Language of document : ECLI:EU:T:2023:67

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção)

15 de fevereiro de 2023 (*)

«Energia — Competência da ACER — Saída do Reino Unido da União — Erro de direito — Artigo 2.o, ponto 1, do Regulamento (UE) 2019/943 — Artigo 92.o do Acordo de Saída — Regime de isenção ad hoc do artigo 308.o e do anexo 28.o do Acordo de Comércio e Cooperação»

No processo T‑492/21,

Aquind Ltd, com sede em Londres (Reino Unido),

Aquind Energy Sàrl, com sede no Luxemburgo (Luxemburgo),

Aquind SAS, com sede em Rouen (França),

representadas por S. Goldberg, solicitor, e E. White, advogado,

recorrentes,

contra

Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER), representada por P. Martinet e E. Tremmel, na qualidade de agentes, assistidos por B. Creve, advogado,

recorrida,

apoiada pelo

Parlamento Europeu, representado por A. Tamás e O. Denkov, na qualidade de agentes,

e pelo

Conselho da União Europeia, representado por A. Lo Mónaco, L. Vétillard e É. Sitbon, na qualidade de agentes,

intervenientes,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção),

composto, na deliberação, por: V. Tomljenović, presidente, P. Škvařilová‑Pelzl e I. Nõmm (relator), juízes,

secretária: I. Kurme, administradora,

vistos os autos,

após a audiência de 24 de outubro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso, interposto ao abrigo do artigo 263.o TFUE, as recorrentes, Aquind Ltd, Aquind Energy Sàrl e Aquind SAS, pedem a anulação da Decisão da Câmara de Recurso da Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER), de 4 de junho de 2021, que diz respeito a um pedido de isenção relativo a uma interligação elétrica entre as redes de transporte de eletricidade do Reino Unido e de França (a seguir «decisão impugnada»).

 Antecedentes do litígio

2        A Aquind Ltd é uma sociedade anónima constituída no Reino Unido. É a promotora de um projeto de interligação elétrica que liga as redes de transporte de eletricidade do Reino Unido e de França (a seguir «interligação Aquind»).

3        Em 17 de maio de 2017, a Aquind Ltd apresentou um pedido destinado a obter uma isenção para a interligação Aquind a título do artigo 17.o do Regulamento (CE) n.o 714/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, relativo às condições de acesso à rede para o comércio transfronteiriço de eletricidade e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1228/2003 (JO 2009, L 211, p. 15). Este pedido foi submetido às autoridades reguladoras nacionais francesa, a Commission de régulation de l’énergie (CRE), e do Reino Unido, o Office of Gas and Electricity Markets (OFGEM, Instituto dos Mercados do Gás e da Eletricidade).

4        Não tendo as autoridades reguladoras nacionais chegado a acordo sobre o pedido de isenção, transmitiram este pedido, respetivamente, em 29 de novembro e em 19 de dezembro de 2017, à ACER em conformidade com o artigo 17.o, n.o 5, do Regulamento n.o 714/2009, para que esta última tomasse ela própria a decisão.

5        Por Decisão de 19 de junho de 2018, a ACER indeferiu o pedido de isenção para a interligação Aquind (a seguir «Decisão da ACER»).

6        Em 17 de agosto de 2018, a Aquind Ltd interpôs recurso desta decisão na Câmara de Recurso da ACER (a seguir «Câmara de Recurso»).

7        Através de Decisão de 17 de outubro de 2018, a Câmara de Recurso confirmou a Decisão da ACER e indeferiu, assim, o pedido de isenção para a interligação Aquind.

8        Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal Geral em 14 de dezembro de 2018, a Aquind Ltd impugnou essa decisão. Por Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), o Tribunal Geral anulou a referida decisão.

9        Em 5 de fevereiro de 2021, a Câmara de Recurso retomou o processo relativo ao recurso interposto pela Aquind Ltd da Decisão da ACER.

10      Em 19 de maio de 2021, realizou‑se uma audiência na Câmara de Recurso.

11      Em 4 de junho de 2021, a Câmara de Recurso adotou a decisão impugnada, na qual declarou o recurso inadmissível com o fundamento de que, na sequência do Brexit, já não tinha competência para decidir no âmbito do processo relativo ao pedido de isenção para a interligação Aquind.

 Pedidos das partes

12      As recorrentes concluem pedindo que o Tribunal Geral se digne:

—        anular a decisão impugnada;

—        condenar a ACER nas despesas.

13      A ACER, apoiada neste sentido pelo Parlamento Europeu, conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

—        negar provimento ao recurso;

—        condenar as recorrentes nas despesas.

14      O Conselho da União Europeia pede, em substância, que seja negado provimento ao recurso.

 Questão de direito

15      As recorrentes invocam dois fundamentos de recurso. O primeiro fundamento é relativo ao facto de a Câmara de Recurso ter cometido um erro ao declarar‑se incompetente na sequência do Brexit e ao julgar inadmissível o recurso que lhe foi submetido. O segundo fundamento é relativo à violação das exigências do artigo 25.o, n.o 3, e do artigo 28.o, n.o 4, do Regulamento (UE) 2019/942 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de junho de 2019, que institui a Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (JO 2019, L 158, p. 22), bem como de várias disposições da Decisão n.o 1‑2011 da Câmara de Recurso, adotada em 1 de dezembro de 2011, que estabelece as suas regras de organização e de processo.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo a um erro de direito cometido pela Câmara de Recurso ao declararse incompetente na sequência do Brexit

16      No âmbito do primeiro fundamento, as recorrentes alegam que, apesar do Brexit, a Câmara de Recurso continuava a ser competente para apreciar novamente a Decisão da ACER após a anulação, pelo Tribunal Geral, da sua Decisão de 17 de outubro de 2018. Com efeito, sustentam que, em aplicação do artigo 266.o TFUE, a referida câmara estava obrigada a adotar uma nova decisão correspondente à que teria adotado se não tivesse cometido os erros identificados pelo Tribunal Geral e sublinham que a competência da Câmara de Recurso decorre diretamente dos artigos 19.o e 20.o do Regulamento (CE) n.o 713/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que institui a Agência de Cooperação dos Reguladores da Energia (JO 2009, L 211, p. 1), a saber, atualmente, os artigos 28.o e 29.o do Regulamento 2019/942, e da existência de um recurso pendente.

17      As recorrentes sublinham igualmente que, a fim de tomar as medidas necessárias à execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), em aplicação do artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento n.o 713/2009 e do artigo 29.o do Regulamento 2019/942, a Câmara de Recurso deveria ter corrigido os erros cometidos ao alterar a Decisão da ACER com base nos seus poderes detidos à data e no procedimento então aplicável, a fim de suprimir a ilegalidade constatada no referido acórdão. Consideram que, à semelhança dos recursos ao abrigo do artigo 263.o TFUE, a admissibilidade do recurso na Câmara de Recurso deve ser apreciada em função da situação tal como se apresentava no momento em que o recurso foi interposto e alegam que a Decisão da ACER e o recurso desta na Câmara de Recurso são anteriores à entrada em vigor do Regulamento 2019/942 e do Brexit.

18      A ACER, apoiada pelo Parlamento, pede que este fundamento seja julgado improcedente.

19      Importa recordar que, por força do artigo 266.o TFUE, a instituição, o órgão ou o organismo de que emane o ato anulado deve tomar as medidas necessárias à execução do acórdão que anulou esse ato. O Tribunal de Justiça declarou a este respeito que, para dar cumprimento ao acórdão e executá‑lo plenamente, a instituição, o órgão ou o organismo em causa era obrigado a respeitar não só a parte decisória desse acórdão mas também a motivação que a ela conduziu e que constitui o seu fundamento necessário, uma vez que é indispensável para determinar o sentido exato do que tinha sido estabelecido na parte decisória (Acórdão de 26 de abril de 1988, Asteris e o./Comissão, 97/86, 99/86, 193/86 e 215/86, EU:C:1988:199, n.o 27).

20      No entanto, previamente à adoção destas medidas pela instituição, pelo órgão ou pelo organismo de que emana o ato anulado, coloca‑se a questão da competência destes, uma vez que apenas podem agir dentro dos limites da sua competência de atribuição (v., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2016, Comissão/McBride e o., C‑361/14 P, EU:C:2016:434, n.o 36 e jurisprudência referida).

21      Além disso, o dever de agir que resulta do artigo 266.o TFUE não constitui uma fonte de competência para a instituição, o órgão ou o organismo em causa nem lhes permite fundar‑se numa base jurídica que foi entretanto revogada (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de junho de 2016, Comissão/McBride e o., C‑361/14 P, EU:C:2016:434, n.o 38, e de 29 de abril de 2020, Tilly‑Sabco/Conselho e Comissão, T‑707/18, não publicado, EU:T:2020:160, n.o 44).

22      Com efeito, o dever de agir resultante do artigo 266.o TFUE não dispensa a instituição, o órgão ou o organismo em causa da necessidade de fundamentar o ato que contém as medidas necessárias à execução do acórdão de anulação numa base jurídica que o habilite a adotar esse ato, por um lado, e que esteja em vigor à data da adoção do referido ato, por outro (Acórdão de 19 de junho de 2019, C & J Clark International, C‑612/16, não publicado, EU:C:2019:508, n.o 40).

23      Por conseguinte, o primeiro passo consiste em determinar se uma instituição, um órgão ou um organismo é competente para agir e, em caso afirmativo, qual a disposição específica de direito da União Europeia em que se baseia essa competência. Só depois é que se podem identificar as regras substantivas e processuais concretas que regulam a atuação dessa instituição. No entanto, se à data em que uma instituição, um órgão ou um organismo da União pretende adotar uma determinada decisão não estiver em vigor uma base jurídica válida, não é possível invocar os princípios que regulam a sucessão de normas no tempo para justificar a aplicação de disposições substantivas que eram anteriormente aplicáveis a atos adotados no passado (Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Comissão/McBride e o., C‑361/14 P, EU:C:2016:25, n.o 86; v., igualmente, neste sentido, Acórdão de 25 de outubro de 2007, SP e o./Comissão, T‑27/03, T‑46/03, T‑58/03, T‑79/03, T‑80/03, T‑97/03 e T‑98/03, EU:T:2007:317, n.o 117).

24      À luz desta jurisprudência, importa verificar se, posteriormente à prolação do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), a Câmara de Recurso podia fundamentar o ato que contém as medidas necessárias à execução do referido acórdão numa base jurídica que a habilitava a adotar esse ato, por um lado, e que estava em vigor à data da adoção do referido ato, por outro.

25      Isso implica determinar, no caso em apreço, em que poderiam consistir as medidas contidas no Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542).

26      A este respeito, importa recordar que a Aquind Ltd tinha apresentado à CRE e ao OFGEM um pedido destinado a obter uma isenção à interligação Aquind ao abrigo do artigo 17.o do Regulamento n.o 714/2009. Na falta de acordo entre estas duas autoridades reguladoras nacionais, o pedido de isenção tinha sido transmitido à ACER em conformidade com o artigo 17.o, n.o 5, do Regulamento n.o 714/2009.

27      Por Decisão da ACER de 19 de junho de 2018, o pedido de isenção para a interligação Aquind foi indeferido. A ACER considerou que a Aquind Ltd não preenchia uma das condições necessárias à obtenção de uma isenção, a saber, a prevista no artigo 17.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 714/2009, segundo a qual o nível de risco associado ao investimento deve ser tal, que o investimento não se realizaria se não fosse concedida uma isenção. Através da Decisão de 17 de outubro de 2018, a Câmara de Recurso confirmou a Decisão da ACER e indeferiu o pedido de isenção para a interligação Aquind.

28      Por Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), o Tribunal Geral anulou a Decisão da Câmara de Recurso de 17 de outubro de 2018, considerando, por um lado, que esta apenas tinha efetuado uma fiscalização restrita da Decisão da ACER e, por outro, que tinha criado uma condição suplementar, não prevista pela regulamentação, para a concessão de isenções para as novas interligações, exigindo a apresentação prévia de um pedido de apoio financeiro para os investimentos ligados a um projeto de interesse comum antes da apresentação de um pedido de isenção.

29      Tendo em conta o Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), as medidas que a sua execução poderia incluir consistem numa nova fiscalização, pela Câmara de Recurso, da Decisão da ACER, não limitada ao erro manifesto de apreciação, assegurando simultaneamente que o erro constatado pelo Tribunal Geral, que assenta na exigência da apresentação prévia de um pedido de apoio financeiro, não é repetido ao apreciar a condição do nível de risco associado ao investimento.

30      A este respeito e contrariamente ao que sustentam as recorrentes, essas medidas não podem consistir na adoção oficiosa de uma decisão que lhes conceda a isenção solicitada. Com efeito, não resulta do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), que o Tribunal Geral considerou que a condição relativa a um nível de risco associado ao investimento, prevista no artigo 17.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 714/2009, estava preenchida e que a Câmara de Recurso era obrigada a adotar uma nova decisão que autorizasse a isenção.

31      Estando identificado o tipo de medidas que a execução do acórdão de anulação implica, há que determinar se existia à data da adoção da decisão impugnada, a saber, 4 de junho de 2021, uma base jurídica em vigor que habilitasse a Câmara de Recurso a adotar um ato que contenha este tipo de medidas.

32      A este respeito, importa especificar que as disposições relativas à base jurídica e ao procedimento seguido até à adoção da decisão impugnada constituem regras processuais (v., neste sentido, Acórdãos de 29 de março de 2011, ThyssenKrupp Nirosta/Comissão, C‑352/09 P, EU:C:2011:191, n.o 90; de 12 de setembro de 2007, González y Díez/Comissão, T‑25/04, EU:T:2007:257, n.o 60, e de 31 de março de 2009, ArcelorMittal Luxembourg e o./Comissão, T‑405/06, EU:T:2009:90, n.o 67). Ora, é jurisprudência constante que as regras processuais são geralmente aplicáveis na data em que entram em vigor (v. Acórdão de 26 de março de 2015, Comissão/Moravia Gas Storage, C‑596/13 P, EU:C:2015:203, n.o 33 e jurisprudência referida).

33      No caso em apreço, quando o Tribunal Geral anulou a Decisão da Câmara de Recurso de 17 de outubro de 2018 e esta teve, portanto, de examinar novamente a Decisão da ACER, a base jurídica que a habilita a examinar os recursos de decisões da ACER, incluindo as decisões em matéria de isenção, figurava no artigo 28.o do Regulamento 2019/942. Com efeito, o Regulamento 2019/942 substituiu o Regulamento n.o 713/2009 e entrou em vigor em 4 de julho de 2019, ou seja, antes da adoção da decisão impugnada. Assim, as disposições do artigo 28.o do Regulamento 2019/942 eram, em princípio, aplicáveis ao caso em apreço (v., neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2022, BNetzA/ACER, T‑631/19, EU:T:2022:509, n.os 21 e 81). Quanto à ACER, a base jurídica que a habilita a adotar uma decisão sobre um pedido de isenção figurava no artigo 10.o do Regulamento 2019/942 e no artigo 63.o, n.o 5, do Regulamento (UE) 2019/943 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de junho de 2019, relativo ao mercado interno da eletricidade (JO 2019, L 158, p. 54).

34      Todavia, estas disposições que habilitam a ACER a examinar um pedido de isenção relativo a uma interligação e as que habilitam a Câmara de Recurso a apreciar a Decisão da ACER sobre o referido pedido só podem ser aplicadas na hipótese em que, como previsto no artigo 2.o, ponto 1, do Regulamento 2019/943, bem como, de resto, no artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 714/2009, a linha de transporte atravessa ou transpõe uma fronteira entre Estados‑Membros e liga as redes de transporte nacionais dos Estados‑Membros.

35      Em contrapartida, os Regulamentos 2019/942 e 2019/943 não habilitam a ACER a examinar um pedido de isenção relativo a uma interligação entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro nem, a fortiori, conferem à Câmara de Recurso a competência para apreciar a Decisão da ACER sobre esse pedido.

36      Ora, na sequência do Brexit, o projeto de interligação Aquind diz agora respeito a uma interligação entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro. Isso tem por consequência que nem a ACER nem a Câmara de Recurso estavam em condições de fundamentar um ato que contivesse as medidas necessárias à execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), na base jurídica que, inicialmente, as habilitava a adotar esse ato.

37      Tendo em conta esta conclusão, importa determinar se a ACER e a Câmara de Recurso podiam fundamentar um ato que continha as medidas de execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), numa base jurídica diferente da que figura nos Regulamentos 2019/942 e 2019/943.

38      A este respeito, a relação entre a União e o Reino Unido rege‑se pelas disposições do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 7, a seguir «Acordo de Saída») e do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro (JO 2021, L 149, p. 10, a seguir «ACC»).

39      Em primeiro lugar, no que respeita ao Acordo de Saída, o seu artigo 92.o, sob a epígrafe «Procedimentos administrativos em curso», prevê, no seu n.o 1, o seguinte:

«As instituições, órgãos e organismos da União continuam a ser competentes para os procedimentos administrativos que tenham sido iniciados antes do termo do período de transição relativamente: a) Ao respeito do direito da União pelo Reino Unido, ou por pessoas singulares ou coletivas residentes ou estabelecidas no Reino Unido; ou b) a observância do direito da União em matéria de concorrência no Reino Unido.»

40      O artigo 92.o, n.o 4, do Acordo de Saída dispõe que a União transmite ao Reino Unido, no prazo de três meses após o termo do período de transição, uma lista de todos os procedimentos administrativos individuais em curso abrangidos pelo âmbito de aplicação do n.o 1.

41      Antes de mais, uma disposição cujo sentido é claro e desprovido de ambiguidade não exige nenhuma interpretação (Acórdãos de 25 de novembro de 2009, Alemanha/Comissão, T‑376/07, EU:T:2009:467, n.o 22, e de 13 de julho de 2018, Société générale/BCE, T‑757/16, EU:T:2018:473, n.o 33). Ora, uma simples leitura do artigo 92.o, n.o 1, do Acordo de Saída permite concluir que o seu âmbito de aplicação não abrange os procedimentos administrativos que dizem respeito aos pedidos de isenção para interligações, nos termos do artigo 63.o do Regulamento 2019/943. Com efeito, o artigo 92.o do Acordo de Saída só atribui competência às instituições, aos órgãos e aos organismos da União em determinados procedimentos administrativos que ponham em causa as instituições, os órgãos e os organismos do Reino Unido ou as pessoas singulares ou coletivas residentes ou estabelecidas no Reino Unido relativamente ao respeito do direito da União. As instituições, os órgãos e os organismos da União continuam, assim, a ser competentes para investigar e, se for caso disso, sancionar essas instituições, esses órgãos e esses organismos do Reino Unido e as pessoas singulares ou coletivas aí residentes ou que aí estejam estabelecidas quando tenha sido iniciado um procedimento antes do termo do período de transição.

42      Em seguida, e a este respeito, a Comissão confirmou à Câmara de Recurso, por mensagem de correio eletrónico de 10 de maio de 2021, que o procedimento administrativo relativo ao presente processo não figurava na lista dos procedimentos administrativos, elaborada em aplicação do artigo 92.o, n.o 4, do Acordo de Saída. Há que precisar que esta disposição prevê sem ambiguidade que a lista fornecida ao Reino Unido no prazo de três meses após o termo do período de transição visa «todos» os procedimentos administrativos individuais em curso abrangidos pelo âmbito de aplicação do n.o 1 e que, portanto, não se trata de uma lista «puramente informacional», contrariamente ao que afirmam as recorrentes.

43      Além disso, e no mesmo sentido, em 27 de janeiro de 2021, o CRE e o OFGEM publicaram um comunicado nos respetivos sítios Internet indicando que tinha sido decidido encerrar o procedimento de pedido de isenção para a interligação Aquind pelo facto de o regime de isenção previsto no artigo 63.o do Regulamento 2019/942 já não ser aplicável a esse projeto na sequência da saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União.

44      Por último, e contrariamente ao que sustentam as recorrentes, o artigo 92.o do Acordo de Saída não reflete um princípio geral segundo o qual os procedimentos em curso não devem ser interrompidos pelo Brexit. Como sublinhou corretamente a ACER, esta disposição constitui, pelo contrário, uma exceção ao princípio geral segundo o qual o direito da União — e, portanto, a competência dos órgãos da União — já não se aplicava no Reino Unido após a sua saída da União e da ordem jurídica da União.

45      Em segundo lugar, no que respeita ao ACC, este prevê, no artigo 309.o, o seguinte:

«As Partes asseguram que as isenções concedidas às interligações entre a União e o Reino Unido nos termos do artigo 63.o do Regulamento [2019/943] nas respetivas jurisdições, cujas condições são aplicáveis para lá do período transitório, continuam a ser aplicáveis em conformidade com a legislação das respetivas jurisdições e com as condições aplicáveis.»

46      O artigo 309.o do ACC, cujo sentido é claro e desprovido de ambiguidade, não exige nenhuma interpretação. Com efeito, apenas visa as isenções «concedidas», ou seja, as existentes e, portanto, não diz respeito aos pedidos de isenção que ainda são objeto de análise. Por conseguinte, a Câmara de Recurso não pode adotar as medidas necessárias à execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), ao conceder, ao abrigo do artigo 309.o do ACC, a isenção para a interligação Aquind.

47      O ACC previu um regime de isenção específico no artigo 308.o e no anexo 28. Com efeito, esta disposição e o anexo para o qual remete preveem que uma parte pode decidir não aplicar os artigos 306.o e 307.o do ACC — que preveem, nomeadamente, tarifas de acesso e de ligação às redes e de utilização das redes — para a construção de novas infraestruturas se o risco associado ao investimento na infraestrutura for tal, que o investimento não se realizaria se não fosse concedida uma isenção.

48      Todavia, nem o artigo 308.o e o anexo 28 nem, de resto, mais nenhuma disposição do ACC confere qualquer competência à ACER e, consequentemente, à Câmara de Recurso, para se pronunciar sobre pedidos de isenção para interligações elétricas. Como corretamente sublinhou a Câmara de Recurso, a aplicação de um sistema de isenção implica adaptações e diligências por parte dos Estados‑Membros em causa e do Reino Unido.

49      Além disso, o âmbito de aplicação do regime de isenção às regras do mercado interno da União, por um lado, e o do regime de isenção que figura no artigo 308.o e no anexo 28 do ACC, por outro, são diferentes. Com efeito, o segundo regime visa apenas isenções às regras do ACC, a saber, as que figuram no artigo 306.o do referido acordo, relativas ao acesso de terceiros a redes de transporte e distribuição, e as constantes do artigo 307.o do mesmo acordo, relativas à operação das redes e à separação dos operadores das redes de transporte.

50      Por conseguinte, as recorrentes não podem basear‑se no artigo 308.o e no anexo 28 do ACC para sustentar que a Câmara de Recurso era competente para tomar as medidas necessárias à execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542).

51      Daqui resulta que não existe nenhuma disposição equivalente ao artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento n.o 713/2009 nem ao artigo 29.o do Regulamento 2019/942 que confira à ACER e à Câmara de Recurso a competência para agir no caso de uma interligação entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro e que as tenha habilitado a aplicar as regras materiais do artigo 17.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 714/2009 e do artigo 63.o do Regulamento 2019/943.

52      Nenhum dos argumentos das recorrentes permite pôr em causa a procedência do raciocínio da Câmara de Recurso.

53      Em primeiro lugar, há que rejeitar o argumento das recorrentes segundo o qual a «restitutio in integrum» implica que a ACER retome o procedimento que lhe foi submetido no momento em que a ilegalidade tinha surgido e que adote uma nova decisão que não contenha a ilegalidade declarada no acórdão do Tribunal Geral e que, portanto, defira o pedido de isenção.

54      Com efeito, este argumento não basta para pôr em causa o facto de a Câmara de Recurso já não ser competente para examinar a Decisão da ACER. Além disso, como foi sublinhado no n.o 30, supra, o Tribunal Geral não concluiu que a condição relativa a um nível de risco associado ao investimento, previsto no artigo 17.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 714/2009, estava preenchido e que a Câmara de Recurso era assim obrigada a adotar uma nova decisão que autorizasse a isenção.

55      Em segundo lugar, as recorrentes alegam que as decisões relativas a pedidos de isenção são declaratórias por natureza e produzem efeitos na data do pedido em questão. Sustentam que isso tem como consequência que a isenção objeto do seu pedido apresentado em 2017 deve ser considerada uma «isenção existente» na aceção do artigo 309.o do ACC.

56      Este argumento não pode proceder. Com efeito, a Câmara de Recurso considerou, com razão, que uma decisão que deferisse um pedido de isenção para uma interligação era um ato que produzia efeitos desde a sua adoção e que, portanto, era apenas no momento dessa adoção que a situação jurídica do seu beneficiário se alterava. Por conseguinte, tal decisão não pode ser criadora de novos direitos com efeito retroativos à data do pedido de isenção.

57      Em terceiro lugar, as recorrentes sustentam erradamente que o artigo 29.o do Regulamento 2019/942 confere competência à Câmara de Recurso para tomar as medidas necessárias à execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542).

58      Com efeito, a última frase do artigo 29.o do Regulamento 2019/942 dispõe que «[a] ACER toma as medidas necessárias para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal de Justiça» e reitera, assim, o conteúdo do artigo 266.o TFUE. Ora, em conformidade com as considerações relativas a este último artigo que figuram nos n.os 19 a 22, supra, o dever de agir que resulta do artigo 29.o do Regulamento 2019/942 também não pode constituir uma fonte de competência para a ACER nem permitir a esta última fundar‑se numa base jurídica que, entretanto, deixou de ser aplicável à situação do caso em apreço. Por conseguinte, a fiscalização exercida pela Câmara de Recurso sobre a Decisão da ACER no âmbito da adoção de medidas que implicava a execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542), exigia que a referida Câmara de Recurso fosse competente no momento em que tomou a decisão impugnada, o que não acontecia no caso em apreço.

59      Atendendo ao exposto, a Câmara de Recurso não cometeu um erro de direito ao considerar que, na sequência do Brexit, já não era competente para decidir sobre a Decisão da ACER ao tomar as medidas necessárias à execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542).

60      Daqui resulta que o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo à violação das exigências do artigo 25.o, n.o 3, e do artigo 28.o, n.o 4, do Regulamento 2019/942, bem como de várias disposições do Regulamento de Processo da Câmara de Recurso

61      As recorrentes alegam que a Câmara de Recurso violou o artigo 25.o, n.o 3, e o artigo 28.o, n.o 4, do Regulamento 2019/942, bem como as disposições do seu próprio Regulamento de Processo. Com efeito, denunciam o facto de um dos membros da Câmara de Recurso não ter estado presente na audiência de 19 de maio de 2021, criticam os outros membros da referida câmara pela sua atitude silenciosa durante a audiência, invocam o caráter insuficientemente detalhado da ata dessa audiência e salientam que, na falta de publicação, no sítio Internet da ACER, da ata da reunião de deliberação dos membros da Câmara de Recurso, lhes é impossível saber se todos os membros da Câmara de Recurso estavam presentes nessa reunião e participaram no processo de tomada de decisão.

62      A ACER, apoiada pelo Parlamento, pede que este fundamento seja julgado improcedente por ser, em substância, inoperante, uma vez que, na ausência das irregularidades alegadas pelas recorrentes, a decisão impugnada não podia ser diferente quanto ao mérito.

63      Segundo jurisprudência constante, um recorrente não tem interesse legítimo na anulação, por vício de forma, de uma decisão quando a administração não dispõe de nenhuma margem de apreciação e é obrigada a agir como agiu, uma vez que, em tal hipótese, a anulação dessa decisão só poderia dar lugar à adoção de uma nova decisão, idêntica, quanto ao mérito, à decisão anulada (Acórdão de 6 de julho de 1983, Geist/Comissão, 117/81, EU:C:1983:191, n.o 7; v., igualmente, neste sentido, Acórdãos de 4 de fevereiro de 2016, Italian International Film/EACEA, T‑676/13, EU:T:2016:62, n.o 54, e de 7 de julho de 2021, HM/Comissão, T‑587/16 RENV, não publicado, EU:T:2021:415, n.o 30).

64      A fortiori, um recorrente não demonstra interesse em pedir a anulação de uma decisão de recusa para atuar numa determinada matéria com base num determinado fundamento quando, em todo o caso, a administração em causa não dispõe de competência para atuar nessa matéria, pelo que a anulação de tal decisão com base nesse fundamento só poderia dar lugar a uma nova decisão de recusa para atuar nessa matéria (Despacho de 14 de julho de 2020, Shindler e o./Comissão, T‑627/19, EU:T:2020:335, n.o 49).

65      Ora, resulta do exame do primeiro fundamento que, em todo o caso, a Câmara de Recurso já não era competente, na sequência do Brexit, para tomar as medidas necessárias à execução do Acórdão de 18 de novembro de 2020, Aquind/ACER (T‑735/18, pendente de recurso, EU:T:2020:542).

66      Por conseguinte, como observa acertadamente a ACER, há que julgar o segundo fundamento inoperante, sem que seja necessário examinar o seu mérito e, consequentemente, negar provimento ao recurso na íntegra.

 Quanto às despesas

67      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. No entanto, em conformidade com o artigo 135.o do referido regulamento, quando a equidade o exigir, o Tribunal Geral pode decidir que uma parte vencida suporte, além das suas próprias despesas, apenas uma fração das despesas da outra parte, ou mesmo que não deve ser condenada a este título.

68      No caso em apreço, embora as recorrentes tenham sido vencidas, não é menos verdade que a incompetência da Câmara de Recurso é consequência do Brexit. Este acontecimento independente da vontade das recorrentes ocorreu durante o processo nos órgãos da ACER, após a anulação, pelo Tribunal Geral, da decisão inicial da Câmara de Recurso. Tendo em conta estas circunstâncias específicas, o Tribunal Geral considera que será feita uma apreciação justa do caso em apreço ao decidir que as recorrentes e a ACER suportarão as suas próprias despesas.

69      Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, as instituições que intervenham no litígio devem suportar as suas próprias despesas. O Parlamento e o Conselho suportarão, portanto, as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Aquind Ltd, a Aquind SAS, a Aquind Energy Sàrl e a Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER) suportarão as suas próprias despesas.

3)      O Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia suportarão as suas próprias despesas.

Tomljenović

Škvařilová‑Pelzl

Nõmm

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 15 de fevereiro de 2023.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.