Language of document : ECLI:EU:C:2020:252

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE

apresentadas em 2 de abril de 2020 (1)

Processo C186/19

Supreme Site Services GmbH,

Supreme Fuels GmbH & Co KG,

Supreme Fuels Trading Fze

contra

Supreme Headquarters Allied Powers Europe

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Âmbito de aplicação — Artigo 1.o, n.o 1 — Conceito de “matéria civil e comercial” — Medidas provisórias ou cautelares — Processo destinado ao levantamento de um arresto cautelar — Ação intentada por uma organização internacional — Atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado — Conceito — Processo principal destinado ao reconhecimento da existência de um crédito contratual — Fornecimento de combustíveis no âmbito de uma missão de manutenção da paz — Imunidade de execução dessa organização internacional»






I.      Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial, apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos), tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 1, e do artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (2).

2.        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo de medidas provisórias instaurado pela Supreme Headquarters Allied Powers Europe (a seguir «SHAPE»), uma organização internacional, a fim de obter o levantamento do arresto cautelar de uma conta‑caução promovido pela Supreme Site Services GmbH, pela Supreme Fuels GmbH & Co KG e pela Supreme Fuels Trading Fze, três sociedades com sede, respetivamente, na Suíça, na Alemanha e nos Emiratos Árabes Unidos (a seguir, em conjunto, «Supreme»), bem como a proibição de a Supreme proceder a novos arrestos com base nos mesmos factos. O arresto de foi autorizado na sequência de um pedido da Supreme, também perante o juiz das medidas provisórias, na pendência da resolução do litígio contratual que a opõe à SHAPE relativamente ao pagamento de combustíveis fornecidos para atender às necessidades de uma operação de manutenção da paz dirigida pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no Afeganistão.

3.        Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio submeteu diversas questões ao Tribunal de Justiça. Mais especificamente, com as suas questões, esse órgão jurisdicional pretende saber se, atendendo ao facto de que a conta‑caução objeto do arresto cautelar foi aberta num banco na Bélgica, os órgãos jurisdicionais belgas têm competência exclusiva, por força do artigo 24.o, ponto 5 (3), do Regulamento n.o 1215/2012, para decidir do levantamento deste arresto.

4.        Esta questão implica decidir, previamente, a de saber se um processo de medidas provisórias, como o que está em causa no processo principal, constitui «matéria civil ou comercial» e é abrangido, a esse título, pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012, conforme definido no seu artigo 1.o, n.o 1. As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio a este propósito provêm do facto de, como fundamento do seu pedido de medidas provisórias, a SHAPE ter invocado a imunidade de execução ao abrigo do direito internacional.

5.        Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões centrar‑se‑ão sobre a questão, submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, que tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

6.        No termo da minha exposição, proporei ao Tribunal de Justiça que declare que a questão de saber se um processo de medidas provisórias, como o que está em causa no processo principal, destinado a obter o levantamento de um arresto cautelar constitui «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento, depende da natureza do direito cuja proteção esse arresto visava assegurar, bem como da questão de saber se esse direito tem a sua origem num comportamento de autoridade do Estado ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade do Estado, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, tendo em conta a exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado» prevista por esta disposição.

7.        Em particular, exporei por que motivo, do meu ponto de vista, o facto de uma organização internacional invocar uma imunidade de que alega dispor por força do direito internacional não é determinante para efeitos dessa análise e não pode impedir que o juiz nacional se declare internacionalmente competente nos termos do Regulamento n.o 1215/2012.

II.    Quadro jurídico

A.      Regulamento n.o 1215/2012

8.        O considerando 10 do Regulamento n.o 1215/2012 enuncia:

«O âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial, com exceção de certas matérias bem definidas […]»

9.        O artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento prevê:

«O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado (ata jure imperii).»

B.      Direito neerlandês

10.      O artigo 700.o do Nederlandse Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering (Código de Processo Civil neerlandês, a seguir «Código de Processo Civil») dispõe:

«1)      A execução de um arresto cautelar carece da autorização do juiz de medidas provisórias em cuja jurisdição se encontram um ou mais dos bens em causa e, se o arresto não tiver por objeto bens, do tribunal em cuja jurisdição está localizado o domicílio do devedor ou da pessoa ou uma das pessoas contra o qual é efetuado o arresto.

[…]»

11.      Nos termos do artigo 705.o, n.o 1, do Código de Processo Civil:

«O juiz de medidas provisórias que autorizou o arresto pode, através de uma medida provisória, anular o arresto a pedido de qualquer interessado, sem prejuízo da competência do juiz de direito comum.»

III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça.

12.      A SHAPE é uma organização internacional, instituída pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Quartéis‑Generais Militares Internacionais Criados ao Abrigo do Tratado do Atlântico Norte, assinado em Paris, em 28 de agosto de 1952 (a seguir «Protocolo de Paris») (4). Foi criado em Brunssum (Países Baixos) um quartel‑general regional, a saber, o Allied Joint Force Command Brunssum (Comando Aliado de Forças Conjuntas de Brunssum, a seguir «JFCB»), subordinado à SHAPE.

13.      Com base em dois acordos gerais de encomenda (Basic Ordering Agreements, a seguir «BOA»), a Supreme forneceu combustíveis à SHAPE para uma missão da Força Internacional de Assistência à Segurança (a seguir «FIAS») da OTAN no Afeganistão.

14.      Em novembro de 2013, o JFCB e a Supreme assinaram um contrato de garantia que previa a abertura de uma conta‑caução num banco na Bélgica para cobrir os pedidos de indemnização ou outros reajustamentos que pudessem ser devidos à Supreme pelos clientes OTAN associados.

15.      No final de 2015, a Supreme intentou uma ação contra a SHAPE e o JFCB no rechtbank Limburg (Tribunal de Primeira Instância de Limburgo, Países Baixos) pedindo que diversos montantes fossem levantados dos fundos depositados na conta‑caução (a seguir «processo principal»). A Supreme fundamentou o seu pedido afirmando que tinha fornecido combustíveis à SHAPE com base em BOA para uma missão da FIAS no Afeganistão e que a SHAPE e o JFCB não tinham cumprido as obrigações de pagamento que lhes incumbiam.

16.      A SHAPE e o JFCB suscitaram, a título incidental, uma exceção de incompetência invocando a imunidade de jurisdição de que beneficiavam, enquanto organizações internacionais, nos termos do direito internacional. Por Decisão de 8 de fevereiro de 2017, o rechtbank Limburg (Tribunal de Primeira Instância de Limburgo) declarou‑se competente para conhecer dos pedidos da Supreme. A SHAPE interpôs recurso desta decisão em 4 de maio de 2017.

17.      Foram sucessivamente instaurados dois processos no rechtbank Limburg (Tribunal de Primeira Instância de Limburgo) pela Supreme, e depois pela SHAPE, em paralelo com o processo principal.

18.      Em primeiro lugar, a pedido da Supreme, o juiz das medidas provisórias do rechtbank Limburg (Tribunal de Primeira Instância de Limburgo) autorizou a Supreme, por decisão de 14 de abril de 2016, com base no artigo 700.o do Código de Processo Civil, a proceder a um arresto cautelar dos fundos depositados na conta‑caução. O arresto cautelar foi efetuado em 18 de abril de 2016.

19.      Em segundo lugar, em 17 de março de 2017, a SHAPE intentou no mesmo órgão jurisdicional uma ação de medidas provisórias, a fim de obter o levantamento do arresto cautelar efetuado sobre a conta‑caução e de proibir a Supreme de proceder de novo a esses arrestos com base nos mesmos factos. Como fundamento dos seus pedidos, a SHAPE invocou a imunidade de execução ao abrigo do artigo XI, n.o 2, do Protocolo de Paris, que enuncia, em substância, que não pode ser adotada nenhuma medida de execução contra um quartel‑general instituído ao abrigo do Tratado do Atlântico Norte.

20.      Por Decisão de 12 de junho de 2017, o rechtbank Limburg (Tribunal de Primeira Instância de Limburgo) julgou procedentes os pedidos da SHAPE.

21.      Essa decisão foi confirmada por Acórdão de 27 de junho de 2017 do Gerechtshof ‘s‑Hertogenbosch (Tribunal de Recurso de ‘s‑Hertogenbosch, Países Baixos).

22.      Em 21 de agosto de 2017, a Supreme interpôs recurso desse acórdão para o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos), que suscitou oficiosamente a questão da competência internacional dos órgãos jurisdicionais neerlandeses, nos termos do Regulamento n.o 1215/2012, para conhecer da ação de medidas provisórias da SHAPE.

23.      Nestas condições, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      a)      Deve o Regulamento [1215/2012] ser interpretado no sentido de que […] um processo como o presente, em que uma organização internacional pede:

i)      o levantamento do arresto [cautelar] efetuado pela outra parte noutro Estado‑Membro, e

(ii)      a proibição de a outra parte realizar novos arrestos, com base nos mesmos elementos de facto,

e em que [invoca] como fundamento dos referidos pedidos a imunidade [de] execução[, constitui, no todo ou em parte, um processo em matéria civil ou comercial, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, desse regulamento]?

b)      É relevante para a resposta à questão 1[, alínea]a), e, em caso afirmativo, em que medida, o facto de o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro ter autorizado o arresto [a título de] um crédito que a outra parte alega ter sobre a organização internacional, crédito esse que é objeto de um processo principal pendente no referido Estado‑Membro [no âmbito de] um litígio contratual [relativo ao] pagamento de combustíveis que foram fornecidos para uma operação de manutenção da paz [realizada] por outra organização internacional, associada à [primeira] organização […]?

2)      a)      Em caso de resposta afirmativa à questão 1[, alínea] a), deve o artigo 24.o, proémio, e n.o 5, do Regulamento [1215/2012] ser interpretado no sentido de que, num caso em que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro autorizou o arresto [cautelar] e este arresto foi posteriormente efetuado noutro Estado‑Membro, os tribunais deste último Estado‑Membro são exclusivamente competentes para apreciar o pedido de levantamento desse arresto?

b)      É relevante para a resposta à questão 2[, alínea] a), e, em caso afirmativo, em que medida, o facto de a organização internacional invocar como fundamento do seu pedido de levantamento do arresto a imunidade contra a execução?

3)            Se, para a resposta à questão de saber se está em causa um processo em matéria civil ou comercial na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento [1215/2012] ou à questão de saber se está em causa uma ação abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 24.o, preâmbulo, e n.o 5, [desse r]egulamento […], for relevante o facto de a organização internacional ter alegado como fundamento dos seus pedidos a imunidade contra a execução, em que medida está o tribunal requerido obrigado a avaliar a procedência da invocada imunidade contra a execução? Aplica‑se, nesse contexto, a regra de que o mesmo deve tomar em consideração todos os elementos de que dispõe, incluindo, se for caso disso, a oposição deduzida pelo demandado, ou aplica se outra regra?»

24.      A Supreme, a SHAPE, os Governos neerlandês, belga, grego, italiano e austríaco e a Comissão Europeia entregaram as suas observações escritas ao Tribunal de Justiça.

25.      A Supreme, a SHAPE, os Governos neerlandês, belga, grego e austríaco e a Comissão estiveram presentes na audiência de alegações que se realizou em 12 de dezembro de 2019.

IV.    Análise

A.      Considerações preliminares

26.      Com a sua primeira questão prejudicial, que se subdivide em duas partes, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma ação de medidas provisórias, como a requerida pela SHAPE constitui «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 e se se enquadra, a esse título, no âmbito de aplicação material deste regulamento.

27.      Mais especificamente, esse órgão jurisdicional pergunta, em substância, se a questão de saber se uma ação desta natureza se enquadra no âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012 depende do facto de o próprio processo principal ser abrangido nesse âmbito de aplicação material [primeira questão, alínea b)]. Por outro lado, pretende esclarecer a questão de saber se, quando uma organização internacional invoca a imunidade de execução de que dispõe ao abrigo do direito internacional, essa imunidade obsta oficiosamente a que a sua ação se enquadre no âmbito de aplicação material deste regulamento ou deve, pelo menos, ter como consequência que essa ação esteja abrangida pela exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do referido regulamento [primeira questão, alínea a)].

28.      Antes de proceder sucessivamente à análise destas problemáticas, formularei algumas breves observações relativas à admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial.

B.      Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

29.      Nas suas observações escritas, a SHAPE alega que o presente pedido de decisão prejudicial, mais especificamente a primeira e segunda questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, são inadmissíveis na medida em que dizem respeito ao seu pedido de levantamento do arresto cautelar efetuado pela Supreme sobre a conta‑caução. Estas questões tornaram‑se, em parte, hipotéticas uma vez que o juiz belga já tinha autorizado a execução das Decisões de 12 de junho de 2017 do rechtbank Limburg (Tribunal de Primeira Instância de Limburgo) e de 27 de junho de 2017 do Gerechtshof ‘s‑Hertogenbosch (Tribunal de Recurso de ‘s‑Hertogenbosch), em aplicação de uma convenção celebrada entre a Bélgica e os Países Baixos (5), e que o arresto cautelar efetuado pela Supreme sobre a conta‑caução já tinha sido objeto de levantamento.

30.      A este respeito, importa esclarecer que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que este define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, beneficiam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar pronunciar sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma norma da União solicitadas pelo órgão jurisdicional nacional não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético (6).

31.      Na minha opinião, esta situação não se verifica no presente caso. A este propósito, basta‑me salientar que, no âmbito do processo de medidas provisória que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional de reenvio tem de se pronunciar em sede de cassação sobre as duas decisões acima referidas, em execução das quais o arresto cautelar efetuado pela Supreme sobre a conta‑caução foi objeto de um levantamento. Neste contexto, a questão de saber se os órgãos jurisdicionais neerlandeses são internacionalmente competentes nos termos do Regulamento n.o 1215/2012 para decidir desse levantamento não me parece nem hipotético nem manifestamente desprovido de relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal.

32.      Feito este esclarecimento, coloca‑se também a questão de saber se o pedido de decisão prejudicial deve ser considerado inadmissível tendo em conta a extinção do objeto do litígio no processo principal, na sequência do Acórdão de 10 de dezembro de 2019 do Gerechtshof ‘s‑Hertogenbosch (Tribunal de Recurso de ‘s‑Hertogenbosch), referido pelas partes na audiência.

33.      Preciso que, nesse acórdão, esse órgão jurisdicional confirmou a competência do rechtbank Limburg (Tribunal de Primeira Instância de Limburgo), no âmbito do processo principal, declarando ao mesmo tempo que, na medida em que a imunidade de jurisdição invocada pela SHAPE e pelo JFCB dizia respeito ao exercício das suas funções oficiais, esta imunidade devia ser considerada absoluta. Além do facto de o arresto cautelar efetuado sobre a conta‑caução já ter sido objeto de um levantamento, pode‑se, por conseguinte, perguntar se os órgãos jurisdicionais neerlandeses ainda podem vir a autorizar novos arrestos sobre a conta‑caução.

34.      A este respeito, é verdade que o próprio Tribunal de Justiça declarou algumas vezes, em determinados processos, que o litígio perante o juiz nacional tinha deixado de ter objeto e, com este fundamento, considerou inadmissíveis as questões prejudiciais que lhe tinham sido submetidas (7).

35.      Todavia, no caso em apreço, resulta das indicações dadas pelas partes na audiência que o Acórdão de 10 de dezembro de 2019 do Gerechtshof ‘s‑Hertogenbosch (Tribunal de Recurso de ‘s‑Hertogenbosch) é objeto de um processo de recurso para o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos). Uma vez que, no âmbito da sua ação de medidas provisórias, a SHAPE pediu expressamente aos órgãos jurisdicionais neerlandeses que a Supreme fosse proibida de proceder a novos arrestos cautelares sobre a conta‑caução, duvido de que se possa considerar que o litígio no processo principal ficou sem objeto enquanto aquele órgão jurisdicional não tiver resolvido de forma definitiva a questão de saber se a SHAPE pode invocar a sua imunidade de jurisdição no âmbito do processo principal e se essa imunidade se opõe, em si mesma, a que possam ser autorizados novos arrestos sobre a conta‑caução.

36.      Nestas condições, o presente pedido de decisão prejudicial deve, na minha opinião, ser julgado admissível.

C.      Quanto à incidência do processo principal [primeira questão, alínea b)]

37.      Com a sua primeira questão, alínea b), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, para determinar se uma ação de medidas provisórias como a da SHAPE constitui «matéria civil e comercial» e, a esse título, se enquadra no âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012, deve ter em conta a questão de saber se o próprio processo principal está abrangido por esse âmbito de aplicação material.

38.      Recordo que, de acordo com as indicações dadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o arresto cautelar cujo levantamento foi pedido pela SHAPE no âmbito da sua ação de medidas provisórias foi efetuado a título de um crédito que a Supreme afirma ter sobre a SHAPE no âmbito do litígio contratual principal.

39.      A este propósito, o Tribunal de Justiça esclareceu que se deve entender por «medidas provisórias ou cautelares» as medidas que se destinam a manter uma situação de facto ou de direito a fim de salvaguardar direitos cujo reconhecimento é, por outro lado, pedido ao juiz da questão de fundo (8).

40.      Na minha opinião, não há dúvida de que esta definição abrange um arresto cautelar como o que foi efetuado, nas circunstâncias do processo principal, pela Supreme assim como qualquer outro arresto cautelar que possa vir a solicitar, com base nos mesmos factos, nos órgãos jurisdicionais neerlandeses.

41.      Feita esta clarificação, considero que uma ação de medidas provisórias como a da SHAPE deve ser vista, uma vez que se destina a obter o levantamento do arresto cautelar efetuado pela Supreme e a proibição de esta parte praticar outros arrestos com base nos mesmos factos, no sentido de que tem por objeto «medidas provisórias ou cautelares» (9).

42.      No que respeita ao método para determinar se uma ação de medidas provisórias como a que está em causa no processo principal, que tem por objeto «medidas provisórias ou cautelares» é abrangida pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012, constato que foram propostas três teses diferentes na audiência.

43.      Em primeiro lugar, a Supreme, acompanhada nesta questão pelo Governo grego, alegou, no essencial, que a aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 a uma ação de medidas provisórias como a da SHAPE, depende da questão de saber se o próprio processo principal é abrangido pelo âmbito de aplicação deste regulamento e, portanto, das características deste processo (10).

44.      Em segundo lugar, a SHAPE alega que a natureza civil ou comercial de uma ação que, como a sua, tem por objeto medidas provisórias ou cautelares não pode ser determinada pela natureza civil ou comercial do processo principal e deve ser apreciada independentemente deste último processo.

45.      Em terceiro lugar, os Governos neerlandês e belga e a Comissão consideraram que, embora as características e a qualificação do processo principal não sejam determinantes, há que, em contrapartida, analisar se os direitos cuja proteção o arresto cautelar visava assegurar no âmbito deste último processo constituem «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

46.      Subscrevo esta última tese.

47.      Com efeito, recordo que, no que respeita à interpretação dos textos anteriores ao Regulamento n.o 1215/2012, e mais especificamente da Convenção de Bruxelas (11), o Tribunal de Justiça declarou que sendo as medidas provisórias, incluindo as medidas cautelares, aptas para proteger direitos de natureza muito variada, a sua inclusão no âmbito de aplicação desta convenção é determinada não pela sua própria natureza, mas pela natureza dos direitos que se destinam a proteger e que constituem o objeto do processo principal (12).

48.      Sem se afastar desta regra (13), o Tribunal de Justiça teve oportunidade de esclarecer que, contrariamente à opinião da Supreme e do Governo grego, o seu objeto não era associar o destino de um pedido de medidas provisórias, incluindo as medidas cautelares ao do processo principal (14).

49.      Assim, no Acórdão Cavel II (15), o Tribunal de Justiça recordou ter declarado, no Acórdão Cavel I (16), que um pedido de aposição de selos apresentado no âmbito de um processo de divórcio excluído do âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas estava ele próprio excluído desse âmbito de aplicação, não por causa de seu caráter acessório, mas porque, pelo seu próprio objeto, se enquadrava, nesse caso, no regime matrimonial dos cônjuges. Além disso, considerou que outra medida provisória, embora relacionada com o mesmo processo principal, podia ter um destino diferente, na medida em que se destinava a garantir sustento do cônjuge necessitado e pertencia, consequentemente, à matéria das obrigações de alimentos, que estava, por seu turno, incluída no âmbito de aplicação desta convenção (17).

50.      Posteriormente, o Tribunal de Justiça também declarou que, na medida em que o objeto de um pedido de medidas provisórias incidia sobre uma questão abrangida pelo âmbito de aplicação material da Convenção de Bruxelas, esta última era aplicável mesmo que já tivesse sido ou pudesse ser instaurado um processo sobre a questão de fundo e mesmo que este processo corresse os seus trâmites perante árbitros e tivesse de ser excluído, a esse título, do âmbito de aplicação desta convenção (18).

51.      Em conformidade com a tendência geral que se desenha à luz desta jurisprudência (19), é minha opinião que a natureza dos direitos cujo reconhecimento é pedido no âmbito do processo principal e cuja proteção as medidas provisórias ou cautelares pedidas visam assegurar é determinante. Em especial, não se pode considerar que qualquer pedido de «medidas provisórias ou cautelares» deve, consoante o processo principal esteja ou não abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, ser automaticamente incluído ou excluído desse âmbito de aplicação, apenas devido ao seu caráter acessório (20). Há ainda que verificar se o objeto dessas medidas, isto é, os direitos que elas se destinam a proteger no âmbito do processo principal, constituem «matéria civil e comercial» abrangida por esse âmbito de aplicação.

52.      Acrescento que esta abordagem me parece conforme com a jurisprudência segundo a qual o artigo 24.o da Convenção de Bruxelas (atual artigo 35.o do Regulamento n.o 1215/2012), que autoriza um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro contratante a decidir sobre um pedido de medida provisória ou cautelar apesar de não ser competente para conhecer do mérito do litígio, só pode ser invocado com vista a obter essas medidas em domínios abrangidos pelo âmbito de aplicação material dessa convenção, conforme definido no seu artigo 1.o (21).

53.      Nas circunstâncias do processo principal, uma vez que, em conformidade com as indicações dadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o arresto cautelar foi autorizado a título de um crédito que a Supreme alega deter sobre a SHAPE no âmbito de um litígio contratual objeto do processo principal, considero que é à luz da natureza do direito de crédito cuja proteção este arresto visava garantir no âmbito deste processo que se deve determinar se um pedido de medidas provisórias como o da SHAPE, destinado ao levantamento do referido arresto, está ou não abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012.

D.      Quanto à incidência do direito internacional das imunidades [primeira questão, alínea a)]

54.      Com a sua primeira questão, alínea a), o órgão jurisdicional de reenvio pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que determine se o facto de uma organização internacional invocar a imunidade de execução como fundamento dos seus pedidos, no âmbito de uma ação de medidas provisórias como a que está em causa no processo principal, obsta automaticamente à aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 ou deve, pelo menos, ter como consequência que essa ação esteja abrangida pela exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento.

55.      Concretamente, entendo que o problema do órgão jurisdicional de reenvio decorre, nomeadamente, do facto de que, tal como formulada no artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, a exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado» está associada ao conceito de «ata jure imperii», conceito que também é utilizado no direito internacional no que se refere ao princípio da imunidade dos Estados.

56.      As etapas da minha análise serão as seguintes. Em primeiro lugar, farei observações gerais sobre o conceito de «ata jure imperii» e sobre a distinção entre as imunidades dos Estados e as imunidades das organizações internacionais em direito internacional. Em segundo lugar, examinarei se essa distinção deve ter como consequência que os litígios que implicam organizações internacionais se situam automaticamente fora do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012. Responderei negativamente, sublinhando, em terceiro lugar, que um ato ou uma omissão cometidos por organizações internacionais podem, na minha opinião, ser abrangidos pela exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado», nos termos do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento. Para terminar, precisarei os critérios previstos pela jurisprudência para concluir que um ato ou uma omissão procede do exercício da autoridade do Estado, antes de explicar as razões pelas quais considero que o facto de uma organização internacional invocar a imunidade de jurisdição ou de execução não é determinante para efeitos da apreciação desses critérios.

57.      Acrescento, a título preliminar, que, nas suas observações escritas, a Supreme alegou que a imunidade de execução invocada pela SHAPE como fundamento do seu pedido de medidas provisórias é irrelevante. A Supreme evoca, em contrapartida, a questão de saber se, uma vez que a aplicabilidade do Regulamento n.o 1215/2012 a uma ação como a intentada pela SHAPE depende de o processo principal estar ele próprio abrangido pelo âmbito de aplicação material deste regulamento, a imunidade de jurisdição invocada no âmbito desse processo pode ou não obstar a que se considere que essa ação constitui «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do referido regulamento.

58.      A este respeito, a questão da incidência do direito internacional das imunidades no âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012 não necessita, na minha opinião, de uma resposta diferente conforme essa organização internacional invoque a imunidade de execução ou de jurisdição. É, de resto, o que me esforçarei por esclarecer no âmbito da minha análise desta problemática.

1.      Observações sobre o direito internacional das imunidades

59.      Nas suas observações escritas, os Governos neerlandês, belga e austríaco consideraram que o conceito de «ata jure imperii»,  que permite distinguir, no direito internacional, os atos praticados no exercício da autoridade do Estado dos atos de gestão (ata jure gestionis), só é relevante quando se invoca a imunidade dos Estados. Em particular, esses governos consideram que a imunidade das organizações internacionais é válida para todos os atos praticados por estas últimas, desde que estejam estritamente ligados aos objetivos que prosseguem ou sejam necessários ao exercício das suas funções.

60.      No que diz respeito à imunidade dos Estados, recordo que, no Acórdão Mahamdia (22), o Tribunal de Justiça declarou que, no estado atual da prática internacional, a imunidade de jurisdição, que se destina a impedir que um Estado possa ser demandado em justiça perante um órgão jurisdicional de outro Estado, não tem um valor absoluto e pode ser excluída se o recurso jurisdicional tiver como objeto atos praticados iure gestionis, os quais não estão abrangidos pela autoridade do Estado.

61.      Como salientou acertadamente o advogado‑geral M. Szpunar nas suas Conclusões no processo Rina (23), o Tribunal de Justiça admitiu, assim, implicitamente, o princípio já assente no direito internacional consuetudinário, segundo o qual os Estados beneficiam de uma imunidade de jurisdição relativa, baseada numa distinção entre os atos praticados jure imperii e os atos praticados jure gestionis, perante os quais a imunidade de jurisdição não manifesta geralmente os seus efeitos.

62.      Por outro lado, observo que a imunidade de execução dos Estados também foi matizada na doutrina e no direito internacional. Assim, enquanto os bens e haveres de um Estado relacionados com as atividades associadas à soberania do Estado são protegidos contra qualquer execução coerciva pelas autoridades de outro Estado, o mesmo não acontece com os bens e haveres utilizados ou destinados a ser utilizados para fins comerciais (24).

63.      Em relação à imunidade das organizações internacionais, a distinção entre os atos praticados jure imperii e os praticados jure gestionis tem, em contrapartida, apenas relevância limitada (25).

64.      Com efeito, como salientaram, com razão, os Governos neerlandês, belga e austríaco, as imunidades das organizações internacionais respondem a uma lógica diferente das imunidades dos Estados. Contrariamente aos Estados, que retiram as suas imunidades do princípio par in parem non habet imperium (26), as imunidades das organizações internacionais são, regra geral, conferidas pelos tratados constitutivos dessas organizações, por convenções multilaterais ou por acordos bilaterais celebrados entre os Estados‑Membros de uma mesma organização (27). Essas imunidades revestem caráter funcional, na medida em que visam garantir que essas organizações possam realizar as missões para as quais foram instituídas, com toda a independência (28).

2.      Quanto à desnecessidade de excluir automaticamente os litígios que envolvem organizações internacionais do âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012

65.      Tendo em conta o facto de as imunidades das organizações internacionais diferirem das dos Estados e revestirem caráter funcional — o que implica que, em teoria, podem estender‑se a todos os atos que essas organizações praticam no exercício das suas funções — importa perguntar se, como sustenta o Governo austríaco, a participação de uma organização internacional num litígio deve invariavelmente levar a que esta se situe fora do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012.

66.      Confesso sentir dificuldades em conceber os princípios ou as obrigações por força dos quais os litígios que envolvem organizações internacionais devam, como propõe esse governo, ser automaticamente excluídos do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012. Em particular, a possibilidade de este regulamento ser aplicável a tais litígios não me parece que ponha em perigo a obrigação da União prevista no artigo 3.o, n.o 5, TUE, quando adote um ato, de respeitar o direito internacional na sua totalidade (29).

67.      Com efeito, no se refere a um litígio entre uma organização internacional e pessoas de direito privado, como é o caso no processo principal, considero que o simples facto de o juiz nacional se declarar internacionalmente competente pelo facto de esse litígio ser abrangido pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012 não é suscetível de prejudicar a proteção da imunidade invocada, ao abrigo do direito internacional, pela organização internacional parte nesse litígio.

68.      Para garantir o respeito da imunidade de jurisdição, o juiz nacional deve, em contrapartida, recusar exercer a competência que lhe é conferida por este regulamento, sempre que essa imunidade o exija (30). Por outro lado, no termo da sua análise do litígio quanto ao mérito ou a título provisório, deve recusar submeter a organização internacional a medidas de execução coercivas se necessário, tendo em atenção a imunidade de execução de que goza essa organização (31).

69.      Sobre este aspeto acrescento que, como alegaram a Supreme, o Governo neerlandês e a Comissão, nas suas observações escritas e na audiência, a questão de saber se a imunidade invocada por uma organização internacional deve obstar ou não ao exercício de jurisdição ou à adoção de medidas de execução contra essa organização não se coloca, na minha opinião, na fase da determinação da competência nos termos do Regulamento n.o 1215/2012 e só é relevante depois de o juiz se ter declarado internacionalmente competente (32).

70.      Com efeito, esta questão exige a definição dos contornos da imunidade de jurisdição ou de execução de que a organização internacional dispõe e a apreciação do mérito dos pedidos das partes a este respeito. Concretamente, necessita de verificar se a alegada imunidade existe. Por conseguinte, distingue‑se da questão de saber se o objeto do litígio constitui matéria civil ou comercial e é abrangido pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012 que deve ser resolvida a montante, sem que o juiz nacional seja obrigado a proceder a um exame do processo quanto ao mérito (33).

71.      Nas circunstâncias do processo principal, entendo que, para responder às preocupações expressas pelo Governo austríaco, que a mera aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 não impede assim, nomeadamente, os órgãos jurisdicionais neerlandeses chamados a decidir da ação de medidas provisórias da SHAPE de proibir a adoção de medidas provisórias ou cautelares suscetíveis de interferir, sendo esse o caso, com a sua imunidade de execução.

72.      As considerações anteriores levam‑me a concluir que a imunidade invocada por uma organização internacional ao abrigo do direito internacional não constitui automaticamente um obstáculo à aplicação do Regulamento n.o 1215/2015. Em contrapartida, a fim de determinar se um litígio que envolve uma organização internacional pertence ou não ao âmbito de aplicação deste regulamento, há que verificar se esse litígio está abrangido por uma das exclusões previstas no artigo 1.o do referido regulamento.

3.      Quanto à possibilidade de os litígios que envolvem organizações internacionais serem abrangidas pela exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado»

73.      Recordo que, nos termos do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, este se aplica em matéria civil e comercial. Em contrapartida, não abrange, nomeadamente, «a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado (ata jure imperii)».

74.      Como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio, coloca‑se a questão de saber se esta exclusão se aplica apenas aos Estados ou se também pode abranger atos ou omissões de organizações internacionais como a SHAPE.

75.      A este propósito, considero útil recordar que o conceito de «autoridade do Estado» desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça abrangia já, sob a égide da Convenção de Bruxelas, as situações em que uma organização internacional agia no exercício da autoridade do Estado (34).

76.      Assinalo igualmente que, tal como inicialmente formulado na jurisprudência, o conceito de «autoridade do Estado» não remetia apenas para o quadro da «responsabilidade do Estado», como é atualmente o caso no artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, mas mais genericamente para as situações em que a «autoridade pública» atua no exercício da autoridade do Estado (35).

77.      A este propósito, sublinho que o aditamento da referência à «responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado» no artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento, a única alteração introduzida pelo referido regulamento à redação do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001, visava apenas clarificar o conceito de «matéria civil e comercial» (36).

78.      Além disso, a enumeração que consta do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 é precedido do termo «nomeadamente». Do meu ponto de vista, a referência à «responsabilidade do Estado» nesta disposição pode, assim, ser entendida no sentido de que exemplifica, de modo não exaustivo, o tipo de situações suscetíveis de ser caracterizadas pelo exercício da autoridade do Estado (37).

79.      Sobre esta questão, o considerando 10 deste regulamento, que prevê que a intenção do legislador era incluir, no âmbito de aplicação material do presente regulamento, «o essencial da matéria civil e comercial, com exceção de certas matérias bem definidas», parece remeter mais para as exclusões previstas no n.o 2, do artigo 1.o, do mesmo regulamento do que para as matérias listadas no seu n.o 1, que se situam, em todo o caso, fora do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, uma vez que não constituem «matéria civil e comercial».

80.      Tendo em atenção estes elementos, considero que o conceito de «autoridade do Estado», que consta do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, pode abranger atos ou omissões de organizações internacionais. Quando é esse o caso, esses atos ou omissões não constituem «matéria civil e comercial» e estão excluídos do âmbito de aplicação material deste regulamento.

81.      Na minha análise, começarei por precisar os critérios desenvolvidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, para efeitos de determinar se um ato ou uma omissão foi cometido no exercício da autoridade do Estado. Seguidamente, exporei as razões pelas quais considero que a imunidade invocada por uma organização internacional como a SHAPE não é determinante para estabelecer se a exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado» é aplicável.

4.      Quanto à jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao conceito de «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado»

82.      Recordo que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a questão de saber se uma ação está excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser apreciada à luz dos elementos que caracterizam a natureza das relações jurídicas entre as partes no litígio ou o objeto deste (38).

83.      Assim, o Tribunal de Justiça considerou que, embora determinados litígios que opõem uma entidade pública a uma pessoa de direito privado possam ser abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, o mesmo já não acontece se essa entidade pública atuar no exercício da autoridade pública (39). Com efeito, a manifestação de prerrogativas de autoridade pública por uma das partes no litígio, pelo facto de essa parte exercer poderes que exorbitam das regras aplicáveis nas relações entre particulares, exclui esse litígio da matéria civil e comercial na aceção do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento (40).

84.      Para determinar se é esse o caso, o Tribunal de Justiça declarou que há que identificar a relação jurídica existente entre as partes no litígio e examinar o fundamento e as modalidades de exercício da ação intentada (41). À luz desta jurisprudência, esses três critérios — «relação jurídica existente entre as partes», «fundamento da ação» e «modalidades da ação» — devem ser examinados cumulativamente. Todavia, determinados acórdãos não mencionam o critério da relação jurídica entre as partes no litígio (42). Por outro lado, noutros acórdãos, o Tribunal de Justiça tratou os critérios relativos ao fundamento jurídico da ação intentada e à relação jurídica entre as partes como critérios que se sobrepõem (43). Assim, parece‑me que o Tribunal de Justiça não distingue sistematicamente «a relação jurídica entre as partes» do «fundamento da ação intentada» e do «objeto do litígio» (44).

85.      Para além dos detalhes de fundamentação adotados pelo Tribunal de Justiça nesses acórdãos, parece‑me, em definitivo, que o elemento determinante é o facto de a ação assentar num direito que tem origem num comportamento de autoridade pública ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade pública (45).

86.      Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que «[o] facto de o gestor, ao pretender recuperar [as] despesas, agir com base num direito de crédito que tem a sua origem num ato de poder público basta para que, independentemente da natureza do processo de que disponha para o efeitos nos termos do direito nacional, a sua ação seja considerada excluída do âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas» (46).

87.      Na minha opinião, esta jurisprudência também põe em evidência o facto de que o critério relativo às modalidades de exercício da ação não é relevante em todos os casos (47).

88.      Assim, parece‑me que o facto de a ação adotar as formas clássicas do direito civil não pode impedir que seja excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, quando seja possível estabelecer, à luz de outros elementos, que a ação assenta num direito que tem a sua origem num comportamento de autoridade de Estado ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade de Estado (48).

89.      A este respeito, parece‑me necessário sublinhar que o critério relativo às modalidades de exercício da ação foi introduzido pelo Acórdão Baten (49) e retomado, nomeadamente, nos Acórdãos Sapir (50), Sunico (51), Pula Parking (52) e Gradbeništvo Korana (53), no contexto específico de litígios onde, à luz de outras características, a ação não parecia assentar num direito que tinha a sua origem num comportamento de autoridade do Estado ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade do Estado, a fim evitar que situações em que organismo público tivesse a possibilidade de adotar um ato de direito público, com força executiva própria, e gozasse assim de prerrogativas que lhe permitissem escapar às regras de direito comum, fossem, apesar de tudo, abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012.

90.      Atendendo às considerações anteriores, concluo que, de um modo geral, para determinar se um litígio deve ser excluído do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 pelo facto de dizer respeito a «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado», há que examinar se a ação assenta num direito que tem a sua origem num comportamento de autoridade do Estado ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade do Estado. A este respeito, pode constituir um indício, nomeadamente, o facto de a autoridade pública dispor da faculdade de adotar um ato de direito público com força executiva própria, de modo que se encontra numa posição jurídica derrogatória das regras de direito comum que regulam as modalidades de exercício da ação intentada. Em contrapartida, o facto de a ação assumir vias de recurso ordinárias não é decisivo.

5.      Quanto à incidência da imunidade das organizações internacionais no conceito de «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado»

91.      Nesta fase da análise, creio ser útil responder aos argumentos do Governo grego e da SHAPE segundo os quais a imunidade de jurisdição ou de execução de que as organizações internacionais dispõem faz parte de privilégios que derrogam as regras habituais que regulam as relações interpessoais de direito privado e as coloca indubitavelmente numa posição dominante em relação aos seus cocontratantes. Um litígio como o do processo principal, em que uma organização internacional invoca a sua imunidade de jurisdição ou de execução, está assim abrangido, segundo eles, pela exceção relativa ao «exercício da autoridade de Estado».

92.      Sobre esta questão, recordo que, conforme resulta do n.o 90, supra, a questão de saber se um organismo público se encontra numa posição jurídica derrogatória em relação às regras de direito comum que regulam as modalidades de exercício da ação intentada depende da sua faculdade de adotar um ato de direito público com força executiva própria. Por outras palavras, é necessário examinar se esse organismo dispõe de prerrogativas que lhe permitam tomar decisões vinculativas relativamente a particulares, fora das vias de direito ordinárias.

93.      Ora nem a imunidade de execução nem a imunidade de jurisdição visam conferir essas prerrogativas. Com efeito, como constatei no n.o 68 das presentes conclusões, a imunidade de jurisdição exige apenas ao juiz nacional que recuse exercer a competência que lhe é conferida pelo Regulamento n.o 1215/2012 ou por outros instrumentos. De maneira mais concreta e imaginativa, serve de «escudo» ao seu beneficiário para impedir que este seja demandado em justiça, mas não lhe confere nenhum poder decisório próprio. O mesmo se aplica relativamente à imunidade de execução, que impõe apenas ao juiz que recuse submeter o beneficiário desta imunidade a medidas de execução coercivas.

94.      Por conseguinte, salvo erro da minha parte, não é porque uma das partes no litígio invoca a imunidade de jurisdição ou de execução que a relação jurídica entre elas é necessariamente marcada por uma manifestação de autoridade do Estado. Nas circunstâncias do processo principal, não se pode deduzir do simples facto que a SHAPE invoca a imunidade de jurisdição ou de execução perante os órgãos jurisdicionais neerlandeses que as obrigações contratuais entre ela e a Supreme não tinham sido livremente contratadas e eram caracterizadas pelo exercício de um poder decisório unilateral (54) ou de poderes que saíam fora da órbita das regras aplicáveis (55).

95.      Por conseguinte, não partilho do ponto de vista do Governo grego e da SHAPE. Na minha opinião, o mero facto de uma organização internacional invocar uma imunidade não significa que esta disponha de poderes que saem fora da órbita das regras aplicáveis nas relações entre particulares.

96.      Por outro lado, admitindo que a imunidade invocada por um Estado seja suscetível de indicar que este último agiu no exercício da sua autoridade (56), esse não é, de qualquer modo, o caso quando uma organização internacional invoca a sua imunidade de jurisdição ou de execução. Uma vez que estas imunidades não eram limitadas aos ata jure imperii, não são, na minha opinião, de nenhuma ajuda quanto à questão de saber se essa organização agiu ou não no exercício da autoridade do Estado.

E.      Quanto à questão de saber se uma ação como a do processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1215/2012

97.      Recordo, por um lado que, como referi no n.o 90 das presentes conclusões, para determina se um litígio deve ser excluído do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 pelo facto de respeitar a «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado», há que examinar se a ação assenta num direito que tem a sua origem num comportamento de autoridade do Estado ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade do Estado. Por outro lado, o facto de uma ação que tem por objeto «medidas provisórias, incluindo as medidas cautelares» ser abrangida pelo âmbito de aplicação deste regulamento, depende, como já precisei no n.o 47 das presentes conclusões, da natureza dos direitos que essas medidas se destinam a proteger.

98.      Considerados em conjunto, estes dois critérios exigem, nas circunstâncias do processo principal, que se verifique se o arresto cautelar objeto da ação de medidas provisórias da SHAPE visava assegurar a proteção de um direito que tem a sua origem num comportamento de autoridade do Estado ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade do Estado.

99.      A este propósito, recordo que o próprio órgão jurisdicional de reenvio referiu que este arresto cautelar visava assegurar proteção do direito de crédito, de natureza contratual, que a Supreme alegava ter a com base nos BOA celebrados com a SHAPE.

100. A não ser que se demonstre que as cláusulas contratuais controvertidas refletiam o exercício de poderes que saem fora da órbita das regras aplicáveis nas relações entre particulares, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, é minha opinião que esta relação contratual não se caracteriza por uma manifestação de autoridade do Estado.

101. Com efeito, a própria Supreme reconhece que as obrigações entre as partes foram livremente consentidas. Por outro lado, não foi contestado entre as partes que os BOA são convenções que refletem as condições de mercado, que foram celebradas após um processo de concurso público.

102. Estas conclusões não me parecem ser postas em causa pelo facto de a Supreme ter, ao abrigo desses acordos, fornecido combustíveis à SHAPE para atender às necessidades de uma operação militar dirigida pela OTAN para a manutenção da paz e da segurança no Afeganistão.

103. Como sustenta acertadamente a Comissão, a posterior utilização dos combustíveis pela SHAPE não tem relevância na relação jurídica contratual das partes. Este cenário permite compreender o contexto em que nasceu essa relação, mas não estabelecer, por si só, que a mesma é caracterizada pelo exercício de poderes que saem fora da órbita das regras aplicáveis nas relações entre particulares.

104. Perante estes elementos, entendo que se deve considerar que uma ação de medidas provisórias como a da SHAPE, que se destina ao levantamento de um arresto cautelar, constitui «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, na medida em que este arresto se tenha destinado a assegurar a proteção de um direito que tem a sua origem numa relação jurídica contratual que não está marcada por uma manifestação de autoridade do Estado, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

V.      Conclusão

105. Tendo em conta todas as considerações que precedem proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma à primeira questão prejudicial submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos):

1)      O artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que a questão de saber se uma ação de medidas provisórias que se destina ao levantamento de um arresto cautelar constitui «matéria civil e comercial» na aceção desta disposição, depende da natureza do direito cuja proteção o arresto visava assegurar, bem como da questão de saber se esse direito tem a sua origem num comportamento de autoridade do Estado ou numa relação jurídica marcada por uma manifestação de autoridade do Estado, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, tendo em conta a exclusão relativa aos «atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado» prevista pela referida disposição.

2)      O facto de uma organização internacional invocar uma imunidade de que alega dispor por força do direito internacional não é determinante para efeitos dessa análise e não pode impedir que o juiz nacional se declare internacionalmente competente nos termos do Regulamento n.o 1215/2012.


1      Língua original: francês.


2      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (JO 2012, L 351, p. 1).


3      Recorde‑se que o artigo 24.o, ponto 5, do Regulamento n.o 1215/2012 prevê, no essencial, que, em matéria de execução de decisões, os tribunais do Estado‑Membro do local de execução têm competência exclusiva, independentemente do domicílio das partes.


4      Texto acessível no seguinte endereço Internet: https://www.nato.int/cps/fr/natolive/official_texts_17300.htm


5      Convenção Relativa à Competência Judicial Territorial, à Falência, bem como à Autoridade e à Execução de Decisões Judiciais, de Sentenças Arbitrais e de Atos Autênticos, assinada em Bruxelas, em 28 de março de 1925 (Stb. 1929, 405).


6      V., neste sentido, Acórdãos de 22 de maio de 2008, citiworks (C‑439/06, EU:C:2008:298, n.o 32), e de 27 de junho de 2018, Altiner e Ravn (C‑230/17, EU:C:2018:497, n.o 22 e jurisprudência referida).


7      V., neste sentido, Acórdãos de 12 de março de 1998, Djabali (C‑314/96, EU:C:1998:104, n.os 20 e 21), e de 20 de janeiro de 2005, García Blanco (C‑225/02, EU:C:2005:34, n.os 29 a 31).


8      V., neste sentido, Acórdãos de 26 de março de 1992, Reichert e Kockler (C‑261/90, EU:C:1992:149, n.o 34), e de 28 de abril de 2005, St. Paul Dairy (C‑104/03, EU:C:2005:255, n.o 13). Sublinho que, conforme resulta dos trabalhos preparatórios, o Regulamento n.o 1215/2012 visava, nomeadamente, clarificar as condições relativas à circulação de medidas provisórias e cautelates na União (v. também considerando 33 deste regulamento). Em contrapartida, não há nada que indique que o legislador tinha a intenção de alterar a definição do conceito de «medidas provisórias, incluindo as medidas cautelares» dado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. A este propósito, saliento que, embora o considerando 25 do referido regulamento esclareça determinadas situações concretas que devem ser abrangidas por este conceito, não o define com precisão.


9      A este propósito, recordo que, nos termos do artigo 705.o, n.o 1, do Código de Processo Civil, «[o] tribunal de medidas provisórias que autorizou o arresto pode, através de uma medida provisória, anular o arresto a pedido de qualquer interessado, sem prejuízo da competência do juiz de direito comum». Assim, parece‑me que um processo como o instaurado pela SHAPE, com fundamento nesta disposição, não só dá diretamente seguimento ao processo no termo do qual foi concedida autorização para efetuar o arresto cautelar mas também deve ser visto como intimamente ligado a este último processo. Na minha opinião, estes dois tipos de processos têm por objeto as mesmas «medida provisória e cautelar»: um destina‑se a obter autorização para efetuar o arresto cautelar, ao passo que o outro se destina a obter o levantamento desse arresto e a proibição de proceder a novos arrestos com base nos mesmos factos.


10      Para ser exaustivo, preciso que, nas suas observações escritas, a Supreme lembra que o Regulamento n.o 1215/2012 se aplica a uma ação que tem por objeto medidas provisórias e cautelares se essas medidas se destinarem a proteger direitos abrangidos pelo seu âmbito de aplicação material. Segundo ela, resulta daqui que a questão de saber se o próprio processo principal constitui «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento, é determinante.


11      Convenção de 27 de setembro de 1968 Relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186; a seguir «Convenção de Bruxelas»). A este propósito, esclareço que, segundo a jurisprudência, a interpretação que o Tribunal de Justiça fez das disposições desta convenção vale também para as disposições do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), quando as disposições possam ser consideradas equivalentes (v. Acórdão de 18 de outubro de 2011, Realchemie Nederland, C‑406/09, EU:C:2011:668, n.o 38 e jurisprudência referida). É o caso do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento e do artigo 1.o, primeiro parágrafo, da referida convenção. Do mesmo modo, o artigo 1.o, n.o 1, do referido regulamento e do Regulamento n.o 1215/2012 podem ser qualificados de equivalentes (v. Acórdão de 15 de novembro de 2018, Kuhn, C‑308/17, EU:C:2018:911, n.os 31 e 32 e jurisprudência referida). Por conseguinte, nas presentes conclusões, referir‑me‑ei apenas ao Regulamento n.o 1215/2012, embora cite a jurisprudência relativa aos instrumentos que o precederam.


12      V. Acórdão de 27 de março de 1979, de Cavel (143/78, EU:C:1979:83, n.o 8).


13      V., nomeadamente, Acórdãos de 26 de março de 1992, Reicher e Kockler (C‑261/90, EU:C:1992:149, n.o 32); de 17 de novembro de 1998, Van Uden (C‑391/95, EU:C:1998:543, n.o 33); e de 18 de outubro de 2011, Realchemie Nederland (C‑406/09, EU:C:2011:668, n.o 40).


14      V. Acórdão de 6 de março de 1980, de Cavel (120/79, EU:C:1980:70, n.os 8 e 9).


15      Acórdão de 6 de março de 1980, de Cavel (120/79, EU:C:1980:70).


16      Acórdão de 27 de março de 1979, de Cavel (143/78, EU:C:1979:83). Recordo que, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, o estado e a capacidade jurídica das pessoas singulares ou aos regimes de bens do casamento estão excluídos da aplicação deste regulamento.


17      V. Acórdão de 6 de março de 1980, de Cavel (120/79, EU:C:1980:70, n.os 11 e 12).


18      Acórdão de 17 de novembro de 1998 Van Uden (C‑391/95, EU:C:1998:543). Esclareço que, nas suas Conclusões nesse processo (C‑391/95, EU:C:1997:288, n.o 62), o advogado‑geral P. Léger referiu que o objeto do pedido de medidas provisórias perante o juiz das medidas provisórias não incidia de modo algum sobre matéria arbitral e que se tratava antes de um pedido em matéria contratual, no sentido de que «[tinha] o seu fundamento no não respeito de uma obrigação contratual». Além disso, recordo que, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1215/2012 a arbitragem está excluída do âmbito de aplicação material deste regulamento.


19      Que seja do meu conhecimento, o Tribunal de Justiça só renunciou explicitamente a essa tendência geral no Acórdão de 31 de março de 1982, W. (25/81, EU:C:1982:116, n.o 8), no qual sublinhou que um pedido de medidas provisórias destinado a obter a entrega de um documento a fim de impedir que as declarações que aí constavam sejam utilizadas como prova num litígio relativo à administração dos bens da mulher pelo marido deve também considerar‑se, devido ao seu caráter acessório, como relacionada com os regimes matrimoniais na acessão da Convenção de Bruxelas.


20      Relativamente à questão mais genérica de saber se as disposições da Convenção de Bruxelas associam, no que se refere ao seu âmbito de aplicação, o desfecho dos pedidos acessórios ao desfecho dos pedidos no processo principal, observo que, nas suas Conclusões no processo de Cavel I (de Cavel, 143/78, não publicado, EU:C:1979:50), o advogado‑geral F. Warner referiu‑se, nomeadamente, ao artigo 5.o, n.o 4, desta convenção (atual artigo 7.o, ponto 3, do Regulamento n.o 1215/2012), que conferia a um órgão jurisdicional no qual foi intentado um processo crime a competência para conhecer das ações cíveis por perdas e danos ou de restituição baseadas na infração que tinha dado origem a esse processo, indicando que se tratava de um caso em que a referida convenção «[era] expressamente aplicável a um processo acessório, embora o processo principal esteja claramente fora do seu âmbito de aplicação».


21      V., neste sentido, Acórdão de 28 de abril de 2005, St. Paul Dairy (C‑104/03, EU:C:2005:255, n.o 10 e jurisprudência referida).


22      V. Acórdão de 19 de julho de 2012 (C‑154/11, EU:C:2012:491, n.os 54 e 55).


23      V. Conclusões do avogado‑geral M. Szpunar no processo Rina (C‑641/18, EU:C:2020:3, n.os 35 a 38). Neste processo, ainda não foi proferido acórdão. V., também, Lalive, J‑F, «L’immunité de juridiction des États et des organisations internationales», R.C.A.D.I, t. 84, 1953‑III, p. 215.


24      V., nomeadamente, Fox, H., Webb, P., The Law of State Immunity, Oxford University Press, Oxford, 2013, p. 509 e segs.


25      V. Fox, H., Webb, P., op. cit., pp. 570 e segs. Segundo determinados autores, a diferença entre os atos realizados jure imperii e os realizados jure gestionis deve ser alargada às organizações internacionais. Contudo, a jurisprudência dos órgãos jurisdicionais nacionais não é concludente a este respeito [v., nomeadamente, Gaillard, E., Pingel‑Lenuzza, I., «International organisations and immunity from jurisdiction: to restrict or to bypass», I.C.L.Q, vol. (51)1, 2002, p. 9].


26      V. Acórdão de 19 de julho de 2012, Mahamdia (C‑154/11, EU:C:2012:491, n.o 54). Segundo este princípio, nenhum Estado soberano pode submeter outro Estado soberano à sua jurisdição.


27      V. Dominicé, C., « L’immunité de juridiction et d’exécution des organisations internationales », R.C.A.D.I, t.187, 1984‑IV, p. 163.


28      V. El Sawah, S., «Chapitre 3 — Les immunités des organisations internationales», Les immunités des États et des organisations internationales, Bruxelas, Éd. Larcier, 2011, p. 210‑211. V., também, Fox, H., Webb, P., op. cit., p. 571 e segs., e Blokker, N., «International Organizations: the Untouchables?», International Organizations Law Review, vol. 10, 2013, p. 260. A este respeito, assinalo que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já teve oportunidade de esclarecer que «a concessão de privilégios e imunidades às organizações internacionais é um meio indispensável ao seu bom funcionamento» (TEDH, 18 de fevereiro de 1999, Waite e Kennedy c. Alemanha, CE:ECHR:1999:0218JUD002608394, § 63).


29      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864, n.o 101 e jurisprudência referida).


30      De passagem, assinalo que se trata da abordagem seguida pelo Gerechtshof ‘s‑Hertogenbosch (Tribunal de Recurso de ‘s‑Hertogenbosch) no seu Acórdão de 10 de dezembro de 2019, que dizia respeito ao processo principal. Antes de mais, esse órgão jurisdicional declarou que o facto de a SHAPE e o JFCB terem invocado a imunidade de jurisdição não bastava para se concluir que tinham procurado pôr em causa a competência dos órgãos jurisdicionais neerlandeses, incluindo a título do Regulamento n.o 1215/2012 (n.o 6.5.3.4). Seguidamente, como já salientei no n.o 33 das presentes conclusões, referiu que, na medida em que estava associada ao exercício de funções oficiais, essa imunidade devia ser considerada absoluta (n.o 6.7.9.1).


31      Nas suas Conclusões no processo Mahamdia (C‑154/11, EU:C:2012:309, n.o 28), o advogado‑geral P. Mengozzi sublinhou que o objeto da imunidade de execução é precisamente subtrair o Estado em causa a qualquer imposição administrativa ou jurisdicional que possa resultar da aplicação uma decisão judicial.


32      V., por analogia, no que se refere à imunidade de jurisdição invocada pelos Estados, Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Rina (C‑641/18, EU:C:2020:3, n.o 42), nas quais referiu que a questão de saber se o referido regulamento pode ser aplicado ratione materiae num litígio deve ser a priori distinguida da questão de saber se o juiz pode exercer nesse litígio a competência que lhe confere este regulamento ou se a imunidade o impede disso.


33      V. Acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 61 e jurisprudência referida).


34      V. Acórdão de 14 de outubro de 1976, LTU (29/76, EU:C:1976:137), no qual o Tribunal de Justiça excluiu do âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas um litígio relativo ao pagamento de uma taxa devida por uma entidade privada a um organismo nacional ou internacional de direito público (a saber, a Organização Europeia para a Segurança da Navegação Aérea — Eurocontrol).


35      V., nomeadamente, Acórdãos de 14 de outubro de 1976, LTU (29/76, EU:C:1976:137, n.o 4), e de 12 de setembro de 2013, Sunico e o. (C‑49/12, EU:C:2013:545, n.o 34 e jurisprudência referida).


36      V., neste sentido, Rogerson, P., «Article 1er », Brussels I bis Regulation, sous la direction de Magnus, U., Mankowski, P., Otto Schmidt, Cologne, 2016, p. 63, n.o 13. A este respeito, saliento que o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 previa apenas que este regulamento não abrangia, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas». Assim, até à entrada em vigor do Regulamento n.o 1215/2012, a exceção relativa ao exercício da autoridade do Estado só existia na jurisprudência do Tribunal de Justiça.


37      Por exemplo, pode acontecer que um Estado delegue as suas prerrogativas de autoridade do Estado em entidades públicas ou privadas.


38      V., nomeadamente, Acórdãos de 14 de outubro de 1976, LTU (29/76, EU:C:1976:137, n.o 4), e de 14 de novembro de 2002, Baten (C‑271/00, EU:C:2002:656, n.o 29).


39      V., nomeadamente, Acórdãos de 14 de outubro de 1976, LTU (29/76, EU:C:1976:137, n.o 4), e de 11 de abril de 2013, Sapir e o. (C‑645/11, EU:C:2013:228, n.o 33 e jurisprudência referida).


40      V., nomeadamente, Acórdãos de 21 de abril de 1993, Sonntag (C‑172/91, EU:C:1993:144, n.o 22), e de 28 de fevereiro de 2019, Gradbeništvo Korana (C‑579/17, EU:C:2019:162, n.o 49).


41      V., nomeadamente, Acórdãos de 15 de maio de 2003, Préservatrice foncière TIARD (C‑266/01, EU:C:2003:282, n.o 23 e jurisprudência referida), e de 28 de fevereiro de 2019, Gradbeništvo Korana (C‑579/17, EU:C:2019:162, n.o 48 e jurisprudência referida). Nas suas Conclusões no processo flyLAL‑Lithuanian Airlines (C‑302/13, EU:C:2014:2046, n.o 23), a advogada‑geral J. Kokott referiu que há que «começar por analisar os fatores determinantes das relações jurídicas existentes entre as partes no processo principal […] e, em seguida — de forma a identificar o objeto do litígio no processo principal […] — examinar os fundamentos para a ação proposta e as regras para a respetiva propositura». Deixou assim entender que o critério relativo ao fundamento e às modalidades da ação intentada visa, nem mais nem menos, esclarecer os elementos que devem ser tidos em conta para efeitos de determinar «o objeto do litígio».


42      É esse o caso do Acórdão de 14 de novembro de 2002, Baten (C‑271/00, EU:C:2002:656, n.o 37), no qual o Tribunal de Justiça considerou que o conceito de «matéria civil e comercial» abrange uma ação de regresso pela qual um «organismo público reclama a uma pessoa de direito privado o reembolso de montantes que pagou a título de assistência social […] desde que o fundamento e as modalidades de exercício desta ação sejam regulados pelas regras de direito comum» (o sublinhado é meu). Observo que, no Acórdão de 11 de abril de 2013, Sapir e o. (C‑645/11, EU:C:2013:228, n.os 34 a 38), o Tribunal de Justiça também não referiu a relação jurídica existente entre as partes em litígio e examinou apenas o fundamento e as modalidades de exercício da ação intentada.


43      V. Acórdão de 12 de setembro de 2013, Sunico e o. (C‑49/12, EU:C:2013:545, n.os 37 a 40), no qual o Tribunal de Justiça expôs antes de mais o fundamento factual e jurídico do pedido, antes de declarar que resultava nomeadamente dos elementos identificados a este propósito que a relação jurídica existente entre as partes não era uma relação jurídica que implicava o recurso a prerrogativas de poder público. Parece‑me ter sido seguida uma abordagem semelhante no Acórdão de 9 de março de 2017, Pula Parking (C‑551/15, EU:C:2017:193, n.os 35 a 38).


44      A este propósito, observo que, antes mesmo do aparecimento dos critérios relativos ao fundamento e às modalidades da ação intentada, a distinção entre «objeto do litígio» e «relação jurídica existente entre as partes» não estava sempre estritamente estabelecida. Assim, no Acórdão de 1 de outubro de 2002, Henkel (C‑167/00, EU:C:2002:555, n.o 30), o Tribunal de Justiça fundiu esses dois critérios e considerou que o litígio não tinha por objeto uma manifestação da autoridade pública, na medida em que a ação pendente no órgão jurisdicional de reenvio se destinava a sujeitar ao controlo judicial relações de direito privado. Inversamente, no Acórdão de 28 de julho de 2016, Siemens Aktiengesellschaft Österreich (C‑102/15, EU:C:2016:607, n.o 31), o Tribunal de Justiça sublinhou que para determinar se uma matéria estava ou não abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001, importava analisar «os elementos que caracteriza[vam] a natureza das relações jurídicas entre as partes no litígio ou o objeto deste», o que tenderia a indicar que os critérios relativos à relação jurídica e ao objeto do litígio deviam ser aplicadas cumulativamente (o sublinhado é meu).


45      V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Kuhn (C‑308/17, EU:C:2018:528, n.o 61).


46      V. Acórdão de 16 de dezembro de 1980, Rüffer (814/79, EU:C:1980:291, n.o 15). O sublinhado é meu. Nas suas Conclusões no processo Siemens Aktiengesellschaft Österreich (C‑102/15, EU:C:2016:225, n.o 38), o advogado‑geral N. Wahl referiu que o raciocínio seguido no Acórdão Rüffer continuava válido. No Acórdão de 28 de julho de 2016, Siemens Aktiengesellschaft Österreich (C‑102/15, EU:C:2016:607, n.o 40), o Tribunal de Justiça retomou esse raciocínio.


47      V. Acórdãos de 16 de dezembro de 1980, Rüffer (814/79, EU:C:1980:291, n.o 15), e de 15 de fevereiro de 2007, Lechouritou e o. (C‑292/05, EU:C:2007:102, n.o 41). Neste último acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que, na medida em que os atos invocados na origem do dano deviam ser considerados resultantes de uma manifestação da autoridade pública por parte do Estado, a circunstância de a ação intentada no órgão jurisdicional de reenvio ter sido apresentada no sentido de que se revestia de caráter civil era totalmente desprovida de pertinência.


48      V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral Y. Bot nos processos apensos Fahnenbrock e o. (C‑226/13, C‑245/13, C‑247/13 e C‑578/13, EU:C:2014:2424, n.o 57).


49      Acórdão de 14 de novembro de 2002 (C‑271/00, EU:C:2002:656, n.o 31).


50      Acórdão de 11 de abril de 2013 (C‑645/11, EU:C:2013:228, n.o 34).


51      Acórdão de 12 de setembro de 2013 (C‑49/12, EU:C:2013:545, n.o 35).


52      Acórdão de 9 de março de 2017 (C‑551/15, EU:C:2017:193, n.os 35 a 37).


53      Acórdão de 28 de fevereiro de 2019 (C‑579/17, EU:C:2019:162, n.os 55 a 61).


54      V. Acórdãos de 14 de outubro de 1976, LTU (29/76, EU:C:1976:137, n.o 4), e de 15 de fevereiro de 2007, Lechouritou e o. (C‑292/05, EU:C:2007:102, n.o 37).


55      V. Acórdão de 15 de maio de 2003, Préservatrice foncière TIARD (C‑266/01, EU:C:2003:282, n.o 30).


56      A este propósito, remeto para os n.os 60 e 61 das presentes conclusões. Observo que, segundo alguns autores, a distinção feita no direito internacional consuetudinário entre os acta jure imperii e os acta jure gestionis está longe de ser evidente (v., nomeadamente, Yang, X., State Immunity in International Law, Cambridge Studies in International and Comparative Law, Cambridge University Press, 2012, p. 60). Nas suas Conclusões no processo Mahamdia (C‑154/11, EU:C:2012:309, n.o 23), o advogado‑geral P. Mengozzi também constatou que não se encontrava verdadeiramente uma teoria da imunidade relativa de jurisdição dos Estados e que as soluções nacionais continuavam muito distintas, tanto fazendo prevalecer «a natureza das funções exercidas, ou o objetivo das referidas funções, ou a natureza do contrato», como considerando mesmo estes critérios cumulativamente para que seja levantada a imunidade.