medida de saneamento tinha relativamente a esses clientes.

95.      A resposta a esta questão implica que se analise, antes de mais, a possibilidade de os recorrentes nos processos principais invocarem o princípio da proteção da confiança legítima em seu favor.

96.      Com efeito, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, o princípio da proteção da confiança legítima faz parte dos princípios fundamentais da União (31). O Tribunal de Justiça esclareceu que o direito de invocar o princípio da proteção da confiança legítima assiste a qualquer litigante a quem uma instituição da União, ao fornecer‑lhe garantias precisas, tenha suscitado esperanças fundadas. Em contrapartida, ninguém pode invocar a violação deste princípio na falta de tais garantias (32). Admitiu também que o referido princípio deve ser respeitado pelos Estados‑Membros quando dão execução ao direito da União (33), incluindo através das autoridades administrativas nacionais (34).

97.      No caso em apreço, os recorrentes nos processos principais consideram que, por um lado, o controlo do Novo Banco, no momento da sua criação, pelo Banco de Portugal, na origem das medidas de saneamento e, por outro, a precisão das cartas enviadas pelo Novo Banco quanto à continuação das relações contratuais que tinham com o BES, geraram neles confiança legítima relativamente ao alcance das obrigações do Novo Banco Espanha para com eles.

98.      Todavia, considerar o Novo Banco Espanha uma autoridade administrativa que implementa o direito da União, quando, em primeiro lugar, o controlo exercido pelo Banco de Portugal é temporário e constitutivo da medida de saneamento que consiste na criação de um banco de transição e, em segundo, foi criado sob a forma de instituição de crédito de direito privado desprovida de qualquer poder que exorbite o direito comum para o cumprimento de uma missão de serviço público, vai além do que o Tribunal de Justiça admitiu em matéria de confiança legítima (35). Assim, o Tribunal de Justiça declarou que um operador não pode invocar o princípio da proteção da confiança legítima contra o seu fornecedor para se prevalecer de um direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) pago a montante (36).

99.      De qualquer modo, por um lado, as cartas enviadas aos clientes do BES que informavam que o Novo Banco era o mesmo banco que o BES e que a relação com o banco não mudava em nada e, por outro, o comportamento do Novo Banco Espanha, que respondeu em 2017 ao recorrente no processo principal C‑498/22 que não era elegível para o reembolso solicitado devido à falta de caráter abusivo da cláusula criticada e que liquidou um dos dois contratos dos recorrentes no processo principal C‑499/22, não bastam para constituir garantias precisas que possam fundar confiança legítima no facto de o Novo Banco Espanha assumir todo o passivo do BES Espanha, em termos de responsabilidade contratual ou pré‑contratual.

100. Com efeito, as cartas apenas davam conta da manutenção da relação comercial entre os clientes e o banco, precisando que os imponderáveis que ameaçavam a sustentabilidade do BES tinham sido afastados e que o novo banco estava livre dos ativos problemáticos do BES. Além disso, o facto de contestar a qualidade da cláusula abusiva não equivale a endossar a responsabilidade relativa à mesma. De igual modo, pagar a prestação mensal de um CFA não pode garantir que o banco assumirá a responsabilidade pré‑contratual associada a esse contrato. Neste sentido, partilho do parecer da advogada‑geral J. Kokott nas suas Conclusões no processo Banco de Portugal e o. (37), relativo à criação do Novo Banco, segundo o qual «[a] simples circunstância de [este banco] (pelo menos em parte) se ter convertido no sucessor do BES [...] e ter prosseguido a gestão do depósito de ações da demandante, não pode, no meu entender, justificar qualquer confiança legítima em que o Novo Banco assuma também as responsabilidades pelo aconselhamento deficiente prestado pelo BES, que já existiam antes da assunção desta relação comercial».

101. Por outro lado, para apreciar a legitimidade das garantias fornecidas, há que ter em conta o contexto da criação de um banco de transição destinado a remediar as dificuldades do BES. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que, mesmo perante uma situação suscetível de originar confiança legítima, um interesse público superior podia opor‑se à adoção de medidas transitórias para situações surgidas antes da entrada em vigor da nova regulamentação, mas cuja evolução ainda não terminou, e que o objetivo de assegurar a estabilidade do sistema financeiro, evitando simultaneamente despesas públicas excessivas e minimizando distorções de concorrência, constituía um interesse público superior desta natureza (38). Daqui conclui que o princípio da proteção da confiança legítima era invocável em apoio da contestação de uma comunicação da Comissão sobre o setor bancário, mas que não se opunha a certos pontos dessa comunicação relativos a uma condição de repartição dos encargos pelos acionistas e credores subordinados com vista à autorização de um auxílio estatal (39).

102. Resulta de todos estes elementos que os recorrentes nos processos principais não podem alegar a violação do princípio da proteção da confiança legítima em relação ao Novo Banco Espanha.

103. Proponho ao Tribunal de Justiça que responda às segundas questões nos processos C‑498/22 e C‑499/22 que o artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24, lido à luz do artigo 47.° da Carta e do princípio geral da segurança jurídica, deve ser interpretado no sentido de que os particulares não podem invocar o princípio da confiança legítima em relação a um banco de transição, organismo de direito privado desprovido de prerrogativas que exorbitem o direito comum, criado a título de medida de saneamento de um banco de que eram inicialmente clientes, para responsabilizar este banco de transição a título das obrigações pré‑contratuais e contratuais associadas aos contratos celebrados com o banco que foi objeto da medida de saneamento.

C.      Quanto às terceiras questões nos processos C498/22 e C499/22 e à segunda questão no processo C500/22

104. Com estas questões, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade de uma interpretação do artigo 3.°, n.° 2 da Diretiva 2001/24 que implica o reconhecimento, no Estado‑Membro de acolhimento, de uma decisão da autoridade administrativa competente que prevê a criação de um banco de transição e a manutenção, no passivo do banco inviável, da obrigação de reembolsar os juros cobrados ao abrigo de uma cláusula abusiva ou de pagar os montantes devidos a título de uma responsabilidade pré‑contratual ou contratual com o direito de propriedade como garantido pelo artigo 17.° da Carta, o princípio da segurança jurídica, o princípio do elevado nível de defesa dos consumidores como referido no artigo 38.° da Carta e o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13.

105. A título liminar, quero mencionar que, no processo C‑499/22, os recorrentes no processo principal contestam a qualidade da informação pré‑contratual fornecida pelo BES Espanha antes da assinatura do CFA, sendo indicado que o tribunal de recurso considerou que o outro contrato, assinado em 28 de abril de 2008, tinha chegado ao seu termo antes da criação do Novo Banco e que nenhuma responsabilidade associada a esse contrato era, portanto, passível de transmissão.

1.      Quanto à compatibilidade com o direito de propriedade como garantido pelo artigo 17.° da Carta

106. No que respeita à compatibilidade com o direito de propriedade como garantido pelo artigo 17.° da Carta, questão suscitada nos três pedidos de decisão prejudicial, importa recordar que o Tribunal de Justiça já admitiu a compatibilidade da criação do banco de transição Novo Banco e das suas consequências com esse artigo na hipótese dos acionistas e detentores de obrigações subordinadas (40).

107. Importa recordar, nos termos do artigo 17.°, n.° 1, da Carta, que todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral. Em conformidade com a ligação criada pelo artigo 52.°, n.° 3, da Carta, entre os direitos que esta contém e os protegidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (41), quando correspondem, o artigo 17.° da Carta deve ser interpretado tendo em consideração a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 1.° do Protocolo n.° 1 à CEDH, que consagra a proteção do direito de propriedade como limiar de proteção mínima (42).

108. O Tribunal de Justiça lembrou que a proteção conferida pelo artigo 17.° da Carta tem por objeto direitos que têm um valor patrimonial do qual decorre, tendo em conta a ordem jurídica em causa, uma posição jurídica adquirida que permite o exercício autónomo desses direitos pelo e a favor do seu titular (43). Daí concluiu que as obrigações negociáveis nos mercados de capitais eram esses direitos que podiam beneficiar desta proteção, à semelhança do que resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 1.° do Protocolo n.° 1 à CEDH (44).

109. Assim, afigura‑se‑me que o critério pertinente para analisar esta questão à luz do direito de propriedade é o de saber se a situação em causa em cada processo trata de um direito do qual decorre uma posição jurídica adquirida que permite o exercício autónomo desses direitos pelo e a favor do seu titular.

110. Como indiquei já no n.° 108 das presentes conclusões, uma obrigação negociável, incluindo uma obrigação prioritária como no processo C‑500/22, constitui, segundo o Tribunal de Justiça, um direito que pode beneficiar da proteção garantida pelo artigo 17.° da Carta.

111. Parece‑me que o mesmo acontece em relação ao crédito em causa no processo C‑498/22. Com efeito, este crédito associado à obrigação de um banco de restituir os juros cobrados em aplicação de uma «cláusula de taxa mínima» contida num contrato de mútuo hipotecário, obrigação resultante de uma jurisprudência do Tribunal de Justiça baseada no artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 (45), constitui um direito do qual decorre manifestamente uma posição jurídica adquirida, uma vez que os efeitos de restituição não podem ser limitados no tempo ao período posterior à declaração do caráter abusivo dessa cláusula. Esta análise é conforme também aos critérios adotados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, uma vez que o conceito de «bens» que podem beneficiar da proteção do direito de propriedade, enunciado no artigo 1.° do Protocolo n.° 1 à CEDH, pode abranger tanto «bens atuais» como valores patrimoniais, incluindo créditos, ao abrigo dos quais o recorrente pode pelo menos ter uma «expectativa legítima» de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade (46). No caso em apreço, as «cláusulas de taxa mínima» foram qualificadas de abusivas e o efeito de restituição deve ser completo sem poder ser limitado no tempo, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

112. Em contrapartida, para o crédito invocado no processo C‑499/22, ou seja, uma indemnização devida em razão da falta de informação pré‑contratual, duvido que um recorrente que invoque tal crédito possa beneficiar da proteção do artigo 17.° da Carta. Com efeito, esse alegado crédito não corresponde a uma posição jurídica adquirida, uma vez que a falta de informação pré‑contratual deve ser objeto de uma apreciação judicial.

113. Além disso, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um crédito indemnizatório pode ter valor patrimonial se se demonstrar que tem um fundamento suficiente no direito interno, por exemplo, que é confirmado por uma jurisprudência assente dos tribunais (47). Mas é ainda necessário que a pessoa que o invoca possa ter uma esperança legítima. Ora, a jurisprudência desse tribunal, por um lado, indica que os recorrentes não têm «esperança legítima» quando não se pode considerar que possuíam, de forma suficientemente demonstrada, um crédito imediatamente exigível e, por outro, não equaciona a existência de uma «contestação real» ou de uma «pretensão defensável» como um critério que permita aferir a existência de uma «esperança legítima» protegida pelo artigo 1.° do Protocolo n.° 1 à CEDH (48). Observa que uma simples esperança não constitui uma esperança legítima na falta de decisão transitada em julgado (49). O crédito alegado no processo C‑499/22 não parece preencher estes requisitos e os seus eventuais titulares não podem beneficiar da proteção da propriedade garantida pelo artigo 17.° da Carta.

114. Uma vez que só os créditos em causa nos processos C‑498/22 e C‑500/22, adquiridos legalmente, entram no âmbito de aplicação do artigo 17.° da Carta, importa analisar se a proteção garantida por este artigo se pode aplicar a esses créditos.

115. O Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a compatibilidade da medida de saneamento do BES, ou seja, a transferência parcial de elementos de ativos e passivos para um banco de transição criado ex novo, adotada em conformidade com a regulamentação em causa no processo principal, com o artigo 17.° da Carta, decidindo que essa medida de saneamento devia analisar‑se como uma regulamentação da utilização dos bens que dá resposta a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União na aceção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta, como assegurar a estabilidade do sistema bancário da zona euro no seu conjunto e evitar um risco sistémico (50).

116. No caso em apreço, não é contestada a medida nacional de criação do banco de transição e de transmissão de ativos em si, mas o facto de se ter tornado aplicável em Espanha, devido ao reconhecimento mútuo de uma medida de saneamento adotada em Portugal, a afetação ao passivo do banco inviável, por um lado, da obrigação de restituição dos juros cobrados ao abrigo da «cláusula de taxa mínima» num mútuo hipotecário (processo C‑498/22) e, por outro, das obrigações e responsabilidades associadas a uma obrigação prioritária (processo C‑500/22).

117. Todavia, considero que se pode seguir o mesmo raciocínio. Assim, na realidade, o mecanismo de reconhecimento mútuo é irrelevante para a alegada afetação do direito de propriedade. Além disso, a decisão de não transmissão desses créditos para o passivo do banco de transição assemelha‑se, não a uma privação do direito de propriedade (porque a perda do valor desses créditos alegados na esfera jurídica do BES resulta da insolvência deste e não da medida de saneamento), mas a uma regulamentação da sua utilização (51).

118. Em suma, há que examinar se essa regulamentação se verificou na medida necessária ao interesse geral segundo os termos do artigo 17.°, n.° 1, terceiro período, da Carta.

119. Quanto à obrigação de restituição dos juros, por um lado, a medida de saneamento que acarreta esta restrição ao direito de propriedade foi decidida em conformidade com a lei portuguesa e corresponde ao mesmo interesse geral que conduziu à medida de criação de um banco de transição, que só tem sentido se se fizer uma triagem entre os passivos e os ativos do banco inviável para permitir manter a estabilidade do sistema financeiro e evitar um risco sistémico. Não se me afigura, portanto, que, no âmbito da margem de apreciação reconhecida aos Estados‑Membros, a medida de saneamento exceda a medida necessária ao interesse geral. Quanto à obrigação prioritária, por outro lado, a análise a que o Tribunal de Justiça procedeu no Acórdão BPC Lux 2 e o. relativamente aos créditos obrigatórios pode ser retomada (52).

120. Por conseguinte, o argumento relativo à violação do direito de propriedade deve ser rejeitado no que respeita a todos os credores.

2.      Quanto à compatibilidade com o princípio da segurança jurídica

121. No que respeita à compatibilidade com o princípio da segurança jurídica, lembrei, no n.° 91 das presentes conclusões, o conteúdo que o Tribunal de Justiça deu a esse princípio. Além disso, o Tribunal de Justiça já observou que o princípio da segurança jurídica se impõe com especial rigor quando se trate de uma regulamentação que pode ter consequências financeiras (53).

122. Todavia, considero que o próprio princípio da medida de saneamento que consiste em criar um banco de transição implica proceder a uma triagem entre os passivos e os ativos transmitidos para a nova estrutura. Com efeito, as medidas de saneamento definidas pelo artigo 2.°, sétimo travessão, da Diretiva 2001/24, são as destinadas a preservar ou restabelecer a situação financeira de uma instituição de crédito, suscetíveis de afetar direitos preexistentes de terceiros, incluindo medidas que impliquem a possibilidade de redução dos créditos.

123. No caso em apreço, a autoridade competente portuguesa escolheu não transferir certas obrigações (processo C‑500/22) e certos imponderáveis jurídicos (processos C‑498/22 e C‑499/22). É certo, raciocinou de forma contabilística e não jurídica, mas tal era autorizado pela legislação nacional, que permitia mesmo uma «retransmissão» dos passivos para o BES, operação admitida pelo Tribunal de Justiça (54).

3.      Quanto à compatibilidade com o princípio da defesa dos consumidores e o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13

124. No que respeita à compatibilidade com o princípio da defesa dos consumidores como referido no artigo 38.° da Carta (processos C‑498/22 e C‑499/22) e no artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 (processo C‑498/22), considero que a admissibilidade da questão no processo C‑499/22 relativa à aplicação apenas do artigo 38.° da Carta não parece colocar dificuldades. Com efeito, como já expus no n.° 83 das presentes conclusões, os recorrentes nos processos principais encontram‑se numa situação abrangida pelo direito da União a partir do momento em que lhes são opostos, no âmbito de um processo judicial, os efeitos do reconhecimento mútuo da medida de saneamento decidida em Portugal.

125. Quanto ao mérito, o recorrente no processo principal no processo C‑498/22 argumenta com a jurisprudência do Tribunal de Justiça que pôs em causa a jurisprudência do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) de 9 de maio de 2013 que, atendendo às dificuldades do setor bancário, tinha limitado no tempo os efeitos de restituição decorrentes da declaração judicial do caráter abusivo de uma cláusula constante de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional apenas às quantias indevidamente pagas em aplicação dessa cláusula posteriormente à prolação da decisão que declarou judicialmente esse caráter abusivo (55). Com efeito, no Acórdão Gutiérrez Naranjo e o., o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a essa jurisprudência nacional (56).

126. Importa salientar que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça reconheceu, em conformidade com o artigo 38.° da Carta, que enuncia um princípio de defesa dos consumidores, que, tendo em conta a natureza e a importância do interesse público constituído pela proteção dos consumidores, a Diretiva 93/13 impõe aos Estados‑Membros que prevejam os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional (57). No entanto, o Tribunal de Justiça também lembrou, no referido acórdão, que a proteção do consumidor não é absoluta (58).

127. Ora, o Tribunal de Justiça salientou, aliás, que os objetivos que consistem em assegurar a estabilidade do sistema bancário e financeiro e evitar um risco sistémico constituem objetivos de interesse geral prosseguidos pela União (59). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que, embora exista um claro interesse geral em assegurar, em toda a União, uma proteção forte e coerente dos investidores, acionistas ou credores, não se pode considerar que esse interesse prevaleça, em todas as circunstâncias, sobre o interesse geral que consiste em assegurar a estabilidade do sistema financeiro (60).

128. Importa, por conseguinte, apreciar em que medida o interesse geral que consiste em garantir a estabilidade do sistema financeiro pode ou não sobrepor‑se à defesa do consumidor em hipóteses como as submetidas ao órgão jurisdicional de reenvio.

129. Em primeiro lugar, os recorrentes nos processos principais e o órgão jurisdicional de reenvio afirmam que uma vez que o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) se baseou nas dificuldades financeiras dos bancos para limitar no tempo os efeitos de restituição, o Tribunal de Justiça teve em conta, no Acórdão Gutiérrez Naranjo e o., implícita mas necessariamente, as incidências financeiras sobre o sistema bancário para fazer prevalecer a defesa do consumidor.

130. Todavia, não posso adotar este raciocínio, porque, nos processos principais em causa, as dificuldades concretizaram‑se sob a forma de uma medida de saneamento cujo reconhecimento mútuo nos outros Estados‑Membros foi implementado nos termos do direito da União e é necessário, por conseguinte, proceder a uma nova apreciação.

131. Parece‑me, em segundo lugar, que as hipóteses em causa no processo principal se distinguem nitidamente da que está em causa no processo que deu lugar ao Acórdão Gutiérrez Naranjo e o., pois respeitava à proteção de um só consumidor. Com efeito, nos presentes processos, a medida de saneamento foi adotada para permitir assegurar a estabilidade do sistema financeiro e, portanto, in fine, a proteção sistémica de todos os outros consumidores, clientes do banco e, mais amplamente, do sistema bancário.

132. Em terceiro lugar, a defesa do consumidor não vai ao ponto de garantir a restituição dos juros cobrados em excesso em caso de insolvência do banco devedor, o que é uma questão diferente da associada à limitação no tempo dos efeitos de restituição.

133. Em conclusão, considero que, no caso em apreço, a defesa dos consumidores não pode prevalecer sobre o interesse geral que consiste em assegurar a estabilidade do sistema financeiro.

134. Além disso, a Comissão considerou nas suas observações que o crédito de juros cobrados em excesso do recorrente no processo principal no processo C‑498/22 pode ser objeto de uma compensação com o montante das prestações mensais que continuam a pagar ao Novo Banco Espanha por aplicação do artigo 23.°, n.° 1, da Diretiva 2001/24, que enuncia que a adoção de medidas de saneamento não afeta o direito dos credores à compensação dos seus créditos contra os da instituição de crédito desde que essa compensação seja autorizada pela lei aplicável aos créditos da instituição de crédito. Todavia, esta disposição não parece aplicável no caso em apreço uma vez que, por um lado, à data da medida de saneamento, o crédito de juros cobrados em excesso não existia, não tendo o Acórdão Gutiérrez Naranjo e o. sido proferido, e por outro, o devedor do crédito de juros vencidos, não transferido para o Novo Banco Espanha, não é o mesmo do crédito das prestações mensais.

135. Atendendo a estes elementos, proponho ao Tribunal de Justiça que responda que o artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 e o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, lidos à luz dos artigos 17.° e 38.° da Carta e do princípio geral da segurança jurídica, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem ao reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que prevê, a título de medida de saneamento, a criação de um banco de transição e a manutenção no passivo do banco inviável da obrigação de reembolso dos juros cobrados ao abrigo de uma cláusula abusiva ou de pagamento dos montantes devidos a título de uma responsabilidade pré‑contratual ou contratual.

V.      Conclusão

136. Tendo em conta as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda ao Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) nos seguintes termos:

1)      Os artigos 3.°, n.° 2, e 6.° da Diretiva 2001/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de abril de 2001, relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito, lidos à luz dos artigos 21.°, n.° 2, e 47.°, primeiro parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem, na falta da publicação prevista no artigo 6.°, n.° 1, dessa diretiva, ao reconhecimento, num Estado‑Membro que não o Estado‑Membro de origem, dos efeitos de uma medida de saneamento que criou um banco de transição com uma transmissão parcial das obrigações e responsabilidades, antes da propositura de uma ação judicial destinada a obter o reconhecimento e o pagamento de um crédito inicialmente detido por parte da instituição bancária que foi objeto da medida de saneamento, desde que os princípios da equivalência e da efetividade sejam respeitados.

2)      O artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24, lido à luz do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio geral da segurança jurídica,

deve ser interpretado no sentido de que:

os particulares não podem invocar o princípio da confiança legítima em relação a um banco de transição, organismo de direito privado desprovido de prerrogativas que exorbitem o direito comum, criado a título de medida de saneamento de um banco de que eram inicialmente clientes, para responsabilizar este banco de transição a título das obrigações pré‑contratuais e contratuais associadas aos contratos celebrados com o banco que foi objeto da medida de saneamento.

3)      O artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/24 e o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lidos à luz dos artigos 17.° e 38.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio geral da segurança jurídica,

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem ao reconhecimento, num Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma decisão da autoridade administrativa competente do Estado‑Membro de origem que prevê, a título de medida de saneamento, a criação de um banco de transição e a manutenção no passivo do banco inviável da obrigação de reembolso dos juros cobrados ao abrigo de uma cláusula abusiva ou de pagamento dos montantes devidos a título de uma responsabilidade pré‑contratual ou contratual.


1 Língua original: francês.


2      JO 2001, L 125, p. 15.


3      JO 1993, L 95, p. 29.


4      A seguir «Carta».


5      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de março de 2000, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e ao seu exercício (JO 2000, L 126, p. 1).


6      A seguir «JO».


7      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de maio de 2014, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento e que altera a Diretiva 82/891/CEE do Conselho, e as Diretivas 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/35/UE, 2012/30/UE e 2013/36/UE e os Regulamentos (UE) n.° 1093/2010 e (UE) n.° 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho (JO 2014, L 173, p. 190).


8      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de dezembro de 2004, relativa à harmonização dos requisitos de transparência no que se refere às informações respeitantes aos emitentes cujos valores mobiliários estão admitidos à negociação num mercado regulamentado e que altera a Diretiva 2001/34/CE (JO 2004, L 390, p. 38).


9      BOE n.° 97, de 23 de abril de 2005, p. 13912.


10      Diário da República, 1.ª série, n.° 30, 1.° suplemento, de 10 de fevereiro de 2012.


11      Remete para o Acórdão de 29 de abril de 2021, Banco de Portugal e o. (C‑504/19, a seguir «Acórdão Banco de Portugal e o.», EU:C:2021:335).


12      Remete para o Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Gutiérrez Naranjo e o. (C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, a seguir «Acórdão Gutiérrez Naranjo e o.», EU:C:2016:980), no qual o Tribunal de Justiça declarou contrário ao artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 uma jurisprudência do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) que limitava os efeitos de restituição da anulação de «cláusulas de taxa mínima» nos contratos celebrados por um profissional com um consumidor, para garantir a estabilidade do sistema financeiro espanhol, que atravessava na altura uma grave crise.


13      V. n.os 34 a 40 das presentes conclusões.


14      V. n.os 34 a 37 das presentes conclusões para a justificação da primeira questão prejudicial.


15      V. artigo 145.°‑N do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.


16      V. considerandos 4 e 16 da Diretiva 2001/24, Acórdão de 24 de outubro de 2013, LBI (C‑85/12, EU:C:2013:697, n.° 49), e Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 33).


17      V. artigo 32.° da Diretiva 2001/24.


18      V. artigos 20.° a 27.° da Diretiva 2001/24.


19      V. artigo 32.° da Diretiva 2001/24 e Acórdão Banco de Portugal e o.


20      V. considerando 6 da Diretiva 2001/24.


21      V. Acórdãos de 14 de janeiro de 2010, Kyrian (C‑233/08, EU:C:2010:11, n.° 62 e jurisprudência referida), e de 20 de setembro de 2018, Rudigier (C‑518/17, EU:C:2018:757, n.° 61 e jurisprudência referida).


22      Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito e aos sistemas de garantia [COM(85) 788 final].


23       Remeteram, a este respeito, para o Acórdão de 19 de julho de 2016, Kotnik e o. (C‑526/14, EU:C:2016:570, n.os 68 e 69).


24      V. n.os 78 e 79 das presentes conclusões.


25      V. Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 57 e jurisprudência referida).


26      V. artigo 19.° da Lei n.° 6/2005 relativa ao Saneamento e à Liquidação das Instituições de Crédito.


27      V. Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 53).


28      V. Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 61 e jurisprudência referida).


29      V. Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 66 e dispositivo).


30      V. Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 51 e jurisprudência referida).


31      V. Acórdãos de 7 de junho de 2005, VEMW e o. (C‑17/03, EU:C:2005:362, n.° 73 e jurisprudência referida), e de 14 de março de 2013, Agrargenossenschaft Neuzelle (C‑545/11, EU:C:2013:169, n.° 23 e jurisprudência referida).


32      V. Acórdão de 16 de dezembro de 2020, Conselho e o./K.Chrysostomides & Co. e o. (C‑597/18 P, C‑598/18 P, C‑603/18 P e C‑604/18 P, EU:C:2020:1028, n.° 178 e jurisprudência referida).


33      V. Acórdão de 11 de julho de 2002, Marks & Spencer (C‑62/00, EU:C:2002:435, n.° 44 e jurisprudência referida).


34      V. Acórdãos de 22 de setembro de 2022, Admiral Gaming Network e o. (C‑475/20 a C‑482/20, EU:C:2022:714, n.° 62), e de 17 de novembro de 2022, Avicarvil Farms (C‑443/21, EU:C:2022:899, n.° 39 e jurisprudência referida).


35      V. Acórdão de 17 de novembro de 2022, Avicarvil Farms (C‑443/21, EU:C:2022:899), em relação a uma agência de financiamento de investimentos rurais e uma agência de pagamentos e intervenção para a agricultura.


36      Acórdão de 21 de fevereiro de 2018, Kreuzmayr (C‑628/16, EU:C:2018:84, n.° 47).


37      C‑504/19, EU:C:2020:943, n.° 82.


38      V. Acórdão de 19 de julho de 2016, Kotnik e o. (C‑526/14, EU:C:2016:570, n.os 68 e 69).


39      V. Acórdão de 19 de julho de 2016, Kotnik e o. (C‑526/14, EU:C:2016:570, n.° 40 e 80).


40      V. Acórdão de 5 de maio de 2022, BPC Lux 2 e o. (C‑83/20, a seguir «Acórdão BPC Lux 2 e o.», EU:C:2022:346).


41      Assinada em Roma em 4 de novembro de 1959, a seguir «CEDH».


42      V. Acórdão BPC Lux 2 e o. (n.° 37 e jurisprudência referida).


43      V. Acórdão BPC Lux 2 e o. (n.° 39 e jurisprudência referida).


44      V. Acórdão BPC Lux 2 e o. (n.os 40 e 41, e jurisprudência referida).


45      V. Acórdão Gutiérrez Naranjo e o.


46      V. Acórdão do TEDH de 2 de maio de 2013, Panteliou‑Darne e Blantzouka c. Grécia (CE:ECHR:2013:0502JUD002514308, § 28 e jurisprudência referida).


47      V. Acórdão do TEDH, de 6 de outubro de 2005, Draon c. França (CE:ECHR:2005:1006JUD000151303, § 65 e jurisprudência referida).


48       V. Acórdão do TEDH, de 6 de outubro de 2005, Draon c. França (CE:ECHR:2005:1006JUD000151303, § 68 e jurisprudência referida).


49      V. decisão de admissibilidade do TEDH, de 19 de outubro de 2004, Caisse régionale de crédit agricole mutuel Nord de France c. França (CE:ECHR:2004:1019DEC005886700).


50      V. Acórdão BPC Lux 2 e o. (n.os 44 a 55 e jurisprudência referida).


51      V. Acórdão BPC Lux 2 e o. (n.° 48).


52      V. n.os 50 a 57 desse acórdão.


53      V. Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 52 e jurisprudência referida).


54      V. Acórdão Banco de Portugal e o. (n.° 61 e jurisprudência referida).


55      V. Acórdão Gutiérrez Naranjo e o. (n.° 46).


56      V. Acórdão Gutiérrez Naranjo e o. (n.° 75 e dispositivo).


57      V. Acórdão Gutiérrez Naranjo e o. (n.° 56 e jurisprudência referida).


58      V. Acórdão Gutiérrez Naranjo e o. (n.° 68).


59      V. Acórdão de 5 de maio de 2022, Banco Santander (Resolução bancária Banco Popular) (C‑410/20, EU:C:2022:351, n.° 36 e jurisprudência referida).


60      V. Acórdãos de 19 de julho de 2016, Kotnik e o. (C‑526/14, EU:C:2016:570, n.° 91), relativamente aos investidores, e de 8 de novembro de 2016, Dowling e o. (C‑41/15, EU:C:2016:836, n.° 54), relativamente aos acionistas e credores.