Language of document : ECLI:EU:T:2020:610

(Processo T93/18)

International Skating Union

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Quarta Secção alargada) de 16 de dezembro de 2020

«Concorrência — Associação de empresas — Provas de patinagem de velocidade — Decisão que declara uma infração ao artigo 101.° TFUE — Regulamentação de uma federação desportiva — Conciliação entre direito da concorrência e especificidade do desporto — Apostas desportivas — Tribunal Arbitral do Desporto — Orientações para o cálculo das coimas — Âmbito de aplicação territorial do artigo 101.° TFUE — Restrição da concorrência por objetivo — Medidas corretivas»

1.      Recurso de anulação — Fundamentos — Falta de fundamentação ou fundamentação insuficiente — Exame — Limitação unicamente aos argumentos que não põem em causa o mérito da decisão impugnada

(Artigos 263.° e 296.° TFUE)

(cf. n.os 53, 54)

2.      Atos das instituições — Fundamentação — Dever — Alcance — Decisão de aplicação das regras de concorrência — Decisão da Comissão que declara uma infração e ordena medidas corretivas — Fundamentos alegadamente contraditórios

(Artigos 263.° e 296.° TFUE)

(cf. n.os 56‑61)

3.      Acordos, decisões e práticas concertadas — Decisões de associações de empresas — Conceito — Regulamentação de uma federação desportiva internacional relativa à participação de desportistas filiados nas provas

(Artigo 101.° TFUE)

(cf. n.os 69‑75)

4.      Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Regulamentação de uma federação desportiva internacional que dispõe de um poder de autorização — Qualificação de restrição por objetivo — Grau suficiente de nocividade — Critérios de apreciação — Teor e objetivo, bem como contexto da regulamentação — Sanções de inelegibilidade em caso de participação dos desportistas filiados numa prova não autorizada — Restrições inerentes à prossecução de objetivos legítimos e proporcionados — Tomada em consideração das características específicas do desporto em geral bem como da sua função social e educativa

(Artigos 101.° e 165.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 77‑79, 82, 100, 106)

5.      Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Regulamentação de uma federação desportiva internacional que dispõe de um poder de autorização — Qualificação de restrição por objetivo — Grau suficiente de nocividade — Critérios de apreciação — Regras que visam proteger a integridade de uma modalidade desportiva contra os riscos relacionados com as apostas e assegurar o respeito de padrões comuns nas provas desportivas — Regras que prosseguem objetivos legítimos — Exercício discricionário do poder de autorização pela federação desportiva internacional — Caráter desproporcionado das sanções incorridas pelos desportistas — Restrição por objetivo

(Artigos 101.° e 165.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 85‑89, 91‑95, 100, 101, 106, 108, 109)

6.      Concorrência — Regras da União — Âmbito de aplicação territorial — Competência da Comissão — Critério do efeito imediato, substancial e previsível de um acordo, decisão ou prática concertada — Apreciação

(Artigo 101.° TFUE)

(cf. n.os 125‑130)

7.      Concorrência — Procedimento administrativo — Cessação das infrações — Poder da Comissão — Injunções dirigidas às empresas — Limites — Obrigação de alteração de uma regra distinta daquela que é constitutiva da infração declarada — Regulamento de arbitragem de uma federação desportiva internacional — Analogia com as circunstâncias agravantes — Inadmissibilidade

(Artigo 101.° TFUE; Comunicação 2006/C 210/02 da Comissão, ponto 28)

(cf. n.os 143‑161)

8.      Concorrência — Procedimento administrativo — Cessação das infrações — Poder da Comissão — Injunções dirigidas às empresas — Identificação de meios aptos a pôr efetivamente termo à infração declarada — Limites

(Artigo 101.° TFUE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 7.°, n.° 1)

(cf. n.os 167‑172)

Resumo

O Tribunal Geral confirma que as regras da União Internacional de Patinagem (UIP) que preveem sanções severas contra os atletas que participem em provas de patinagem de velocidade não reconhecidas por esta são contrárias às regras da União Europeia em matéria de concorrência

Em contrapartida, a Comissão contestou erradamente o regulamento de arbitragem da UIP

A International Skating Union (União Internacional de Patinagem, a seguir «UIP») é a única federação desportiva internacional reconhecida pelo Comité Olímpico Internacional (COI), com vista a assegurar o enquadramento e a gestão da patinagem artística e da patinagem de velocidade. A UIP exerce igualmente uma atividade comercial que consiste na organização das diferentes provas de patinagem de velocidade no âmbito das competições internacionais mais importantes, tais como os campeonatos da Europa e do mundo, bem como os Jogos Olímpicos de inverno.

Em 2014, a sociedade coreana Icederby International Co. Ltd previa organizar no Dubai (Emirados Árabes Unidos) uma competição de patinagem de velocidade com provas num novo formato. Não tendo a UIP autorizado esse evento, esta sociedade organizadora defrontou‑se com dificuldades para assegurar a participação dos patinadores de velocidade profissionais, o que a levou a renunciar a esse projeto. Com efeito, os patinadores filiados nas federações nacionais membros da UIP estão sujeitos, pelos estatutos desta última, a um regime de autorização prévia, que inclui «regras de elegibilidade». Por força destas regras, na sua versão aplicável a esse período, a participação de um patinador numa prova não autorizada expunha‑o a uma sanção de exclusão vitalícia de todas as provas organizadas pela UIP.

Tendo recebido uma denúncia apresentada por dois patinadores profissionais neerlandeses, a Comissão Europeu considerou, por Decisão de 8 de dezembro de 2017 (1) (a seguir «decisão impugnada»), que as regras de elegibilidade da UIP eram incompatíveis com as regras de concorrência da União (artigo 101.° TFUE), na medida em que tinham por objetivo restringir as possibilidades de os patinadores de velocidade profissionais participarem livremente em provas internacionais organizadas por terceiros e privavam, por conseguinte, esses terceiros dos serviços dos atletas que eram necessários para organizar tais competições. Em consequência, a Comissão instou a UIP, sob pena de sanção pecuniária, a pôr termo à infração assim declarada, sem lhe aplicar, contudo, qualquer sanção.

A UIP contestou a decisão impugnada no Tribunal Geral da União Europeia. O Tribunal Geral, chamado a pronunciar‑se pela primeira vez sobre uma decisão da Comissão que declara a não conformidade de uma regulamentação adotada por uma federação desportiva com o direito da concorrência da União, confirma a procedência da qualificação de restrição da concorrência por objetivo efetuada pela Comissão a respeito da regulamentação em causa, mas anula parcialmente a decisão impugnada, na parte relativa às medidas corretivas impostas à UIP.

Apreciação do Tribunal Geral

Em primeiro lugar, o Tribunal Geral considera que a Comissão concluiu acertadamente que as regras de elegibilidade têm por objetivo restringir a concorrência na aceção do artigo 101.° TFUE.

A este respeito, o Tribunal Geral constata, antes de mais, que a situação em que se encontra a UIP é suscetível de dar lugar a um conflito de interesses. Com efeito, por um lado, a UIP exerce uma função regulamentar, por força da qual dispõe de um poder de aprovar regras nas modalidades da sua competência e, assim, de autorizar as provas organizadas por terceiros, ao passo que, por outro, no âmbito da sua atividade comercial, organiza ela própria as provas de patinagem de velocidade mais importantes em que os patinadores profissionais devem participar para ganhar a sua vida. A este respeito, o Tribunal Geral considera que as obrigações que se impõem a uma federação desportiva no exercício da sua função regulamentar nos termos do artigo 101.° TFUE são as reiteradamente consagradas na jurisprudência relativa à aplicação dos artigos 102.° e 106.° TFUE (2), de modo que, nestas condições, a UIP deve assegurar, no exame dos pedidos de autorização, que os terceiros organizadores de provas de patinagem de velocidade não sejam indevidamente privados de um acesso ao mercado relevante, ao ponto de a concorrência nesse mercado ser falseada.

Feita esta precisão, o Tribunal Geral examina então a apreciação da Comissão a propósito do conteúdo das regras de elegibilidade. Começa por declarar que estas últimas não explicitam os objetivos legítimos que prosseguem e só preveem critérios de autorização, aliás não exaustivos, desde 2015. Nestas condições, os requisitos aplicados desde essa data não podem ser todos considerados critérios de autorização claramente definidos, transparentes, não discriminatórios e controláveis, suscetíveis, enquanto tais, de garantir aos organizadores de provas um acesso efetivo ao mercado relevante. Em consequência, o Tribunal Geral considera que a UIP conservou, mesmo depois da adoção dos critérios de autorização em 2015, uma ampla margem de apreciação para recusar autorizar as provas propostas por terceiros.

Por outro lado, no que respeita ao regime das sanções, o Tribunal Geral sublinha que a severidade das sanções previstas é um elemento particularmente pertinente na identificação de eventuais obstáculos ao bom funcionamento do jogo da concorrência no mercado relevante. Com efeito, essa severidade pode dissuadir os atletas de participarem em provas não autorizadas pela UIP, mesmo quando nenhum motivo legítimo possa justificar essa recusa de autorização. No caso em apreço, o Tribunal Geral considera que as sanções previstas pelas regras de elegibilidade, mesmo após a flexibilização do regime introduzida em 2016, revestem um caráter desproporcionado. Com efeito, desde essa data, não só as categorias de infrações continuam mal definidas, como a duração das sanções incorridas, nomeadamente em caso de participação em provas terceiras não autorizadas, continua severa tendo em conta a duração media da carreira de um patinador.

Por último, o Tribunal Geral examina a apreciação da Comissão no que respeita aos objetivos prosseguidos pelas regras de elegibilidade. A este respeito, o Tribunal Geral recorda que a proteção da integridade do desporto constitui um objetivo legítimo reconhecido no artigo 165.° TFUE. O Tribunal Geral admite, em consequência, que a UIP tinha legitimidade para estabelecer regras destinadas tanto a reduzir os riscos de manipulação das provas desportivas como a assegurar a conformidade das provas desportivas com os padrões comuns. No entanto, no caso em apreço, a verdade é que as regras adotadas pela UIP vão além do necessário para atingir tais objetivos e, por conseguinte, não são proporcionadas a esses mesmos objetivos. Em consequência, a Comissão considerou acertadamente que as restrições decorrentes do sistema de autorização prévia não podiam ser justificadas pelos objetivos em questão.

Tendo em conta todas estas considerações, a Comissão concluiu, portanto, corretamente que as regras de elegibilidade apresentam um grau suficiente de nocividade, em particular à luz do seu conteúdo, para se poder considerar que restringem a concorrência por objetivo.

Em segundo lugar, o Tribunal Geral pronuncia‑se sobre a legalidade das medidas corretivas aplicadas pela decisão impugnada para pôr termo à infração declarada e julga parcialmente procedentes os pedidos de anulação da recorrente a este respeito, na medida em que a Comissão exigiu, sob pena de sanção pecuniária, a alteração substancial do regulamento de arbitragem da UIP em caso de manutenção do sistema de autorização prévia.

A este respeito, o Tribunal Geral salienta que a Comissão considerou que este regulamento de arbitragem, que confere ao Tribunal Arbitral do Desporto sediado em Lausana (Suíça), competência exclusiva para conhecer dos recursos contra as decisões de inelegibilidade e torna obrigatória essa arbitragem, reforçava as restrições da concorrência geradas pelas regras de elegibilidade. Na medida em que a Comissão se inspirou, a este título, nas Orientações para o cálculo das coimas (3), e mais precisamente no conceito de «circunstância agravante» ali contido, o Tribunal Geral sublinha que só os comportamentos ou as circunstâncias ilícitas que tornam a infração mais prejudicial podem justificar um agravamento da coima aplicada por uma infração ao direito da concorrência da União. Ora, no caso em apreço, o Tribunal Geral considera que não se verificam essas circunstâncias ilícitas. A Comissão não podia, portanto, considerar que o regulamento de arbitragem da UIP constituía uma circunstância agravante.


1      Decisão C(2017) 8230 final da Comissão, de 8 de dezembro de 2017, relativa a um processo nos termos do artigo 101.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do artigo 53.° do Acordo EEE (Processo AT/40208 — Regras de Elegibilidade da União Internacional de Patinagem).


2      Acórdãos do Tribunal de Justiça de 1 de julho de 2008, MOTOE (C‑49/07, n.os 51 e 52), e de 28 de fevereiro de 2013, Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (C‑1/12, n.os 88 e 92).


3      Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2, alínea a), do artigo 23.° do Regulamento n.° 1/2003 (JO 2006, C 210, p. 2).