Language of document : ECLI:EU:C:2017:305

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 26 de abril de 2017 (1)

Processo C249/16

Saale Kareda

contra

Stefan Benkö

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria)]

«Reenvio prejudicial — Competência judiciária em matéria civil e comercial — Conceito de ‘matéria contratual’ — Pedido de um devedor contra o seu codevedor com vista ao reembolso das prestações bancárias de um contrato de crédito comum — Determinação do lugar de cumprimento do contrato de crédito»






1.        O presente processo oferece ao Tribunal de Justiça a oportunidade de clarificar, uma vez mais, os conceitos de «matéria contratual» e de «prestação de serviços», na aceção do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (2).

2.        Assim, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre a questão de saber se o direito de regresso invocado entre os codevedores de um contrato de crédito é um direito de natureza contratual. Em caso afirmativo, o Tribunal de Justiça deverá examinar se um tal contrato poderá ser qualificado de contrato de prestação de serviços, o que o levará, se for caso disso, a determinar o lugar de cumprimento da sua obrigação característica.

3.        Nas presentes conclusões, explicarei as razões pelas quais entendo que o artigo 7.o, ponto 1, desse regulamento deve ser interpretado no sentido de que o direito de regresso invocado entre os codevedores de um contrato de crédito se enquadra no conceito de «matéria contratual» na aceção dessa disposição.

4.        Em seguida, explicarei por que razão, em meu entender, o artigo 7.o, ponto 1, alínea b), segundo travessão, do referido regulamento deve ser interpretado no sentido de que o contrato de crédito no qual se baseia o direito de regresso invocado por um codevedor deve ser qualificado de contrato de prestação de serviços na aceção dessa disposição, sendo o lugar de cumprimento da obrigação em questão aquele onde se situa o estabelecimento do credor que concedeu o crédito.

 I.      Quadro jurídico

 A.      Direito da União

 1.      Regulamento n.o 1215/2012

5.        O considerando 4 do Regulamento n.o 1215/2012 enuncia o seguinte:

«Certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judiciária e de reconhecimento de decisões judiciais dificultam o bom funcionamento do mercado interno. São indispensáveis disposições destinadas a unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial e a fim de garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado‑Membro.»

6.        Nos termos dos considerandos 15 e 16 do referido regulamento:

«(15)      As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. […]

(16)      O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado‑Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação.»

7.        O artigo 4.o, n.o 1, do referido regulamento prevê que, «[s]em prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro».

8.        O artigo 7.o do Regulamento n.o 1215/2012 tem a seguinte redação:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

1)      a)      Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b)      Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

–        no caso da venda de bens, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

–        no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c)      Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a);

[…]»

 2.      Regulamento (CE) n.o 593/2008

9.        Nos termos dos considerandos 7 e 17 do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (3):

«(7)      O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [(4)] (Bruxelas I) e com o Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, sobre a lei aplicável às obrigações extracontratuais (‘Roma II’) [(5)].

[…]

(17)      No que respeita à lei aplicável na falta de escolha, o conceito de ‘prestação de serviços’ e de ‘venda de bens’ deverá ser interpretado tal como quando se aplica o artigo 5.o do Regulamento […] n.o 44/2001, na medida em que a venda de bens e a prestação de serviços sejam abrangidas pelo âmbito de aplicação desse regulamento. Embora o contrato de franquia e o contrato de distribuição sejam contratos de serviços, são objeto de regras específicas.»

10.      O artigo 16.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Pluralidade de devedores», tem a seguinte redação:

«Se o credor tiver um direito contra vários devedores, responsáveis pelo mesmo direito, e se um deles já tiver satisfeito total ou parcialmente o direito, a lei que regula a obrigação do devedor para com o credor é igualmente aplicável ao direito de regresso do devedor contra os outros devedores. Os outros devedores podem invocar os meios de defesa que possam opor ao credor, na medida do permitido pela lei aplicável às suas obrigações para com o credor.»

 3.      Diretiva 2002/65/CE

11.      O artigo 2.o, alínea b), da Diretiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores e que altera as Diretivas 90/619/CEE do Conselho, 97/7/CE e 98/27/CE (6), define o conceito de «serviço financeiro» como «qualquer serviço bancário, de crédito, de seguros, de pensão individual, de investimento ou de pagamento».

 B.      Direito austríaco

12.      O § 896 do Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil, a seguir «ABGB») estabelece que um codevedor solidário que tenha pagado integralmente a dívida tem o direito, mesmo que não tenha havido cessão de direitos, de exigir aos outros devedores o reembolso, nomeadamente, em partes iguais, se não tiver sido acordada entre eles nenhuma outra percentagem específica.

13.      O § 905, n.o 2, do ABGB, na sua versão anterior à Zahlungsverzugsgesetz (Lei relativa aos atrasos de pagamentos), de 20 de março de 2013 (7), previa que, em caso de dúvida, o devedor deveria fazer os pagamentos em dinheiro, por sua conta e risco, ao credor, na residência (estabelecimento) deste.

14.      Esta lei introduziu também o § 907a no ABGB, disposição que prevê que uma dívida em dinheiro deve ser paga na residência ou no estabelecimento do credor, devendo o montante em dinheiro ser‑lhe aí entregue ou depositado numa conta bancária por ele indicada.

15.      Em conformidade com o § 1042 do ABGB, quem incorrer, em benefício de outra pessoa, numa despesa que ela própria devia ter suportado, nos termos da lei, tem o direito de exigir o respetivo reembolso.

16.      Segundo o § 1503, n.o 2, ponto 1, do ABGB, o seu § 907a, na redação que lhe foi dada pela referida lei, aplica‑se às relações jurídicas constituídas a partir de 16 de março de 2013. Às relações jurídicas constituídas antes de 16 de março de 2013 continuam a aplicar‑se as disposições até então em vigor. Se, porém, essas relações jurídicas anteriormente constituídas previrem prestações pecuniárias periódicas, as novas disposições aplicam‑se aos pagamentos que se vençam a partir de 16 de março de 2013.

 II.      Litígio no processo principal

17.      Stefan Benkö (a seguir «demandante»), de nacionalidade austríaca, intentou uma ação de regresso junto dos órgãos jurisdicionais austríacos contra Saale Kareda (a seguir «demandada»), de nacionalidade estónia e ex‑companheira do demandante, exigindo o pagamento do montante de 17 145,41 euros acrescido de juros e encargos.

18.      Enquanto viveram juntos na Áustria, o demandante e a demandada adquiriram, em 2007, uma moradia, tendo, para esse efeito, contraído três empréstimos no montante total de 300 000 euros (a seguir «crédito») junto de um banco austríaco. Sendo ambos mutuários destes empréstimos, o órgão jurisdicional de reenvio indica que eram codevedores solidários.

19.      A demandada terá posto termo à vida em comum no final de 2011, tendo‑se mudado para a Estónia. O órgão jurisdicional de reenvio esclarece, a este respeito, que a sua residência atual na Estónia é desconhecida.

20.      A partir de junho de 2012, a demandada terá deixado de cumprir as suas obrigações de reembolso do crédito. Como tal, o demandante teve de suportar não apenas as suas prestações mas também a parte das prestações não paga pela sua ex‑companheira, até ao mês de junho de 2014. São estes pagamentos que constituem o objeto da ação.

21.      O Landesgericht St. Pölten (Tribunal Regional de Sankt Pölten, Áustria), na qualidade de tribunal de primeira instância, contactou a Embaixada da Estónia na Áustria para tentar saber a residência da demandada, mas não teve sucesso. Nestas circunstâncias, foi designado um mandatário para a representar.

22.      Esse mandatário, que recebeu todas as notificações, suscitou a exceção de incompetência em primeira instância, com fundamento no facto de a demandada ter a sua residência na Estónia, ou seja, no território de outro Estado‑Membro. Além disso, considerou que a situação de facto apresentada pelo demandante não se enquadrava nas disposições das secções 2 a 7 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012, relativas às competências judiciárias em derrogação da regra de competência geral estabelecida no artigo 4.o, n.o 1, do mesmo regulamento. Em todo o caso, alegava que o Landesgericht St. Pölten (Tribunal Regional de Sankt Pölten), no qual o demandante intentou a ação, não tinha competência territorial, na medida em que o crédito tinha sido concedido por um banco austríaco e o lugar de cumprimento a este respeito, a saber, a sede desse banco, não se situava na área de competência desse tribunal.

23.      Por decisão de 5 de agosto de 2015, o Landesgericht St. Pölten (Tribunal Regional de Sankt Pölten) constatou a falta de competência internacional. O demandante interpôs recurso dessa decisão para o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria) que, por decisão de 28 de dezembro de 2015, alterou a decisão de 5 de agosto de 2015.

24.      A demandada interpôs então um recurso de «Revision» para o órgão jurisdicional de reenvio.

 III.      Questões prejudiciais

25.      O Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria), tendo dúvidas quanto à interpretação a dar às disposições do direito da União, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento […] n.o 1215/2012 ser interpretado no sentido de que, num contrato de crédito com um banco (com devedores solidários), o direito a reembolso (direito a compensação ou direito de regresso) de um devedor, que suportou sozinho as prestações do crédito, contra o outro devedor é um direito contratual derivado (secundário) do contrato de crédito?

2)      No caso de resposta afirmativa à primeira questão:

O lugar em que deve ser satisfeito o direito a reembolso (direito a compensação ou direito de regresso) de um devedor contra o outro devedor, derivado do contrato de crédito subjacente, determina‑se:

a)      nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.o 1215/2012 (‘prestação de serviços’) ou

b)      nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea c), conjugado com a alínea a), do regulamento, segundo a lex causae?

3)      No caso de resposta afirmativa à alínea [a)] da segunda questão:

A prestação contratual característica decorrente do contrato de crédito é a concessão do crédito pelo banco, e, por isso, o lugar do cumprimento para realização desta prestação é determinado pela sede do [b]anco, nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.o 1215/2012, se a entrega do crédito tiver ocorrido exclusivamente nesse lugar?

4)      No caso de resposta afirmativa à alínea b) da segunda questão:

Para determinar o lugar do cumprimento da prestação contratual não cumprida, nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), do referido regulamento, [há que fazer referência:]

a)      ao momento da contração do crédito por ambos os devedores (março de 2007) ou

b)      [às diferentes datas] em que o devedor que tem o direito de regresso pagou ao [b]anco as prestações das quais decorre esse direito (junho de 2012 a junho de 2014)?»

 IV.      Análise

26.      No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar, por força das regras de competência estabelecidas pelo Regulamento n.o 1215/2012, o tribunal competente para conhecer do litígio no processo principal.

27.      A principal dificuldade deste processo advém do facto de a ação interposta pelo demandante no processo principal ser uma ação de regresso entre codevedores decorrente de um contrato de crédito celebrado entre as partes e um banco austríaco.

28.      Na realidade, a questão a que é fundamental responder, antes de examinar as regras de competência suscetíveis de se aplicar à situação no processo principal, consiste em saber se, para efeitos de aplicação do regulamento, é possível «separar» do contrato de crédito as relações jurídicas entre codevedores solidários decorrentes da celebração desse contrato ou se, pelo contrário, estes elementos constituem um todo indissociável.

29.      Pelas razões expostas a seguir, considero que as relações jurídicas entre os codevedores solidários decorrentes da celebração de um contrato de crédito são indissociáveis desse mesmo contrato.

30.      Com efeito, essas relações jurídicas decorrem do contrato de crédito celebrado com base no livre consentimento de ambos os codevedores solidários. Na relação estabelecida com o credor comum, cada um dos mutuários aceitou pagar a totalidade da dívida. A prestação que consiste no empréstimo do dinheiro é indissociável da obrigação de reembolso. Se o empréstimo não estivesse vinculado a uma obrigação de reembolso seria, na verdade, uma doação. A obrigação solidária de reembolso constitui, portanto, parte integrante do mecanismo contratual.

31.      Também é verdade que o codevedor que pagou integral ou parcialmente a parte da dívida comum que cabia ao seu codevedor pode recuperar o montante pago invocando o direito de regresso. A justificação deste direito está, assim, ligada à própria existência do contrato em questão. Por conseguinte, seria artificial separar, para efeitos de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, essas relações jurídicas do contrato do qual estas decorrem e que constitui o seu fundamento (8). Decidir de forma contrária poderia levar a uma multiplicação dos foros de competência para os pedidos fundados num único e mesmo contrato. Os tribunais de um Estado‑Membro seriam competentes em relação aos litígios emergentes entre os codevedores e o banco, ao passo que os tribunais de outro Estado‑Membro seriam competentes no caso de se tratar de litígios emergentes entre os próprios codevedores.

32.      Assim sendo, é mais coerente que o conjunto de questões que possam ser suscitadas na sequência da celebração de um contrato de crédito seja examinado pelo mesmo juiz. Aliás, é isso que está expressamente previsto no Regulamento Roma I no que diz respeito à lei aplicável. Como recorda a Comissão Europeia, o artigo 16.o deste regulamento, sob a epígrafe «Pluralidade de devedores», prevê, nomeadamente, que, «[s]e o credor tiver um direito contra vários devedores, responsáveis pelo mesmo direito, e se um deles já tiver satisfeito total ou parcialmente o direito, a lei que regula a obrigação do devedor para com o credor é igualmente aplicável ao direito de regresso do devedor contra os outros devedores».

33.      Não vejo, portanto, por que razão a situação deva ser diferente quando se trata de determinar o tribunal competente para conhecer de um direito de regresso exercido pelo codevedor de um contrato de crédito contra o outro codevedor. Tanto mais que a aplicação recíproca do Regulamento Roma I e do Regulamento n.o 1215/2012 nos obriga à coerência na sua interpretação (9). Além disso, separar as relações jurídicas entre codevedores solidários do contrato do qual estas decorrem seria contrário ao objetivo de um elevado grau de certeza jurídica previsto no Regulamento n.o 1215/2012 (10). Assim, o facto de os codevedores solidários saberem que os litígios emergentes das suas relações jurídicas serão sujeitos às mesmas regras de competência que regem o próprio contrato de crédito representa, indiscutivelmente, um elevado grau de certeza jurídica.

34.      O conjunto destes elementos leva‑me, por isso, a considerar que o tribunal competente para examinar um litígio respeitante às relações jurídicas entre codevedores solidários decorrentes da celebração de um contrato de crédito deve ser aquele previsto para os litígios emergentes desse contrato.

35.      Assim sendo, não havendo qualquer dúvida de que o contrato de crédito constitui um direito de natureza contratual, sou de opinião de que o artigo 7.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que um direito de regresso invocado entre os codevedores de um contrato de crédito se enquadra no conceito de «matéria contratual» na aceção dessa disposição.

36.      Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar o lugar de cumprimento da obrigação em causa, sendo que a determinação desse lugar nos termos deste artigo varia consoante se trate de um contrato de venda de bens ou de um contrato de prestação de serviços, ou de nem um nem outro.

37.      Assim, com a segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 7.o, ponto 1, alínea b), segundo travessão, desse regulamento deve ser interpretado no sentido de que o contrato de crédito no qual se baseia o direito de regresso invocado por um codevedor deve ser qualificado de contrato de prestação de serviços na aceção dessa disposição. Nesse caso, será a obrigação contratual característica desse contrato a concessão do empréstimo e, portanto, o lugar de cumprimento da obrigação a sede do banco?

38.      Do nosso ponto de vista, não existe qualquer dúvida de que o contrato de crédito é um contrato de prestação de serviços.

39.      O Tribunal de Justiça declarou que «o conceito de serviços implica, pelo menos, que a parte que os presta realize uma atividade determinada em contrapartida de uma remuneração» (11). Especificou ainda que a existência de uma atividade exige a prática de atos positivos, com exclusão de meras abstenções (12). O Tribunal de Justiça exclui, assim, dessa qualificação o contrato de licença mediante o qual o titular de um direito de propriedade intelectual concede ao seu cocontratante a faculdade de explorar tal direito em contrapartida do pagamento de uma remuneração na medida em que o titular do direito de propriedade intelectual não efetua nenhuma prestação ao conceder a exploração desse direito, obrigando‑se unicamente a permitir que o seu cocontratante explore livremente tal direito (13).

40.      A situação é diferente no caso dos contratos de crédito. Com efeito, através desse contrato, um mutuante, ou seja, a instituição de crédito, concede ou promete conceder ao mutuário uma quantia de dinheiro sob a forma de pagamento diferido, comprometendo‑se o mutuante, por sua vez, a reembolsar esse montante, consistindo a remuneração desse empréstimo no pagamento dos juros aplicáveis. A prestação de serviços consiste, portanto, na entrega da referida quantia por uma instituição de crédito que, habitualmente, efetua operações denominadas de «operações bancárias».

41.      Daí resulta que a operação de crédito constitui um serviço financeiro. O mesmo decorre, como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio, do artigo 2.o, alínea b), da Diretiva 2002/65 que define o conceito de «serviço financeiro» como «qualquer serviço bancário, de crédito, de seguros, de pensão individual, de investimento ou de pagamento».

42.      O mero facto de a atividade da entidade que presta o serviço se inserir no setor financeiro não pode ter como consequência a exclusão dos contratos relacionados com essa atividade do âmbito de aplicação do artigo 7.o, ponto 1, alínea b), do Regulamento n.o 1215/2012. Parece que, a este respeito, o legislador previu efetivamente a inclusão desse tipo de serviços no âmbito de aplicação do regulamento relativo à competência judiciária. Como observam o órgão jurisdicional de reenvio e a Comissão, o artigo 63.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 previa uma exceção da aplicação das regras de competência em matéria contratual, quando o local da prestação de serviços se situava no Luxemburgo. Todavia, nos termos do n.o 3 deste artigo, as disposições do mesmo não se aplicavam aos contratos relativos à prestação de serviços financeiros, o que significa que esses contratos se regiam pela regra de competência especial prevista no artigo 5.o, ponto 1, desse regulamento, que corresponde, atualmente, ao artigo 7.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

43.      Considero, pois, que o contrato de crédito deve ser qualificado de contrato de prestação de serviços na aceção do artigo 7.o, ponto 1, alínea b), segundo travessão, desse regulamento.

44.      Resta agora determinar qual é o lugar de cumprimento da obrigação em questão. Em conformidade com o artigo 7.o, ponto 1, alínea b), segundo travessão, do referido regulamento, esse lugar é o do Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados. Trata‑se, na verdade, de determinar o lugar de cumprimento da obrigação característica do contrato, sendo esta última o critério de conexão ao tribunal competente (14).

45.      No caso vertente, considero que, no âmbito de um contrato de crédito, essa obrigação característica é a concessão propriamente dita do montante do empréstimo. A outra obrigação contida nesse contrato, nomeadamente, a de o mutuário reembolsar a quantia emprestada, só existe, efetivamente, a partir do momento em que o mutuante executa a prestação, sendo o reembolso uma mera consequência dessa execução.

46.      Quanto ao lugar propriamente dito de cumprimento da obrigação característica, considero que o estabelecimento do credor é o único lugar suscetível de garantir um elevado grau de previsibilidade e de cumprir os objetivos de proximidade e de uniformização previstos no artigo 7.o, ponto 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.o 1215/2012 (15). Com efeito, esse lugar é do conhecimento das partes desde a celebração do contrato, além de ser o do tribunal que possui o elemento de conexão mais estreito com esse contrato.

47.      Por conseguinte, à luz de todos os elementos que precedem, considero que o artigo 7.o, ponto 1, alínea b), segundo travessão, desse regulamento deve ser interpretado no sentido de que o contrato de crédito no qual se baseia o direito de regresso invocado por um codevedor deve ser qualificado de contrato de prestação de serviços na aceção dessa disposição. O lugar de cumprimento da obrigação que fundamenta a invocação judicial desse direito é aquele onde se situa o estabelecimento do credor que concedeu o crédito.

 V.      Conclusão

48.      Tendo em conta as considerações que precedem, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais que lhe foram submetidas pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria):

1)      O artigo 7.o, ponto 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que um direito de regresso invocado entre os codevedores de um contrato de crédito se enquadra no conceito de «matéria contratual» na aceção dessa disposição.

2)      O artigo 7.o, ponto 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que:

–        o contrato de crédito no qual se baseia o direito de regresso invocado por um codevedor deve ser qualificado de contrato de prestação de serviços na aceção dessa disposição; e

–        o lugar de cumprimento da obrigação que fundamenta a invocação judicial desse direito é aquele onde se situa o estabelecimento do credor que concedeu o crédito.


1      Língua original: francês.


2      JO 2012, L 351, p. 1.


3      JO 2008, L 177, p. 6, a seguir «Regulamento «Roma I».


4      JO 2001, L 12, p. 1.


5      JO 2007, L 199, p. 40.


6      JO 2002, L 271, p. 16.


7      BGBl I, 50/2003.


8      V., neste sentido, acórdão de 12 de outubro de 2016, Kostanjevec (C‑185/15, EU:C:2016:763, n.o 38).


9      V., neste sentido, acórdão de 21 de janeiro de 2016, ERGO Insurance e Gjensidige Baltic (C‑359/14 e C‑475/14, EU:C:2016:40, n.o 40).


10      V. considerando 15 do referido regulamento.


11      V. acórdão de 23 de abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch (C‑533/07, EU:C:2009:257, n.o 29). V., igualmente, acórdão de 14 de julho de 2016, Granarolo (C‑196/15, EU:C:2016:559, n.o 37).


12      Acórdão de 14 de julho de 2016, Granarolo (C‑196/15, EU:C:2016:559, n.o 38).


13      V. acórdão de 23 de abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch (C‑533/07, EU:C:2009:257, n.os 30 e 31).


14      V. acórdão de 14 de julho de 2016, Granarolo (C‑196/15, EU:C:2016:559, n.o 33 e jurisprudência referida).


15      V. acórdão de 19 de dezembro de 2013, Corman‑Collins (C‑9/12, EU:C:2013:860, n.os 30 a 32 e 39).