Language of document : ECLI:EU:C:2023:918

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

23 de novembro de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Vias de recurso em matéria de contratos públicos — Diretiva 2014/25/UE — Artigo 57.o, n.o 3 — Entidade adjudicante com sede num Estado‑Membro diferente do da sede de uma central de compras que atua em seu nome e por sua conta — Acesso às vias de recurso — Regras processuais aplicáveis e competência das instâncias de recurso»

No processo C‑480/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), por Decisão de 23 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de julho de 2022, no processo

EVN Business Service GmbH.

Elektra EOOD,

Penon EOOD,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: Z. Csehi (relator), presidente de secção, M. Ilešič e D. Gratsias, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de EVN Business Service GmbH, por W. Schwartz, Rechtsanwalt,

–        em representação de Elektra EOOD, por O. Radinsky, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo Austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e M. Winkler‑Unger, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Gattinara e G. Wils, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto, nomeadamente, a interpretação do artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva 2004/17/CE (JO 2014, L 94, p. 243).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de vários recursos interpostos pela EVN Business Service GmbH (a seguir «EBS»), uma sociedade de direito austríaco com sede na Áustria, e por duas sociedades com sede na Bulgária, contra decisões do Landesverwaltungsgericht Niederösterreich (Tribunal Administrativo Regional da Baixa Áustria,) através das quais este se declarou incompetente enquanto instância de recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 92/13

3        A Diretiva 92/13/CEE do Conselho, de 25 de fevereiro de 1992, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à aplicação das regras comunitárias em matéria de procedimentos de celebração de contratos de direito público pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO 1992, L 76, p. 14), conforme alterada pela Diretiva 2014/23/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão (JO 2014, L 94, p. 1) (a seguir «Diretiva 92/13»), inclui um artigo 1.o, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação e acesso ao recurso», que dispõe, no seu n.o 1, primeiro e quarto parágrafos:

«A presente diretiva é aplicável aos contratos a que se refere a Diretiva 2014/25 […], salvo os contratos excluídos nos termos dos artigos 18.o a 24.o, dos artigos 27.o a 30.o, dos artigos 34.o ou 55.o dessa diretiva.

[…]

Os Estados‑Membros adotam as medidas necessárias para assegurar que, no que se refere aos contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/25/UE ou da Diretiva 2014/23/UE, as decisões das entidades adjudicantes possam ser objeto de recursos eficazes, e, sobretudo, tão céleres quanto possível, nos termos dos artigos 2.o a 2.o‑F da presente diretiva, com fundamento na violação, por tais decisões, do direito da União em matéria de contratos ou das normas nacionais de transposição desse direito.»

 Diretiva 2014/25

4        Os considerandos 78 e 82 da Diretiva 2014/25 enunciam:

«(78)      As técnicas de aquisição centralizada são cada vez mais utilizadas na maioria dos Estados‑Membros. As centrais de compras são encarregadas das aquisições, da gestão dos sistemas de aquisição dinâmicos ou da adjudicação de contratos/celebração de acordos‑quadro por conta de outras autoridades ou entidades adjudicantes, a título oneroso ou não. As entidades adjudicantes por conta das quais é celebrado um acordo‑quadro deverão poder utilizá‑lo para aquisições individuais ou repetitivas. Dado o grande volume de compras, estas técnicas poderão contribuir para aumentar a concorrência e deverão ajudar a profissionalizar as aquisições públicas. Deverá, pois, ser prevista uma definição da União para “central de compras” que vise especificamente as entidades adjudicantes, esclarecendo‑se que as centrais de compras funcionam de duas maneiras distintas.

As centrais de compras deverão ser capazes de funcionar, em primeiro lugar, como grossistas para a compra, armazenagem e revenda ou, em segundo lugar, como intermediários para a adjudicação de contratos, a gestão de sistemas de aquisição dinâmicos ou a celebração de acordos‑quadro a utilizar pelas entidades adjudicantes.

Este papel de intermediário poderá, em certos casos, ser desempenhado através da condução autónoma dos procedimentos de adjudicação relevantes, sem instruções detalhadas das entidades adjudicantes em causa, e, noutros casos, conduzindo os procedimentos de adjudicação relevantes de acordo com as instruções das entidades adjudicantes em causa, em seu nome e por sua conta.

Além disso, deverão ser estabelecidas regras aplicáveis à repartição da responsabilidade — entre a central de compras e as entidades adjudicantes que efetuam aquisições a partir dessa central ou através dela — pela observância das obrigações previstas na presente diretiva, inclusive em caso de adoção de medidas corretivas. Se a condução dos procedimentos de contratação for da exclusiva responsabilidade da central de compras, esta também deverá ser exclusiva e diretamente responsável pela legalidade dos procedimentos. Se uma entidade adjudicante tomar a seu cargo algumas partes do procedimento, por exemplo a reabertura do concurso nos termos de um acordo‑quadro ou a adjudicação de contratos individuais com base num sistema de aquisição dinâmico, deverá continuar a ser responsável pelas fases do processo que lhe incumbem.

[…]

(82)      A adjudicação conjunta de contratos por entidades adjudicantes de mais de um Estado‑Membro enfrenta atualmente dificuldades jurídicas específicas devido a conflitos entre as legislações nacionais. Embora a Diretiva 2004/17/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (JO 2004, L 134, p. 1),] tenha autorizado implicitamente a adjudicação conjunta de contratos públicos transnacionais, as entidades adjudicantes continuam a deparar‑se com grandes dificuldades jurídicas e práticas para adquirir a centrais de compras estabelecidas noutros Estados‑Membros ou adjudicar conjuntamente contratos. Esses problemas deverão ser resolvidos, para que as entidades adjudicantes possam retirar o máximo benefício do potencial do mercado interno em termos de economias de escala e de partilha dos riscos e benefícios, nomeadamente para projetos inovadores que impliquem um nível de risco superior ao que pode ser razoavelmente suportado por uma única entidade adjudicante. Por esse motivo, deverão ser estabelecidas novas regras em matéria de contratação conjunta transfronteiras, de modo a facilitar a cooperação entre as entidades adjudicantes e a reforçar os benefícios do mercado interno, criando oportunidades de negócio transfronteiras para fornecedores e prestadores de serviços. Essas regras deverão determinar as condições aplicáveis à utilização transfronteiras de centrais de compras e designar a legislação aplicável em matéria de contratos públicos, nomeadamente a legislação aplicável em matéria de vias de recurso, nos casos de procedimentos conjuntos transfronteiras, completando as regras de conflitos de leis previstas no Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho [, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) [(JO 2008, L 177, p. 6)]. As entidades adjudicantes dos diferentes Estados‑Membros deverão poder ainda criar entidades jurídicas comuns ao abrigo do direito nacional ou da União. Este tipo de contratação conjunta deverá ser objeto de regras específicas.

No entanto, as entidades adjudicantes não deverão fazer uso das possibilidades de contratação conjunta transfronteiriças com o objetivo de contornar a aplicação das regras de direito público obrigatórias de acordo com o direito da União, que lhes são aplicáveis no Estado‑Membro em que se encontram situadas. Essas regras podem incluir, por exemplo, disposições sobre a transparência e o acesso aos documentos ou requisitos específicos em matéria de rastreabilidade de fornecimentos sensíveis.»

5        O artigo 2.o da Diretiva 2014/25, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

10) “Atividades de compras centralizadas”, atividades realizadas a título permanente de uma das seguintes formas:

a)      A aquisição de produtos e/ou serviços destinados a entidades adjudicantes;

b)      A adjudicação de contratos ou a celebração de acordos‑quadro para obras, fornecimento de bens ou prestação de serviços destinados a entidades adjudicantes;

[…]

12) “Central de compras”, uma entidade adjudicante na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da presente diretiva, ou uma autoridade adjudicante na aceção do artigo 2.o, n.o 1, ponto 1, da Diretiva 2014/24/UE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65)] que realize atividades de compra centralizadas e, eventualmente, atividades de aquisição auxiliares.

A contratação pública efetuada por uma central de compras com vista a realizar atividades de aquisição centralizadas e considerada como contratação para efeitos de uma atividade na aceção dos artigos 8.o e 14.o O artigo 18.o não se aplica à contratação pública efetuada por uma central de compras com visa a realizar atividades de aquisição centralizadas;

[…]»

6        O artigo 4.o da Diretiva 2014/25, sob a epígrafe «Entidades adjudicantes», dispõe:

«1.      Para efeitos da presente diretiva, são entidades adjudicantes:

a)      As autoridades adjudicantes ou empresas públicas e que exerçam uma das atividades referidas nos artigos 8.o a 14.o;

b)      No caso de não serem autoridades adjudicantes ou empresas públicas, incluam entre as suas atividades uma ou mais das atividades referidas nos artigos 8.o a 14.o, ou qualquer combinação destas, e que beneficiem de direitos especiais ou exclusivos concedidos por uma autoridade competente de um Estado‑Membro.

2.      “Empresa pública”, uma empresa em relação à qual as autoridades adjudicantes possam exercer, direta ou indiretamente, uma influência dominante, por motivos de propriedade, participação financeira ou regras que lhe sejam aplicáveis.

[…]»

7        O artigo 57.o dessa diretiva, sob a epígrafe «Contratos em que participam entidades adjudicantes de diferentes Estados‑Membros», prevê, nos seus n.os 1 a 3:

«1.      Sem prejuízo dos artigos 28.o a 31.o, as entidades adjudicantes de Estados‑Membros diferentes podem adjudicar conjuntamente os seus contratos utilizando um dos meios descritos no presente artigo.

As entidades adjudicantes não podem recorrer aos meios previstos no presente artigo com o objetivo de evitar a aplicação das disposições de direito público obrigatórias em conformidade com o direito da União às quais estejam sujeitas no respetivo Estado‑Membro.

2.      Os Estados‑Membros não podem proibir as suas entidades adjudicantes de recorrer a atividades de compras centralizadas oferecidas por centrais de compras situadas noutro Estado‑Membro.

No que diz respeito às atividades de compras centralizadas oferecidas por uma central de compras situada num Estado‑Membro que não o da entidade adjudicante, os Estados‑Membros podem, no entanto, optar por especificar que as respetivas entidades adjudicantes só podem recorrer às atividades de compras centralizadas definidas no artigo 2.o, ponto 10, alíneas a) ou b).

3.      A prestação das atividades de compras centralizadas por uma central de compras situada noutro Estado‑Membro deve obedecer às disposições nacionais do Estado‑Membro onde a central de compras está situada.

As disposições nacionais do Estado‑Membro onde a central de compras está situada aplicam‑se igualmente:

a)      À adjudicação de um contrato ao abrigo de um sistema de aquisição dinâmico;

b)      Ao processo de reabertura de um concurso no âmbito de um acordo‑quadro.»

 Direito austríaco

8        O § 180 da Bundesvergabegesetz 2018 (Lei Federal de 2018 relativa à Adjudicação de Contratos Públicos), de 20 de agosto de 2018 (BGBl. I, 65/2018) (a seguir «BVergG 2018»), sob a epígrafe «Adjudicação conjunta de contratos transfronteiriços por várias entidades adjudicantes setoriais», dispõe, no seu n.o 2:

«Quando uma atividade de compra centralizada for realizada para uma entidade adjudicante setorial através de uma central de compras referida no artigo 2.o, ponto 12, da Diretiva 2014/25/UE que tenha a sua sede noutro Estado‑Membro da União ou noutro Estado Parte Contratante no Acordo EEE

1.      o desenrolar do procedimento de adjudicação é regido

[…]

pela regulamentação do Estado da sede da central de compras.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        Por anúncio publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 22 de maio de 2020, foi lançado um procedimento de adjudicação de um contrato público tendo por objeto um acordo‑quadro para a execução de obras de montagem de instalações elétricas, bem como as respetivas obras de construção e desmontagem. O contrato dividia‑se (territorialmente) em 36 lotes cujo local de execução se situava na Bulgária. O valor do contrato excedia o limiar acima do qual são aplicáveis as regras processuais e de publicidade em matéria de adjudicação de contratos públicos previstas no direito da União.

10      A Elektrorazpredelenie Yug EAD (a seguir «ER Yug»), sociedade anónima de direito búlgaro com sede na Bulgária, era a entidade adjudicante no âmbito desse concurso.

11      A EBS, sociedade de direito austríaco com sede na Áustria, agia nesse procedimento de adjudicação como central de compras, na qualidade de representante da ER Yug.

12      Tanto a ER Yug como a EBS são detidas indiretamente a 100 % pela EVN AG, ela própria detida a 51 % pelo Land Niederösterreich (Land da Baixa Áustria,).

13      Nos termos do concurso público, a EBS estava encarregada do desenrolar e da execução do mesmo, ao passo que o contrato que tinha por objeto as prestações solicitadas devia ser celebrado com a ER Yug enquanto entidade adjudicante setorial. Nesse concurso, o Landesverwaltungsgericht Niederösterreich (Tribunal Administrativo Regional da Baixa Áustria) era designado como a instância responsável pelos processos de recurso. Previa‑se igualmente que o direito austríaco era o direito aplicável «ao procedimento de adjudicação e a todas as pretensões daí decorrentes» e que o direito búlgaro se aplicava à «execução do contrato».

14      A Elektra EOOD e a Penon EOOD, duas empresas búlgaras, apresentaram propostas para diferentes lotes no âmbito do contrato‑quadro. Foram informadas, por Decisões de 28 e 30 de julho de 2020, de que as suas propostas não tinham sido selecionadas.

15      Os seus pedidos de anulação dessas decisões foram indeferidos, em 23 de setembro de 2020, por despachos do Landesverwaltungsgericht Niederösterreich (Tribunal Administrativo Regional da Baixa Áustria), que se declarou incompetente a este respeito.

16      Esse órgão jurisdicional considerou que lhe tinha sido submetida a questão de saber se uma empresa búlgara podia celebrar com uma entidade adjudicante estabelecida na Bulgária um contrato que devia ser executado nesse Estado‑Membro e regulado pelo direito desse mesmo Estado. Ora, segundo o referido órgão jurisdicional, admitir a sua competência em tais circunstâncias interferiria seriamente com a soberania da República da Bulgária e criaria um conflito com o princípio da territorialidade reconhecido pelo direito internacional. O facto de o Land da Baixa Áustria exercer um controlo sobre a ER Yug em nada prejudica a competência desse mesmo órgão jurisdicional em matéria de adjudicação de contratos com empresas com sede no estrangeiro.

17      Além disso, como sucede com o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25, a BVergG 2018 prevê, no seu artigo 180.o, n.o 2, uma regra relativa às atividades de compra centralizadas exercidas por conta de uma entidade adjudicante setorial por uma central de compras com sede num Estado‑Membro diferente daquele em que se encontra essa entidade. No entanto, esta regra limita‑se a prever o direito material aplicável ao procedimento de adjudicação sem especificar o direito processual aplicável a um eventual processo de recurso. É certo que o considerando 82 da Diretiva 2014/25 faz referência à designação da regulamentação aplicável «em matéria de vias de recurso», sem que, todavia, isso tenha sido retomado no próprio texto desta diretiva. Por outro lado, o conceito de «atividades de compra centralizadas» que figura no artigo 57.o da referida diretiva não visa o processo de recurso.

18      A Elektra, a Penon e a EBS interpuseram recursos de «Revision» no Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria) contra os referidos despachos. Apresentaram uma tradução autenticada de uma decisão do mais alto tribunal administrativo da República da Bulgária que confirmou a decisão da autoridade búlgara de fiscalização dos contratos públicos quanto à sua incompetência no processo de adjudicação de contratos públicos em questão.

19      Estas partes alegam que, tendo em conta o seu objetivo de prever um regime uniforme em matéria de compras centralizadas transfronteiriças, o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25 e, por conseguinte, o § 180, n.o 2, da BVergG 2018, devem ser interpretados no sentido de que não visam unicamente o processo de adjudicação do contrato propriamente dito, mas também o processo de recurso que pode eventualmente seguir essa adjudicação. Uma vez que uma central de compras deve aplicar o direito material austríaco em matéria de adjudicação de contratos, o processo de recurso deve decorrer numa instância de recurso austríaca nos termos do direito processual austríaco. Assim, o elemento de conexão territorial determinante é a sede da central de compras.

20      Nestas condições, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva [2014/25] ser interpretado no sentido de que existe uma atividade de compras centralizada prestada por uma central de compras “situada noutro Estado‑Membro” quando a entidade adjudicante, independentemente da questão da atribuição do controlo sobre essa entidade, está situada num Estado‑Membro diferente do da central de compras?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

A norma de conflito de leis do artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva [2014/25], segundo a qual a “prestação das atividades de compras centralizadas” por uma central de compras situada noutro Estado‑Membro deve obedecer às disposições nacionais do Estado‑Membro onde a central de compras está situada, abrange também as disposições relativas aos processos de recurso e à competência da instância de recurso na aceção da Diretiva [92/13]?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão ou à segunda questão:

Deve a Diretiva [92/13], em especial o seu artigo 1.o, n.o 1, quarto parágrafo, ser interpretada no sentido de que a competência de uma instância nacional de recurso para apreciar os recursos das decisões das entidades adjudicantes tem de abranger todas as entidades adjudicantes situadas no Estado‑Membro da instância de recurso, ou a competência depende da questão de saber se a influência dominante sobre a entidade adjudicante [na aceção do artigo 3.o, ponto 4, alínea c), ou do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2014/25/UE] é exercida por uma autoridade regional ou um organismo de direito público do Estado‑Membro da instância de recurso?»

 Quanto à primeira questão

21      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25 deve ser interpretado no sentido de que uma atividade de compra centralizada, no âmbito da adjudicação conjunta de contratos por entidades adjudicantes de diferentes Estados‑Membros, é efetuada por uma central de compras «situada noutro Estado‑Membro» quando a entidade adjudicante, independentemente do controlo exercido sobre esta por um organismo de direito público do Estado‑Membro da sede da central de compras, tenha a sua sede num Estado‑Membro diferente do da sede da central de compras.

22      Nos termos do artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25, a prestação das atividades de compras centralizadas por uma central de compras situada noutro Estado‑Membro deve obedecer às disposições nacionais do Estado‑Membro onde a central de compras está situada. As disposições nacionais do Estado‑Membro em que se situa a central de compras aplicam‑se igualmente à adjudicação de um contrato ao abrigo de um sistema de aquisição dinâmico e à reabertura de concurso ao abrigo de um acordo‑quadro.

23      O conceito de «central de compras» é definido no artigo 2.o, ponto 12, da Diretiva 2014/25 como uma entidade adjudicante, na aceção do artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva, ou uma autoridade adjudicante na aceção do artigo 2.o, n.o 1, ponto 1, da Diretiva 2014/24, que realiza atividades de compra centralizadas e, eventualmente, atividades de aquisição auxiliares.

24      Resulta do pedido de decisão prejudicial que a principal dúvida do órgão jurisdicional de reenvio incide sobre a forma de diferenciar o Estado‑Membro da sede da entidade adjudicante do da sede da central de compras. Por outras palavras, interroga‑se sobre o critério de conexão de uma entidade adjudicante a um Estado‑Membro para efeitos da aplicação do artigo 57.o da Diretiva 2014/25.

25      As partes no processo principal e as outras partes interessadas concordam que o critério de conexão deve ser o lugar onde está situada a entidade adjudicante e que, neste contexto, pouco importa se e, sendo caso disso, de que forma e em que medida essa entidade é detida por outra entidade que se encontra noutro Estado‑Membro. Assim, a regra prevista no artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25 é aplicável quando a central de compras e a outra entidade adjudicante se encontram em Estados‑Membros diferentes, como no caso em apreço na Áustria e na Bulgária.

26      A este respeito, importa recordar que tanto a central de compras como a entidade que conduz o procedimento de adjudicação do contrato são entidades adjudicantes, na aceção da Diretiva 2014/25, pelo que o critério de conexão a um Estado‑Membro não pode ser diferente para uma ou outra dessas entidades.

27      Por outro lado, o artigo 57.o, n.o 1, desta diretiva prevê que as entidades adjudicantes não podem recorrer à adjudicação conjunta de transfronteiras de contratos com o objetivo de evitar a aplicação das disposições vinculativas de direito público conformes com o direito da União a que estejam sujeitas «no respetivo Estado‑Membro». O n.o 2 deste artigo visa as atividades de compras centralizadas oferecidas por uma central de compras «situada num Estado‑Membro que não o da entidade adjudicante».

28      Não obstante a circunstância de a Diretiva 2014/25 utilizar assim, para determinar a ligação de uma entidade adjudicante a um Estado‑Membro, expressões por vezes diferentes, incluindo nas suas diversas versões linguísticas, não deixa de ser certo que essas expressões dão a entender que o critério de conexão adotado pelo legislador da União é de natureza territorial, o que corresponde, aliás, à regra geral, que resulta, em substância, do artigo 57.o, n.o 1, segundo parágrafo, desta diretiva, segundo a qual todas as entidades adjudicantes têm de respeitar as regras em vigor no Estado‑Membro em que estão estabelecidas.

29      Por conseguinte, quando, num caso como o do processo principal, a central de compras e a entidade adjudicante se encontram em Estados‑Membros diferentes, há que considerar que se trata da adjudicação de um contrato transnacional efetuada por intermédio de uma central de compras.

30      A este respeito, importa salientar que não resulta da referida diretiva e, de modo especial, do seu artigo 57.o, que a pertença a um determinado Estado‑Membro de uma autoridade regional ou de um organismo de direito público que exerce um controlo sobre a entidade adjudicante constitui um critério pertinente de conexão dessa entidade. Ora, quando o legislador da União pretendeu utilizar esse critério relativo à existência de uma ligação entre uma entidade adjudicante e uma outra entidade, utilizou‑o de forma expressa, como no artigo 4.o, n.o 2, da mesma diretiva.

31      Tendo em conta as considerações anteriores, há que responder à primeira questão que o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25 deve ser interpretado no sentido de que uma atividade de compra centralizada, no âmbito da adjudicação conjunta de contratos por entidades adjudicantes de diferentes Estados‑Membros, é efetuada por uma central de compras «situada noutro Estado‑Membro» quando a entidade adjudicante tenha a sua sede num Estado‑Membro diferente do da sede da central de compras, independentemente, sendo caso disso, do local da sede de uma entidade terceira que detém o controlo de uma ou de outra dessas entidades.

 Quanto à segunda questão

32      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25 deve ser interpretado no sentido de que a regra de conflitos de leis consagrada nesta disposição, nos termos da qual as atividades de compras centralizadas de uma central de compras são prestadas em conformidade com as disposições nacionais do Estado‑Membro em que se situa a central de compras, abrange os processos de recurso, na aceção da Diretiva 92/13, relativos a essas atividades.

33      Como salientou o órgão jurisdicional de reenvio, o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25 não estabelece expressamente se as disposições nacionais do Estado‑Membro em que se situa a central de compras regulam igualmente os processos de recurso e a competência da instância de recurso, na aceção da Diretiva 92/13.

34      As «atividades de compras centralizadas», às quais esta disposição faz referência, são definidas no artigo 2.o, n.o 10, da Diretiva 2014/25 como sendo atividades realizadas a título permanente, quer sob a forma de aquisição de produtos e/ou serviços destinados a entidades adjudicantes, quer como a adjudicação de contratos ou a celebração de acordos‑quadro para obras, fornecimentos ou prestação de serviços destinados a essas entidades.

35      Embora seja verdade que, com base numa interpretação literal, o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25 parece referir‑se apenas ao direito material em matéria de adjudicação de contratos, a sua redação não exclui, no entanto, que esta disposição abranja tanto a legislação em matéria de processos de recurso como a competência da instância de recurso, na aceção da Diretiva 92/13.

36      Nestas condições, em conformidade com jurisprudência constante, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 29 de junho de 2023, Interfel, C‑501/22 a C‑504/22, EU:C:2023:531, n.o 53 e jurisprudência referida).

37      Por outro lado, é igualmente jurisprudência constante que, quando uma disposição do direito da União possa ser objeto de várias interpretações, deve dar‑se prioridade à que é adequada para salvaguardar o seu efeito útil (Acórdão de 29 de junho de 2023, Interfel, C‑501/22 a C‑504/22, EU:C:2023:531, n.o 54 e jurisprudência referida).

38      A este respeito, importa recordar que, em conformidade com o considerando 78 da Diretiva 2014/25, devem ser estabelecidas regras aplicáveis à repartição da responsabilidade pela observância das obrigações previstas por esta diretiva, inclusive em caso de adoção de medidas corretivas, entre a central de compras e as entidades adjudicantes que efetuam as suas compras a esta ou através dela.

39      Este mesmo considerando contempla duas situações, a primeira caracterizada pela circunstância de a central de compras assumir sozinha a responsabilidade pelo desenrolar dos procedimentos de adjudicação de contratos, a segunda caracterizada pela circunstância de uma entidade adjudicante se encarregar de certas partes do processo, tais como a reabertura de concurso em aplicação de um acordo‑quadro ou a adjudicação de contratos particulares com base num sistema de aquisição dinâmico. No primeiro caso, a central de compras deve assumir sozinha a responsabilidade direta pela legalidade dos procedimentos, no segundo caso, deve continuar a ser responsável pelas fases do processo que lhe incumbem.

40      Além disso, o considerando 82 da Diretiva 2014/25 indica que é necessário estabelecer novas regras em matéria de contratação conjunta transfronteiras e que essas regras deverão determinar as condições aplicáveis à utilização transfronteiras de centrais de compras e designar as regras em matéria de contratos públicos, incluindo a regulamentação em matéria de vias de recursos, que se aplica aos procedimentos conjuntos transfronteiras.

41      Resulta destes considerandos que o legislador da União pretendeu não só determinar o direito material aplicável aos contratos transfronteiras e às centrais de compras, mas também o direito relativo aos processos de recurso a que esses contratos e atividades podem dar origem.

42      Por conseguinte, há que privilegiar uma interpretação das disposições da Diretiva 2014/25 que regulam esses contratos e atividades que permita englobar tanto o direito material como o relativo às vias de recurso.

43      Assim, há que considerar que a Diretiva 2014/25 faz referência ao direito dos Estados‑Membros não só em relação às disposições deste direito que regulam o desenrolar do processo de adjudicação transfronteiras, mas também em relação às que regem as vias de recurso, incluindo os órgãos jurisdicionais suscetíveis de dar seguimento a esse processo de adjudicação de contrato.

44      Esta interpretação é, de resto, conforme com o objetivo da Diretiva 2014/25, que é o de estabelecer um regime uniforme em matéria de compras centralizadas transfronteiras. Com efeito, visto que uma central de compras é chamada a prestar as suas atividades de compras centralizadas em conformidade com as disposições nacionais do Estado‑Membro em que está situada, afigura‑se coerente que o processo de recurso, suscetível de ser iniciado, seja conduzido segundo o direito desse Estado‑Membro e que a competência da instância de recurso em causa seja determinada segundo esse mesmo direito.

45      Por outro lado, o princípio segundo o qual são as disposições do Estado‑Membro em que uma entidade adjudicante está situada que regem os processos de recurso relativos às medidas tomadas por essas entidades está subjacente à regra estabelecida no artigo 1.o, quarto parágrafo, da Diretiva 92/13, segundo a qual os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para garantir que as decisões tomadas pelas entidades adjudicantes possam ser objeto de recursos eficazes no que diz respeito aos contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/25 ou da Diretiva 2014/23, e, especialmente, tão céleres quanto possível, com fundamento na violação, por tais decisões, do direito da União em matéria de contratos públicos ou das regras nacionais de transposição desse direito.

46      Tal não exclui, como a Comissão Europeu observou, que se deva, sendo caso disso, fazer uma distinção entre o direito aplicável ao procedimento de adjudicação do contrato e o direito suscetível de se aplicar aos contratos celebrados subsequentemente.

47      Cabe igualmente aos órgãos jurisdicionais nacionais, chamados a conhecer de um litígio decorrente de um processo de adjudicação transfronteiras, dar especial atenção à repartição das responsabilidades que incumbem aos atores envolvidos no desenrolar desse processo e aos limites das suas competências que, se for caso disso, daí resultam, tendo em conta a regra enunciada no artigo 57.o, n.o 1, da Diretiva 2014/25, recordada no n.o 27 do presente acórdão.

48      Tendo em conta as considerações anteriores, há que responder à segunda questão que o artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25, lido à luz dos considerandos 78 e 82 desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que a regra de conflitos de leis consagrada nesta disposição, por força da qual as atividades de compras centralizadas de uma central de compras são prestadas em conformidade com as disposições nacionais do Estado‑Membro em que essa central de compras está situada, abrange as vias de recurso, na aceção da Diretiva 92/13, relativas a essas atividades, na medida em que a referida central de compras esteja encarregada do desenrolar do processo de adjudicação do contrato.

 Quanto à terceira questão

49      Tendo em conta as respostas dadas às questões primeira e segunda, não há que responder à terceira questão que o órgão jurisdicional de reenvio colocou apenas para o caso de a resposta à primeira ou à segunda questão ser negativa.

 Quanto às despesas

50      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

1)      O artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva 2004/17/CE,

deve ser interpretado no sentido de que:

uma atividade de compras centralizada, no âmbito da adjudicação conjunta de contratos por entidades adjudicantes de diferentes EstadosMembros, é efetuada por uma central de compras «situada noutro EstadoMembro» quando a entidade adjudicante tenha a sua sede num EstadoMembro diferente do da sede da central de compras, independentemente, sendo caso disso, do local da sede de uma entidade terceira que detém o controlo de uma ou de outra dessas entidades.

2)      O artigo 57.o, n.o 3, da Diretiva 2014/25, lido à luz dos considerandos 78 e 82 dessa diretiva,

deve ser interpretado no sentido de que:

a regra de conflitos de leis consagrada nesta disposição, por força da qual as atividades de compras centralizadas de uma central de compras são prestadas em conformidade com as disposições nacionais do EstadoMembro em que essa central de compras está situada, abrange as vias de recurso, na aceção da Diretiva 92/13/CEE do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1992, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à aplicação das regras comunitárias em matéria de procedimentos de celebração de contratos de direito público pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, conforme alterada pela Diretiva 2014/23/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão, relativas a essas atividades, na medida em que a referida central de compras esteja encarregada do desenrolar do processo de adjudicação do contrato.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.