CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE
apresentadas em 2 de junho de 2016 (1)
Processo C‑119/15
Biuro podróży «Partner» Sp. z o.o., Sp. komandytowa w Dąbrowie Górniczej
contra
Prezes Urzędu Ochrony Konkurencji i Konsumentów
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Apelacyjny w Warszawie VI Wydział Cywilny (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Secção Cível, Polónia)]
«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CE — Diretiva 2009/22/CE — Efeito erga omnes de uma decisão judicial que declara o caráter abusivo de uma cláusula de condições gerais a partir da inscrição dessa cláusula num registo público — Sanção pecuniária aplicada ao profissional que utilizou uma cláusula desse tipo ou equivalente nas suas condições gerais sem que este tenha sido parte no processo destinado à declaração do caráter abusivo da cláusula — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito de ser ouvido»
I – Introdução
1. Uma decisão judicial que declara o caráter abusivo de uma cláusula que figura num contrato de consumo pode evidentemente ter um caráter vinculativo enquanto precedente jurídico. Podem, no entanto, os Estados‑Membros atribuir a essa decisão um efeito erga omnes, de forma a vincular um profissional que não foi parte no processo? Esta é a questão submetida ao Tribunal de Justiça no presente processo.
2. O pedido de decisão prejudicial inscreve‑se no quadro de um litígio que opõe um profissional às autoridades polacas da concorrência e da proteção dos consumidores relativamente à aplicação de uma coima a esse profissional pelo facto de ter utilizado, nos seus contratos com consumidores, cláusulas contratuais gerais consideradas equivalentes a cláusulas anteriormente declaradas abusivas e inscritas, a esse título, num registo público, embora esse profissional não tenha sido parte no processo que culminou na declaração do caráter abusivo das cláusulas que figuram no registo.
3. O órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça principalmente quanto à questão de saber, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o da Diretiva 93/13/CEE (2), conjugados com os artigos 1.o e 2.o da Diretiva 2009/22/CE (3), se opõem a uma regulamentação como a que está em causa no litígio sobre o qual foi chamado a pronunciar‑se.
4. Neste contexto, o Tribunal de Justiça é convidado a determinar, de forma inédita, os limites da autonomia processual dos Estados‑Membros no âmbito da Diretiva 93/13 e o justo equilíbrio entre a proteção eficaz dos consumidores contra cláusulas abusivas e o direito do profissional de ser ouvido, garantido pelo artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).
II – Quadro jurídico
A – Direito da União
1. Diretiva 93/13
5. O artigo 3.o da Diretiva 93/13 dispõe:
«1. Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.
2. Considera‑se que uma cláusula não foi objeto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão.
[…]
Se o profissional sustar que uma cláusula normalizada foi objeto de negociação individual, caber‑lhe‑á o ónus da prova.
3. O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.»
6. No que se refere à apreciação do caráter abusivo de uma cláusula contratual, o artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva prevê:
«1. Sem prejuízo do artigo 7.o, o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.»
7. O artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe:
«1. Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»
8. O artigo 7.o da Diretiva 93/13 dispõe:
«1. Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.
2. Os meios a que se refere o n.o 1 incluirão disposições que habilitem as pessoas ou organizações que, segundo a legislação nacional, têm um interesse legítimo na defesa do consumidor, a recorrer, segundo o direito nacional, aos tribunais ou aos órgãos administrativos competentes para decidir se determinadas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um caráter abusivo, e para aplicar os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização dessas cláusulas.
3. Respeitando a legislação nacional, os recursos previstos no n.o 2 podem ser interpostos, individualmente ou em conjunto, contra vários profissionais do mesmo setor económico ou respetivas associações que utilizem ou recomendem a utilização das mesmas cláusulas contratuais gerais ou de cláusulas semelhantes.»
9. O artigo 8.o da Diretiva 93/13 prevê que os Estados‑Membros podem adotar ou manter disposições mais rigorosas que as previstas por esta diretiva, na medida em que sejam compatíveis com o Tratado.
10. O artigo 8.o‑A, n.o 1, da Diretiva 93/13 tem a seguinte redação (4):
«1. Se um Estado‑Membro adotar disposições nos termos do artigo 8.o, ele informa a Comissão desse facto, bem como de modificações posteriores, em particular caso essas disposições:
[…]
— incluam listas de cláusulas contratuais consideradas abusivas.»
2. Diretiva 2009/22
11. O artigo 1.o da Diretiva 2009/22, na sua versão em vigor à data dos factos do litígio do processo principal, intitulado «Âmbito de aplicação», dispõe:
«1. A presente diretiva tem por objeto aproximar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às ações inibitórias referidas no artigo 2.o, para a proteção dos interesses coletivos dos consumidores incluídos nas diretivas enumeradas no anexo I, para garantir o bom funcionamento do mercado interno.
2. Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por infração todo e qualquer ato contrário ao disposto nas diretivas enumeradas no anexo I, transpostas para a ordem jurídica interna dos Estados‑Membros e que prejudique os interesses coletivos referidos no n.o 1.»
12. O anexo I da Diretiva 2009/22, com o título «Lista das diretivas referidas no artigo 1.o», menciona, no ponto 5, a Diretiva 93/13.
13. O artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2009/22, intitulado «Ações inibitórias», dispõe:
«1. Os Estados‑Membros designam os tribunais ou as autoridades administrativas competentes para conhecer das ações e recursos intentados pelas entidades com legitimidade para agir nos termos do artigo 3.o a fim de que:
a) seja tomada uma decisão, com a devida brevidade, se for caso disso mediante um processo expedito, com vista à cessação ou proibição de qualquer infração;
b) sempre que tal se justifique, sejam determinadas medidas como por exemplo a publicação integral ou parcial da decisão, na forma considerada adequada, e/ou a publicação de uma declaração retificativa tendo em vista eliminar os efeitos persistentes da infração;
c) na medida em que o sistema jurídico do Estado‑Membro em causa o permita, e em caso de não cumprimento da decisão no prazo fixado pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, o requerido que deva cumprir seja obrigado a pagar ao erário público, ou a qualquer beneficiário designado ou previsto na legislação nacional, um montante fixo por cada dia de atraso ou qualquer outro montante previsto na legislação nacional para garantir a execução das decisões.»
B – Direito polaco
1. Lei da Proteção da Concorrência e dos Consumidores
14. O artigo 24.o, n.o 1 e n.o 2, ponto 1 da Ustawa o ochronie konkurencji i konsumentów (Lei da Concorrência e da Proteção dos Consumidores), de 16 de fevereiro de 2007 (Dziennik Ustaw n.o 50, posição 331), na sua versão aplicável no processo principal dispõe (5):
«1. O recurso a práticas lesivas dos interesses coletivos dos consumidores é proibido.
2. Entende‑se por prática lesiva dos interesses coletivos dos consumidores, qualquer comportamento ilícito de um profissional que ameace esses interesses, em especial:
1) a utilização de cláusulas de condições gerais que foram inscritas no registo das cláusulas contratuais gerais declaradas ilícitas, previsto no artigo 47945 da Lei de 17 de novembro de 1964, que aprova o Código de Processo Civil (Dz. U., n.o 43, posição 296, conforme alterada).»
15. O artigo 26.o, n.o 1, da Lei da Proteção da Concorrência e dos Consumidores dispõe:
«1. Quando o [presidente da Autoridade da Concorrência e da Proteção dos Consumidores] constata a violação da proibição prevista no artigo 24.o, profere uma decisão na qual declara que a prática em questão é lesiva dos interesses coletivos dos consumidores e determina a sua cessação […]»
16. O artigo 106.o, n.o 1, ponto 4, da Lei da Proteção da Concorrência e dos Consumidores dispõe:
«1. Por decisão, o [presidente da Autoridade da Concorrência e da Proteção dos Consumidores] pode aplicar ao profissional uma coima cujo montante não pode ultrapassar 10% do volume de negócios realizado no exercício precedente ao ano de aplicação da coima, quando o profissional, salvo se o fizer de forma involuntária:
[…]
4) tiver recorrido a uma prática lesiva dos interesses coletivos dos consumidores, na aceção do artigo 24.o»
2. Código de Processo Civil
17. Os artigos 47942, n.o 1, 47943 e 47945, n.os 1 a 3, da Ustawa — Kodeks postępowania cywilnego (Lei que aprova o Código de Processo Civil) de 17 de novembro de 1964 (Dz. U. de 2014, posição 101), na sua versão aplicável no processo principal (a seguir «Código de Processo Civil»), dispõem (6):
«Artigo 47942
§1. Se for dado provimento ao pedido, o tribunal reproduz, no dispositivo da sua sentença, o conteúdo das cláusulas contratuais gerais declaradas ilícitas e proíbe a sua utilização.
Artigo 47943
A sentença transitada em julgado produz efeitos em relação a terceiros a partir da inscrição da cláusula contratual geral declarada ilícita no registo previsto no artigo 47945, n.o 2.
Artigo 47945
§1. O tribunal transmite ao [presidente da Autoridade da Concorrência e da Proteção dos Consumidores] uma cópia da sentença transitada em julgado que deu provimento ao pedido.
§ 2. O [presidente da Autoridade da Concorrência e da Proteção dos Consumidores] mantém o registo das cláusulas contratuais gerais declaradas ilícitas, com base nas sentenças referidas no n.o 1.
§ 3. O registo previsto no n.o 2 é público.»
III – Factos e litígio do processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça
18. Por decisão de 22 de novembro de 2011, o presidente da Urząd Ochrony Konkurencji i Konsumentów (Autoridade da Concorrência e da Proteção dos Consumidores, Polónia, a seguir «a UOKiK») aplicou uma coima de 21 127 zlotys polacos (PLN) (cerca de 4 940 euros) à sociedade HK Zakład Usługowo Handlowy «Partner» Sp. z o.o. (a seguir «HK Partner»), que exerce uma atividade económica, nomeadamente, na área dos serviços turísticos. Esta decisão foi adotada ao abrigo do artigo 24.o, n.o 1 e do artigo 24.o, n.o 2, ponto 1, e do artigo 106.o, n.o 1, ponto 4, da Lei da Proteção da Concorrência e dos Consumidores, pelo facto de a HK Partner ter utilizado cláusulas de condições gerais de venda de viagens consideradas equivalentes a cláusulas anteriormente declaradas ilícitas, e depois inscritas no registo público das cláusulas abusivas, previsto no artigo 47945, n.o 2, do Código de Processo Civil (a seguir «registo das cláusulas abusivas») (7).
19. A HK Partner intentou uma ação de impugnação da decisão do presidente da UOKiK, de 22 de novembro de 2011, no Sąd Okręgowy w Warszawie — Sąd Ochrony Konkurencji i Konsumentów (Tribunal de círculo de Varsóvia — Tribunal da concorrência e da proteção dos consumidores, a seguir «SOKiK»), pedindo a anulação dessa decisão e, a título subsidiário, a redução da sanção pecuniária. Na pendência do processo no SOKiK, ocorreu a cisão da HK Partner, na sequência da qual a recorrente, a sociedade Biuro podróży «Partner» Sp. Z o.o. (a seguir «Biuro podróży Partner») sucedeu em todos os direitos e obrigações da HK Partner relacionados com a atividade turística. Por sentença de 19 de novembro de 2013, o SOKiK julgou a ação improcedente, partilhando da apreciação do presidente da UOKiK quanto à equivalência das cláusulas utilizadas pela HK Partner às cláusulas que figuram no registo das cláusulas abusivas.
20. A Biuro podróży Partner interpôs recurso no Sąd Apelacyjny w Warszawie VI Wydział Cywilny (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Secção Cível, Polónia), pedindo a anulação da decisão de 22 de novembro de 2011 do presidente da UOKiK e, a título subsidiário, a anulação da sentença de 19 de novembro de 2013 do SOKiK e a remessa do processo para esse tribunal para reexame.
21. O Sąd Apelacyjny w Warszawie VI Wydział Cywilny tendo dúvidas quanto à interpretação do direito da União, o (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Secção Cível) decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1. À luz do artigo 6.o, n.o 1 e do artigo 7.o da Diretiva [93/13], conjugado com os artigos 1.o e 2.o da Diretiva [2009/22], pode a utilização de cláusulas contratuais gerais (CCG) que correspondam materialmente a disposições declaradas ilegais por acórdão transitado em julgado e inscritas no registo das CCG ilegais ser considerada, em relação a uma empresa que não foi parte no processo que culminou na inscrição no registo das CCG ilegais, um ato ilícito que, à luz do direito nacional, representa uma prática lesiva dos interesses coletivos dos consumidores e, por esse motivo, justifica a aplicação de uma coima no âmbito de um procedimento administrativo nacional?
2. À luz do artigo 267.o, terceiro parágrafo, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o órgão jurisdicional de segunda instância de cuja decisão foi interposto recurso de cassação, nos termos previstos no Código de Processo Civil polaco, constitui um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso ou é o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal), que é competente para apreciar o recurso de cassação, um órgão jurisdicional nacional desse tipo?»
22. Tendo em atenção a jurisprudência clara do Tribunal de Justiça relativa à interpretação do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE (8), a segunda questão prejudicial não levanta novas questões de direito. Por conseguinte, deve apreciar‑se unicamente a primeira questão prejudicial que é a única inédita.
23. Foram apresentadas observações escritas pelo Governo polaco e pela Comissão Europeia. O Governo polaco e a Comissão participaram na audiência realizada em 9 de março de 2016.
IV – Análise jurídica
A – Observações preliminares
1. Quanto ao sistema polaco de proteção dos consumidores contra as cláusulas abusivas
24. Antes de mais, importa detalhar um pouco o sistema polaco de proteção dos consumidores contra as cláusulas abusivas, que aplica três formas de controlo das cláusulas abusivas, a saber, um controlo individual, um controlo in abstracto e um controlo administrativo (9).
25. O controlo individual é exercido no caso dos litígios pendentes nos órgãos jurisdicionais ordinários que oponham consumidores e profissionais a respeito do caráter abusivo das cláusulas constantes dos contratos particulares. A decisão judicial relativa a um controlo individual só vincula as partes no processo.
26. Em contrapartida, o controlo in abstracto é exercido por um órgão jurisdicional de competência especializada, a saber, o SOKiK, e é submetido a um processo especial regulamentado, entre outros, pelo artigo 47942, n.o 1, artigo 47943 e artigo 47945, n.os 1 a 3, do Código de Processo Civil (10). Este controlo, que incide apenas sobre as cláusulas constantes das condições gerais, tem por objetivo eliminar cláusulas que tenham um caráter abusivo. A apreciação do SOKiK baseia‑se na redação da cláusula contestada e, assim, é independente da forma como essa cláusula é utilizada nos contratos particulares (11). O SOKiK pode ser chamado a pronunciar‑se, nomeadamente, por qualquer consumidor, que esteja ou não vinculado por um contrato, pelas organizações não‑governamentais criadas para a defesa dos interesses dos consumidores e pelo presidente da UOKiK (12).
27. Quando o SOKiK decide sobre o caráter abusivo de uma cláusula contratual geral no âmbito do controlo in abstracto, reproduz no dispositivo da sua sentença, por força do artigo 47942, n.o 1, do Código de Processo Civil, o conteúdo da cláusula contestada e proíbe a sua utilização. A sentença transitada em julgado que dá provimento ao pedido é em seguida publicada e a cláusula declarada abusiva inscrita no registo das cláusulas abusivas mantido pelo presidente da UOKiK. Segundo o Governo polaco, depois de uma cláusula ter sido inscrita no registo, não é possível corrigi‑la ou suprimi‑la desse registo.
28. Segundo o Governo polaco, o controlo administrativo está estreitamente ligado ao controlo in abstracto, uma vez que executa as sentenças do SOKiK. Com efeito, no controlo administrativo, o presidente da UOKiK verifica se a cláusula contestada é idêntica ou equivalente a uma cláusula contratual inscrita no registo das cláusulas abusivas, tendo em conta, nomeadamente, o conteúdo da cláusula contestada e os seus efeitos para o consumidor. Para que haja equivalência, não é necessário que o conteúdo das cláusulas comparadas seja idêntico. Basta constatar que a cláusula contestada corresponde ao caso concreto da cláusula inscrita nesse registo. O profissional cujas cláusulas contratuais gerais são objeto de controlo administrativo não tem, geralmente, a possibilidade de contestar o caráter abusivo da cláusula contestada, nas circunstâncias específicas, mas apenas a sua equivalência a cláusulas já inscritas no registo.
29. Quando o presidente da UOKiK constata uma violação da proibição prevista no artigo 24.o, n.o 2, ponto 1, da Lei da Proteção da Concorrência e dos Consumidores (13), determina, por decisão, a cessação da prática lesiva dos interesses coletivos dos consumidores e, eventualmente, a aplicação de uma coima ao profissional, ao abrigo do artigo 106.o, n.o 1, ponto 4, desta lei.
30. As decisões do presidente da UOKiK estão sujeitas a um controlo jurisdicional exercido pelo SOKiK, na qualidade de órgão jurisdicional de primeira instância e pelo Sąd Apelacyjny w Warszawie VI Wydział Cywilny (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Secção Cível) como órgão jurisdicional de segunda instância (14). Resulta da decisão do órgão jurisdicional de reenvio que esse controlo jurisdicional tem por objeto analisar não o caráter abusivo da cláusula contestada, mas apenas a sua equivalência a outras cláusulas que constam do registo das cláusulas abusivas.
2. Quanto ao conteúdo da primeira questão prejudicial
31. Resulta da decisão de reenvio que há dúvidas quanto à interpretação do artigo 24.o, n.o 2, ponto 1, da Lei da Proteção da Concorrência e dos Consumidores e do artigo 47943 do Código de Processo Civil (15), que suscitam divergências tanto na jurisprudência como na doutrina. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, estão em confronto duas teorias sobre a matéria.
32. De acordo com a primeira teoria, defendida pelo presidente da UOKiK, no processo principal, e baseada numa leitura textual do artigo 47943 do Código de Processo Civil, as decisões proferidas pelo SOKiK no âmbito do controlo in abstracto têm um efeito erga omnes em relação a todos os profissionais, a partir da sua inscrição no registo das cláusulas abusivas (16) (a seguir «primeira teoria de interpretação»).
33. De acordo com a segunda teoria, conforme descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio e pelo Governo polaco, uma decisão do SOKiK que declara a ilicitude de uma cláusula contratual geral só diz respeito à cláusula concreta visada pelo processo e vincula apenas as partes no litígio.
34. O órgão jurisdicional de reenvio considera que, para interpretar corretamente as disposições nacionais em causa, é preciso ter em conta as exigências do direito da União, o que justifica o pedido de decisão prejudicial. Mais especificamente, este órgão jurisdicional pergunta se o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o da Diretiva 93/13 e os artigos 1.o e 2.o da Diretiva 2009/22 se opõem à regulamentação polaca aplicável tal como interpretada de acordo com a primeira teoria de interpretação e, nomeadamente, se essa interpretação está em conformidade com o direito fundamental do profissional de ser ouvido.
35. Embora não caiba ao Tribunal de Justiça, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, pronunciar‑se sobre a interpretação das normas do direito interno, incluindo a opção entre duas formas de interpretação, nem sobre a compatibilidade de normas de direito interno com as disposições do direito da União, tarefas que incumbem em exclusivo ao órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, tem competência para fornecer ao órgão jurisdicional nacional quaisquer elementos de interpretação do direito da União que lhe permitam apreciar a compatibilidade de normas de direito interno com a regulamentação da União (17).
36. Recordo, a este respeito, que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio fazer tudo o que for da sua competência para interpretar as regras nacionais aplicáveis no processo principal, na medida do possível, à luz da norma e da finalidade do direito da União, tomando em consideração todo o direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, para garantir a plena eficácia da Diretiva 93/13 e alcançar uma solução conforme com o objetivo por ela prosseguido (18).
37. Não obstante a formulação da primeira questão prejudicial, considero que se deve analisá‑la à luz da Diretiva 93/13 na sua integralidade, tendo também em conta as exigências que decorrem da Carta, nomeadamente o seu artigo 47.o relativamente ao direito de ser ouvido. Recordo, a este propósito, que para fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional que submeteu a questão prejudicial, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas do direito da União às quais o juiz nacional não fez referência no enunciado da sua questão (19).
38. Consequentemente, a questão prejudicial deve, na minha opinião, ser entendida no sentido de que se destina a saber se a Diretiva 93/13, conjugada com os artigos 1.o e 2.o da Diretiva 2009/22 e com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que prevê a aplicação de uma coima ao profissional que utiliza, nos seus contratos com os consumidores, cláusulas de condições gerais que são consideradas equivalentes a cláusulas já declaradas abusivas e inscritas, a esse título, num registo público, quando esse profissional não foi parte no processo que culminou na declaração do caráter abusivo das cláusulas que figuram no registo.
B – Quanto à interpretação da Diretiva 93/13
1. Observações gerais
39. O sistema de proteção instituído pela Diretiva 93/13 assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade perante o profissional, no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação (20). A este respeito, os artigos 6.o e 7.o desta diretiva impõem aos Estados‑Membros que garantam «meios adequados e eficazes» para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos de consumo (21) e estipulem que as cláusulas abusivas não vinculem os consumidores, destinando‑se, de acordo com os termos do Tribunal de Justiça, «a substituir o equilíbrio formal que o contrato estabelece entre os direitos e obrigações dos cocontratantes por um equilíbrio real suscetível de restabelecer a igualdade entre eles» (22).
40. Não há dúvida de que um regime como o previsto na regulamentação polaca pode garantir um elevado nível de proteção dos consumidores (23). Ao atribuir às decisões proferidas no âmbito do controlo in abstracto um efeito erga omnes e ao permitir a aplicação de coimas substanciais (24) aos profissionais, tal regime obsta, de forma eficaz e célere, à utilização das cláusulas declaradas abusivas bem como de cláusulas análogas que tenham um efeito negativo semelhante para o consumidor. Além disso, tal regime impede o contorno da legislação através de ligeiras alterações, de ordem redacional e estilística, das cláusulas já proibidas (25).
41. Como alega o Governo polaco, a Diretiva 93/13 não prevê um modelo específico que deva ser aplicado pelos Estados‑Membros para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas. Também não precisa o efeito jurídico de uma declaração do caráter abusivo de uma cláusula contratual, assentando a diretiva no princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros. Assim, o artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva remete para as condições fixadas pelos direitos nacionais dos Estados‑Membros (26), e o artigo 8.o da referida diretiva autoriza mesmo a adoção ou a manutenção das disposições nacionais mais rigorosas que as previstas na diretiva (27). No entanto, não resulta daqui que os Estados‑Membros gozam de uma liberdade absoluta para adotar disposições mais rigorosas aplicáveis às cláusulas abusivas. Conforme resulta do artigo 8.o da Diretiva 93/13, essas disposições devem ser compatíveis com os Tratados.
42. Ora, contrariamente ao que alega o Governo polaco, considero que um regime como o preconizado pelos defensores da primeira teoria de interpretação não está em conformidade com as exigências que decorrem da Diretiva 93/13, interpretadas à luz da Carta. Esta conclusão apoia‑se nas considerações expostas supra que procuram responder aos argumentos alegados pelo Governo polaco e pela Comissão.
2. Quanto à apreciação concreta e individual do caráter abusivo
a) Quanto ao artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/13.
43. Resulta do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 que o caráter abusivo de uma cláusula que consta dos contratos de consumo é avaliado «em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa (28)».
44. Assim, relativamente à apreciação do caráter abusivo, uma cláusula contratual não pode ser isolada do seu contexto. Consequentemente, esta apreciação não é absoluta, mas antes relativa, na medida em que depende dos factos específicos que envolvem a celebração do contrato (29), incluindo o efeito cumulativo de todas as cláusulas do contrato (30).
45. Também resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que este não se pode pronunciar sobre a aplicação dos critérios gerais, utilizados pelo legislador da União para definir o conceito de cláusula abusiva, a uma cláusula particular que deve ser apreciada em função das circunstâncias próprias do caso, apreciação que incumbe ao juiz nacional (31).
46. Assim, uma cláusula contratual pode ser considerada abusiva em determinadas circunstâncias mas não noutras (32), nomeadamente, em função do preço pago pelo consumidor (33). A apreciação do caráter abusivo também pode mudar com o tempo em função de uma alteração do direito aplicável ao contrato (34).
47. Evidentemente, há cláusulas contratuais manifestamente abusivas, o que facilita a apreciação que incumbe ao juiz nacional nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, sem por essa razão privar essa apreciação do seu caráter concreto. Tais cláusulas também são frequentemente contrárias às regras imperativas dos direitos nacionais do consumo ou dos contratos.
48. Uma decisão judicial nacional que declara, genericamente, o caráter abusivo de uma cláusula contratual ou a sua não conformidade com as regras imperativas tem evidentemente, enquanto precedente, efeitos indiretos significativos sobre outros profissionais que utilizem, nos seus contratos com consumidores, cláusulas idênticas ou similares, uma vez que estes profissionais devem, bem entendido, esperar uma apreciação semelhante num controlo jurisdicional que tenha por objeto os seus contratos. Não deixa de ser verdade que a apreciação do caráter abusivo varia de contrato para contrato em função de circunstâncias específicas e do direito aplicável ao contrato e à cláusula em questão.
49. Consequentemente, parece‑me difícil, para não dizer impossível, conciliar um regime que prevê, genericamente, que o caráter abusivo das cláusulas contratuais gerais seja estabelecido de uma vez por todas, durante um processo jurisdicional in abstracto, com o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, exigindo esta última que a apreciação do caráter abusivo seja concreta e fundada nas circunstâncias específicas.
b) Quanto à lista das cláusulas abusivas que figura em anexo da Diretiva 93/13
50. A Diretiva 93/13 contém, no seu anexo, uma lista que o seu artigo 3.o, n.o 3, qualifica de «lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas» (35).
51. Inicialmente, a Comissão tinha proposto introduzir uma verdadeira lista «negra» das cláusulas consideradas abusivas em quaisquer circunstâncias e, em seguida, uma lista «cinzenta» das cláusulas presumidas abusivas. Todavia, estas abordagens não tiveram o apoio do Conselho da União Europeia que optou por uma lista a título meramente indicativo (36). O Tribunal de Justiça confirmou que «[u]ma cláusula que nela figure não deve ser necessariamente considerada abusiva e, inversamente, uma cláusula que aí não figure pode, todavia, ser declarada abusiva» (37).
52. A opção do legislador quanto à natureza da lista mostra efetivamente, na minha opinião, as dificuldades encontradas na identificação das cláusulas que serão abusivas em quaisquer circunstâncias, mesmo para cláusulas como as que figuram nesta lista que são consideradas particularmente problemáticas devido ao desequilíbrio criado em detrimento do consumidor (38). Isso também se manifesta pela flexibilidade que resulta do texto da lista (39).
c) Quanto à possibilidade de adotar listas nacionais das cláusulas abusivas nos termos do artigo 8.o da Diretiva 93/13
53. Se, em aplicação do artigo 8.o da Diretiva 93/13, um Estado‑Membro «adotar disposições […] [que] incluam listas de cláusulas contratuais consideradas abusivas», tem a obrigação de, nos termos do artigo 8.o‑A, informar a Comissão (40). Contrariamente à lista indicativa que consta em anexo a esta diretiva, as listas nacionais adotadas nos termos do artigo 8.o podem ter um efeito vinculativo, quer sejam «negras» ou «cinzentas» (41).
54. No entanto, a expressão «adotar disposições», que figura no artigo 8.o‑A, n.o 1, da Diretiva 93/13, implica, na minha opinião, que essa lista nacional deve ser estabelecida por via legislativa, isto é, por lei ou por regras administrativas adotadas nos termos da lei. O mecanismo instaurado pelo artigo 8.o e artigo 8.o‑A, n.o 1, desta diretiva implica, assim, que o legislador formule com precisão as cláusulas proibidas ou presumidas abusivas, ponderando cuidadosamente interesses diferentes e por vezes concorrentes, e que as referidas cláusulas sejam notificadas à Comissão. Sublinho que o procedimento legislativo, suscetível de associar partes interessadas, tende, por natureza, para a adoção de regras gerais e abstratas.
55. Ora, um regime como o protagonizado pelos partidários da primeira teoria de interpretação habilita de facto os tribunais nacionais, em vez do legislador, a estabelecer, casuisticamente, uma lista «negra» com base na qual pode ser sancionada a utilização das cláusulas idênticas ou equivalentes. Neste contexto, as cláusulas declaradas abusivas são introduzidas umas a seguir às outras no registo das cláusulas abusivas que é na realidade elaborado pelos profissionais. Daqui resulta claramente que tal regime não é comparável à adoção das listas nacionais autorizada pelo artigo 8.o da Diretiva 93/13.
56. Além disso, tal regime parece‑me dificilmente conciliável com o princípio da legalidade dos crimes e das penas, consagrado no artigo 49.o da Carta, que exige que a lei defina claramente as infrações e as penas que as punem (42).
57. Atendendo ao número significativo e crescente de inscrições no registo das cláusulas abusivas (43), esse regime também suscita dúvidas quanto ao princípio da segurança jurídica que faz parte dos princípios gerais do direito da União (44), uma vez que os profissionais têm forçosamente dificuldades para identificar a situação jurídica em que agem e prever as consequências. Essas dúvidas são particularmente sérias no que respeita à possibilidade de sancionar a utilização de cláusulas apenas «equivalentes» às cláusulas inscritas no registo (45).
3. Quanto ao direito do profissional de ser ouvido
58. Estreitamente relacionada com as considerações expostas supra, relativas à apreciação concreta do caráter abusivo de uma cláusula contratual, põe‑se a questão do direito de um profissional refutar o caráter abusivo das cláusulas que utiliza nos seus contratos com consumidores.
59. Resulta de uma leitura a contrario do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 que uma cláusula não é considerada abusiva quando tenha sido objeto de negociação individual (46). A este propósito, o artigo 3.o, n.o 2, terceiro parágrafo desta diretiva, prevê que o ónus da prova cabe ao profissional que sustar que uma cláusula normalizada foi objeto de negociação individual. Deduzo daqui que a Diretiva 93/13 reconhece ao profissional, no mínimo, o direito de demonstrar que a cláusula contestada foi objeto de negociação individual e que não é, consequentemente, abusiva na aceção da diretiva, nesse caso específico.
60. O direito do profissional, ao abrigo do artigo 3.o, n.o 2, terceiro parágrafo, da Diretiva 93/13, de apresentar argumentos e provas para cumprir o ónus da prova, parece‑me fazer parte do direito mais genérico e mais amplo que decorre do artigo 47.o da Carta, à luz do qual devem ser interpretadas as disposições da Diretiva 93/13 (47).
61. O artigo 47.o da Carta garante a toda a pessoa (48), nas situações abrangidas pelo âmbito de aplicação da Carta (49), o direito de ser ouvido, tanto na pendência de um processo administrativo como de um processo jurisdicional (50). De acordo com as declarações do Tribunal de Justiça, este direito inclui a possibilidade de dar a conhecer, de forma útil e efetiva, o seu ponto de vista, antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar de maneira desfavorável os seus interesses, para que a autoridade competente tenha a possibilidade de ter utilmente em conta todos os elementos pertinentes (51). Isto é, evidentemente, válido para uma decisão que aplica uma sanção pecuniária a um profissional.
62. No âmbito de um controlo jurisdicional tal como o visado pela regulamentação em causa, o direito do profissional de ser ouvido serve duas funções distintas. Em primeiro lugar, dá ao profissional a possibilidade de provar que as circunstâncias específicas que envolveram a celebração do contrato eram diferentes das já apreciadas durante um processo anterior que estabeleceu o caráter abusivo de uma cláusula idêntica ou equivalente. Em segundo lugar, o direito de ser ouvido dá ao profissional a possibilidade de invocar fundamentos, de caráter factual ou jurídico, que não foram invocados, pouco importa a razão, durante o processo anterior in abstracto, e de corrigir erros cometidos durante esse processo (52).
63. Daqui concluo que o direito do profissional de ser ouvido no âmbito da Diretiva 93/13 não se pode limitar à questão de saber se a cláusula contestada foi objeto de uma negociação individual, mas deve incluir qualquer elemento pertinente para a apreciação, à luz do artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva, do caráter abusivo dessa cláusula (53). Assim, o profissional também deve ter a possibilidade de provar que a cláusula contestada não cria, nas circunstâncias específicas, um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, demonstrando, nomeadamente, que o efeito prejudicial dessa cláusula é contrabalançado por outras cláusulas do mesmo contrato ou por um preço reduzido pago pelo consumidor (54).
64. Com base nas informações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio e pelo Governo polaco, parece‑me que um regime como o que decorre da primeira teoria de interpretação não tem suficientemente em conta o direito do profissional de ser ouvido, uma vez que este último não tem a possibilidade, nem durante o controlo administrativo nem durante o controlo jurisdicional no SOKiK e no Sąd Apelacyjny w Warszawie VI Wydział Cywilny (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Secção Cível) de invocar a inexistência, nas circunstâncias específicas, de caráter abusivo da cláusula contestada e de apresentar a respetiva prova (55). Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, esses processos não têm por objeto o controlo do caráter abusivo da cláusula contestada, mas apenas a sua equivalência com as cláusulas que figuram no registo das cláusulas abusivas.
65. Se não se pode excluir, como alega o Governo polaco, que os tribunais nacionais, ao analisarem a equivalência entre a cláusula contestada e a que figura no registo das cláusulas abusivas, tenham em conta fatores mencionados no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 (56), não deixa, todavia, de ser verdade que essa análise tem, em todo o caso, o objetivo exclusivo de determinar a identidade ou a equivalência das duas cláusulas (57) e que o profissional não pode pôr em questão o próprio caráter abusivo da cláusula contestada referindo‑se às circunstâncias específicas, incluindo a negociação individual da cláusula contestada, ou aos novos argumentos que não foram invocados durante o controlo in abstracto. Nesse regime, o direito do profissional previsto no artigo 47.o da Carta é, assim, objeto de restrições significativas (58).
66. Paralelamente, a competência do tribunal que efetua o controlo jurisdicional é consideravelmente limitada, o que levanta por si só questões relativamente ao artigo 47.o da Carta que exige uma «ação» (59). Além disso, tal regime também violaria o direito do consumidor de renunciar à não aplicação de uma cláusula abusiva (60).
67. É certo que, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, o direito de ser ouvido pode comportar restrições com a condição de que estas correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos e que observem o princípio da proporcionalidade (61). A este respeito, o Governo polaco alega, na minha opinião com razão, que a regulamentação nacional visa fazer cessar, de forma célere e efetiva, a utilização das cláusulas ilícitas nas diferentes situações que podem ocorrer no mercado e evitar uma pluralidade de processos judiciais respeitantes a cláusulas equivalentes das condições gerais utilizadas por diferentes profissionais (62).
68. Ora, estas considerações, embora certamente válidas, não podem justificar, do meu ponto de vista, a restrição especialmente grave do direito do profissional de ser ouvido em resultado do artigo 47943 do Código de Processo Civil e do artigo 24.o, n.o 2, ponto 1, da Lei da Proteção da Concorrência e dos Consumidores, conforme interpretados de acordo com a primeira teoria de interpretação, tendo em conta, também, o caráter não negligenciável das coimas suscetíveis de serem aplicadas ao profissional, por força do artigo 106.o, n.o 1, ponto 4, desta lei (63).
69. O caráter definitivo da inscrição das cláusulas no registo das cláusulas abusivas, também corrobora a conclusão de que a regulamentação nacional em questão, conforme interpretada pela primeira teoria de interpretação, não está em conformidade com o princípio da proporcionalidade (64).
70. Como afirma a Comissão, parece haver medidas alternativas que facilitam uma proteção eficaz dos consumidores contra cláusulas abusivas ao mesmo tempo que garantem o direito do profissional de ser ouvido. Assim, os Estados‑Membros não estão impedidos de aplicar medidas que estabelecem uma presunção do caráter abusivo de determinadas cláusulas de condições gerais (65), cuja utilização poderia ser sancionada, exceto se o profissional demonstrar, durante um processo administrativo ou jurisdicional, que elas não o são nas circunstâncias específicas, provando, nomeadamente, que foram objeto de uma negociação individual.
71. Acresce que, a inexistência de um efeito erga omnes não significa que uma declaração do caráter abusivo de uma cláusula contratual geral não tenha um efeito dissuasivo, na medida em que outros profissionais terão tendência a deixar de utilizar cláusulas análogas (66).
C – Quanto às ações coletivas inibitórias
1. Quanto ao artigo 7.o, n.os 2 e 3, da Diretiva 93/13
72. Como afirma a Comissão, a Diretiva 93/13 autoriza, nos termos do seu artigo 7.o, n.os 2 e 3, ações coletivas inibitórias que ultrapassam efetivamente a relação contratual visto que são independentes de qualquer conflito individual e podem ser interpostas pelas pessoas e pelas organizações que tenham um interesse legítimo na proteção dos consumidores (67). Como indica a expressão «[s]em prejuízo do artigo 7.o», que consta do artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva, as ações referidas no artigo 7.o, n.o 2, da mesma diretiva, têm um caráter complementar relativamente às ações individuais (68).
73. O artigo 7.o, n.o 2, da diretiva, prevê um controlo in abstracto de natureza preventiva e dissuasora (69) com o objetivo de decidir «se determinadas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um caráter abusivo», ao passo que o artigo 7.o, n.o 3, da mesma diretiva permite propor as ações referidas no artigo 7.o, n.o 2, individualmente ou em conjunto, contra vários profissionais do mesmo setor ou respetivas associações.
74. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que as ações individuais e a coletivas têm, no âmbito da Diretiva 93/13, «objetos e efeitos jurídicos diferentes» (70). Além disso, segundo o vigésimo terceiro considerando da Diretiva 93/13, as ações coletivas não implicam «um controlo prévio das condições gerais utilizadas nos diversos setores económicos» Daqui deduzo que o controlo ex ante efetuado no âmbito de uma ação coletiva não pode prejudicar o controlo ex post efetuado no âmbito de uma ação individual que visa outras partes (71), o que exclui efetivamente o facto de alargar os efeitos das decisões adotadas no termo das ações coletivas aos profissionais que não foram parte no processo (72).
75. Esta conclusão é reforçada pelo suporte que constitui o artigo 7.o, n.o 3, da Diretiva 93/13. Assim, do meu ponto de vista, não teria sentido permitir a introdução dos processos de múltiplas partes, ao abrigo do n.o 3, se as decisões proferidas no âmbito das ações coletivas previstas no artigo 7.o, n.o 2 da mesma diretiva já vinculam de forma obrigatória qualquer profissional. Os trabalhos preparatórios desta diretiva também apoiam a interpretação de que as decisões tomadas nas ações coletivas inibitórias previstas no artigo 7.o, n.os 2 e 3, só vinculam as partes na ação coletiva específica (73).
76. É certo que, relativamente às cláusulas de condições gerais que raramente são objeto de uma negociação individual, a apreciação que os tribunais nacionais devem fazer, respetivamente, no âmbito de uma ação coletiva e de uma ação individual, é muitas vezes semelhante, ou até idêntica, embora as partes nos processos não sejam as mesmas. Por conseguinte, a decisão proferida no âmbito de uma ação coletiva constitui um forte precedente para a apreciação a fazer numa ação individual posterior que tenha por objeto uma cláusula idêntica ou equivalente e pode até criar uma presunção quanto ao caráter abusivo dessa cláusula. No entanto, não prejudica que o profissional que não foi parte no processo coletivo não deve ser privado da possibilidade, ao abrigo do artigo 3.o, n.o 2, terceiro parágrafo, da Diretiva 93/13 e do artigo 47.o da Carta, de refutar tal presunção no âmbito da ação individual.
2. Quanto ao alcance do acórdão Invitel
77. Como realçam o Governo polaco e a Comissão, o Tribunal de Justiça declarou, no acórdão Invitel, que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, conjugado com o artigo 7.o, n.os 1 e 2, desta diretiva, não se opõe ao alargamento do efeito das decisões que declaram o caráter abusivo de uma cláusula de condições gerais, no âmbito de uma ação inibitória prevista no artigo 7.o da referida diretiva «para todos os consumidores que tenham celebrado com o profissional em causa um contrato ao qual se aplicam as mesmas [condições gerais], incluindo para os consumidores que não eram partes no processo relativo à ação inibitória» (74).
78. Este resultado não é surpreendente, mas antes o corolário da natureza e do objetivo das ações coletivas inibitórias. Quando uma cláusula contratual tiver sido declarada nula e proibida no âmbito de uma ação inibitória, há que, evidentemente, garantir que o profissional em causa deixa de utilizar as mesmas condições gerais, incluindo a cláusula declarada abusiva, em todos os seus contratos. De contrário, as ações inibitórias previstas pelo artigo 7.o, n.os 2 e 3, da Diretiva 93/13 ficariam privadas de efeito útil.
79. No n.o 40 do acórdão Invitel, o Tribunal de Justiça sublinhou acertadamente que a aplicação de uma sanção de nulidade de uma cláusula abusiva relativamente a todos os consumidores que celebraram um contrato de consumo com o profissional em causa a que se aplicam as mesmas condições gerais «garante que estes consumidores não estão vinculados pela referida cláusula» (75), referindo‑se assim o Tribunal de Justiça ao artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, que impõe aos Estados‑Membros, nos termos utilizados pelo Tribunal de Justiça, «retirar daí todas as consequências» que decorram, segundo o direito nacional, de uma declaração do caráter abusivo de uma cláusula contratual geral, para que a referida cláusula não vincule os consumidores (76).
80. Na minha opinião, não há quaisquer dúvidas de que esta jurisprudência não é transponível para o presente caso.
81. Assim, na fundamentação da sua conclusão, no acórdão Invitel (77), o Tribunal de Justiça referiu‑se explicitamente aos n.os 57 a 61 das conclusões da advogada‑geral que, pelo seu lado, exprimiu «sérias dúvidas» quanto a um efeito erga omnes relativamente aos profissionais que não eram partes no processo destinado à declaração do caráter abusivo da cláusula contestada, preocupações que eu subscrevo plenamente (78).
82. Além disso, a questão que se apresentava ao Tribunal de Justiça no processo que deu origem a esse acórdão, a saber, a extensão da sanção de nulidade de uma cláusula abusiva relativamente a consumidores que celebraram com o profissional em causa um contrato de consumo ao qual se aplicam as mesmas condições gerais, era manifestamente diferente da suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo, que tem por objeto a aplicação de sanções pecuniárias aos profissionais que não participaram no processo de controlo in abstracto.
83. Por conseguinte, uma interpretação ampla do alcance do acórdão Invitel (79), como se abrangesse uma regulamentação que previsse um efeito erga omnes relativamente a qualquer profissional que não foi parte no processo, não me parece justificada, e estaria, em todo o caso, pouco de acordo com os direitos fundamentais do profissional (80).
3. Quanto à interpretação da Diretiva 2009/22
84. A interpretação da Diretiva 93/13 que preconizo não é suscetível de ser posta em causa à luz dos artigos 1.o e 2.o da Diretiva 2009/22, aos quais o órgão jurisdicional de reenvio faz referência na sua primeira questão prejudicial.
85. A Diretiva 2009/22 relativa às ações coletivas inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores tem por objetivo garantir o pleno efeito de determinadas diretivas, incluindo a Diretiva 93/13, e, em particular, combater as infrações na União (81).
86. A este propósito, o artigo 2.o, n.o 1, alíneas a) a c), da Diretiva 2009/22 impõe aos Estados‑Membros que designem os tribunais ou as autoridades administrativas competentes para conhecer das ações e recursos intentados pelas entidades com legitimidade para agir nos termos do artigo 3.o desta diretiva, com o objetivo, entre outros, de fazer cessar qualquer ato contrário à Diretiva 93/13, de obter a publicação da decisão ou de uma declaração retificativa e de, em caso de não cumprimento da decisão, o requerido que deva cumprir ser obrigado a pagar um montante ao erário público, ou a qualquer beneficiário designado ou previsto na legislação nacional.
87. No que respeita à articulação entre a Diretiva 2009/22 e a Diretiva 93/13, a primeira tem um caráter complementar relativamente ao artigo 7.o, n.os 2 e 3, da Diretiva 93/13, que tem também por objeto as ações inibitórias (82).
88. Não encontro nenhuma indicação, nem no texto da Diretiva 2009/22 nem nos respetivos trabalhos preparatórios (83), no sentido de os Estados‑Membros estarem autorizados a conceder às decisões proferidas no âmbito das ações visadas por esta diretiva um efeito erga omnes relativamente aos profissionais que não foram partes na ação inibitória. Se tal fosse o caso, a Diretiva 2009/22 ultrapassaria o regime estabelecido pela Diretiva 93/13, que a primeira visa completar, o que não se pode presumir na falta de vontade expressa do legislador da União.
89. Uma alteração do direito da União de forma a permitir aos Estados‑Membros alargar os efeitos das decisões que declaram uma cláusula contratual abusiva relativamente a «contratos semelhantes», foi, entretanto, abordada sob os auspícios da Comissão (84). Ora, isto só vem confirmar que tal solução não é possível no estado atual do direito da União, ou seja, no âmbito das Diretivas 93/13 e 2009/22.
V – Conclusão
90. Tendo em conta o que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda nos seguintes termos à primeira questão prejudicial submetida pelo Sąd Apelacyjny w Warszawie VI Wydział Cywilny (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Secção Cível, Polónia):
A Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, conjugada com os artigos 1.o e 2.o da Diretiva 2009/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa às ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores e com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que prevê a aplicação de uma coima ao profissional que utiliza, nos seus contratos com os consumidores, cláusulas de condições gerais que são consideradas equivalentes às cláusulas já declaradas abusivas e inscritas, a esse título, num registo público, quando esse profissional não foi parte no processo que culminou na declaração do caráter abusivo das cláusulas que figuram no registo.