CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
GERARD HOGAN
apresentadas em 16 de setembro de 2021 (1)
Processo C‑251/20
Gtflix Tv
contra
DR
[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França)]
«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento n.o 1215/2012 — Publicação na Internet de comentários depreciativos em relação a uma pessoa coletiva — Ações de retificação de dados, de supressão de conteúdos e de indemnização do dano sofrido — Competência para apreciar ações de indemnização do dano sofrido — Ação judicial estratégica contra a participação pública (SLAPP)»
I. Introdução
1. Desde a entrada em vigor da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões (2) e da sua posterior substituição pelas diferentes versões do Regulamento Bruxelas (3), todo este corpo de direito internacional privado «europeizado» pretendeu promover a previsibilidade e a segurança da atribuição de competências em matéria civil aos órgãos jurisdicionais dos diferentes Estados‑Membros. O sistema de Bruxelas também pretendeu, na medida do possível, concentrar as eventuais instâncias jurisdicionais relativas a um determinado processo no menor número possível de sistemas jurídicos, designadamente os que têm conexão mais próxima com a ação.
2. Estes objetivos foram, contudo, postos em causa em vários processos que remontam, pelo menos, ao Acórdão Shevill (4), proferido pelo Tribunal de Justiça em 1995. O problema é mais grave nos casos em que um requerente pediu uma indemnização por responsabilidade extracontratual devido a publicações difamatórias e outras de caráter semelhante, alegando que o ato ilícito causou danos em vários ordenamentos jurídicos distintos. Nestas circunstâncias, não se afigura possível aplicar uma regra que responda de forma satisfatória a esses objetivos potencialmente contraditórios de garantir certeza e previsibilidade e proximidade, por um lado, e que evite uma multiplicidade de possíveis foros judiciais, por outro. Estas dificuldades aumentaram com os avanços tecnológicos no mundo contemporâneo, na medida em que os comentários alegadamente difamatórios ou incorretos passaram a ser publicados na Internet.
3. É este o quadro jurídico geral das complexas questões de competência submetidas pelo presente reenvio prejudicial, que tem por objeto a interpretação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012.
4. Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Gtflix Tv, uma sociedade de entretenimento para adultos sediada na República Checa, a DR, realizador, produtor e distribuidor de filmes pornográficos com domicílio na Hungria, e que tem por objeto uma indemnização por afirmações alegadamente pejorativas proferidas por DR em vários sítios Internet e fóruns. Antes de apreciar os factos ou as questões jurídicas materiais, é necessário, em primeiro lugar, enunciar o quadro jurídico relevante.
II. Quadro jurídico
A. Direito internacional
5. A Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, assinada em 20 de março de 1883, revista em Estocolmo em 14 de julho de 1967 e alterada em 28 de setembro de 1979 (United Nations Treaty Series, vol. 828, n.o 11851, p. 305) é relativa à propriedade industrial em sentido amplo e abrange patentes, marcas, desenhos industriais, modelos de utilidade, marcas de serviços, designações comerciais, indicações geográficas, bem como a repressão da concorrência desleal.
6. O artigo 10.o‑A desta convenção estabelece:
«1) Os países da União obrigam‑se a assegurar aos nacionais dos países da União proteção efetiva contra a concorrência desleal.
2) Constitui ato de concorrência desleal qualquer ato de concorrência contrário aos usos honestos em matéria industrial ou comercial […]
3) Deverão proibir‑se especialmente:
1. Todos os atos suscetíveis de, por qualquer meio, estabelecer confusão com o estabelecimento, os produtos ou a atividade industrial ou comercial de um concorrente;
2. As falsas afirmações no exercício do comércio, suscetíveis de desacreditar o estabelecimento, os produtos ou a atividade industrial ou comercial de um concorrente;
3. As indicações ou afirmações cuja utilização no exercício do comércio seja suscetível de induzir o público em erro sobre a natureza, modo de fabrico, características, possibilidades de utilização ou quantidade das mercadorias.»
B. Direito da União
1. Regulamento n.o 1215/2012
7. Os considerandos 13 a 16 e 21 do Regulamento n.o 1215/2012 enunciam:
«(13) Deverá haver uma ligação entre os processos a que o presente regulamento se aplica e o território dos Estados‑Membros. Devem, portanto, aplicar‑se, em princípio, as regras comuns em matéria de competência sempre que o requerido esteja domiciliado num Estado‑Membro.
(14) Um requerido não domiciliado num Estado‑Membro deve, em geral, ficar sujeito às regras de competência judiciária aplicáveis no território do Estado‑Membro do tribunal a que a questão foi submetida.
Todavia, a fim de assegurar a proteção de consumidores e trabalhadores, salvaguardar a competência dos tribunais dos Estados‑Membros em situações em relação às quais têm competência exclusiva e respeitar a autonomia das partes, algumas normas de competência constantes do presente regulamento aplicam‑se independentemente do domicílio do requerido.
(15) As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.
(16) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado‑Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação.
[…]
(21) O funcionamento harmonioso da justiça obriga a minimizar a possibilidade de intentar processos concorrentes e a evitar que sejam proferidas decisões inconciliáveis em Estados‑Membros diferentes. Importa prever um mecanismo claro e eficaz para resolver os casos de litispendência e de conexão e para obviar aos problemas resultantes das divergências nacionais quanto à determinação do momento a partir do qual os processos são considerados pendentes. Para efeitos do presente regulamento, é conveniente fixar esta data de forma autónoma.»
8. As regras relativas à competência encontram‑se previstas no capítulo II do referido regulamento e incluem os artigos 4.o a 34.o
9. O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, que figura na secção 1 do capítulo II, sob a epígrafe «Disposições gerais», tem a seguinte redação:
«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»
10. O artigo 5.o, n.o 1, do mesmo regulamento, que figura na secção 1, estabelece:
«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado‑Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.»
11. A redação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 é idêntica à redação do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), que foi revogado pelo Regulamento n.o 1215/2012, e corresponde à do artigo 5.o, n.o 3, da Convenção de Bruxelas. Esta disposição, que faz parte da secção 2, sob a epígrafe «Competências especiais» do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012, estabelece:
«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:
[…]
2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;»
12. O artigo 30.o do Regulamento n.o 1215/2012 tem a seguinte redação:
«1. Se estiverem pendentes ações conexas em tribunais de diferentes Estados‑Membros, todos eles podem suspender a instância, com exceção do tribunal demandado em primeiro lugar.
2. Se a ação intentada no tribunal demandado em primeiro lugar estiver pendente em primeira instância, qualquer outro tribunal pode igualmente declarar‑se incompetente, a pedido de uma das partes, se o tribunal demandado em primeiro lugar for competente para as ações em questão e a sua lei permitir a respetiva apensação.
3. Para efeitos do presente artigo, consideram‑se conexas as ações ligadas entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídas e julgadas em conjunto para evitar decisões eventualmente inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente.»
2. Regulamento (CE) n.o 864/2007
13. O considerando 7 do Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») (5) enuncia:
«(7) O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Bruxelas I) (6) e com os instrumentos referentes à lei aplicável às obrigações contratuais.»
14. O artigo 4.o deste regulamento, sob a epígrafe «Regra geral», estabelece:
«1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indiretas desse facto.
2. Todavia, sempre que a pessoa cuja responsabilidade é invocada e o lesado tenham a sua residência habitual no mesmo país no momento em que ocorre o dano, é aplicável a lei desse país.
3. Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias que a responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco tem uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país. Uma conexão manifestamente mais estreita com um outro país poderá ter por base, nomeadamente, uma relação preexistente entre as partes, tal como um contrato, que tenha uma ligação estreita com a responsabilidade fundada no ato lícito, ilícito ou no risco em causa.»
15. O artigo 6.o, n.os 1 e 2, do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Concorrência desleal e atos que restrinjam a livre concorrência», dispõe:
«1. A lei aplicável a uma obrigação extracontratual decorrente de um ato de concorrência desleal é a lei do país em que as relações de concorrência ou os interesses coletivos dos consumidores sejam afetados ou sejam suscetíveis de ser afetados.
2. Se um ato de concorrência desleal afetar apenas os interesses de um concorrente específico, aplica‑se o artigo 4.o
[…]»
C. Direito francês
16. No direito francês, entende‑se por concorrência desleal qualquer ato que consista numa utilização excessiva da liberdade de empresa, através do recurso a procedimentos que são contrários às regras e aos costumes e que cause danos. Entre as formas de concorrência desleal reconhecidas figura o ato de depreciação que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Cassação francês, consiste na divulgação de informações suscetíveis de desacreditar um concorrente (7). Este ilícito civil — que é distinto da difamação — é regido pelas regras de direito francês da responsabilidade civil.
III. Factos do litígio no processo principal e pedido de decisão prejudicial
17. A Gtflix Tv é uma sociedade sediada na República Checa que produz e distribui o que, por vezes, é eufemisticamente descrito como programas de televisão com conteúdo para adultos. DR é um realizador, produtor e distribuidor de filmes pornográficos, com domicílio na Hungria. Os seus filmes são comercializados através de sítios Internet que estão alojados na Hungria e dos quais é proprietário.
18. É alegado que DR proferiu regularmente afirmações depreciativas contra a Gtflix Tv em vários sítios Internet e fóruns. A Gtflix Tv interpelou formalmente DR para que este removesse tais afirmações. Não tendo tido êxito, a Gtflix Tv decidiu então intentar um processo sumário contra DR perante o presidente do Tribunal de grande instance, Lyon (Tribunal de Primeira Instância de Lyon, França). Neste processo, Gtflix Tv pediu que DR fosse condenado:
– a pôr termo a todos os atos depreciativos praticados contra a Gtflix Tv e o seu sítio Internet e a publicar um comunicado judicial em francês e em inglês em cada um dos fóruns em causa, sob pena de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória;
– a autorizar a Gtflix Tv a publicar um comentário nos fóruns geridos por DR;
– a pagar à Gtflix Tv, a título de indemnização, a quantia simbólica de um euro pelo dano patrimonial sofrido e a mesma quantia pelo seu dano moral.
19. O recorrido respondeu contestando a competência do tribunal francês. Relativamente a este ponto, o Tribunal de grande instance, Lyon (Tribunal de Primeira Instância de Lyon) concordou com o recorrido.
20. A Gtflix Tv interpôs recurso dessa decisão na Cour d’appel de Lyon (Tribunal de Recurso de Lyon, França), aumentando o seu pedido de indemnização para a quantia provisória de 10 000 euros pelos danos materiais e morais sofridos em França. Por Acórdão de 24 de julho de 2018, o tribunal de recurso confirmou igualmente a incompetência do tribunal francês.
21. Em seguida, a recorrente interpôs recurso na Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França). Neste tribunal, a Gtflix Tv contestou o Acórdão do Tribunal de Recurso de 24 de julho de 2018, que declarou a incompetência dos tribunais franceses a favor dos tribunais checos, uma vez que, em seu entender, os tribunais de um Estado‑Membro são efetivamente competentes para apreciar processos relativos a danos causados no território desse Estado‑Membro por conteúdos em linha quando estes conteúdos estejam aí acessíveis. Ao excluir a competência dos tribunais franceses com o fundamento de que não basta que os comentários considerados depreciativos e publicados na Internet estejam acessíveis na área de jurisdição do tribunal demandado, mas que tais conteúdos devem também ter algum interesse para os residentes desse Estado‑Membro, a Cour d’appel de Lyon (Tribunal de Recurso de Lyon) violou o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012.
22. O órgão jurisdicional de reenvio parece considerar que a decisão da Cour d’appel de Lyon (Tribunal de Recurso de Lyon) está efetivamente viciada por um erro de direito, mas que, no entanto, a incompetência dos tribunais franceses para apreciar o pedido de retificação ou de revogação das afirmações tem fundamento. Com efeito, decorre do Acórdão de 17 de outubro de 2017, Bolagsupplysningen e Ilsjan (C‑194/16, EU:C:2017:766) que um pedido de retificação ou de supressão de dados não pode ser apresentado nos tribunais de um Estado apenas com base no facto de estes dados estarem acessíveis a partir desse Estado‑Membro. É evidente que este raciocínio foi desenvolvido num acórdão proferido no âmbito de um processo de difamação. Contudo, na medida em que se baseava no caráter ubiquitário dos dados em causa, esse raciocínio é aplicável por analogia aos pedidos de supressão ou de retificação de alegações suscetíveis de constituir (alegadamente) um ato depreciativo.
23. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se, no que respeita a pedidos de indemnização relacionados com a existência de tal ato de concorrência desleal, o requerente pode intentar uma ação nos tribunais de cada Estado‑Membro em cujo território está ou estava acessível um conteúdo em linha, quando atua simultaneamente com o objetivo de retificar dados, suprimir conteúdo e indemnizar um dano moral e económico, ou se deve recorrer ao tribunal competente para ordenar a retificação de dados e a supressão dos comentários depreciativos.
24. Neste contexto, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Devem as disposições do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 ser interpretadas no sentido de que a pessoa que, por considerar que houve uma violação dos seus direitos pela difusão de afirmações [depreciativas] na Internet, age judicialmente tanto para efeitos de retificação dos dados e de supressão dos conteúdos como de reparação dos danos morais e patrimoniais daí resultantes, pode pedir, nos tribunais de cada Estado‑Membro em cujo território um conteúdo publicado na Internet esteja ou tenha estado acessível, a indemnização pelo dano causado no território desse Estado‑Membro, em conformidade com o Acórdão eDate Advertising [(C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685, n.os 51 e 52)] ou, em aplicação do Acórdão de 17 de outubro de 2017, Bolagsupplysningen e Ilsjan [(C‑194/16, EU:C:2017:766, n.o 48)], deve intentar essa ação de indemnização no tribunal competente para ordenar a retificação dos dados e a supressão dos comentários [depreciativos]?»
IV. Análise
25. Antes de mais, importa sublinhar que o simples facto de vários tipos de pedidos serem apresentados conjuntamente num único pedido não tem incidência quanto às regras de competência aplicáveis a cada um desses pedidos, uma vez que o pedido pode ser cindido, se for necessário (8). Além disso, no processo principal, há que sublinhar que, embora o requerente tenha apresentado vários pedidos, a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio visa apenas determinar quais são os tribunais competentes para apreciar a ação de indemnização pelos danos causados pela depreciação.
26. A esse respeito, importa recordar que, em derrogação do artigo 4.o do Regulamento n.o 1215/2012, que atribui competência para decidir quanto ao mérito de um litígio submetido aos tribunais do Estado‑Membro em cujo território o requerido tem o seu domicílio, o artigo 7.o, n.o 2, deste regulamento estabelece que em matéria extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (9).
27. Na medida em que o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 reproduz a redação e os objetivos do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001, bem como, ainda antes disso, a redação e os objetivos do artigo 5.o, n.o 3, da Convenção de Bruxelas, há que considerar que a interpretação que o Tribunal de Justiça faz dessas duas disposições é igualmente aplicável ao artigo 7.o, n.o 2 (10).
28. Segundo a análise constante do Tribunal de Justiça, a regra de competência especial estabelecida no artigo 5.o, n.o 3, da Convenção de Bruxelas e no artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001 baseia‑se na existência de um elemento de conexão particularmente estreito entre o litígio e os tribunais do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, que justifica uma atribuição de competência a estes últimos por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo (11). Com efeito, em matéria extracontratual, o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso é normalmente o mais apto para decidir, nomeadamente, por razões de proximidade do litígio e de facilidade na recolha das provas (12).
29. No entanto, na medida em que esta disposição estabelece uma derrogação ao princípio fundamental atualmente consagrado no artigo 4.o do Regulamento n.o 1215/2012, que atribui competência aos tribunais do domicílio do requerido, o artigo 7.o, n.o 2, é de interpretação estrita e não permite uma interpretação que vá para além das situações contempladas expressamente por este regulamento (13).
30. Não obstante, segundo jurisprudência igualmente constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o evento causal» (14) deve ser entendido no sentido de que prevê dois lugares distintos, nomeadamente, aquele onde ocorreu o dano e o do evento que está na origem desse dano (também designado por lugar do evento causal), sendo cada um deles suscetível, em função das circunstâncias, de fornecer uma indicação particularmente útil em matéria de prova e de organização do processo (15). Por conseguinte, no caso de o lugar onde se situam esses critérios de conexão ser diferente, o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de qualquer um destes dois lugares (16).
31. No presente processo, a questão prejudicial incide exclusivamente sobre a determinação do lugar onde ocorreu o dano.
32. A este respeito, o Tribunal de Justiça clarificou que este elemento de conexão é o lugar onde o facto gerador produz os seus efeitos danosos, isto é, o lugar onde o dano provocado pelo produto defeituoso se manifesta concretamente (17). No entanto, este lugar pode variar em função da natureza exata do direito pretensamente violado (18).
33. Por exemplo, no caso de uma fraude que afeta o valor de certificados financeiros, que, na medida em que constituem ativos desmaterializados, são necessariamente depositados numa conta bancária específica denominada conta de valores mobiliários, o Tribunal de Justiça declarou, no essencial, que os tribunais competentes com base no lugar onde ocorreu o dano são os do domicílio do requerente, quando esta conta bancária é detida por um banco estabelecido na área de competência territorial desses tribunais (19). No entanto, o Tribunal declarou que esta solução não é aplicável quando o requerente alega ter sofrido danos financeiros devido a decisões de investimento tomadas em resultado de informações inexatas, incompletas ou enganosas, facilmente acessíveis a nível mundial, se a empresa que emitiu os instrumentos financeiros em questão não estava sujeita a nenhuma obrigação legal de divulgação no Estado‑Membro da sede do banco ou empresa de investimento onde está registada a conta de valores mobiliários (20).
34. No caso de um alegado dano moral causado por um artigo de imprensa divulgado em vários Estados‑Membros, o Tribunal de Justiça declarou, no Acórdão Shevill, que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor ou nos órgãos jurisdicionais do Estado do lugar de estabelecimento do editor da publicação difamatória, competentes para reparar a integralidade dos danos resultantes da difamação, ou nos órgãos jurisdicionais de cada Estado em que a publicação foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação, competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta (21). Esta última regra de competência tem sido por vezes descrita — particularmente pelos seus críticos — no sentido de que estabelece um princípio de repartição de competência que, por razões práticas, poderá ser designado como a «abordagem mosaico» da competência (22).
35. Posteriormente, no Acórdão eDate, o Tribunal de Justiça foi chamado a apreciar a questão dos conteúdos em linha difamatórios de caráter transnacional. A esse respeito, declarou que essas situações são diferentes das situações offline devido, por um lado, à potencial ubiquidade de qualquer conteúdo em linha e, por outro, à dificuldade de quantificar com certeza e exatidão essa divulgação e, assim, de avaliar o dano exclusivamente causado num Estado‑Membro (23). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça declarou que, quando o sítio Internet que aloja o conteúdo em causa não tomou quaisquer medidas restritivas, o tribunal do lugar onde a alegada vítima tem o centro dos seus interesses deveria ser competente para apreciar o mérito de um pedido de indemnização da integralidade do dano sofrido, uma vez que era neste lugar que o impacto do conteúdo em linha sobre os direitos de personalidade de uma pessoa poderia ser mais bem avaliado (24). Segundo o Tribunal de Justiça, este lugar corresponde, em geral, mas não necessariamente, à sua residência habitual. Todavia, uma pessoa pode ter o centro dos seus interesses igualmente num Estado‑Membro onde não reside habitualmente, na medida em que outros indícios, como o exercício de uma atividade profissional, podem estabelecer a existência de um nexo particularmente estreito com esse Estado (25).
36. Além deste elemento de conexão, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 51 do Acórdão eDate, que o demandante também continuava a ter a possibilidade de intentar uma ação nos tribunais de cada Estado‑Membro em cujo território um conteúdo colocado em linha esteja ou tenha estado acessível. Estes são competentes para conhecer apenas do dano causado no território do Estado‑Membro do tribunal em que a ação foi intentada (26).
37. Assim, na sequência desse acórdão, uma pessoa que considere ser vítima de uma violação de direitos de personalidade em resultado de um ato de difamação cometido na Internet tem legitimidade para intentar uma ação em três foros nos quais os tribunais nacionais em causa terão competência para conhecer da integralidade do dano, designadamente, o domicílio do requerido, o lugar do evento causal — que é o lugar onde foi tomada a decisão de divulgar a mensagem em questão, de forma expressa ou tácita (27) — e o lugar do centro de interesses do requerente. Essa pessoa tem também a possibilidade de intentar uma ação em vários, nomeadamente os vários Estados‑Membros onde a publicação em questão está ou estava acessível, mas pelos quais os tribunais nacionais relevantes só têm competência para apreciar os danos corridos no território do Estado‑Membro em causa.
38. Em três processos subsequentes, a opção de intentar uma ação nos tribunais de cada Estado‑Membro em cujo território o conteúdo colocado em linha está ou estava acessível foi reafirmada e aplicada às violações dos direitos de autor na Internet com o fundamento de que esses tribunais estão em melhor posição, em primeiro lugar, para verificar se esses direitos foram efetivamente violados e, em segundo lugar, para determinar a natureza do dano: Acórdãos Pinckney (28), Hejduk (29) e Hi Hotel HCF (30). Particularmente, no Acórdão Hejduk, o Tribunal de Justiça confirmou esta análise, pese embora, neste processo, não tenha seguido as Conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón, que considerou que tal princípio contribuiria para criar incerteza jurídica para as partes (31). Em cada um destes processos, o Tribunal de Justiça justificou a sua posição com o fundamento de que a proteção dos direitos de autor está normalmente sujeita a um princípio de territorialidade, designadamente, que, na realidade, a legislação dos Estados apenas pune as violações dos direitos de autor cometidas no seu território (32).
39. Por último, no Acórdão Bolagsupplysningen e Ilsjan, o Tribunal de Justiça, numa primeira questão, foi chamado a decidir se a análise constante do Acórdão eDate era aplicável a uma pessoa coletiva que pretendia obter a retificação de um conteúdo alegadamente incorreto publicado num sítio Internet e a supressão dos respetivos comentários num fórum de discussão nesse sítio Internet, bem como uma indemnização pelo dano alegadamente sofrido. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou, relativamente aos pedidos de retificação e de supressão, que a regra de competência para apreciar a integralidade do dano sofrido, que no Acórdão eDate estava estabelecida a favor dos tribunais do Estado‑Membro onde se situa o centro de interesses da vítima, é igualmente aplicável às pessoas coletivas, independentemente da questão de saber se o conteúdo em causa é suscetível de causar danos materiais ou morais (33).
40. Segundo o Tribunal de Justiça, em tal situação, o centro de interesses de uma empresa deve traduzir o local onde a sua reputação comercial está mais estabelecida e, deve, portanto, ser determinado em função do local onde exerce o essencial da sua atividade económica. Neste contexto, embora o centro de interesses de uma pessoa coletiva possa coincidir com o local da sua sede estatuária quando esta exerce, no Estado‑Membro onde essa sede está situada, o conjunto ou o essencial das suas atividades e a reputação de que aí goza seja, por conseguinte, mais importante do que em qualquer outro Estado‑Membro, a localização da referida sede não é, todavia, em si mesma, um critério decisivo no âmbito de tal análise (34).
41. Em resposta a uma segunda questão que visava saber quais eram os tribunais competentes para conhecer de um pedido de retificação ou de supressão de comentários em linha, o Tribunal de Justiça declarou que tal pedido não podia ser apresentado nos tribunais de cada Estado‑Membro, uma vez que, tendo em conta a «natureza ubiquitária dos dados e dos conteúdos colocados em linha num sítio Internet e o facto de o alcance da sua difusão ser em princípio universal […] um pedido de retificação dos primeiros e de supressão dos segundos é uno e indivisível» (35). Segundo o Tribunal de Justiça, tal pedido apenas poderia ser apresentado nos mesmos tribunais que eram competentes para apreciar o mérito da causa tendo em vista a indemnização integral do dano.
42. É nesse contexto que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, tendo em conta as razões invocadas pelo Tribunal de Justiça para justificar a competência exclusiva de certos tribunais em matéria de supressão ou retificação do conteúdo controvertido, seria adequado também reconhecer a competência exclusiva desses mesmos tribunais em matéria de indemnização. Tal suscita implicitamente a questão de saber se, no Acórdão de 17 de outubro de 2017, Bolagsupplysningen e Ilsjan (C‑194/16, EU:C:2017:766), além de simplesmente distinguir a jurisprudência anterior desta forma, o Tribunal de Justiça pretendeu ainda efetuar uma profunda mudança de orientação da sua jurisprudência e, assim, abandonar a abordagem mosaico também no que diz respeito a pedidos de indemnização (36).
43. Em primeiro lugar, devo precisar que, em meu entender, a redação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 não impede o abandono da abordagem mosaico, nem exige a sua manutenção. Com efeito, conforme já foi explicado, esta disposição limita‑se a estabelecer um princípio de competência dos tribunais do lugar onde ocorre o dano, sem mais especificações.
44. Em segundo lugar, considero que é difícil chegar a uma conclusão sobre a abordagem mosaico a partir do Acórdão Bolagsupplysningen e Ilsjan. Ainda que o advogado‑geral M. Bobek tenha expressamente convidado o Tribunal de Justiça a rever a sua jurisprudência, este Tribunal decidiu, no que respeita à primeira questão, única em que poderia ter abordado a problemática da manutenção das competências mosaico em matéria de pedidos de indemnização, formular uma resposta relativamente breve, que apenas dizia respeito aos tribunais nacionais competentes para apreciar as ações de retificação ou de supressão de comentários (37). Na medida em que, para justificar a competência exclusiva de certos tribunais para se pronunciarem sobre ações de retificação ou supressão de conteúdos em linha, o Tribunal de Justiça baseou‑se no caráter uno e indivisível deste tipo de ação, esta resposta não implica necessariamente o abandono da abordagem mosaico no que se refere à ação de indemnização.
45. Por exemplo, o facto de um tribunal nacional decidir, ao abrigo da lei aplicável no Estado‑Membro desse tribunal e tendo em conta, nomeadamente, a natureza e a acessibilidade do conteúdo em questão, bem como a reputação da pessoa em causa nesse Estado‑Membro, que não há lugar a indemnização do requerente pelos danos sofridos no território do mesmo Estado‑Membro, não exclui a possibilidade de um tribunal de outro Estado‑Membro decidir atribuir‑lhe uma indemnização, com base noutra lei e noutras considerações. É perfeitamente possível imaginar situações em que um requerente possa não ter êxito no Estado‑Membro A devido ao facto de que muito provavelmente a publicação só esteve acessível a um número muito limitado de pessoas nesse Estado ou por não ter uma verdadeira reputação a proteger nesse Estado, mas simultaneamente tem sucesso no Estado‑Membro B, onde mais pessoas podem ter lido a publicação em causa ou onde o requerente tem uma maior reputação que foi efetivamente ofendida ou afetada.
46. Uma vez que a legislação em matéria de difamação continua a ser matéria da competência dos Estados‑Membros e não foi harmonizada, é também possível imaginar situações em que determinadas palavras podem ser consideradas difamatórias no Estado‑Membro C, mas não no Estado‑Membro D. Em contrapartida, no caso de ações de retificação ou de supressão do mesmo conteúdo em linha, se vários órgãos jurisdicionais nacionais proferissem decisões em sentidos opostos, as pessoas que gerem o sítio Internet em que o conteúdo em causa é e foi disponibilizado não conseguiriam cumprir em simultâneo essas decisões.
47. É verdade que no n.o 31 do seu Acórdão Bolagsupplysningen e Ilsjan, no qual o Tribunal de Justiça refere a abordagem mosaico, o único precedente mencionado é o Acórdão Shevill. No entanto, tal não me parece ser significativo, uma vez que o Tribunal de Justiça nem sempre cita toda a sua jurisprudência anterior (38).
48. Neste contexto, é muito provável que no Acórdão Bolagsupplysningen e Ilsjan, o Tribunal de Justiça tenha deliberadamente evitado tomar posição sobre a questão de manter, ou não, a abordagem mosaico em matéria de indemnizações (39). Contudo, isto não significa que a questão da adequação dessa solução não deva ser avaliada.
49. Nas Conclusões que apresentou no processo Bolagsupplysningen e Ilsjan, o advogado‑geral M. Bobek considerou que esta abordagem não servia nem os interesses das partes nem o interesse geral. Em apoio deste ponto de vista, apresentou vários argumentos a favor do seu abandono, três dos quais provavelmente relevantes para pedidos de indemnização.
50. Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça não tomou em consideração, quando alargou a solução do Acórdão Shevill aos conteúdos em linha, a especificidade da Internet, nomeadamente, que qualquer conteúdo aí publicado tem um caráter ubiquitário (40). Neste contexto, a aplicação da abordagem mosaico teria por consequência uma multiplicação dos tribunais competentes, o que tornaria difícil para o autor de um conteúdo prever qual seria o tribunal competente em caso de litígio (41).
51. Em segundo lugar, o princípio da competência mosaico acarretaria um risco de fragmentação dos pedidos nos tribunais dos Estados‑Membros que apenas têm competência para conhecer dos danos causados no seu território nacional. Na prática, seria difícil coordenar tais pedidos entre si (42).
52. Em terceiro lugar, a proliferação de regras especiais de competência não serviria para proteger aqueles que são difamados, uma vez que, em todo o caso, estes têm legitimidade para processar os autores do conteúdo injurioso nos foros onde os seus interesses estão centrados, o que lhes será mais fácil. Neste contexto, tal proliferação só poderia servir para incentivar estratégias de assédio judicial (43).
53. Reconheço que estes argumentos têm uma importância considerável, particularmente à luz dos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 1215/2012. Em primeiro lugar, o considerando 21 do referido regulamento precisa que este visa minimizar a possibilidade de intentar processos concorrentes e evitar que sejam proferidas decisões inconciliáveis em Estados‑Membros diferentes. Em segundo lugar, decorre do considerando 15 deste regulamento que as regras de competência devem assegurar a certeza jurídica. Em terceiro lugar, de acordo com o considerando 16, se existirem foros alternativos aos do domicílio do requerido, é porque estes foros têm um vínculo mais estreito com a ação ou para facilitar uma boa administração da justiça.
54. Neste contexto, é tentador argumentar que as soluções adotadas nos Acórdãos Shevill e eDate dizem respeito à interpretação do Regulamento n.o 44/2001 e não do Regulamento n.o 1215/2012 para justificar o abandono de uma abordagem mosaico. Com efeito, no considerando 16 deste último, cuja redação é diferente da redação do considerando 12 do primeiro, sublinha agora a importância do princípio da segurança jurídica nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação, tal aditamento pode sugerir que o legislador da União também pretende alterar aspetos da anterior jurisprudência do Tribunal de Justiça.
55. No entanto, tal interpretação afigura‑se um pouco excessiva. Em minha opinião, este aditamento pode ser entendido como um mero esclarecimento do objetivo prosseguido pelo artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012. Daqui não decorre que a adoção desse regulamento possa ser corretamente entendida no sentido de que sugere que a abordagem mosaico já não corresponde ao estado do direito. Por conseguinte, qualquer abandono desta abordagem corresponderia a uma mudança de orientação da jurisprudência existente.
56. Embora o Tribunal de Justiça não adira a uma doutrina estrita do precedente, qualquer desvio significativo de jurisprudência estabelecida deve ser ‑ e é ‑ ainda assim excecional. No entanto, é verdade que, no passado, o Tribunal de Justiça afastou alguma da sua jurisprudência. Conforme assinalou o Professor F. Picod (44), isto sucedeu, por exemplo, quando se verificou que a interpretação que tinha sido dada a uma disposição conduziu, na prática, a uma regra que não era muito eficaz (45), ou que encontrou forte oposição por parte dos tribunais nacionais responsáveis pela sua aplicação (46), ou que esta interpretação entretanto se tornou obsoleta devido a alguns desenvolvimentos sociais, políticos ou tecnológicos (47) ou era contrária a alguns outros precedentes relativos a outras áreas.
57. No entanto, uma vez que os princípios da proporcionalidade e da segurança jurídica também são aplicáveis ao Tribunal de Justiça, qualquer afastamento de jurisprudência anterior não deve ocorrer sem que exista uma razão séria que o justifique e limitar‑se ao necessário. Além disso, mesmo quando tal razão exista, tal afastamento deve, particularmente, tentar limitar quaisquer efeitos retroativos, respeitando simultaneamente o princípio da res judicata.
58. Assim, no presente processo, coloca‑se a questão de saber se as características (reconhecidamente) problemáticas da abordagem mosaico são de tal modo fundamentais que justificam o seu abandono e, mesmo que assim seja, se o Tribunal de Justiça tem à sua disposição outra abordagem distinta desta abordagem potencialmente abrangente. No entanto, embora reconheça plenamente a força dos argumentos apresentados pelo advogado‑geral M. Bobek nas Conclusões que apresentou no processo Bolagsupplysningen e Ilsjan, não estou convencido de que a jurisprudência posterior ao Acórdão Shevill deva ser objeto de tal mudança de orientação. Digo isto pelas razões enunciadas em seguida.
59. Em primeiro lugar, o caráter ubíquitário de qualquer conteúdo publicado em linha não é novo (48). É verdade que as redes sociais cresceram significativamente desde o Acórdão eDate, proferido em 2011, mas mesmo nessa altura o Facebook já tinha mais de 500 milhões de utilizadores e metade destes acedia‑lhe diariamente (49).
60. Em segundo lugar, os problemas causados pela possibilidade de instaurar processos em vários tribunais devem ser postos em perspetiva. Com efeito, de um ponto de vista estritamente jurídico, o princípio mosaico não causa qualquer problema de coordenação em caso de processos concomitantes. Uma vez que cada tribunal nacional apenas é competente para conhecer dos danos ocorridos no território a que pertence, na falta de harmonização das regras relativas à difamação, é óbvio que cada um aplicará uma legislação diferente, nomeadamente a que é aplicável em cada um desses territórios, os referidos processos não terão o mesmo objeto, que corresponde ao pedido da pessoa interessada, nem a mesma causa de pedir, que se refere, nos termos do direito da União Europeia, à base jurídica desses pedidos (50).
61. De uma perspetiva prática, a aplicação da abordagem mosaico não conduz à atribuição de competência a todos os tribunais dos Estados‑Membros, mas apenas aos tribunais dos Estados‑Membros onde o conteúdo controvertido está acessível (51). Consoante a forma como o conceito de acessibilidade deva ser entendido, que continua a não resultar evidente da jurisprudência do Tribunal de Justiça, nem todos os tribunais de todos os Estados‑Membros serão competentes. Além disso, mesmo quando os tribunais de vários Estados‑Membros forem competentes, isso não significa necessariamente que os danos tenham ocorrido no território dos Estados‑Membros em causa. Conforme já observei, o grau de notoriedade da pessoa singular ou coletiva alegadamente difamada (52), a linguagem utilizada para redigir a publicação em causa, a apresentação (53), o contexto, as referências utilizadas para formular a mensagem e o número de visitantes dos Estados‑Membros em causa que tiveram acesso a esta publicação (54) são elementos que podem levar os tribunais a considerar que a pessoa em causa não sofreu qualquer dano no território em relação ao qual são geograficamente competentes.
62. Neste contexto, na realidade, o problema colocado pelo princípio mosaico parece estar principalmente relacionado com a existência de um risco de assédio judicial. A multiplicação de foros competentes cria um terreno fértil para estratégias de assédio judicial e, particularmente, para ações judiciais estratégicas contra a participação pública (SLAPP, recours bâillon em francês) (55). Uma vez que qualquer ação judicial obriga o demandado a gastar energia e recursos, independentemente do mérito do pedido, com a multiplicação de ações judiciais ou, simplesmente, com a ameaça das mesmas, uma pessoa pode causar danos (ou, tratando‑se de uma empresa, uma desvantagem competitiva resultante do dispêndio de tempo e recursos de gestão) a outra.
63. No entanto, se tais estratégias podem ser proveitosamente utilizadas por alguns requerentes sem escrúpulos, isto deve‑se em parte ao facto de as regras existentes nos Estados‑Membros em matéria de reembolso das despesas judiciais serem frequentemente pouco rigorosas no que respeita à obrigação que incumbe à parte vencida de indemnizar a parte vencedora pelos danos causados, consoante o caso, pela ação ou pelo facto de se ter oposto abusivamente às pretensões do requerente. Com efeito, estas regras nem sempre têm suficientemente em conta os custos indiretos decorrentes da gestão de um processo (designadamente, os custos do desgaste causado pelo litígio), embora, na prática, estes custos possam ser significativos, tanto do ponto de vista económico como imaterial (56). Se estes custos fossem compensados de forma sistemática e melhor, nomeadamente em caso de abuso de processo, os requerentes seriam dissuadidos de abusar do princípio mosaico, uma vez que, caso o seu pedido fosse indeferido, correriam o risco de ter de pagar uma indemnização significativa ao requerido.
64. Além disso, os requeridos podem tomar algumas medidas para se protegerem desse tipo de risco. Por exemplo, em função do contexto, podem intentar uma ação declarativa negativa num tribunal com competência plena (57). Uma vez que esta instância será competente para se pronunciar sobre os danos ocorridos em todo o território da UE, a aplicação das regras de reconhecimento mútuo das decisões, previstas no Regulamento n.o 1215/2012, terá por efeito privar quaisquer outros tribunais da sua competência para se pronunciarem sobre os danos ocorridos no território de um único Estado‑Membro. Em termos mais gerais, as partes têm também a opção, ao abrigo do artigo 30.o do Regulamento n.o 1215/2012, de pedir a suspensão da instância, ou mesmo o seu encerramento, em caso de pedidos conexos, nomeadamente, pedidos que estão tão estreitamente relacionados que há interesse em que sejam instruídos e julgados em conjunto para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente (58). Por conseguinte, particularmente, o autor do alegado conteúdo difamatório não terá de suportar a pressão de ter de gerir vários processos ao mesmo tempo.
65. Mais importante ainda, uma vez que os recursos dos potenciais requerentes não são ilimitados, a implementação de uma estratégia de litigância baseada na multiplicação de ações raramente será vantajosa para os mesmos. Por conseguinte, tais estratégias serão na sua maioria implementadas por agentes económicos com recursos significativos. No entanto, a supressão do princípio mosaico não impedirá que estes implementem este tipo de estratégia. Por exemplo, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o critério do centro de interesses deve ser apreciado relativamente a cada pessoa jurídica(59). Consequentemente, no caso de uma sociedade organizada sob a forma de um grupo de sociedades com denominações sociais semelhantes, a aplicação do critério do centro de interesses significará efetivamente que cada entidade jurídica desse grupo (que não pode ser controlada a 100 % por uma empresa‑mãe) terá o direito de intentar uma ação pelos danos sofridos contra o autor da mensagem perante os tribunais do Estado onde cada uma deles tem o seu centro de interesses (60).
66. Em terceiro lugar, não é efetivamente claro se a abordagem mosaico viola de facto os objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 1215/2012. Com efeito, conforme sublinhado no Acórdão Bolagsupplysningen e Ilsjan, a regra de competência especial em matéria extracontratual estabelecida no artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 não foi concebida para proporcionar uma proteção mais forte à parte mais fraca (61). Por conseguinte, é, em princípio, irrelevante que a aplicação da abordagem mosaico possa eventualmente prejudicar uma das partes.
67. Passando agora mais especificamente aos três objetivos prosseguidos pelas disposições do Regulamento n.o 1215/2012 em matéria de competência, é possível observar, no que respeita ao objetivo de certeza jurídica enunciado no considerando 15 do Regulamento n.o 1215/2012, que o Tribunal de Justiça considera que o mesmo é assegurado se o requerido conseguir determinar, com base no critério utilizado, em que tribunais pode ser demandado. Nesta perspetiva, é possível salientar, conforme sublinha a High Court da Austrália na histórica decisão Dow Jones e Company Inc contra Gutnick, que quando uma pessoa decide publicar na Internet conteúdo que é «acessível» a partir de todos os Estados‑Membros, essa pessoa pode esperar ser processada em cada um destes Estados‑Membros (62).
No entanto, é verdade que, no seu Acórdão de 12 de maio de 2021, Vereniging van Effectenbezitters (C‑709/19, EU:C:2021:377, n.o 34 e segs.), o Tribunal de Justiça parece ter dado alguma prevalência ao objetivo da certeza jurídica sobre qualquer outra consideração, incluindo quanto à redação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012. Com efeito, nesse acórdão, que tinha por objeto ações de indemnização por danos sofridos pelos acionistas devido a falta de informação, o Tribunal de Justiça rejeitou o argumento de que uma sociedade pode esperar ser processada no lugar onde se encontram as contas de títulos dos seus acionistas apenas com o fundamento de que os critérios relativos ao domicílio e localização das contas dos acionistas não permitem à sociedade emitente antecipar a determinação da competência internacional dos tribunais perante os quais poderia ser processada, pois tal seria contrário ao objetivo, referido no considerando 16 do Regulamento n.o 1215/2012, de evitar a possibilidade — a fim de garantir o princípio da certeza jurídica — de o requerido poder ser demandado no tribunal de um Estado‑Membro que não poderia razoavelmente prever.
68. Para o Tribunal de Justiça, o objetivo de previsibilidade exige que, no caso de uma sociedade cotada em bolsa, como a que estava em causa nesse processo, só a competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros nos quais esta sociedade cumpriu, para efeitos da sua cotação na bolsa, as obrigações legais de publicidade pode ser determinada a título da materialização do dano. Por conseguinte, só nestes Estados‑Membros é que essa sociedade pode razoavelmente prever a existência de um mercado de investimento e a sua responsabilização.
69. No entanto, afigura‑se que esta solução não põe indiretamente em causa a abordagem mosaico. Se, por um lado, é possível considerar, ainda que apenas aproximadamente (63), que o mercado de investimento de uma empresa cotada se situa no local da sua cotação, o «mercado» geográfico de uma opinião será determinado pela acessibilidade a essa opinião. Por outro, é possível observar que a solução a que se chegou no Acórdão Vereniging van Effectenbezitters, conjugada com a competência dos tribunais do lugar de emissão das ações, que resulta da competência do domicílio do requerido prevista no artigo 4.o do Regulamento n.o 1215/2012, faz com que seja atribuída competência aos tribunais dos Estados‑Membros cuja legislação será, em princípio, a que é aplicável ao litígio. Neste sentido, esta solução é coerente com o objetivo da boa administração estabelecido no considerando 16 do Regulamento n.o 1215/2012. Em contrapartida, não obstante, é provável que em matéria de difamação seja aplicável a legislação dos vários Estados‑Membros onde a mensagem estará acessível. Na minha opinião, esta é uma diferença crucial, uma vez que, casso a abordagem mosaico tivesse a ser abandonada em matéria de difamação, o requerente pode ser privado da possibilidade de intentar uma ação nos tribunais dos Estados‑Membros onde a mensagem em causa estava acessível e, por conseguinte, nos tribunais que estão em melhor posição para aplicar as diferentes leis aplicáveis e para proceder a todas as avaliações factuais necessárias.
70. Em todo o caso, a abordagem mosaico não se afigura suscetível de conduzir a um resultado menos previsível do que aquele que resulta, por exemplo, da aplicação do critério do centro de interesses da vítima (64). É certo que, no que diz respeito aos operadores não económicos, tal critério pode afigurar‑se simples de aplicar uma vez que corresponde aproximadamente ao lugar onde a vítima tem o seu centro de vida e atividade social. No entanto, a aplicação deste critério parece ser muito mais complexa no caso dos operadores económicos, uma vez que existem pontos de vista distintos sobre o que são os «interesses» de uma empresa (65), conforme ilustrado pela diferença de abordagem entre a primazia dos acionistas e as teorias das partes interessadas (66).
71. Para ultrapassar esta questão, a lógica ditaria que o conceito de «centro de interesses», para uma pessoa coletiva, corresponde ao seu lugar de constituição, uma vez que, particularmente, por um lado, a difamação é um ataque à honra, dignidade e bom nome de uma pessoa (e não dos seus produtos) e, por outro, é nas suas contas financeiras que se materializarão os efeitos de qualquer dano à sua reputação (67). Assim, tal regra teria permitido, em conformidade com o princípio da certeza jurídica, que o autor de qualquer publicação relativa a essa pessoa coletiva previsse o resultado da aplicação deste elemento de conexão, na medida em que a indicação do lugar de residência de um operador económico é fácil de encontrar, uma vez que a sua menção é tornada obrigatória por vários instrumentos de direito da União.
72. No entanto, o Tribunal de Justiça considerou, ao invés, que, «[e]mbora o centro de interesses de uma pessoa coletiva possa coincidir com o local da sua sede estatuária quando esta exerce, no Estado‑Membro onde essa sede está situada, o conjunto ou o essencial das suas atividades e a reputação de que aí goza seja, por conseguinte, mais importante do que em qualquer outro Estado‑Membro, a localização da referida sede não é, todavia, em si mesma, um critério decisivo no âmbito de tal análise» (68). O que importa é o lugar da «preponderância da atividade económica da pessoa coletiva em causa» (69).
73. O conceito de atividade económica de uma empresa é, evidentemente, algo ambíguo. Pode ser entendido pelo menos de duas maneiras, a saber, de uma perspetiva comercial, no sentido de que designa o lugar onde um operador económico realiza a maior parte das suas vendas (sem sequer entrar no debate sobre se o lucro ou o volume de negócios é o indicador relevante a este respeito, uma vez que, em especial para uma empresa que realiza grandes projetos em todo o mundo, isto pode alterar‑se regularmente) (70) ou, de uma perspetiva mais industrial, no sentido de que se refere ao lugar onde os recursos financeiros, humanos e técnicos necessários para a entidade jurídica exercer a sua atividade estão reunidos e são utilizados para produzir os bens ou serviços vendidos (71). Com efeito, é provável que a reputação tenha um impacto nas relações que um operador económico possa ter, não só com os seus clientes mas com todos os seus interlocutores (acionistas, credores, fornecedores, empregados, etc.). Por exemplo, a reputação pode ter um impacto direto na capacidade de uma empresa para angariar fundos nos mercados financeiros (72) ou obter fornecimentos.
74. Além disso, a implementação de tal critério depara‑se necessariamente com outras dificuldades práticas. Com efeito, independentemente da forma como o conceito de atividade económica deva ser entendido, a informação de que o requerido necessita para determinar o tribunal competente está muito provavelmente abrangida, no que respeita aos particulares, pelo Regulamento 2016/679(73) e, no que respeita às empresas, em certa medida, pelo sigilo comercial (74). Por conseguinte, na prática, podemos questionar se, no mínimo, será tão difícil para o requerido prever quais serão os tribunais competentes com base no critério do centro de interesses como com base no princípio mosaico.
75. Em seguida, no que diz respeito ao objetivo de minimizar a possibilidade de processos concorrentes (quer para assegurar uma ligação estreita entre esses tribunais e o litígio, quer para facilitar a boa administração da justiça), até à data o Tribunal de Justiça parece ter considerado que a aplicação de um critério que pode resultar na existência de vários tribunais em diferentes Estados‑Membros com competência em processos deste tipo não constitui um problema, desde que o critério utilizado atribua competência aos tribunais que provavelmente estão melhor posicionados para avaliar os danos ocorridos. Com efeito, tal posição é conforme ao objetivo da boa administração da justiça referido no considerando 16 do Regulamento n.o 1215/2012 que justifica a derrogação da competência dos tribunais do domicílio do requerido (75).
76. É possível observar, por exemplo, que, no n.o 43 do Acórdão de 3 de outubro de 2013, Pinckney (C‑170/12, EU:C:2013:635), após ter referido o objetivo da boa administração da justiça, o Tribunal de Justiça declarou que os tribunais dos vários Estados‑Membros onde o alegado dano é suscetível de ter ocorrido ou de ocorrer têm competência para decidir sobre ações de indemnização por alegada violação de um direito de autor, desde que o Estado‑Membro onde esse tribunal está situado proteja os direitos patrimoniais invocados pelo requerente (76).
77. De igual modo, nos n.os 33 e 34 do seu Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor‑Trans (C‑451/18, EU:C:2019:635), o Tribunal de Justiça concluiu que os tribunais dos vários Estados‑Membros em cujo território se situa o mercado afetado pela infração e onde a vítima alega ter sofrido o dano, devem ser considerados competentes para conhecer das ações de indemnização por danos causados por uma infração nos termos do artigo 101.o TFUE. Em seguida, acrescentou que «[e]sta solução corresponde, com efeito, aos objetivos de proximidade e de previsibilidade das regras de competência, na medida em que, por um lado, os tribunais do Estado‑Membro no qual se situa o mercado afetado são os mais bem colocados para apreciar essas ações de indemnização e, por outro, um operador económico que se dedica a comportamentos anticoncorrenciais pode razoavelmente esperar ser demandado nos tribunais do lugar onde os seus comportamentos falsearam as regras de uma sã concorrência».
78. Por último, nos n.os 56 e 57 do seu Acórdão de 5 de setembro de 2019, AMS Neve e o. (C‑172/18, EU:C:2019:674), o Tribunal de Justiça declarou pela primeira vez que os tribunais dos vários Estados‑Membros em cujo território se encontram os consumidores ou os profissionais visados pelos anúncios ou ofertas de venda devem ser considerados competentes para conhecer das ações de contrafação, antes de especificar que esta solução é «corroborada» pelo facto de esses tribunais estarem particularmente aptos para decidir devido à proximidade do litígio e à facilidade de administração das provas.
79. Neste contexto, não só não estou convencido de que a abordagem mosaico seja contrária aos objetivos do Regulamento n.o 1215/2012, como também não estou convencido de que a utilização de um dos outros elementos de conexão que justifiquem uma «regra de competência única» (como o domicílio do requerido, o lugar da ocorrência do evento causal ou o centro de interesses) seja suscetível de levar à designação de tribunais que estão necessariamente em melhor posição para avaliar a natureza difamatória ou não difamatória de um conteúdo, bem como a extensão do respetivo dano.
80. É evidente que haverá vários casos em que o caráter difamatório de um conteúdo dificilmente suscitará dúvidas. No entanto, isto não deve escamotear o facto de o caráter difamatório de um conteúdo poder ser entendido de forma diferente de um Estado‑Membro para outro. Por exemplo, se um artigo imputar falsamente certas práticas comerciais ou fiscais abusivas a uma determinada empresa, a mensagem transmitida por essa publicação pode ser entendida de forma distinta e, por conseguinte, pode ter um impacto diferente num Estado‑Membro em comparação com outro (77).
81. Além deste problema clássico do discurso intercultural (que explica, por exemplo, a razão pela qual as empresas desenvolvem diferentes estratégias de marketing de um Estado‑Membro para outro), a falta de harmonização da legislação em matéria de difamação tende a justificar a manutenção do princípio mosaico. É verdade que todos os Estados‑Membros promulgaram legislação antidifamação, mas o conteúdo destas legislações, o seu modo de aplicação e, não menos importante, a forma como os danos são quantificados, podem variar significativamente de um Estado‑Membro para outro, refletindo frequentemente divergências profundas na cultura jurídica aplicável (78).
82. Por conseguinte, como a Comissão assinala, um requerente pode ter um interesse legítimo em recorrer a um tribunal diferente do tribunal do seu centro de interesses, mesmo que isso limite o montante da indemnização que pode obter. Em primeiro lugar, uma vez que as violações da vida privada e dos direitos de personalidade estão excluídas do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 864/2007, a legislação aplicável será determinada de acordo com as regras de direito internacional privado aplicáveis no Estado‑Membro de cada tribunal competente, as quais podem variar substancialmente (79). Por outro lado, um operador económico pode pretender recorrer aos tribunais dos Estados‑Membros onde tenta desenvolver as suas atividades económicas em vez de naqueles onde já goza de uma sólida reputação, precisamente porque a sua reputação já o protege contra os atos da mais grosseira difamação ou porque pode ter a expectativa de beneficiar de uma decisão proferida nesse mercado, com base no pressuposto de que, de um modo geral, é dada maior cobertura mediática nesse Estado‑Membro do que uma decisão proferida pelos tribunais do Estado‑Membro onde está localizado o seu centro de interesses (80).
83. Considerar, como parecem fazer os opositores da abordagem mosaico, que seria preferível concentrar todos os pedidos de indemnização num único tribunal, tende a ignorar o facto de que nem a legislação dos Estados‑Membros relativa à difamação, nem mesmo as regras para determinar a legislação aplicável, se encontram atualmente harmonizadas.
84. Com efeito, na falta de harmonização nestes domínios, os tribunais que gozam de competência exclusiva para decidir sobre a totalidade do dano terão de aplicar a legislação de cada um dos Estados‑Membros onde o alegado dano é suscetível de ter ocorrido para se pronunciarem sobre qualquer pedido de indemnização. Isto significa que, em princípio, terão de ter em consideração, para cada um destes Estados‑Membros, a legislação aplicável, a reputação da vítima nesse mesmo território, bem como a perceção da mensagem por parte do público desses Estados (81).
85. Neste contexto, poderá realmente considerar‑se que um único tribunal num determinado (ou determinável) Estado‑Membro com competência plena estaria mais bem colocado para proceder a tal avaliação (82)? Não deveria antes considerar‑se que a existência de uma pluralidade de foros competentes é a consequência inexorável do direito de que gozam os requerentes, de acordo com o princípio da subsidiariedade, de que o seu litígio seja decidido pelos tribunais que, por serem os que estão mais próximos do território de cada um dos Estados‑Membros, são os mais aptos para efetuar todas as avaliações factuais, juntamente com o facto de as leis de difamação de cada Estado‑Membro serem diversas e culturalmente sensíveis às tradições jurídicas distintas de cada um desses Estados (83)?
86. É claro que o objetivo da previsibilidade também deve ser tido em conta, mas, em meu entender, foi precisamente após ponderar este objetivo com o da boa administração da justiça que o Tribunal de Justiça passou a apoiar a abordagem mosaico (84).
87. Por último, antes de abandonar a abordagem mosaico, seria em todo o caso necessário assegurar que não existem outras soluções menos abrangentes do que uma mudança de orientação tão profunda da jurisprudência. De facto, a este respeito, seria menos radical simplesmente conjugar a abordagem mosaico com o que pode ser denominado «critério da focalização», conforme previsto pela legislação da União em determinados domínios (85).
88. Segundo este critério, para que os tribunais de um Estado‑Membro sejam competentes, o conteúdo em questão não deve estar simplesmente acessível através da Internet, a publicação deve também ter sido especificamente direcionada para o território do Estado‑Membro em causa. Se este critério fosse aplicado, contribuiria para garantir que apenas os tribunais dos Estados‑Membros aos quais a publicação era especificamente direcionada poderiam assumir a competência com base no artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012. Tal tornaria possível, em conformidade com os objetivos prosseguidos por esta disposição, reduzir o número de tribunais competentes e assegurar uma certa segurança jurídica, garantindo ao mesmo tempo que há uma ligação estreita entre os tribunais e o litígio e, por conseguinte, garantindo uma adequada administração da justiça.
89. É certo que o Tribunal de Justiça rejeitou de forma geral a aplicação do critério da focalização no que diz respeito à aplicação do artigo 7.o, n.o 2, com o fundamento de que, ao contrário do artigo 15.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 44/2001 (atual artigo 17.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1215/2012), o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001 (atual artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012) não exige que a atividade em causa seja «dirigida» ao Estado‑Membro do tribunal onde a ação foi intentada (86).
90. No entanto, é possível salientar, em primeiro lugar, que o facto de o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 não prever a aplicação de tal condição não significa que esta circunstância não seja relevante, em certas situações específicas, para determinar o lugar onde ocorreu o dano. É possível observar, por exemplo, que, no n.o 42 do Acórdão Bolagsupplysningen e Ilsjan, o Tribunal de Justiça refere que o sítio Internet em causa se destinava a ser compreendido pelos residentes de um determinado Estado‑Membro, o que sugere que, segundo o Tribunal de Justiça, pelo menos em matéria de difamação, os mercados de Estados‑Membros específicos devem ser tidos em conta na determinação da competência.
91. Em segundo lugar, no que diz respeito às infrações de marcas registadas, o artigo 97.o, n.o 5, do Regulamento (CE) n.o 207/2009 (87) — que estabelece uma regra de competência derrogatória para a violação de marcas registadas ‑ não prevê qualquer condição que exija que, para que os tribunais de um Estado‑Membro sejam competentes, o sítio Internet em causa direcione as suas atividades para esse Estado‑Membro. Não obstante, para determinar a competência em tais casos, o Tribunal de Justiça teve em consideração, recentemente e de forma expressa, o facto de os conteúdos em linha em causa — anúncios e ofertas de venda — não só estarem acessíveis aos consumidores de determinados Estados‑Membros mas também se destinarem aos mesmos (88).
92. Em terceiro lugar, no que respeita à difusão de programas de televisão, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») considerou, após apreciar o conteúdo do Regulamento n.o 44/2001, que a Suécia tinha violado o artigo 6.o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem com o fundamento de que, quando um programa de televisão, apesar de acessível fora da Suécia, tenha sido produzido para o público sueco, este Estado deveria ter facultado a uma pessoa que alegou ter sido difamada por esse programa o acesso efetivo aos seus tribunais (89). Por conseguinte, afigura‑se que, segundo o TEDH, os Estados devem prever a possibilidade de as pessoas difamadas intentarem uma ação nos seus tribunais desde que a mensagem seja dirigida aos seus residentes.
93. Assim, à luz do exposto, é possível considerar que a utilização do critério da focalização possivelmente constituiria uma alteração menos radical na jurisprudência do Tribunal de Justiça do que simplesmente rejeitar ou abandonar a abordagem mosaico. Teria também o mérito de evitar a assunção de competência pelos tribunais de outro Estado‑Membro onde apenas existia uma conexão ténue entre a publicação na Internet em causa e qualquer alegado dano sofrido pelo requerente daí resultante ou onde o requerente procura oportunisticamente tirar partido do aspeto técnico de a publicação ser efetuada através da Internet, a fim de garantir um lugar mais favorável para o seu processo. Além disso, a aplicação de tal critério, que não é expressamente excluída pela redação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012, pode perfeitamente equivaler a um melhor equilíbrio entre o objetivo de proximidade e o objetivo de reduzir o número de tribunais competentes (90).
94. Por conseguinte, em resumo, há que reconhecer que é inútil tentar encontrar uma solução perfeita em caso de difamação transnacional. A experiência assim o tem demonstrado. Há dificuldades tanto com a abordagem mosaico como com a abordagem «jurisdição única». No entanto, desde o Acórdão Shevill, proferido em 1991, o Tribunal de Justiça optou, em geral, pela abordagem mosaico. Em meu entender, não é possível afirmar que esta abordagem é de tal forma errada ou insatisfatória que a jurisprudência baseada na mesma deva agora ser rejeitada ou afastada.
95. Em todo o caso, considero que o presente processo não é o processo adequado para o Tribunal de Justiça tomar uma posição sobre a questão de saber se a abordagem mosaico deve, ou não, ser mantida, aperfeiçoada ou mesmo abandonada. Com efeito, no processo principal, o requerente não alega que os conteúdos em causa constituem atos de difamação, mas sim que violam a legislação francesa relativa a atos de «depreciação», a qual constitui uma forma de falsidade dolosa (91). Além disso, afigura‑se que o órgão jurisdicional de reenvio não questiona esta classificação (92).
96. De acordo com o direito francês, a depreciação não está abrangida pelo âmbito da violação dos direitos de personalidade, inserindo‑se sim nas regras da concorrência desleal (93). Particularmente, segundo o direito francês, a depreciação distingue‑se daquela, na medida em que esta exige que a crítica seja suscetível de prejudicar a honra, a dignidade ou o bom nome de uma pessoa singular ou coletiva, ao passo que a depreciação consiste em desacreditar publicamente os produtos de um operador económico, quer sejam ou não concorrentes, com vista a influenciar os hábitos de compra dos clientes (94).
97. É certo que estas características específicas do direito francês não têm qualquer influência em si mesmas na forma como o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado. Contudo, o facto de o requerente optar por invocar essa qualificação em vez da qualificação de um ato de difamação significa, implícita mas necessariamente, que o dano invocado tem um caráter estritamente económico (95).
98. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, em caso de violação dos direitos económicos conferidos pelas legislações de diferentes Estados‑Membros, os tribunais desses Estados‑Membros são competentes para apreciar os danos causados no território dos seus Estados‑Membros, na medida em que estes tribunais estão em melhor posição para avaliar se esses direitos foram efetivamente violados e para determinar a natureza dos danos (96).
99. Particularmente, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma ação relativa a uma infração em matéria de concorrência desleal pode ser intentada nos tribunais de qualquer Estado‑Membro onde esse ato tenha causado ou possa causar danos na competência do tribunal demandado (97). Mais precisamente, quando o mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial se localiza no Estado‑Membro em cujo território o alegado dano supostamente ocorreu, há que considerar que o lugar da materialização do dano, para efeitos da aplicação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012, se localiza nesse Estado‑Membro (98).
100. Na medida em que, no caso de um ato de depreciação, os mercados suscetíveis de ser afetados são aqueles onde, por um lado, os serviços objeto de depreciação são comercializados e, por outro, a mensagem depreciativa estava acessível, entendo que, no processo principal, os tribunais franceses devem ser considerados competentes se a Gtflix Tv tiver efetivamente um número significativo de clientes residentes em França e se as mensagens em causa foram publicadas em francês ou inglês, na medida em que o número de pessoas que compreendem estas línguas nesse Estado‑Membro não pode ser considerado insignificante(99).
101. Esta solução é conforme aos objetivos de proximidade e de boa administração da justiça prosseguidos pelo Regulamento n.o 1215/2012, referido no seu considerando 16. Com efeito, os tribunais competentes nos termos do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012, nomeadamente, nas circunstâncias em causa no processo principal, os tribunais do domicílio de cada cliente que possa ter acedido e compreendido as publicações em questão, devem ser considerados os mais aptos para apreciar se um ato de depreciação produziu realmente o efeito de alterar o seu comportamento (100). É igualmente conforme à exigência de previsibilidade, uma vez que qualquer empresa deve prever, quando se refere a um concorrente em termos de conteúdo público, a possibilidade de ser processada nos tribunais dos vários Estados‑Membros onde esse conteúdo está ou estava acessível e onde esse concorrente tinha clientes.
102. Por último, e acima de tudo, esta solução é corroborada pela exigência de coerência entre a interpretação da regra de competência e os instrumentos que regem a lei aplicável nos termos do considerando 7 do Regulamento Roma II (101). Na realidade, embora as regras de conflito de leis aplicáveis à difamação não estejam harmonizadas, o Regulamento Roma II unifica em todo o caso as regras de conflito de leis relativas à concorrência desleal (102).
103. No que diz respeito aos atos de concorrência desleal que afetam os interesses de um determinado concorrente, como sucede no processo principal, o artigo 6.o, n.o 2, do Regulamento Roma II prevê a aplicação da regra geral estabelecida no artigo 4.o do regulamento (103), nomeadamente, a lei do país onde ocorre o dano (104).
104. Tendo em consideração o exposto, considero que os tribunais franceses serão competentes se se demonstrar que a Gtflix Tv tem um número significativo de clientes em França que provavelmente têm acesso e compreendem a publicação ou publicações em causa. A verificação destes factos incumbe ao tribunal nacional.
V. Conclusão
105. Uma vez que um pedido de retificação de dados e de supressão de determinados conteúdos só pode ser intentado nos tribunais do domicílio do demandado, ou nos do local do evento causal, ou naqueles em que o centro de interesses do demandante está situado, proponho que a resposta à questão prejudicial seja a seguinte:
O artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial deve ser interpretado no sentido de que um demandante que invoca um ato de concorrência desleal que consiste na difusão de afirmações depreciativas na Internet e que pretende obter a retificação de dados e a supressão de determinados conteúdos, bem como a indemnização pelos danos morais e económicos daí resultantes, pode intentar a ação, nos tribunais de cada Estado‑Membro em cujo território o conteúdo está ou esteve acessível em linha, apenas para indemnização dos danos causados no território desse Estado‑Membro. No entanto, para que esses tribunais sejam competentes é necessário que o demandante possa demonstrar que tem um número significativo de consumidores nessa ordem jurídica que provavelmente tenham acesso e compreendam a publicação em causa.