Language of document : ECLI:EU:C:2020:900

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

11 de novembro de 2020 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Artigo 24.o, ponto 1 — Competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis — Artigo 7.o, ponto 1, alínea a) — Competência especial em matéria contratual — Ação judicial de um condómino destinada a obter a cessação da utilização para fins turísticos, por parte de outro condómino, de um bem imóvel em propriedade horizontal»

No processo C‑433/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria), por Decisão de 21 de maio de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de junho de 2019, no processo

Ellmes Property Services Limited

contra

SP,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta (relatora), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, C. Toader, M. Safjan e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Ellmes Property Services Limited, por M. Rettenwander, Rechtsanwalt,

–        em representação de SP, por A. Bosio, Rechtsanwalt,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e M. Heller, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 18 de junho de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 24.o, ponto 1, e do artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Ellmes Property Services Limited a SP a respeito da utilização de um bem imóvel em regime de propriedade horizontal.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

4        O artigo 7.o, ponto 1, alínea a), deste regulamento prevê:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

1)      a)      Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

[…]»

5        O artigo 24.o, ponto 1, do referido regulamento tem a seguinte redação:

«Têm competência exclusiva os seguintes tribunais de um Estado‑Membro, independentemente do domicílio das partes:

1)      Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel.

[…]»

 Direito austríaco

6        O § 2 da Wohnungseigentumsgesetz (Lei relativa à Propriedade Horizontal), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, enuncia:

«(1)      A propriedade de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal é o direito real, que assiste ao comproprietário de um imóvel constituído em propriedade horizontal ou ao contitular de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal adquirida conjuntamente por duas pessoas singulares, a utilizar exclusivamente essa fração autónoma e a dispor da mesma. […]

(2)      São frações autónomas em regime de propriedade horizontal as habitações, as outras áreas independentes e os lugares de estacionamento para veículos a motor (frações suscetíveis de serem constituídas em unidades independentes), em que assenta a propriedade horizontal. Uma habitação é uma parte delimitada de um edifício que, pela sua natureza e dimensão, é adequada a satisfazer uma necessidade habitacional individual. Outra área independente é uma parte delimitada um edifício, que, pela sua natureza e dimensão, possui uma importância económica considerável, como por exemplo um espaço comercial autónomo ou uma garagem. […]

[…]

(5)      O proprietário de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal é comproprietário do imóvel constituído em propriedade horizontal a que essa fração autónoma pertence.

[…]»

7        O § 3 desta lei dispõe:

«(1)      A propriedade horizontal pode constituir‑se mediante:

1.      Um acordo escrito entre todos os comproprietários (contrato de constituição da propriedade horizontal) […]

[…]»

8        O § 16 da referida lei prevê:

«(1)      A utilização da fração autónoma em regime de propriedade horizontal cabe ao condómino.

(2)      O condómino tem direito a proceder a alterações (incluindo alterações na respetiva afetação) na sua fração autónoma, a expensas próprias, nas seguintes condições:

1.      A alteração não pode danificar o edifício, nem prejudicar os interesses dignos de proteção dos outros proprietários […]

2.      Caso a alteração abranja também as partes comuns do imóvel, a alteração deverá ainda respeitar os usos ou servir um interesse importante do proprietário da fração autónoma. […]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        A Ellmes Property Services é uma sociedade estabelecida no Reino Unido. Essa sociedade e SP são condóminos de um imóvel constituído em propriedade horizontal, situado em Zell am See (Áustria).

10      A referida sociedade é proprietária de um apartamento nesse imóvel, que foi afetado a fins habitacionais. Utiliza esse apartamento para fins turísticos, arrendando‑o regularmente a turistas.

11      Por ação inibitória intentada no Bezirksgericht Zell am See (Tribunal de Primeira Instância de Zell am See, Áustria), SP pediu a cessação dessa «utilização turística», com o fundamento de que seria contrária à afetação desse imóvel e arbitrária, na falta de acordo dos outros condóminos, e, por conseguinte, violaria o seu direito de condomínio. Quanto à competência desse órgão jurisdicional, SP invocou a competência exclusiva prevista no artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012.

12      A Ellmes Property Services contestou a competência territorial e internacional desse órgão jurisdicional.

13      Este último, por Despacho de 5 de novembro de 2018, declinou a sua competência, considerando que o litígio que lhe foi submetido tinha por objeto uma convenção de utilização de direito privado entre os condóminos em causa e não afetava diretamente a situação jurídica destes últimos à luz de um direito real.

14      Chamado a conhecer de um recurso interposto desse despacho por SP, o Landesgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo, Áustria) alterou aquele, por Despacho de 30 de janeiro de 2019, julgando improcedente a exceção de incompetência suscitada pela Ellmes Property Services. Segundo esse órgão jurisdicional, a afetação de uma fração autónoma pertencente a um prédio constituído em propriedade horizontal assenta num acordo de direito privado dos condóminos, sob a forma, em princípio, de um contrato de constituição de propriedade horizontal, e a afetação dessa fração autónoma a um uso determinado, bem como o respeito da utilização assim definida, fazem parte dos direitos reais dos condóminos que beneficiam de uma proteção absoluta.

15      A Ellmes Property Services interpôs recurso de «Revision» deste último despacho para o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria).

16      Segundo esse órgão jurisdicional, há que ter em conta a competência exclusiva prevista no artigo 24.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012 e, subsidiariamente, a competência especial prevista no artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do mesmo regulamento.

17      A este respeito, o referido órgão jurisdicional indica que, segundo a jurisprudência dos órgãos jurisdicionais austríacos, cada condómino pode intentar uma ação destinada a obter a abstenção ou a cessação contra qualquer condómino que, arbitrariamente, sem o consentimento de todos os outros condóminos ou sem uma decisão judicial com força de caso julgado que substitua esse acordo, introduza alterações à sua fração autónoma, incluindo alterações da sua afetação. Indica igualmente que essa ação não se enquadra nas questões de administração relativamente às quais a comunidade de todos os condóminos dispõe de personalidade jurídica e que a afetação de uma fração autónoma enquanto habitação ou local comercial assenta na convenção de direito privado celebrada por todos os condóminos, que, regra geral, se materializa num contrato de constituição da propriedade horizontal. Clarifica que a utilização para fins turísticos de uma fração autónoma afeta a uma utilização habitacional constitui uma alteração da afetação desse bem. Acrescenta que a afetação de uma fração autónoma e o respeito da afetação assim definida fazem parte do direito, que beneficia de proteção absoluta, de cada condómino do imóvel.

18      Neste contexto, o mesmo órgão jurisdicional salienta que, no direito austríaco, o regime da propriedade horizontal, enquanto direito de um condómino de ter o uso exclusivo de uma fração autónoma, constitui um direito real protegido contra as violações de terceiros e contra as dos outros condóminos. Salienta igualmente que os condóminos se encontram, por força do contrato de constituição da propriedade horizontal, numa relação contratual livremente consentida.

19      Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 24.o, [ponto] 1, primeiro parágrafo, primeira hipótese, do Regulamento [n.o 1215/2012] ser interpretado no sentido de que as ações de um [condómino de um imóvel] em regime de propriedade horizontal, que pretende proibir outro [condómino] de alterar a afetação [da sua fração autónoma], de forma unilateral, sem o acordo dos outros [condóminos], constituem ações em matéria de direitos reais?

2)      Caso a resposta à questão anterior seja negativa:

Deve o artigo 7.o, [ponto] 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 ser interpretado no sentido de que as ações referidas [na primeira questão] dizem respeito a matéria contratual, devendo ser propostas no local onde se situa a coisa?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

20      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma ação na qual um condómino de um imóvel pede que outro condómino seja proibido de alterar, arbitrariamente e sem o acordo dos outros condóminos, a afetação do seu bem em regime de propriedade horizontal deve ser considerada uma ação «em matéria de direitos reais sobre imóveis», na aceção dessa disposição.

21      A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a competência prevista no artigo 4.o do Regulamento n.o 1215/2012, a saber, a dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território o requerido tem o seu domicílio, constitui a regra geral e que é só por derrogação a esta regra geral que este regulamento prevê regras de competência especial e exclusiva em casos taxativamente enumerados em que o requerido pode ou deve, consoante o caso, ser demandado perante um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro (Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Ordre des avocats du barreau de Dinant, C‑421/18, EU:C:2019:1053, n.o 24 e jurisprudência referida).

22      O artigo 24.o do referido regulamento prevê regras de competência exclusiva, nomeadamente em matéria de direitos reais sobre imóveis, que, enquanto derrogação à referida regra geral, devem ser objeto de interpretação estrita (v., neste sentido, Acórdão de 10 de julho de 2019, Reitbauer e o., C‑722/17, EU:C:2019:577, n.o 38).

23      No que respeita à competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde o imóvel está situado, prevista no artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012, há que recordar igualmente que o sentido da expressão «em matéria de direitos reais sobre imóveis» deve ser interpretado de forma autónoma, com vista a assegurar a sua aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros (Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Milivojević, C‑630/17, EU:C:2019:123, n.o 97 e jurisprudência referida).

24      Essa competência não abrange a totalidade das ações relativas a direitos reais sobre imóveis, mas apenas aquelas que, ao mesmo tempo, entram no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 e se destinam, por um lado, a determinar o alcance, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel ou a existência de outros direitos reais sobre esses bens e, por outro, a garantir aos titulares desses direitos a proteção das prerrogativas associadas ao seu título (Acórdão de 10 de julho de 2019, Reitbauer e o., C‑722/17, EU:C:2019:577, n.o 44 e jurisprudência aí referida).

25      Neste contexto, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que não é suficiente que na ação esteja em causa um direito real sobre imóveis ou que a ação tenha um nexo com um imóvel para determinar a competência do tribunal do Estado‑Membro onde se situa o imóvel. Pelo contrário, é necessário que a ação se baseie num direito real e não num direito pessoal (Acórdão de 10 de julho de 2019, Reitbauer e o., C‑722/17, EU:C:2019:577, n.o 45 e jurisprudência referida).

26      Há também que recordar que, nos termos da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a diferença entre um direito real e um direito pessoal reside no facto de o primeiro, incidindo sobre um bem corpóreo, produzir os seus efeitos erga omnes, enquanto o segundo só pode ser invocado contra o obrigado (Acórdão de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 31 e jurisprudência aí referida).

27      No caso em apreço, o litígio no processo principal tem por objeto a questão de saber se os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado um imóvel em regime de propriedade horizontal são competentes para conhecer de uma ação pela qual um condómino pede a cessação, por outro condómino, da utilização de um apartamento para fins turísticos, pelo facto de essa utilização não estar em conformidade com o previsto no contrato de constituição da propriedade horizontal relativo a esse bem imóvel, a saber, um uso para habitação.

28      A este respeito, resulta da decisão de reenvio que o § 2, n.o 1, da Lei relativa à Propriedade Horizontal prevê que a propriedade de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal é o direito real, que assiste ao comproprietário de um imóvel constituído em propriedade horizontal ou ao contitular de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal adquirida conjuntamente por duas pessoas singulares, a utilizar exclusivamente essa fração autónoma e a dispor da mesma.

29      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, no direito austríaco, a afetação de uma fração autónoma, que resulta de uma convenção de direito privado entre todos os condóminos, geralmente sob a forma de um contrato de constituição da propriedade horizontal, e o respeito da utilização definida por essa afetação fazem parte do direito que beneficia de uma proteção absoluta de todos os condóminos. Por outro lado, esse órgão jurisdicional indica que a propriedade horizontal constitui um direito real protegido contra as violações de terceiros e contra as dos outros condóminos.

30      À luz destes elementos, afigura‑se que uma ação inibitória como a que está em causa no processo principal se assemelha a uma ação destinada a assegurar aos condóminos de um bem imóvel em regime de propriedade horizontal a proteção das prerrogativas associadas ao seu título, em especial no que respeita à afetação desse bem imóvel, que está prevista no contrato de constituição da propriedade horizontal.

31      Todavia, para determinar se essa ação se baseia num direito real sobre imóveis, na aceção do artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012, há que examinar, como decorre da jurisprudência referida no n.o 26 do presente acórdão, se a afetação de uma fração autónoma prevista num contrato de constituição da propriedade horizontal, no caso em apreço uma utilização para fins habitacionais, produz efeitos erga omnes.

32      Como salientou o advogado‑geral no n.o 45 das suas conclusões, em substância, seria esse o caso se um condómino pudesse opor essa afetação não só aos outros condóminos, mas também às pessoas que não podem ser consideradas partes nesse contrato. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio proceder às verificações necessárias a este respeito.

33      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma ação na qual um condómino de um imóvel pede que outro condómino desse imóvel seja proibido de alterar, arbitrariamente e sem o acordo dos outros condóminos, a afetação do seu bem em regime de propriedade horizontal, conforme prevista num contrato de constituição da propriedade horizontal, deve ser considerada uma ação «em matéria de direitos reais sobre imóveis», na aceção da referida disposição, desde que essa afetação seja oponível não apenas aos outros condóminos do referido imóvel mas igualmente erga omnes, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 Quanto à segunda questão

34      Na hipótese de o órgão jurisdicional de reenvio concluir que a afetação de um bem imóvel em regime de propriedade horizontal prevista num contrato de constituição da propriedade horizontal não é oponível erga omnes e que, por conseguinte, não pode servir de fundamento à competência dos órgãos jurisdicionais austríacos com base no artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012, estes podem, todavia, ser competentes por força do artigo 7.o, ponto 1, alínea a), deste regulamento. Como tal, há que responder à segunda questão.

35      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese de a afetação de um bem imóvel em regime de propriedade horizontal, prevista num contrato de constituição da propriedade horizontal, não ser oponível erga omnes, uma ação na qual um condómino pede que outro condómino desse imóvel seja proibido de alterar, arbitrariamente e sem o consentimento dos outros condóminos, essa afetação deve ser considerada uma ação «em matéria contratual», na aceção da referida disposição. Se for caso disso, esse órgão jurisdicional pretende saber se o lugar de cumprimento da obrigação que serve de base a esta ação é o lugar onde o referido bem está situado.

36      Importa recordar que a celebração de um contrato não constitui um requisito de aplicação da regra de competência especial prevista em matéria contratual nessa disposição (Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Ordre des avocats du barreau de Dinant, C‑421/18, EU:C:2019:1053, n.o 25 e jurisprudência referida).

37      A identificação de uma obrigação é, contudo, indispensável para a aplicação da referida disposição, dado que a competência jurisdicional, por força desta disposição, é fixada em função do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deve ser cumprida. Assim, a aplicação desta regra pressupõe a determinação de uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do requerente (Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Ordre des avocats du barreau de Dinant, C‑421/18, EU:C:2019:1053, n.o 26 e jurisprudência referida).

38      Por outro lado, o Tribunal já declarou que a adesão ao condomínio de um imóvel de apartamentos é feita através de um ato de aquisição voluntária conjunta de um apartamento e de frações de compropriedade nessas partes comuns, pelo que uma obrigação dos condóminos para com o condomínio deve ser considerada uma obrigação jurídica livremente consentida (Acórdão de 8 de maio de 2019, Kerr, C‑25/18, EU:C:2019:376, n.o 27, e Despacho de 19 de novembro de 2019, INA e o., C‑200/19, não publicado, EU:C:2019:985, n.o 27).

39      Além disso, a circunstância de um condómino não ser parte no contrato de constituição da propriedade horizontal celebrado pelos condóminos iniciais não tem incidência na aplicação do artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 a um litígio relativo à referida obrigação. Com efeito, ao tornar‑se e manter‑se comproprietário de um imóvel, cada condómino consente submeter‑se a todas as disposições que regulam a propriedade em causa, bem como às decisões adotadas pela assembleia‑geral de condóminos desse imóvel (Acórdão de 8 de maio de 2019, Kerr, C‑25/18, EU:C:2019:376, n.o 29, e Despacho de 19 de novembro de 2019, INA e o., C‑200/19, não publicado, EU:C:2019:985, n.o 29).

40      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, em direito austríaco, os condóminos se encontram, por força do contrato de constituição da propriedade horizontal, numa relação contratual livremente consentida.

41      Daqui resulta que o artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese de a afetação de um bem imóvel em regime de propriedade horizontal, prevista num contrato de constituição da propriedade horizontal, não ser oponível erga omnes, uma ação pela qual um condómino visa proibir um outro condómino desse imóvel de alterar essa afetação, arbitrariamente e sem o acordo dos outros condóminos, deve ser considerada uma ação «em matéria contratual», na aceção desta disposição.

42      Quanto à questão de saber se o lugar de cumprimento da obrigação que serve de base a esta ação é o lugar onde o referido bem está situado, importa recordar que, nos termos do artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, os litígios em matéria contratual podem ser examinados pelos tribunais do lugar de cumprimento da obrigação que serve de base ao pedido, isto é, da obrigação correspondente ao direito contratual em que se baseia a ação do requerente (Acórdão de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 39).

43      No caso em apreço, na ação que intentou, SP pede que a Ellmes Property Services seja obrigada a fazer um uso da sua fração autónoma em conformidade com a afetação prevista no contrato de constituição da propriedade horizontal ou a cessar de alterar essa afetação.

44      Resulta da decisão de reenvio que a obrigação de respeitar a utilização definida por essa afetação faz parte dos direitos reais dos condóminos que beneficiam de uma proteção absoluta. Parece que esta obrigação visa assim garantir ao proprietário de uma fração autónoma o gozo pacífico desse bem. Sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, a referida obrigação diz respeito à utilização concreta desse bem e deve ser cumprida no lugar onde este se situa.

45      Esta conclusão responde ao objetivo de previsibilidade das regras de competência previstas pelo Regulamento n.o 1215/2012, uma vez que um condómino vinculado por um contrato de compropriedade que fixa essa afetação pode, quando modifica arbitrária e unilateralmente esta última, esperar razoavelmente ser demandado nos órgãos jurisdicionais do lugar onde se situa o bem imóvel em causa.

46      Além disso, tendo em conta o vínculo estreito existente entre esses órgãos jurisdicionais e o litígio no processo principal, afigura‑se que estes estão mais bem colocados para conhecer desse litígio e que uma atribuição de competência aos referidos órgãos jurisdicionais é suscetível de facilitar uma boa administração da justiça.

47      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese de a afetação de um bem imóvel em regime de propriedade horizontal, prevista num contrato de constituição da propriedade horizontal, não ser oponível erga omnes, uma ação na qual um condómino de um imóvel pede que outro condómino desse imóvel seja proibido de alterar, arbitrariamente e sem o acordo dos outros condóminos, essa afetação deve ser considerada uma ação «em matéria contratual», na aceção da referida disposição. Sem prejuízo da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, o lugar de cumprimento da obrigação que serve de base a essa ação é o lugar onde o referido bem está situado.

 Quanto às despesas

48      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma ação na qual um condómino de um imóvel pede que outro condómino desse imóvel seja proibido de alterar, arbitrariamente e sem o acordo dos outros condóminos, a afetação do seu bem em regime de propriedade horizontal, conforme prevista num contrato de constituição de propriedade horizontal, deve ser considerada uma ação «em matéria de direitos reais sobre imóveis», na aceção da referida disposição, desde que essa afetação seja oponível não apenas aos condóminos do referido imóvel mas igualmente erga omnes, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

2)      O artigo 7.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese de a afetação de um bem imóvel em regime de propriedade horizontal, prevista num contrato de constituição da propriedade horizontal, não ser oponível erga omnes, uma ação na qual um condómino de um imóvel pede que outro condómino desse imóvel seja proibido de alterar, arbitrariamente e sem o acordo dos outros condóminos, essa afetação deve ser considerada uma ação «em matéria contratual», na aceção da referida disposição. Sem prejuízo da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, o lugar de cumprimento da obrigação que serve de base a essa ação é o lugar onde o referido bem está situado.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.