CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
ELEANOR SHARPSTON
apresentadas em 13 de setembro de 2012 (1)
Processo C‑461/11
Ulf Kazimierz Radziejewski
contra
Kronofogdemyndigheten i Stockholm
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Stockholms tingsrätt (Suécia)]
«Livre circulação de trabalhadores — Exoneração de dívidas — Requisito de residência»
1. Uma pessoa pode ficar tão imersa em dívidas, que não se pode esperar razoavelmente que consiga delas libertar‑se num futuro próximo. Na Suécia, esses devedores podem apresentar um pedido de exoneração de dívidas (2) («skuldsanering»), através do qual uma autoridade pública (Kronofogdemyndigheten, a seguir «KFM») os exonera total ou parcialmente da obrigação de pagar a dívida. Uma condição prévia para beneficiar da exoneração de dívida da Suécia é, no entanto, que o devedor resida na Suécia. Esse requisito parece ser imposto por motivos relacionados com (i) a eficácia das decisões relativas à exoneração de dívidas (ii) a necessidade de obtenção de informações completas e corretas sobre a situação do devedor e (iii) o receio de que o regime possa de outra forma prejudicar a aplicação da legislação da UE que regula a instauração de um processo de insolvência. No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o requisito de residência é suscetível de impedir ou dissuadir um trabalhador de abandonar a Suécia para exercer o seu direito à livre circulação.
Quadro jurídico
Direito da União Europeia
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
2. O artigo 45.° TFUE dispõe o seguinte:
«1. A livre circulação dos trabalhadores fica assegurada na União.
2. A livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados‑Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho.
3. A livre circulação dos trabalhadores compreende, sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, o direito de:
a) Responder a ofertas de emprego efetivamente feitas;
b) Deslocar‑se livremente, para o efeito, no território dos Estados‑Membros;
c) Residir num dos Estados‑Membros a fim de nele exercer uma atividade laboral, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais;
d) Permanecer no território de um Estado‑Membro depois de nele ter exercido uma atividade laboral, nas condições que serão objeto de regulamentos a estabelecer pela Comissão.
[…]»
Regulamento relativo aos processos de insolvência
3. Nos termos do segundo considerando do preâmbulo do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho (a seguir «Regulamento relativo aos processos de insolvência») (3), «[o] bom funcionamento do mercado interno exige que os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efetuem de forma eficiente e eficaz». O quarto considerando refere que «há que evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou ações judiciais de um Estado‑Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável (forum shopping)».
4. De acordo com o sexto considerando, o Regulamento relativo aos processos de insolvência «deve limitar‑se às disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões diretamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas».
5. O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência dispõe:
«O presente regulamento é aplicável aos processos coletivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico.»
6. O artigo 2.°, alínea a), define «processos de insolvência», como «os processos coletivos a que se refere o n.° 1 do artigo 1.°» e refere que «[a] lista destes processos consta do anexo A» (4). O anexo A elenca os processos nos vários Estados‑Membros aos quais o regulamento se aplica. Nos termos do artigo 45.°, o Conselho, por iniciativa de um dos Estados‑Membros ou sob proposta da Comissão, pode alterar essa lista.
7. O Anexo A não inclui o «skuldsanering» na lista correspondente a «SVERIGE» (Suécia).
Regulamento Bruxelas I
8. O Regulamento (CE) n.° 44/2001 (5) do Conselho (a seguir «Regulamento Bruxelas I»), relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial «inclui […] o essencial da matéria civil e comercial com exceção de certas matérias bem definidas» (6).
9. O artigo 1.° do Regulamento Bruxelas I dispõe:
«1. O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.
2. São excluídos da sua aplicação:
[...]
b) As falências, as concordatas e os processos análogos;
[…]»
Legislação nacional
10. O artigo 4.° da skuldsaneringslagen (Lei n.° 548 de 2006, a seguir «Lei relativa à exoneração de dívidas») define os requisitos para que as pessoas singulares possam pedir uma exoneração total ou parcial das dívidas. A nacionalidade sueca não é um requisito. O n.° 4 dispõe:
«Pode ser concedida a exoneração de dívidas a qualquer devedor que seja pessoa singular e residente na Suécia, desde que:
1°) se encontre em situação de insolvência e o seu nível de endividamento seja tão elevado que não se pode presumir que tem meios para pagar as suas dívidas num período previsível; e
2°) seja razoável conceder‑lhe a exoneração de dívidas atendendo à sua situação pessoal e financeira.
Para efeitos de aplicação do n.° 1, considera‑se residente na Suécia qualquer pessoa que aí conste do registo de população.
Para efeitos de aplicação do n.° 2, deve ser dada particular atenção às circunstâncias em que as dívidas surgiram, aos esforços feitos pelo devedor para cumprir as suas obrigações e à sua cooperação no decurso do procedimento de exoneração de dívidas.
Caso o devedor exerça uma atividade comercial, a exoneração de dívidas só será concedida se for simples a investigação da situação económica subjacente a essa atividade.»
11. Através da inscrição nos registos de população na Suécia, uma pessoa goza de direitos e está sujeita a obrigações, como o direito ao voto ou a obrigação de pagamento de impostos.
12. O artigo 13.° da Lei relativa à exoneração de dívidas dispõe que qualquer pedido que não cumpra os requisitos do artigo 4.° deve ser indeferido.
13. O artigo 14.° da Lei relativa à exoneração de dívidas dispõe que o KFM deve indagar junto de outras autoridades administrativas, na medida do necessário, as circunstâncias pessoais e financeiras do devedor. Nos termos do artigo 17.°, o devedor pode ser ouvido. Nessa eventualidade, o devedor deve participar numa reunião com o KFM e prestar toda a informação necessária.
14. Na audiência, o Governo sueco confirmou a forma como funciona o processo de exoneração de dívidas. O devedor apresenta um pedido de exoneração de dívidas ao KFM e deve declarar todos os seus rendimentos e despesas. Baseando‑se na informação disponível, a autoridade determina se o requerente é, em princípio, elegível, e, na afirmativa, dá início ao processo de exoneração de dívidas. Essa decisão é publicada na Suécia. Os credores, independentemente da sua nacionalidade e do local onde residem, são convidados a apresentar as suas reclamações de créditos e, se for o caso, podem‑lhes ser solicitadas informações. De seguida, o KFM e o devedor preparam, em conjunto, um plano de exoneração de dívidas (ou plano de pagamento em prestações) que é enviado a todos os credores conhecidos, os quais têm direito a ser ouvidos. Na sequência desse processo, a autoridade toma uma decisão final sobre se anula ou reduz a dívida. Essa decisão é publicada. A sua validade é limitada no tempo (por exemplo, até cinco anos). Pode ser objeto de recurso. O KFM pode, ele mesmo, anular a decisão de exoneração de dívidas, nomeadamente se a situação financeira do devedor se alterar.
Processo principal e questão prejudicial
15. U. Radziejewski é cidadão sueco. Até 2001, viveu e trabalhou com a mulher na Suécia. Em 1996, o facto de o seu estabelecimento ter sido objeto de um processo de insolvência acarretou a insolvência de U. Radziejewski e sua mulher. As dívidas que contraíram estão relacionadas com as atividades que ocorreram na Suécia. Todos os seus credores são empresas suecas.
16. Desde 1997 que os rendimentos de U. Radziejewski e da sua mulher são objeto de uma decisão de penhora de rendimentos executada pelo KFM, mediante a qual são cobradas prestações para pagar as dívidas através da retenção, pelo seu empregador sueco, (de parte) dos seus rendimentos.
17. Em 2001, U. Radziejewski recebeu uma oferta de emprego de um empregador sueco na Bélgica. U. Radziejewski e a sua mulher mudaram‑se, então, para a Bélgica, aí residindo desde então. Atualmente trabalham ambos para o mesmo empregador sueco. Não têm atualmente registo de residência na Suécia.
18. Em 2011, U. Radziejewski apresentou ao KFM um pedido de exoneração de dívidas. Em 29 de junho de 2011, o KFM rejeitou esse pedido porque U. Radziejewski não era residente e não tinha registo de residência na Suécia. O KFM não avaliou se preenchia os outros requisitos para a obtenção da exoneração de dívidas.
19. U. Radziejewski recorreu da decisão do KFM para o Stockholms tingsrätt (Tribunal de primeira instância de Estocolmo, a seguir «órgão jurisdicional de reenvio»). O recurso baseia‑se, entre outros, no argumento de que o requisito de residência viola o princípio da livre circulação de trabalhadores dentro da União Europeia.
20. O órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça:
«Pode‑se considerar que o requisito de residência na Suécia previsto no artigo 4.° da skuldsaneringslagen (Lei n.° 548 de 2006) (Lei relativa à exoneração de dívidas) é suscetível de impedir ou dissuadir um trabalhador de abandonar a Suécia para exercer o seu direito à livre circulação e, por conseguinte, é contrário ao princípio da livre circulação dos trabalhadores no interior da União, previsto no artigo 45.° [TFUE]?»
21. Foram apresentadas observações escritas pelo KFM, por U. Radziejewski, pelo Governo sueco e pela Comissão Europeia.
22. Na audiência, ocorrida em 24 de maio de 2012, o Governo sueco e a Comissão Europeia apresentaram alegações orais.
Análise
Observações prévias
23. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se o requisito de residência em questão no processo principal é suscetível de impedir ou dissuadir um trabalhador de abandonar a Suécia para exercer o seu direito à livre circulação e, por conseguinte, é contrário ao artigo 45.° TFUE. Não pede ao Tribunal de Justiça para analisar eventuais justificações para esse requisito. Nem o despacho de reenvio explica os objetivos do requisito de residência. Parece assim que o órgão jurisdicional de reenvio ainda tem que efetuar apreciações de natureza factual a este respeito.
24. Inversamente, o KFM, o Governo sueco e a Comissão abordaram — ainda que de forma breve e incompleta — a questão de saber se o requisito de residência se pode justificar e com que fundamento.
25. Pelos motivos expostos nestas conclusões, proponho que o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à questão submetida. De forma a prestar ao órgão jurisdicional de reenvio a assistência complementar necessária, prosseguirei analisando a possível ou possíveis justificações para o requisito de residência, com base na informação limitada que pôde ser extraída das observações escritas e da audiência.
O artigo 45.° TFUE impede um Estado‑Membro de fazer depender a exoneração de dívidas da residência?
26. Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça, no essencial, se o artigo 45.° TFUE impede um Estado‑Membro de fazer depender a exoneração de dívidas da residência nesse Estado‑Membro. Pergunta, em especial, se o requisito de residência constitui um obstáculo à livre circulação dos trabalhadores.
27. Todos os trabalhadores são potenciais beneficiários dos direitos de livre circulação previstos no artigo 45.° TFUE. Devem poder circular livremente a qualquer momento no território dos Estados‑Membros com o objetivo de aceitar uma oferta de emprego e aí permanecer durante e após esse emprego.
28. O Tribunal de Justiça decidiu que «as disposições do Tratado […] relativas à livre circulação de pessoas têm por objetivo facilitar aos nacionais dos Estados‑Membros o exercício de atividades profissionais de qualquer natureza no território da União e opõem‑se às medidas que os possam desfavorecer quando pretendam exercer uma atividade económica no território de outro Estado‑Membro» (7). Por esse motivo, existe uma restrição no caso em que a legislação nacional «impeça […] ou dissuada […] um trabalhador nacional de um Estado‑Membro de abandonar o seu país de origem para exercer o seu direito de livre circulação» (8).
29. No presente processo, a Lei relativa à exoneração de dívidas concede uma exoneração aos devedores em relação aos quais não se pode assumir que dispõem de meios para pagar as suas dívidas num futuro próximo e cuja situação pessoal e económica torna razoável que lhes seja concedida a exoneração das dívidas. Se a concessão dessa exoneração estiver dependente de residência na Suécia, uma pessoa que de outra forma seria elegível pode não se mudar para outro Estado‑Membro para aí aceitar um emprego. A restrição da liberdade de circulação dos trabalhadores resulta, assim, do fato de o requisito de residência poder dissuadir um trabalhador de mudar para outro Estado‑Membro para aí aceitar um emprego. Da mesma forma, um devedor (como U. Radziejewski) que se mudou da Suécia para outro Estado‑Membro para aí trabalhar fica em desvantagem pelo simples fato de ter exercido os seus direitos de livre circulação.
30. O KFM alega que a ausência de normas harmonizadas sobre o reconhecimento no estrangeiro das suas decisões sobre a exoneração de dívidas é que constitui o obstáculo à livre circulação. Esse argumento não faz sentido. A harmonização é naturalmente um meio importante e útil para concretizar o mercado interno. Mas em áreas em que não existe harmonização, os Estados‑Membros devem ainda assim cumprir as suas obrigações decorrentes do Tratado.
31. Considero pois que um requisito de residência como aquele em apreço é suscetível de restringir a livre circulação de trabalhadores e é, consequentemente, em princípio, proibido nos termos do artigo 45.° TFUE.
Fundamentação
Introdução
32. Se uma medida julgada restritiva da livre circulação de trabalhadores pode ou não justificar‑se depende de a medida (i) prosseguir um objetivo legítimo, (ii) garantir a realização do objetivo em causa e (iii) não ir além do necessário para esse fim (9).
33. Parece decorrer das observações escritas do Governo sueco e dos trabalhos preparatórios da Lei relativa à exoneração de dívidas como aqui foi descrito, que o requisito de residência é imposto por dois motivos: pretende‑se garantir a eficácia da decisão de exoneração de dívidas e assegurar que a exoneração de dívidas é concedida com base em informações completas e corretas sobre o devedor. Na audiência, o Governo sueco desenvolveu um fundamento complementar, nomeadamente para garantir que o regime sueco de exoneração de dívidas não compromete a aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência a outros processos, elencados no Anexo A, que caem no âmbito de aplicação desse regulamento.
34. Eu enfatizo, desde logo, que cumpre ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar as necessárias apreciações detalhadas de natureza factual. Dito isto, parece‑me que há matéria para sugerir que a restrição à livre circulação de trabalhadores resultante de um requisito de residência como aquele em questão no processo principal não se pode justificar.
Quanto à garantia da eficácia da decisão de exoneração de dívidas
35. Diz‑se que o primeiro objetivo do requisito de residência consiste em evitar a concessão de exonerações de dívida em situações em que essa exoneração será provavelmente ineficaz, porquanto o devedor não poderá opor essa decisão ao credor.
36. Esse é, em minha opinião, um objetivo legítimo.
37. No contexto de um único Estado‑Membro, uma exoneração de dívidas como aquela em apreço exonera o devedor de (parte das) suas dívidas. Se, ainda assim, um credor procurar a recuperação e cobrança de uma dívida abrangida pela decisão de exoneração de dívida, o devedor tem um fundamento legal para invocar que a dívida já não é devida. Em circunstâncias com aquelas em apreço, os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros nos quais essa exoneração é concedida estão vinculados pela decisão da autoridade administrativa segundo a qual uma dívida já não existe para efeitos de direito civil. Perante esses órgãos jurisdicionais, a decisão é, logo, totalmente eficaz.
38. Inversamente, se o credor processar o credor noutro Estado‑Membro, no qual os órgãos jurisdicionais sejam competentes, é menos óbvio que a decisão de exoneração de dívidas produza o mesmo efeito. Se e quando o credor irá processar o seu devedor depende de quais os órgãos jurisdicionais que se considerarem competentes e de onde o credor tiver interesse em instaurar a ação. Se a ação disser respeito a uma matéria civil ou comercial, o artigo 2.°, n.° 1 do Regulamento Bruxelas I dispõe que, como regra geral, o credor deve demandar o devedor no território do Estado‑Membro em que este resida, perante os tribunais desse Estado (independentemente da sua nacionalidade). Podem existir jurisdições adicionais ou exclusivas, dependendo do tipo de ação ou do seu objeto. O artigo 5.°, n.° 1, alínea a), daquele regulamento, dispõe, por exemplo, que uma pessoa que resida no território de um Estado‑Membro pode ser demandada nos tribunais de outros Estados‑Membros onde deva ser cumprida a obrigação (10).
39. O direito da União Europeia não obriga os órgãos jurisdicionais de outros Estados‑Membros a reconhecer e executar as decisões de exoneração de dívidas da Suécia.
40. O Regulamento Bruxelas I não se aplica a uma decisão como aquela que o KFM tomou no âmbito da Lei relativa à exoneração de dívidas. Esse regulamento pretende alcançar o objetivo da «livre circulação das decisões» em matéria civil e comercial (11). Estabelece, em particular, no Capítulo III, normas que regulam o reconhecimento e execução de «qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado‑Membro independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo» (12).
41. Ainda que este regulamento se aplique, em princípio, a uma ação instaurada num órgão jurisdicional para cobrar uma dívida, não se aplica a uma exoneração de dívidas como aquela em questão. Uma decisão sueca de exoneração de dívidas aparenta ser um ato praticado por um órgão administrativo que não é, a não ser nos casos previstos no artigo 62.° do Regulamento Bruxelas I, um «juiz», «tribunal» ou «órgão jurisdicional» na aceção daquele regulamento (13). Além disso, a decisão do KFM intervém na relação entre um devedor e os seus credores e obriga estes últimos a aceitar que o montante que lhes é devido foi reduzido ou anulado. É um ato administrativo tomado no exercício de poderes públicos que extingue, sem intervenção jurisdicional, (parte de) uma dívida de direito privado. Esse facto é suficiente para concluir que o Regulamento Bruxelas I não se aplica. Não é assim necessário avaliar se o processo de exoneração de dívidas cai no âmbito de aplicação do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), desse regulamento.
42. O Regulamento relativo aos processos de insolvência também não se aplica, porquanto do Anexo A desse regulamento não consta «skuldsanering» ou exoneração de dívidas. Com base nos limitados factos disponíveis, afigura‑se igualmente que, como foi explicado pelo Governo sueco na audiência, o processo sueco de exoneração de dívidas não determina a inibição parcial ou total do devedor, a qual «implica a perda, pelo devedor, dos poderes de gestão que detém sobre o seu património» (14).
43. Não existindo normas harmonizadas relativamente à execução e reconhecimento no estrangeiro de uma decisão como a decisão do KFM de exoneração de dívidas, aceito que essa exoneração possa ser ineficaz, na medida em que o devedor não pode opô‑la aos credores que optaram por cobrar no estrangeiro a(s) dívida(s) que lhe são devidas. Um Estado‑Membro pode assim legitimamente interessar‑se pela necessidade de assegurar a eficácia dessas decisões e pode querer intervir para reduzir ou eliminar (15) o risco dessa exoneração de dívidas ser ineficaz.
44. Em seguida, o órgão jurisdicional de reenvio deve analisar se o requisito de residência é adequado para atingir esse objetivo (16).
45. Um exemplo prático pode ajudar a ilustrar quais as considerações que, a meu ver, são relevantes para essa análise.
46. Suponhamos que num processo instaurado num órgão jurisdicional belga, um credor procura penhorar bens detidos na Bélgica para executar uma dívida da responsabilidade de um devedor sueco que vive e trabalha na Bélgica. Se esse pedido disser respeito a matéria civil ou comercial, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I, esse regulamento determinará se o tribunal belga é competente.
47. Se esse devedor sueco tivesse apresentado um pedido e tivesse conseguido a concessão da exoneração de dívidas do KFM, não poderia basear‑se nessa decisão para derrubar o pedido do credor (exceto se a legislação belga previr que os seus tribunais devem reconhecer essa decisão). A decisão de exoneração de dívidas seria, assim, nesse caso particular, ineficaz.
48. Se esse devedor fosse, inversamente, residente na Suécia, seria mais provável que os seus principais interesses, incluindo os seus bens, se encontrassem na Suécia. Seria assim mais provável, em princípio, que os seus credores instaurassem as ações nos órgãos jurisdicionais suecos, nos quais a decisão de exoneração de dívidas seria totalmente eficaz.
49. Assim, em resumo, se o devedor for residente na Suécia, a decisão de exoneração de dívidas será provavelmente, no seu todo, plenamente eficaz. Se o devedor não for residente na Suécia, a decisão de exoneração de dívidas conferirá ainda assim exatamente a mesma proteção na Suécia, mas, globalmente, o devedor poderá ter menos proteção.
50. Para ser proporcionado, o requisito de residência não pode ir além do que for necessário para atingir o referido objetivo. Esse é um assunto que cumpre ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, mas as observações seguintes poderão ser úteis.
51. Na ausência de uma base legal de reconhecimento das decisões de exoneração de dívidas no estrangeiro, a Suécia apenas pode garantir que a decisão de exoneração de dívidas é eficaz na Suécia.
52. Os devedores residentes na Suécia podem, ainda assim, requerer e receber exoneração de dívidas, apesar de essa decisão poder não produzir efeitos, se os seus credores instaurarem uma ação contra eles no estrangeiro (por exemplo, se aqueles aí possuírem bens). Inversamente, devedores fora da Suécia não têm a possibilidade de apresentar um pedido de exoneração de dívidas, apesar da possibilidade de contra eles poderem ser instauradas ações na Suécia, onde essa decisão seria eficaz.
53. O requisito de residência é assim um requisito absoluto de elegibilidade que é imposto em resposta à possibilidade de um credor poder decidir procurar o pagamento de uma dívida nos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro que pode decidir não conferir eficácia à decisão sueca de exoneração de dívidas. O facto de essa possibilidade existir, não justifica que se imponha um requisito de residência a todos os requerentes de exoneração de dívidas.
54. Nesse sentido, entendo essencial considerar o contexto geral no qual o referido risco pode surgir. Essa exoneração de dívidas apenas está disponível nos casos em que um devedor insolvente está tão endividado que não se pode prever que tenha possibilidades de pagar as suas dívidas num espaço de tempo previsível, pedindo‑se assim que seja exonerado do pagamento de parte ou da totalidade das suas dívidas. É difícil imaginar que a totalidade ou a maior parte dos devedores que apresenta um pedido de exoneração de dívidas tenha bens no estrangeiro. Se ainda estiverem disponíveis alguns bens, a sua localização (e não o local de residência do devedor) será o mais importante para o credor que pretenda penhorá‑los para assim executar o pagamento da dívida.
55. Nessas circunstâncias, parece desproporcionado negar a um requerente a exoneração de dívidas apenas pelo facto de este não residir na Suécia, ignorando assim a possibilidade de contra aquele poder, de facto, ser mais provavelmente instaurada uma ação nos órgãos jurisdicionais suecos.
56. Os factos subjacentes ao processo principal ilustram bem este ponto. U. Radziejewski aparenta não possuir bens fora da Suécia que possam interessar aos seus credores. O salário que ele aufere na Bélgica está sujeito a uma decisão de penhora sueca. Todas as suas dívidas conhecidas foram geradas na Suécia. Todos os seus credores conhecidos são suecos. Não é claro se os seus credores procurariam efetivamente instaurar ações contra si na Bélgica. As suas circunstâncias demonstram que para garantir que uma decisão de exoneração de dívidas apenas é emitida se for eficaz, seria suficiente avaliar caso a caso se essa decisão conferiria uma proteção efetiva na Suécia e recusar emiti‑la se se demonstrasse (quod non) que a exoneração de dívidas não teria provavelmente efeito na Suécia.
57. Acrescento que o requisito de residência exclui uma categoria completa de devedores apenas pelo facto de não residirem na Suécia no momento da apresentação do seu pedido de exoneração de dívidas. Inversamente, confirmou‑se na audiência que um devedor ao qual tiver sido concedido exoneração de dívidas mas que posteriormente se desloca para o estrangeiro e que, consequentemente, já não preenche o requisito de residência, não é necessariamente excluído do regime, desde que permaneça inscrito no registo de população da Suécia. Em minha opinião, essa aplicação arbitrária do requisito de residência não é compatível com a exigência de que o requisito de residência seja proporcional ao seu referido objetivo.
Quanto à obtenção de informação completa e correta sobre o devedor
58. A Suécia alega que o requisito de residência garante que o KFM pode descobrir, recolher, examinar e verificar informação relativa à situação pessoal e financeira do devedor. Se o devedor residir fora da Suécia — refere‑se na alegação — é difícil obter a informação necessária, exceto do próprio devedor e, logo, confirmá‑la.
59. Uma decisão de exoneração de dívidas deve claramente basear‑se numa avaliação correta e detalhada da situação pessoal e financeira real do devedor. Eu aceito que a autoridade competente do Estado‑Membro deve estar em posição de recolher, analisar e verificar as informações necessárias para tomar uma decisão informada sobre se o devedor é elegível para beneficiar da exoneração de dívidas. Tal é totalmente consistente com o princípio da boa administração. Medidas tomadas para esse efeito têm assim um objetivo legítimo.
60. Aceito igualmente que pode ser mais simples, do ponto de vista administrativo, conduzir um processo de verificação se o devedor for residente na Suécia, porquanto pode ser mais fácil (i) promover uma reunião entre o KFM e o devedor e (ii) recolher e verificar informação que está disponível, por exemplo, em bases de dados e registos detidos por autoridades suecas. Se informações relevantes forem detidas por autoridades de outro Estado‑Membro, o KFM não pode aceder àquelas prontamente e pode necessitar de pedi‑las a esse Estado‑Membro ou ao devedor. Nessa medida, o requisito de residência pode afigurar‑se um requisito adequado para se impor.
61. O órgão jurisdicional de reenvio precisará então de avaliar se o requisito de residência não vai além do que é necessário para atingir o objetivo de obtenção de informações completas e corretas sobre o devedor.
62. Em primeiro lugar, dependendo das circunstâncias concretas do caso, pode não haver necessidade de procurar, aceder ou obter informações fora da Suécia.
63. Em segundo lugar, eu valorizo o argumento da Comissão segundo o qual o requisito de residência é meramente formal e as autoridades suecas podem facilmente determinar a situação financeira de um requerente como U. Radziejewski com base na sua declaração de rendimentos, nos impostos pagos sobre o seu salário pelo seu empregador sueco e na decisão de penhora de rendimentos executada pelo próprio KFM. Noto que os artigos 14.° e 17.° da Lei relativa à exoneração de dívidas exigem que o KFM efetue pesquisas junto de outras autoridades administrativas, na medida do necessário, sobre as circunstâncias pessoais e financeiras do devedor, e permitem que o KFM reúna com o devedor. Além da informação apresentada pelo devedor e recebida de outras autoridades, o KFM pode igualmente receber informações dos credores.
64. Se o devedor residir no estrangeiro, admito que possa haver informações que o KFM não consiga recolher ou verificar sem a autorização quer do devedor, quer de uma autoridade noutro Estado‑Membro, ou sem obter a documentação apresentada pela última. Em casos particulares em que se considere que essa informação é necessária, é difícil entender por que motivo o KFM não faria esse pedido ou não pediria ao próprio requerente para fornecer a documentação necessária. A esse respeito, a Lei relativa à exoneração de dívidas dispõe que o KFM deve tomar em consideração o facto de o devedor ter ou não cooperado no processo (17). Há assim incentivos para o devedor cooperar, mesmo que resida fora da Suécia.
65. Por último, a Lei relativa à exoneração de dívidas parece ter sido redigida de forma a que a reunião física entre o devedor e o KFM seja facultativa, e não obrigatória. Se for assim, afigura‑se que um requisito geral de residência iria além do que é necessário para garantir que em determinados casos o devedor comparecerá numa reunião com o KFM. Se essa reunião apenas for exigida em determinadas circunstâncias, parece haver outras formas menos restritivas de dar uma oportunidade ao devedor para esclarecer a sua posição e ao KFM para avaliar a credibilidade deste último (18).
Quanto ao objetivo de evitar a aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência
66. O Governo sueco alegou na audiência que o regime sueco de exoneração de dívidas não pode prejudicar a aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência aos processos que constam do Anexo A. A posição do Governo sueco parece ser a de que, na ausência do requisito de residência, um devedor poderia requerer a exoneração de dívidas na Suécia, em vez de o fazer no Estado‑Membro que o Regulamento relativo aos processos de insolvência prevê (19).
67. Em minha opinião, esse argumento não deve proceder.
68. Garantir a aplicação coerente e consistente da legislação da União Europeia é claramente um objetivo legítimo. No entanto, com base na muito limitada informação disponível, não considero que o requisito de residência se possa justificar com esse fundamento.
69. A Suécia deve naturalmente cumprir a norma jurisdicional do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, nos termos do qual os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência abrangidos pelo regulamento. Os órgãos jurisdicionais suecos ou outras autoridades não podem dar início a esses processos se os principais interesses dos devedores não se encontrarem na Suécia. Inversamente, os órgãos jurisdicionais suecos (e autoridades administrativas) permanecem totalmente competentes para iniciar outros processos não cobertos por esse regulamento sem comprometer a norma prevista no seu artigo 3.°, n.° 1, já referido. Esta posição do Governo sueco intriga‑me. Por um lado, considera que o seu processo de exoneração de dívidas é equivalente às que se encontram elencadas no Regulamento relativo aos processos de insolvência. Por outro lado, no âmbito dos seus argumentos relativos à eficácia da exoneração de dívidas, realça que o processo de «skuldsanering» não consta do Anexo A, nem determina a inibição do devedor (20).
70. Não vejo assim ligação entre o requisito de residência e aplicação coerente e consistente do direito da União Europeia em processos de insolvência.
Conclusão
71. À luz destas considerações, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão apresentada pelo Stockholms tingsrätt da seguinte forma:
O artigo 45.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que um requisito de residência como o previsto na skuldsaneringslagen (Lei n.° 548 de 2006) (Lei relativa à exoneração de dívidas), como condição de obtenção de uma exoneração de dívidas, constitui uma restrição à livre circulação dos trabalhadores porquanto é suscetível de impedir ou dissuadir um trabalhador de abandonar a Suécia para aceitar um emprego noutro Estado‑Membro.