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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

11 de julho de 2024 (*)

«Incumprimento de Estado — Diretiva 2011/7/UE — Luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais — Artigo 4.° — Transações comerciais entre empresas e entidades públicas — Obrigação de os Estados‑Membros assegurarem que as entidades públicas cumprem os prazos de pagamento previstos neste artigo»

No processo C‑487/23,

que tem por objeto uma ação por incumprimento nos termos do artigo 258.° TFUE, intentada em 28 de julho de 2023,

Comissão Europeia, representada por G. Gattinara e L. Santiago de Albuquerque, na qualidade de agentes,

demandante,

contra

República Portuguesa, representada por P. Barros da Costa, T. Fidalgo de Freitas e A. Rodrigues, na qualidade de agentes,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Piçarra, presidente de secção, N. Jääskinen (relator) e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: A. Calot Escobar,


vistos os autos,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        Com a sua petição, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais (JO 2011, L 48, p. 1), porquanto não assegurou nem assegura que:

–        a administração local, entre 2013 e 2018;

–        as entidades públicas portuguesas prestadoras de cuidados de saúde (subsetor da saúde), entre 2013 e 2022;

–        a Região Autónoma da Madeira (Portugal), entre 2013 e 2022; e

–        a Região Autónoma dos Açores (Portugal), em 2013 e entre 2015 e 2022,

pagam as suas dívidas comerciais nos prazos previstos nestas disposições.

 Quadro jurídico

 Direito da União

2        Os considerandos 3, 9, 23 e 25 da Diretiva 2011/7 enunciam o seguinte:

«(3)      Nas transações comerciais entre operadores económicos ou entre operadores económicos e entidades públicas, acontece com frequência que os pagamentos são feitos mais tarde do que o que foi acordado no contrato ou do que consta das condições comerciais gerais. Ainda que os bens sejam entregues ou os serviços prestados, as correspondentes faturas são pagas muito depois do termo do prazo. Atrasos de pagamento desta natureza afetam a liquidez e complicam a gestão financeira das empresas. Também põem em causa a competitividade e a viabilidade das empresas, quando o credor é forçado a recorrer a financiamento externo devido a atrasos de pagamento. [...]

[...]

(9)      A presente diretiva deverá regulamentar todas as transações comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre empresas privadas ou públicas, ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que as entidades públicas procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas. [...]

[...]

(23)      Regra geral, as entidades públicas beneficiam de fontes de receita mais seguras, previsíveis e contínuas do que as empresas. Acresce que muitas entidades públicas podem obter financiamento em condições mais atrativas do que as empresas. Ao mesmo tempo, as entidades públicas dependem menos do que as empresas do estabelecimento de relações comerciais estáveis para a consecução dos seus objetivos. Os prazos dilatados de pagamento e os atrasos de pagamento por parte de entidades públicas para bens e serviços acarretam custos injustificados para as empresas. Em consequência, é conveniente introduzir disposições específicas em matéria de transações comerciais para o fornecimento de bens ou para a prestação de serviços pelas empresas às entidades públicas, prevendo, em particular, prazos de pagamento que normalmente não excedam 30 dias de calendário, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato e desde que tal seja objetivamente justificado pela natureza particular ou pelas características do contrato, não excedendo, em caso algum, 60 dias de calendário.

[...]

(25)      Um motivo de especial preocupação no que respeita aos atrasos de pagamento é a situação dos serviços de saúde num grande número de Estados‑Membros. Os sistemas de saúde são muitas vezes obrigados, enquanto elemento fundamental da infraestrutura social na Europa, a conciliar as necessidades individuais com os recursos financeiros disponíveis [...]. Todos os sistemas se encontram confrontados com a necessidade de estabelecer prioridades entre os cuidados de saúde, a fim de estabelecer um equilíbrio entre as necessidades individuais dos doentes e os recursos financeiros disponíveis. Os Estados‑Membros deverão, por isso, poder conferir às entidades públicas que prestam cuidados de saúde uma certa margem de flexibilidade no cumprimento das suas obrigações. Para esse efeito, os Estados‑Membros deverão poder prorrogar, sob determinadas condições, o prazo de pagamento normal até um máximo de 60 dias de calendário. Os Estados‑Membros deverão, ainda assim, envidar todos os esforços para assegurar que os pagamentos no setor dos cuidados de saúde sejam efetuados dentro dos prazos legais de pagamento.»

3        O artigo 1.° desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», prevê no seu n.° 1:

«O propósito da presente diretiva consiste em combater os atrasos de pagamento nas transações comerciais, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, promovendo assim a competitividade das empresas e, em particular, das [pequenas e médias empresas (PME)].»

4        O artigo 4.° da referida diretiva, sob a epígrafe «Transações entre empresas e entidades públicas», dispõe nos seus n.os 3 e 4:

«3.      Os Estados‑Membros asseguram que, nas transações comerciais em que o devedor é uma entidade pública:

a)      O prazo de pagamento não exceda um dos prazos seguintes:

i)      30 dias de calendário a contar da data em que o devedor tiver recebido a fatura ou um aviso equivalente de pagamento,

ii)      caso a data de receção da fatura ou do aviso equivalente de pagamento seja incerta, 30 dias de calendário a contar da data de receção dos bens ou da prestação dos serviços,

iii)      caso o devedor receba a fatura ou o aviso equivalente de pagamento antes do fornecimento dos bens ou da prestação dos serviços, 30 dias de calendário a contar da data de receção dos bens ou da prestação dos serviços,

iv)      caso na lei ou no contrato esteja previsto um processo de aceitação ou de verificação, mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou do serviço em relação ao contrato, e se o devedor receber a fatura ou o pedido equivalente de pagamento antes ou na data dessa aceitação ou verificação, 30 dias de calendário a contar dessa data;

[...]

4.      Os Estados‑Membros podem prorrogar os prazos referidos na alínea a) do n.° 3 até um máximo de 60 dias de calendário em relação:

[...]

b)      Às entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde que estejam devidamente reconhecidas para esse fim.

[...]»

5        O artigo 12.° da Diretiva 2011/7, sob a epígrafe «Transposição», enuncia no seu n.° 1, primeiro parágrafo:

«Os Estados‑Membros põem em vigor as disposições legais, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento aos artigos 1.° a 8.° e 10.° até 16 de março de 2013. Os Estados‑Membros comunicam imediatamente à Comissão o texto dessas disposições.»

 Direito Português

6        O Decreto‑Lei n.° 62/2013, de 10 de maio (Diário da República, 1.ª série, n.° 90, de 10 de maio de 2013), transpôs a Diretiva 2011/7 para a ordem jurídica portuguesa.

7        Segundo o artigo 4.°, n.° 3, do Decreto‑Lei n.° 62/2013, nas transações entre empresas, o prazo de pagamento é de 30 dias a contar:

–        da data em que o devedor tiver recebido a fatura;

–        da data de receção efetiva dos bens ou da prestação dos serviços quando a data de receção da fatura seja incerta ou quando o devedor receba a fatura antes do fornecimento dos bens ou da prestação dos serviços;

–        da data da aceitação ou da verificação, quando esteja previsto, na lei ou no contrato, um processo mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou serviços e o devedor receba a fatura em data anterior ou nessa data.

8        Por força do artigo 5.° deste decreto‑lei, os prazos previstos no seu artigo 4.°, n.° 3, aplicam‑se às transações comerciais entre empresas e entidades públicas, sendo estas devedoras. Todavia, o prazo de pagamento pode ser prorrogado, não podendo exceder 60 dias, quando as entidades públicas devedoras forem entidades públicas que prestem cuidados de saúde e estejam devidamente reconhecidas como tal, ou quando tal prazo estiver expressamente previsto no contrato e for objetivamente justificado pela natureza ou pelas características específicas deste último.

 Procedimento précontencioso

9        Em 28 de abril de 2017, a Comissão enviou uma carta de notificação para cumprir à República Portuguesa e convidou‑a a apresentar as suas observações sobre uma presumível violação das obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.° da Diretiva 2011/7. Segundo essa carta, várias fontes indicavam que, em 2016, o prazo médio de pagamento das suas dívidas comerciais pelas entidades públicas portuguesas tinha excedido os prazos previstos nesta diretiva.

10      Por ofício de 29 de junho de 2017, a República Portuguesa respondeu à referida carta elencando um conjunto de medidas que tinha adotado a este respeito, entre as quais figuravam o Decreto‑Lei n.° 62/2013 e várias disposições destinadas a penalizar as entidades públicas com pagamentos em atraso e a aumentar a transparência desses pagamentos.

11      Por entender que as medidas adotadas pela República Portuguesa não eram suficientes, a Comissão enviou‑lhe, em 5 de outubro de 2017, um parecer fundamentado, nos termos do disposto no artigo 258.° TFUE. Nesse parecer, censurou este Estado‑Membro por não ter cumprido as suas obrigações decorrentes do artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7, por, entre 2012 e 2017, não ter assegurado que a Administração Pública portuguesa pagava as suas dívidas comerciais em conformidade com o calendário fixado nestas disposições. Convidou o referido Estado‑Membro a tomar as medidas necessárias no prazo de dois meses a contar da receção desse parecer fundamentado. Esse prazo expirou em 5 de dezembro de 2017.

12      Por ofício de 16 de fevereiro de 2018, a República Portuguesa respondeu ao referido parecer fundamentado apresentando dados numéricos, de onde resultava uma evolução positiva do prazo médio dos pagamentos efetuados pelas entidades públicas entre 2012 e 2017, apesar de persistir um incumprimento dos prazos previstos no artigo 4.° da Diretiva 2011/7. Além disso, por ofício de 9 de abril de 2018, este Estado‑Membro solicitou à Comissão a suspensão do procedimento por incumprimento durante um ano, para avaliação dos efeitos produzidos, em 2018, por medidas nacionais recentemente adotadas.

13      Em 12 de junho de 2018, a Comissão aceitou suspender este procedimento pelo período compreendido entre 1 de maio de 2018 e 30 de abril de 2019, desde que a República Portuguesa demonstrasse uma melhoria constante e, para o efeito, lhe enviasse, de dois em dois meses, um relatório com uma descrição pormenorizada dos progressos realizados e informações sobre os prazos médios de pagamento de todos os setores e de todas as regiões, com especial destaque para os dados do subsetor da saúde. Tendo em conta os progressos verificados, esta suspensão foi posteriormente prorrogada, até janeiro de 2020.

14      Entre 24 de julho de 2018 e 14 de março de 2023, a República Portuguesa enviou à Comissão onze relatórios e um aditamento, que elencavam os prazos médios de pagamento das entidades públicas portuguesas.

15      Em 13 de dezembro de 2022, teve lugar uma reunião entre os representantes do Governo Português e os serviços da Comissão, para dar à República Portuguesa a oportunidade de apresentar oralmente os dados constantes desses relatórios e, eventualmente, de os atualizar ou completar com os dados em falta.

16      Ao longo desses contactos com a Comissão, este Estado‑Membro informou‑a nomeadamente, por mensagem de correio eletrónico de 17 de junho de 2020, de um atraso na recolha de dados relacionado com a pandemia de COVID‑19 e, por ofício de 2 de março de 2023, da impossibilidade de calcular o prazo médio de pagamento global no período compreendido entre 2020 e 2022, uma vez que os dados relativos à administração local não estavam disponíveis, devido à implementação de um novo sistema contabilístico para esta administração, que tinha acarretado o adiamento para 31 de maio de 2021 do prazo de que esta dispunha para a prestação de contas.

17      Tendo em conta os dados oficiais fornecidos até 14 de março de 2023 e os dados em falta, a Comissão intentou a presente ação por incumprimento no Tribunal de Justiça, em 28 de julho de 2023, com o fundamento, em substância, de que várias entidades públicas portuguesas pagaram as suas dívidas comerciais, de forma sistemática e persistente, em prazos superiores aos previstos no artigo 4.°, n.os 3 e 4, da Diretiva 2011/7.

 Quanto à ação

 Argumentos das partes

18      Na petição, a Comissão, depois de evocar uma «falta de informação por parte das autoridades portuguesas [que] frustrou as suas expetativas, assentes no dever de cooperação leal, consagrado no artigo 4.°, n.° 3, [TUE]», recorda, antes de mais, que os Estados‑Membros são obrigados a assegurar que, nas transações comerciais em que o devedor é uma entidade pública, o prazo de pagamento não exceda os 30 dias de calendário, nos termos do artigo 4.°, n.° 3, da Diretiva 2011/7, ou os 60 dias de calendário, quando um Estado‑Membro tenha exercido a faculdade, conferida neste artigo 4.°, n.° 4, alínea b), de prorrogar esse primeiro prazo em benefício das entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde. E salienta que a República Portuguesa fez uso desta faculdade ao adotar o artigo 5.° do Decreto‑Lei n.° 62/2013.

19      Além disso, a Comissão alega que resulta dos n.os 40 a 42 e 45 a 47 do Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento) (C‑122/18, EU:C:2020:41), por um lado, que a obrigação enunciada no artigo 4.° da Diretiva 2011/7 visa a observância efetiva dos prazos nele previstos e, por outro, que esta interpretação é conforme com os objetivos da referida diretiva, mencionados no artigo 1.°, n.° 1, e nos seus considerandos 3, 9 e 23, que põem em evidência que, neste artigo 4.°, n.os 3 e 4, o legislador da União pretendeu impor aos Estados‑Membros obrigações acrescidas. Daí infere que os pagamentos efetuados pelas entidades públicas num prazo superior a 30 dias, ou, no que respeita ao setor dos cuidados de saúde, a 60 dias, constituem, por si só, incumprimentos destes números 3 e 4.

20      Em seguida, a Comissão sustenta que, no caso em apreço, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7, porquanto não assegurou nem assegura que as entidades públicas portuguesas mencionadas no n.° 1 do presente acórdão pagam as suas dívidas comerciais nos prazos previstos nestas disposições, nos períodos referidos nesse número.

21      Relativamente a estes períodos, a Comissão esclarece que, embora o seu parecer fundamentado refira o ano de 2012, não há que ter em consideração os respetivos dados, uma vez que estes são anteriores ao prazo para a transposição da Diretiva 2011/7, ou seja, o dia 16 de março de 2013. Em contrapartida, os dados relativos a 2013 são relevantes, uma vez que as autoridades portuguesas os apresentaram como dados do quarto trimestre de 2013.

22      A Comissão refere que também censura a República Portuguesa por atuações que, é certo, ocorreram após o termo do prazo fixado nesse parecer fundamentado, a saber, depois de 5 de dezembro de 2017, mas que, porém, têm «natureza idêntica» e, por isso, são «constitutivos de comportamentos idênticos» aos factos considerados no referido parecer, pelo que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a esses casos, o objeto da sua petição pode estender‑se a essas atuações.

23      Por último, sublinha que, em conformidade com o n.° 65 do Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento) (C‑122/18, EU:C:2020:41), a circunstância de os atrasos de pagamento das entidades públicas de um Estado‑Membro, nas transações comerciais abrangidas pela Diretiva 2011/7, estarem a melhorar não pode impedir o Tribunal de Justiça de declarar que esse Estado‑Membro não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do direito da União. A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que proceda a essa declaração no presente processo.

24      Na contestação, a República Portuguesa sustenta que não infringiu o princípio da cooperação leal. A este respeito, salienta a sua determinação em cumprir as obrigações resultantes da Diretiva 2011/7, através da adoção de uma série de medidas comunicadas à Comissão, bem como a sua colaboração permanente e construtiva com esta instituição. Este Estado‑Membro afirma que as autoridades portuguesas nunca alegaram que a pandemia de COVID‑19 impossibilitou a recolha de dados. O referido Estado‑Membro alega, como na fase pré‑contenciosa, que a mudança de sistema contabilístico da administração local constitui um motivo válido para não ter transmitido os dados em falta, uma vez que estes não estavam disponíveis «de forma organizada, comparável e partilhável».

25      No que respeita à acusação relativa à violação do artigo 4.° da Diretiva 2011/7, a República Portuguesa não contesta integralmente a alegação da Comissão de que os prazos previstos neste artigo não foram devidamente cumpridos pelas entidades públicas portuguesas.

26      Quanto à base factual desta acusação, este Estado‑Membro assinala dois erros nos dados, relativos a 2017 e a 2018, que foram mencionados na petição da Comissão. Além disso, o referido Estado‑Membro apresenta novos dados, relativos a 2021 e a 2022, que dizem respeito à administração local e visam demonstrar que os prazos médios de pagamento neste setor estão em conformidade com a Diretiva 2011/7 desde 2018.

27      Quanto à base jurídica da referida acusação, primeiro, a República Portuguesa insiste na melhoria obtida, a saber, uma redução de 66 % nos prazos médios de pagamento, em toda a Administração Pública portuguesa, entre 2012 e 2022. Segundo, infere desta evolução positiva que não houve uma violação grave, contínua ou sistemática das obrigações decorrentes do artigo 4.° da Diretiva 2011/7. Terceiro, alega que os princípios da proporcionalidade e da cooperação leal se opõem a que o Tribunal de Justiça julgue procedente a presente ação por incumprimento. Em seu entender, quando um Estado‑Membro se encontra num caminho inequívoco para o cumprimento integral das suas obrigações, o meio menos coativo que se encontra à disposição da União Europeia não é sancionar esse Estado‑Membro, mas prosseguir uma colaboração ativa entre a Comissão e este.

28      Por conseguinte, a República Portuguesa pede ao Tribunal de Justiça que julgue a presente ação improcedente «na medida do que é contestado pela demandada».

29      Na réplica, a Comissão sublinha que não pediu ao Tribunal de Justiça que declarasse que a República Portuguesa não tinha cumprido o dever de cooperação leal que lhe incumbe, mas que evocou a falta de cooperação das autoridades portuguesas para explicar a inexistência de certos dados na sua própria petição.

30      Por outro lado, a Comissão corrige os dois erros, relativos a 2017 e a 2018, que foram assinalados na contestação da República Portuguesa, e altera o pedido formulado na sua petição inicial no sentido de que já não invoca um incumprimento do artigo 4.°, n.° 3, da Diretiva 2011/7 baseado no comportamento da administração local no ano de 2018. Em contrapartida, considera que os novos dados evocados por este Estado‑Membro no referido articulado, relativos a 2021 e a 2022, não são relevantes, uma vez que a petição inicial não abrange esses dois anos, no tocante à administração local.

31      A Comissão considera que a República Portuguesa reconheceu implicitamente não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.° da Diretiva 2011/7. Quanto ao primeiro fundamento de defesa deste Estado‑Membro, relativo à redução dos prazos de pagamento, aquela repete que o Tribunal de Justiça já declarou que tal melhoria não significa que não houve incumprimento. Quanto ao segundo fundamento de defesa, relativo à inexistência de uma violação grave, contínua ou sistemática, defende que o alegado incumprimento ocorre há dez anos e que, portanto, tem estas características. Quanto ao terceiro fundamento de defesa, baseado no princípio da proporcionalidade, a Comissão sublinha a longa duração do alegado incumprimento e a suspensão prolongada do procedimento por incumprimento que concedeu ao referido Estado‑Membro, sem resultados suficientes para não ter de propor posteriormente a presente ação.

32      Na tréplica, a República Portuguesa toma nota das correções feitas pela Comissão na réplica e, em seguida, reitera o essencial dos fundamentos expostos na sua própria contestação. Concretamente, este Estado‑Membro sustenta que seria contraproducente julgar procedente a presente ação, uma vez que, exceto no que respeita ao setor da saúde e aos setores regionais, cumpriu integralmente as obrigações que lhe incumbem por força da Diretiva 2011/7.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

33      A título preliminar, importa salientar que, contrariamente ao que a República Portuguesa evocou na contestação, a Comissão referiu que não pretendia basear a presente ação por incumprimento na violação do dever de cooperação leal. Por conseguinte, não há que examinar este aspeto.

34      Com a sua única acusação, a Comissão sustenta que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7, porquanto não assegurou nem assegura que, no âmbito do pagamento das suas dívidas comerciais, as suas entidades públicas cumprem prazos que não excedam os 30 ou 60 dias de calendário, consoante os casos. Este último prazo é autorizado no setor dos cuidados de saúde quando o Estado‑Membro em causa faz uso da faculdade, prevista neste artigo 4.°, n.° 4, alínea b), de prorrogar os prazos previstos no referido artigo 4.°, n.° 3.

35      Mais precisamente, a Comissão censura a República Portuguesa por ter excedido os prazos de pagamento previstos nestas disposições:

–        pela administração local, entre 2013 e 2017;

–        pelas entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde, entre 2013 e 2022;

–        pela Região Autónoma da Madeira, entre 2013 e 2022; e

–        pela Região Autónoma dos Açores, em 2013 e entre 2015 e 2022.

36      A este respeito, em primeiro lugar, importa recordar que, por força do artigo 4.°, n.° 3, alínea a), da Diretiva 2011/7, lido à luz do seu considerando 23, os Estados‑Membros são obrigados a assegurar que, nas transações comerciais em que o devedor é uma entidade pública, o prazo de pagamento não exceda 30 dias de calendário, a contar das circunstâncias factuais que este n.° 3, alínea a), enumera. Quanto ao artigo 4.°, n.° 4, desta diretiva, lido à luz do seu considerando 25, este concede aos Estados‑Membros a faculdade de prorrogarem esse prazo, até ao máximo de 60 dias de calendário, em relação às autoridades e entidades públicas a que este n.° 4 se refere [v., neste sentido, Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑122/18, EU:C:2020:41, n.° 38], entre as quais figuram, no referido n.° 4, alínea b), as entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde que estejam devidamente reconhecidas para esse fim. No caso em apreço, a República Portuguesa procedeu a essa prorrogação, no artigo 5.° do Decreto‑Lei n.° 62/2013.

37      Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 4.°, n.os 3 e 4, da Diretiva 2011/7 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de preverem prazos máximos de pagamento conformes a estas disposições e também de assegurarem o cumprimento efetivo desses prazos pelas suas entidades públicas no âmbito das transações comerciais entre estas e as empresas [v., neste sentido, Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑122/18, EU:C:2020:41, n.os 40, 48, 53 e 57]. Como a Comissão observou, o Tribunal de Justiça baseou‑se, particularmente, nos objetivos desta diretiva, decorrentes do artigo 1.°, n.° 1, e dos seus considerandos 3, 9 e 23, para considerar que o legislador da União pretendeu impor aos Estados‑Membros obrigações acrescidas neste artigo 4.°, n.os 3 e 4 [v., neste sentido, Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑122/18, EU:C:2020:41, n.os 45 a 47].

38      Em segundo lugar, no que respeita ao quadro temporal em que a presente ação por incumprimento se inscreve, há que salientar que a Comissão sustenta, em substância, que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem, por força do artigo 4.° da Diretiva 2011/7, num período compreendido, globalmente, entre 2013 e 2022, como exposto no n.° 35 do presente acórdão.

39      No que toca ao início do período relevante, há que observar que a presente ação tem por objeto atrasos de pagamento ocorridos a partir de 2013, uma vez que, como a Comissão referiu com razão, por um lado, o prazo para a transposição da Diretiva 2011/7 foi fixado no dia 16 de março de 2013, nos termos do seu artigo 12.°, n.° 1, e, por outro, os dados relativos a 2013 devem ser tidos em conta, uma vez que as autoridades portuguesas os apresentaram como dados do quarto trimestre de 2013.

40      No que respeita ao fim do período relevante, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro em causa tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, pelo que as alterações ocorridas posteriormente não podem ser tomadas em consideração pelo Tribunal de Justiça [Acórdãos de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑122/18, EU:C:2020:41, n.° 58, e de 14 de março de 2024, Comissão/Espanha (Diretiva 91/676), C‑576/22, EU:C:2024:227, n.° 75 e jurisprudência referida].

41      Além disso, o objeto de uma ação por incumprimento, nos termos do artigo 258.° TFUE, é, em princípio, fixado no parecer fundamentado, de modo que a ação se deve basear nos mesmos argumentos e fundamentos que este último. O objeto de uma ação deste tipo pode, porém, ser alargado a factos posteriores a esse parecer fundamentado, desde que estes tenham natureza idêntica aos factos a que esse parecer se refere e sejam constitutivos de um comportamento idêntico [v., neste sentido, Acórdãos de 18 de maio de 2006, Comissão/Espanha, C‑221/04, EU:C:2006:329, n.° 28, e de 29 de junho de 2023, Comissão/Portugal (Valores‑limite — NO2), C‑220/22, EU:C:2023:521, n.° 46 e jurisprudência referida].

42      No caso em apreço, o prazo fixado à República Portuguesa no parecer fundamentado da Comissão, de 5 de outubro de 2017, expirou em 5 de dezembro do mesmo ano. Segundo a Comissão, este Estado‑Membro não conseguiu sanar o alegado incumprimento, na sequência da suspensão, ocorrida a pedido do referido Estado‑Membro, do procedimento por incumprimento, que teve lugar a partir de 1 de maio de 2018, até janeiro de 2020.

43      Embora as alegações da Comissão relativas ao período compreendido entre 2018 e 2022 incidam sobre atuações da República Portuguesa posteriores a esse parecer fundamentado, estas são, porém, de natureza idêntica e constitutivas de um comportamento idêntico aos aí referidos, a saber, o facto de não ter assegurado que as entidades públicas portuguesas cumprem de forma efetiva os prazos de pagamento previstos no artigo 4.°, n.os 3 e 4, da Diretiva 2011/7. Por conseguinte, o objeto da presente ação por incumprimento pode estender‑se a essas atuações posteriores.

44      Resulta das considerações expostas que esta ação incide validamente sobre o período visado pela Comissão, que se estende de 2013 a 2022.

45      Em terceiro lugar, importa recordar que, em conformidade com jurisprudência constante, o procedimento previsto no artigo 258.° TFUE assenta na verificação objetiva do incumprimento, por um Estado‑Membro, das obrigações que lhe são impostas pelos Tratados ou por um ato de direito derivado. Por conseguinte, quando tal tenha sido demonstrado, é irrelevante que o incumprimento resulte da vontade do Estado‑Membro ao qual é imputável, da sua negligência, ou ainda de dificuldades técnicas com as quais este se tenha eventualmente deparado [v., neste sentido, Acórdãos de 1 de fevereiro de 2001, Comissão/França, C‑333/99, EU:C:2001:73, n.os 33 e 36, e de 25 de janeiro de 2024, Comissão/Irlanda (Trialometanos na água potável), C‑481/22, EU:C:2024:85, n.os 90 e 91].

46      No caso em apreço, resulta dos dados que foram comunicados pela República Portuguesa à Comissão, durante o procedimento pré‑contencioso, e que constam dos anexos da petição inicial, que se confirmam as violações do direito da União mencionadas no pedido formulado na réplica, que retifica essa petição, e expostas no n.° 35 do presente acórdão.

47      A este respeito, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que os prazos médios de pagamento pelas entidades públicas portuguesas continuam a exceder os prazos previstos no artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7. Esta constatação impõe‑se em relação à administração local, à Região Autónoma da Madeira, à Região Autónoma dos Açores e às entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde, sendo os atrasos de pagamento sensivelmente mais significativos nestes três últimos casos.

48      Assim, verifica‑se que, ao não assegurar que as suas entidades públicas cumprem de forma efetiva os prazos de pagamento previstos no artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7, a República Portuguesa não cumpriu, na medida indicada pela Comissão, as obrigações que lhe incumbem por força destas disposições.

49      Em quarto e último lugar, no que respeita aos três fundamentos de defesa invocados pela República Portuguesa para tentar minimizar, ou mesmo justificar, o facto de não ter cumprido essas obrigações, há que salientar o seguinte.

50      Primeiro, a República Portuguesa alega uma melhoria dos prazos médios de pagamento em toda a Administração Pública portuguesa, que consistiu numa progressão de 142 dias em 2012 para 48 dias em 2022, ou seja, uma redução de 66 %.

51      Todavia, como a Comissão salientou, mesmo admitindo que esteja demonstrada, a circunstância de a situação dos atrasos de pagamento das entidades públicas nas transações comerciais abrangidas pela Diretiva 2011/7 estar a melhorar não pode impedir o Tribunal de Justiça de declarar que um Estado‑Membro não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do direito da União [v., neste sentido, Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑122/18, EU:C:2020:41, n.° 65].

52      Segundo, a República Portuguesa sustenta, em substância, que o alegado incumprimento só pode ser declarado em caso de violação grave, contínua e sistemática das obrigações impostas pelo artigo 4.° da Diretiva 2011/7, o que não aconteceu no caso em apreço.

53      No entanto, o Tribunal de Justiça já sublinhou que tais considerações não são de molde a excluir a existência de um incumprimento, por parte do Estado‑Membro em causa, das obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.°, n.os 3 e 4, da Diretiva 2011/7. Além disso, visto que a ação por incumprimento tem natureza objetiva, considera‑se que o incumprimento das obrigações que incumbem aos Estados‑Membros por força do direito da União existe, seja qual for a dimensão ou a frequência das situações censuradas [v., neste sentido, Acórdãos de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑122/18, EU:C:2020:41, n.° 64, e de 10 de março de 2022, Comissão/Bélgica (Dedução de pensões de alimentos), C‑60/21, EU:C:2022:172, n.° 33].

54      Terceiro, no que respeita ao argumento da República Portuguesa segundo o qual os princípios da proporcionalidade e da cooperação leal se opõem a que a presente ação seja julgada procedente, uma vez que aquela se aproxima do cumprimento integral das obrigações que lhe incumbem e que, portanto, o meio menos coativo à disposição da União consiste, não em sancionar este Estado‑Membro, mas em prosseguir a colaboração ativa iniciada entre a Comissão e este, importa recordar que a Comissão dispõe do poder de apreciar a oportunidade de agir contra um Estado‑Membro e de escolher o momento em que dará início ao processo por incumprimento contra este. Ao Tribunal de Justiça não cabe fiscalizar essa apreciação, mas sim examinar se o incumprimento censurado existe ou não [v., neste sentido, Acórdãos de 11 de dezembro de 2014, Comissão/Grécia, C‑677/13, EU:C:2014:2433, n.° 50, e de 25 de março de 2021, Comissão/Hungria (Imposto especial de consumo sobre os cigarros), C‑856/19, EU:C:2021:253, n.° 57].

55      No caso em apreço, a Comissão sublinha com razão que, antes de intentar a presente ação por incumprimento, suspendeu, a pedido da República Portuguesa, o procedimento por incumprimento durante um longo período de tempo, tendo em conta certos progressos realizados por este Estado‑Membro.

56      Além disso, uma argumentação como a da República Portuguesa não tem impacto na apreciação da materialidade do incumprimento alegado, a qual depende da existência de factos provados que demonstrem esse incumprimento, e não do comportamento do Estado‑Membro em causa durante o procedimento por incumprimento.

57      Por conseguinte, os três fundamentos de defesa invocados pela República Portuguesa devem ser julgados improcedentes.

58      Atendendo a toda a fundamentação exposta, há que declarar que, ao não ter assegurado que as suas entidades públicas cumprem de forma efetiva os prazos de pagamento previstos no artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força destas disposições.

 Quanto às despesas

59      Nos termos do artigo 138.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Portuguesa e tendo esta última ficado vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) decide:

1)      Ao não ter assegurado que as suas entidades públicas cumprem de forma efetiva os prazos de pagamento previstos no artigo 4.°, n.° 3, e n.° 4, alínea b), da Diretiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força destas disposições.


2)      A República Portuguesa é condenada nas despesas.

Piçarra

Jääskinen

Gavalec

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 11 de julho de 2024.

O Secretário

 

O Presidente de Secção

A. Calot Escobar

 

N. Piçarra


*      Língua do processo: português.