Language of document : ECLI:EU:C:2023:185

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

9 de março de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Competência em matéria de contratos celebrados pelos consumidores — Conceito de “consumidor” — Comportamento da pessoa que reivindica a qualidade de consumidor que pode causar a impressão à outra parte no contrato de que age com fins profissionais»

No processo C‑177/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landesgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo, Áustria), por Decisão de 24 de fevereiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de março de 2022, no processo

JA

contra

Wurth Automotive GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: L. S. Rossi, presidente de secção, J.‑C. Bonichot e O. Spineanu‑Matei (relatora), juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de JA, por B. Heim, Rechtsanwalt,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Noë e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 17.o e 18.o do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe JA, nacional austríaca, à Wurth Automotive GmbH, sociedade alemã, a respeito da competência dos órgãos jurisdicionais austríacos para decidir de um pedido de indemnização por vícios ocultos de um veículo automóvel que foi objeto de um contrato de compra e venda.

 Quadro jurídico

3        O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, que figura na secção 4, intitulada «Competência em matéria de contratos de consumo», do capítulo II, intitulado «Competência», deste mesmo regulamento, prevê:

«Em matéria de contrato celebrado por uma pessoa, o consumidor, para finalidade que possa ser considerada estranha à sua atividade comercial ou profissional, a competência é determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 6.o e no artigo 7.o, ponto 5, se se tratar de:

a)      Contrato de compra e venda, a prestações, de bens móveis corpóreos;

b)      Contrato de empréstimo reembolsável em prestações, ou outra forma de crédito concedido para financiamento da venda de tais bens; ou

c)      Em todos os outros casos, contrato celebrado com uma pessoa com atividade comercial ou profissional no Estado‑Membro do domicílio do consumidor ou que dirija essa atividade, por quaisquer meios, a esse Estado‑Membro ou a vários Estados incluindo esse Estado‑Membro, desde que o contrato seja abrangido por essa atividade.»

4        Segundo o artigo 18.o, n.o 1, deste regulamento:

«O consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

5        A demandante no processo principal, cujo parceiro é vendedor de automóveis e gestor comercial de uma plataforma em linha de venda de veículos automóveis (a seguir «parceiro»), figurava na página inicial dessa plataforma como designer gráfica e criadora de sítios Internet, sem que à data dos factos relevantes no processo principal exercesse efetivamente essa atividade.

6        A pedido da demandante no processo principal, que manifestou o desejo de adquirir um veículo automóvel, o parceiro efetuou pesquisas e contactou a demandada no processo principal, tendo‑lhe enviado, em 11 de março de 2019, um correio eletrónico, a partir do seu endereço de correio eletrónico profissional, no qual fazia uma proposta de preço para a aquisição, tributada segundo o regime da margem de lucro, de um veículo com uma primeira matrícula na Alemanha e cujo pagamento seria feito em dinheiro. No referido correio eletrónico, mencionava‑se que o contrato de compra e venda devia ser celebrado em nome da demandante no processo principal. Houve igualmente um contacto telefónico entre o parceiro e um colaborador da demandada no processo principal cujo conteúdo não foi possível provar de modo juridicamente bastante.

7        Por correio eletrónico, a demandada no processo principal transmitiu ao parceiro o contrato de compra e venda que mencionava a «sociedade JA» na qualidade de compradora e que incluía uma rubrica intitulada «Convenções especiais: Transação comercial/sem devolução nem garantia/entrega apenas após receção do pagamento […]».

8        A demandante no processo principal assinou o referido contrato sem contestar as menções que constavam do mesmo. O parceiro remeteu posteriormente o contrato à demandada no processo principal por correio eletrónico e, em 13 de março de 2019, recuperou o veículo junto da mesma.

9        A fatura emitida nesse contexto continha a menção «Não é possível a indicação do [imposto sobre o valor acrescentado (IVA)] — § 25a [da Umsatzsteuergesetz (Lei relativa ao IVA])». Como resulta da decisão de reenvio, no sistema informático da demandada no processo principal, as menções especiais não são automaticamente propostas e devem ser indicadas pelo vendedor no contrato de compra e venda. Para os contratos celebrados com particulares, as fórmulas de saudação utilizadas são «Senhor/Senhora». Esses contratos também incluem uma cláusula de garantia com a duração de um ano.

10      O veículo em causa foi matriculado em nome da demandante no processo principal. Algumas semanas mais tarde, o parceiro perguntou à demandada no processo principal se era possível indicar o montante do IVA na fatura emitida, pedido esse que foi recusado.

11      Tendo constatado que o veículo em causa tinha vícios ocultos, a demandante no processo principal intentou uma ação no Bezirksgericht Salzburg (Tribunal de Primeira Instância de Salzburgo, Áustria) e fundamentou a competência desse tribunal no artigo 17.o do Regulamento n.o 1215/2012 com vista a obter a condenação da demandada no processo principal a pagar‑lhe o montante de 3 257,52 euros a título de direitos de garantia. Em apoio do seu pedido, a demandante no processo principal sustentou que, no caso em apreço, tinha celebrado o contrato de compra e venda como consumidora e que a atividade comercial ou profissional da demandada no processo principal era dirigida à Áustria, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1215/2012.

12      A demandada no processo principal invocou uma exceção de incompetência desse órgão jurisdicional e também contestou o mérito do pedido. Alegou que o contrato de venda no processo principal constitui uma transação entre profissionais, circunstância que resultaria das menções que figuram na rubrica «Convenções especiais», do preço de venda, cujo montante foi fixado tendo em conta a tributação a título da margem de lucro, e do uso previsto pela demandante no processo principal da dedução do IVA a montante. Por conseguinte, na opinião da demandada no processo principal, os órgãos jurisdicionais alemães são competentes para conhecer do litígio no processo principal.

13      Por Despacho de 19 de outubro de 2021, o Bezirksgericht Salzburg (Tribunal de Primeira Instância de Salzburgo) declarou não ser internacionalmente competente para conhecer do litígio no processo principal. Segundo esse tribunal, embora a demandante no processo principal não seja de facto uma empresária, criou a impressão na demandada no processo principal de que estava a agir como tal ao assinar o contrato de venda e ao envolver o parceiro no desenrolar da relação com a demandada. A demandada no processo principal podia, portanto, esperar celebrar um contrato entre profissionais, razão pela qual não estavam preenchidas as condições de aplicação do artigo 17.o do Regulamento n.o 1215/2012.

14      A demandante no processo principal interpôs recurso desse despacho para o Landesgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo, Áustria), órgão jurisdicional de reenvio.

15      Esse órgão jurisdicional refere que, no caso em apreço, é pacífico que a demandada no processo principal, cuja sede se situa na Alemanha, também orientou as suas atividades comerciais para a Áustria, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1215/2012, sendo que a única questão controvertida é a de saber se a demandante no processo principal agiu na qualidade de consumidora no momento da celebração do contrato de compra e venda com a demandada no processo principal.

16      A este respeito, o referido órgão jurisdicional salienta que, embora a demandante no processo principal afirme ter celebrado o referido contrato na qualidade de particular que exerce uma atividade assalariada, resulta das constatações do órgão jurisdicional de primeira instância que não é de excluir que a demandante tenha exercido a profissão de designer gráfica e de criadora de sítios Internet como trabalhadora independente. Nestas condições, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se essa situação, na qual um facto não pode ser demonstrado de forma suficiente, pode prejudicar a demandante no processo principal.

17      Na opinião desse órgão jurisdicional, mesmo que se considere que a demandante no processo principal comprou o veículo em causa para fins privados, a questão continua a ser a de saber se essa circunstância também era identificável pela demandada no processo principal.

18      Por último, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se, no âmbito da apreciação global a que deve proceder para determinar se, no caso em apreço, a demandante no processo principal celebrou o contrato em causa no processo principal como consumidora, outras circunstâncias específicas do processo poderiam revestir uma certa importância, a saber, o facto de a demandante no processo principal ter recorrido a um vendedor de automóveis para efetuar as diligências necessárias à celebração do contrato, a circunstância de, durante o mês de agosto de 2019, a demandante no processo principal ter revendido o veículo com lucro ou de a menção do IVA ter sido omitida na fatura. Quanto a este último aspeto, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que, ao abrigo do direito alemão em matéria de IVA, tanto numa venda a um empresário como numa venda a um particular a menção distinta do IVA pode ser omitida na fatura.

19      Nestas condições, o Landesgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Para avaliar a qualidade de consumidora da demandante na aceção dos artigos 17.o e 18.o do Regulamento [n.o 1215/2012], importa saber:

a)      se a demandante, no momento da celebração do contrato de compra e venda e imediatamente depois, exercia a sua atividade de designer gráfica e de páginas web indicada no processo apenas na qualidade de trabalhadora por conta de outrem ou a exercia também, pelo menos em parte, no âmbito de uma atividade independente, e

b)      com que finalidade a demandante adquiriu o veículo, ou seja, se o fez apenas para satisfazer as suas próprias necessidades de consumo privado ou também no contexto de uma atividade ou objetivo profissional ou comercial atual ou futuro?

2)      se a demandante deixa de poder invocar a qualidade de consumidora a partir do momento em que revendeu o veículo automóvel em agosto de 2019, e se é relevante para esse efeito que tenha obtido lucro com a revenda?

3)      se pode ser negada a qualidade de consumidora da demandante pelo simples facto de ter assinado um contrato de adesão de compra e venda da demandada, cujo impresso designava a compradora como “empresa” e que, sob o título “Convenções especiais” mencionava, em letras pequenas, “transação comercial/sem devolução nem garantia/entrega apenas após receção do pagamento”, sem formular qualquer objeção nem fazer qualquer referência à sua qualidade de consumidora?

4)      se a demandante deve assumir as consequências do comportamento do seu [parceiro], que foi intermediário da compra e venda enquanto vendedor de automóveis, comportamento esse que pode ter levado a demandada a considerar que a demandante atuava na qualidade de empresária?

5)      se, para avaliar a qualidade de consumidora, pode ser oponível à demandante o facto de o órgão jurisdicional de primeira instância não ter conseguido determinar a razão pela qual o contrato escrito de compra e venda diferia da proposta prévia apresentada pelo [parceiro] da demandante no que respeita à designação da compradora e o que foi discutido a esse respeito em conversas telefónicas entre o [parceiro] da demandante e um vendedor da demandada?

6)      se é relevante para a qualidade de consumidora da demandante que o seu [parceiro] tenha telefonado à demandada algumas semanas depois da receção do veículo para saber se era possível indicar o IVA na fatura?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

20      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, para determinar se uma pessoa que celebrou um contrato abrangido pela alínea c) desta disposição pode ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa mesma disposição, há que ter em conta as finalidades atuais ou futuras prosseguidas pela celebração desse contrato, bem como a natureza assalariada ou independente da atividade exercida por essa pessoa.

21      A este propósito, importa antes de mais recordar que as regras de competência que figuram na secção 4 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012 preveem uma derrogação à regra geral de competência prevista no artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento, que atribui competência aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro do domicílio do demandado, e à regra de competência especial em matéria de contratos, prevista no artigo 7.o, ponto 1, deste mesmo regulamento, segundo a qual o tribunal competente é o do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão (v., por analogia, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 43 e jurisprudência referida).

22      Por conseguinte, o conceito de «consumidor», na aceção dos artigos 17.o e 18.o do Regulamento n.o 1215/2012, deve ser interpretado de forma restritiva, por referência à posição da pessoa em causa num determinado contrato, tendo em conta a natureza e finalidade do contrato, e não por referência à situação subjetiva dessa pessoa, sendo que a mesma pessoa pode ser considerada um consumidor no âmbito de certas operações e um operador económico no âmbito de outras operações (Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Milivojević e o., C‑630/17, EU:C:2019:123, n.o 87 e jurisprudência referida).

23      Só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, cujo único objetivo seja satisfazer necessidades próprias de consumo privado de um indivíduo, são abrangidos pelo regime especial previsto no regulamento em matéria de proteção do consumidor, a título de parte considerada mais fraca, ao passo que tal proteção não é justificada no caso de um contrato que tem como objetivo uma atividade profissional, mesmo que prevista para o futuro (v., neste sentido, Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Milivojević, C‑630/17, EU:C:2019:123, n.os 88 e 89 e jurisprudência referida).

24      Daqui se conclui que as regras de competência específicas dos artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012 só são, em princípio, aplicáveis nos casos em que o contrato foi celebrado entre as partes para uma utilização não comercial ou profissional do bem ou serviço em causa (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Petruchová, C‑208/18, EU:C:2019:825, n.o 44 e jurisprudência referida).

25      No que se refere mais concretamente a uma pessoa que celebra um contrato com uma dupla finalidade, ou seja, para uma utilização em parte relacionada com a sua atividade profissional e em parte para fins privados, o Tribunal de Justiça considerou que essa pessoa só pode beneficiar das referidas disposições na hipótese de a ligação do contrato com a sua atividade profissional ser tão ténue, que se torna marginal e, portanto, se apenas tiver uma importância negligenciável no contexto da operação, considerada na sua globalidade, em que esse contrato é celebrado (Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Milivojević, C‑630/17, EU:C:2019:123, n.o 91 e jurisprudência referida).

26      No que respeita à natureza da atividade profissional prosseguida pela pessoa que reivindica a qualidade de consumidor, o Tribunal de Justiça declarou que nenhuma distinção em função da natureza independente ou assalariada dessa atividade resulta da sua jurisprudência, segundo a qual apenas importa averiguar se o contrato foi celebrado fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, pelo que uma atividade assalariada também é abrangida pelo conceito de «atividade profissional», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 (v., neste sentido, Acórdão de 20 outubro de 2022, ROI Land Investments, C‑604/20, EU:C:2022:807, n.os 54 e 55).

27      Resulta desta jurisprudência que a qualidade de consumidor, na aceção desta disposição, depende da finalidade profissional ou privada prosseguida pela celebração do contrato em causa. Com efeito, uma pessoa que celebrou um contrato deve ser qualificada de consumidor se a celebração desse contrato não estiver abrangida pela sua atividade profissional ou, no caso de um contrato com dupla finalidade, em parte profissional e em parte privada, se a utilização profissional for insignificante no contexto da operação considerada na sua globalidade. Em contrapartida, a natureza da atividade profissional exercida pela pessoa que invoca a qualidade de consumidor não é pertinente para efeitos dessa qualificação.

28      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, para determinar se uma pessoa que celebrou um contrato abrangido pela alínea c) desta disposição pode ser qualificada de «consumidor», na aceção da referida disposição, há que ter em conta as finalidades atuais ou futuras prosseguidas pela celebração desse contrato, independentemente da natureza assalariada ou independente da atividade exercida pela pessoa em causa.

 Quanto à segunda a quarta e sexta questões

29      Com a segunda a quarta e sexta questões, que devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, para determinar se uma pessoa que celebrou um contrato abrangido pela alínea c) dessa disposição pode ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa disposição, é possível ter em consideração a impressão criada pelo comportamento dessa pessoa no seu cocontratante, comportamento esse que consistiu nomeadamente na circunstância de a pessoa que afirma ser um consumidor não ter reagido a cláusulas contratuais que a designavam como empresária, na circunstância de essa pessoa ter celebrado o contrato através de um intermediário que exerce atividades profissionais no domínio abrangido pelo contrato em causa, e que, após a assinatura desse mesmo contrato, interrogou a outra parte sobre a questão de saber se o IVA podia ser mencionado na respetiva fatura, ou ainda na circunstância de essa pessoa ter vendido o bem objeto do contrato pouco tempo após a sua celebração e ter realizado um eventual lucro.

30      A este respeito, há que observar que resulta da resposta dada à primeira questão que, no âmbito da análise do conceito de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, o órgão jurisdicional nacional deve determinar as finalidades prosseguidas pela pessoa que invoca essa qualidade através da celebração do contrato e, quando esse contrato tiver uma dupla finalidade, resolver a questão de saber se o mesmo visa cobrir em medida não negligenciável necessidades que decorrem da atividade profissional da pessoa em causa ou necessidades privadas.

31      Para este efeito, o órgão jurisdicional deve basear‑se prioritariamente nos elementos de prova que resultam objetivamente dos autos, sendo que, se esses elementos bastarem para permitir que o órgão jurisdicional deles deduza a finalidade do contrato, será inútil averiguar se o uso profissional ou privado podia ou não ser conhecido do cocontratante (v., por analogia, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.os 48 e 49).

32      No entanto, se esses elementos não forem suficientes, o referido órgão jurisdicional pode igualmente verificar se, na realidade, o pretenso consumidor, através do seu próprio comportamento em relação ao seu cocontratante, deu a este a impressão de que agia para fins profissionais, de modo que o cocontratante podia ignorar legitimamente a finalidade extraprofissional da operação em causa (v., por analogia, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 51).

33      Tal é o caso quando, por exemplo, um particular encomenda, sem mais esclarecimentos, objetos que podem efetivamente servir para o exercício da sua profissão, utiliza para esse efeito papel de carta com timbre profissional, solicita a entrega dos bens no seu endereço profissional ou menciona a possibilidade de recuperar o IVA (v., por analogia, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 52).

34      Num caso desses, as regras específicas de competência em matéria de contratos celebrados pelos consumidores enunciadas nos artigos 17.o e 18.o do Regulamento n.o 1215/2012 não são aplicáveis mesmo que o contrato não tenha em si mesmo um objetivo profissional não negligenciável, sendo que se deve considerar que o consumidor renunciou à proteção prevista nesses artigos tendo em conta a impressão que criou no seu cocontratante de boa‑fé (v., por analogia, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 53).

35      Resulta desta jurisprudência que a impressão criada no cocontratante pelo comportamento da pessoa que reivindica a qualidade de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, pode ser tida em conta para decidir se essa pessoa deve beneficiar da proteção processual enunciada na secção 4 deste regulamento.

36      No caso em apreço, para efeitos da qualificação da demandante no processo principal como consumidora, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a pertinência de certas circunstâncias factuais, a saber, a falta de reação desta última às cláusulas contratuais que a designavam como empresária, a intervenção do seu parceiro, ele próprio vendedor de automóveis, na negociação do contrato, tendo este último, após a assinatura do contrato, questionado a demandada no processo principal a respeito da possibilidade de que o IVA fosse indicado na respetiva fatura, ou ainda a venda do veículo pouco tempo depois da celebração do contrato e a realização de um eventual lucro.

37      A este respeito, importa antes de mais precisar que é apenas a esse órgão jurisdicional que cumpre determinar, tendo em conta todas as informações à sua disposição, incluindo a boa‑fé da demandada no processo principal, se, através do seu comportamento, a demandante no processo principal criou a impressão de ter agido para fins profissionais. Na sua análise, o referido órgão jurisdicional deve reportar‑se a todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato, sendo que os elementos posteriores a essa celebração também se podem revelar pertinentes se corroborarem essa análise.

38      Mais especificamente, quanto à falta de reação da demandante no processo principal no que respeita às cláusulas contratuais que a designavam como empresária, importa observar que tal circunstância, que aliás pode ser explicada pela forma como a demandada no processo principal redigiu o contrato, não é, em si mesma, determinante para excluir a demandante no processo principal do benefício conferido pela regra de competência prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012. No entanto, corroborada por outras informações, tal inércia pode constituir um indício no sentido de que o comportamento da demandante no processo principal poderia criar na demandada no processo principal a impressão de que a demandante estava a agir para fins profissionais.

39      Assim, a intervenção de um intermediário na negociação do contrato, ele próprio vendedor de automóveis, e o facto de, pouco depois da celebração desse contrato, este se ter interessado pela possibilidade de o IVA ser mencionado na fatura emitida nessa ocasião podem revelar‑se pertinentes para a apreciação do órgão jurisdicional de reenvio. A este respeito, esse órgão jurisdicional deve igualmente ter em conta as características particulares do regime alemão em matéria de IVA, na medida em que resulta da decisão de reenvio que, no direito alemão, a omissão de indicação distinta do IVA na fatura pode ocorrer tanto numa venda a um empresário como numa venda a um particular.

40      Em contrapartida, a revenda do bem objeto do contrato e o eventual lucro assim obtido pela demandante no processo principal não parecem à primeira vista ser pertinentes para determinar a impressão que esta possa ter criado na demandada no processo principal. Todavia, não é de excluir que essas circunstâncias também possam ser tomadas em consideração pelo órgão jurisdicional de reenvio no âmbito da sua apreciação global das informações que estão à sua disposição.

41      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às segunda a quarta e sexta questões que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, para determinar se uma pessoa que celebrou um contrato abrangido pela alínea c) dessa disposição pode ser qualificada de «consumidor», na aceção da referida disposição, pode ser tida em conta a impressão criada pelo seu comportamento, que consistiu, nomeadamente, na circunstância de a pessoa que invocou a qualidade de consumidor não ter reagido às cláusulas contratuais que a designavam como empresária, na circunstância de essa mesma pessoa ter celebrado o contrato através de um intermediário, que exercia atividades profissionais no domínio abrangido pelo referido contrato, que, depois da assinatura desse mesmo contrato, questionou a outra parte a respeito da possibilidade de o IVA ser mencionado na respetiva fatura, ou ainda na circunstância de essa pessoa ter vendido o bem que era objeto do contrato pouco tempo depois da sua celebração e de ter realizado um eventual lucro.

 Quanto à quinta questão

42      Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, no contexto da apreciação global das informações que estão à disposição dos órgãos jurisdicionais nacionais, quando for impossível determinar de modo juridicamente bastante certas circunstâncias que rodeiam a celebração de um contrato, no que respeita, nomeadamente, às menções que constam desse contrato ou à intervenção de um intermediário na sua celebração, o benefício da dúvida deve aproveitar à pessoa que invoca a qualidade de «consumidor», na aceção dessa disposição.

43      A este respeito, importa antes de mais observar que esta questão é submetida no contexto da verificação, pelo órgão jurisdicional de reenvio, da competência internacional dos tribunais austríacos para conhecer do litígio no processo principal, ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012. Nesta fase, o órgão jurisdicional em causa não aprecia nem a admissibilidade nem a procedência do recurso, e identifica unicamente os elementos de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência ao abrigo desta disposição. Assim, e apenas para efeitos de verificação da sua competência, esse órgão jurisdicional pode dar como assentes as alegações pertinentes do demandante (v., por analogia, Acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 62 e jurisprudência referida).

44      Todavia, se o demandado contestar as alegações do demandante, o objetivo de boa administração da justiça, subjacente à aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, e o respeito devido à autonomia do juiz no exercício das suas funções, exigem que o órgão jurisdicional chamado a decidir possa examinar a sua competência internacional à luz de todas as informações de que dispõe, incluindo, se for caso disso, das contra‑alegações apresentadas pelo demandado (v., por analogia, Acórdão de 16 de junho de 2016, Universal Music International Holding, C‑12/15, EU:C:2016:449, n.o 45 e jurisprudência referida).

45      Quanto ao valor probatório a atribuir a essas informações no âmbito da apreciação global das provas, há que referir que o mesmo é exclusivamente abrangido pelo direito nacional. Com efeito, o Regulamento n.o 1215/2012 não tem por objeto unificar as regras processuais dos Estados‑Membros, mas repartir as competências judiciárias para a resolução dos litígios em matéria civil e comercial (Acórdão de 6 de outubro de 2021, TOTO e Vianini Lavori, C‑581/20, EU:C:2021:808, n.o 68 e jurisprudência referida).

46      No caso em apreço, cabe por isso ao órgão jurisdicional de reenvio examinar as informações à sua disposição sobre as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato principal, nomeadamente sobre a razão pela qual a demandante no processo principal era aí designada como empresária e sobre o alcance das discussões que tiveram lugar entre o intermediário e os colaboradores da demandada no processo principal aquando da negociação desse contrato, cabendo‑lhe igualmente apreciar, à luz de todas as informações de que dispõe, o respetivo valor probatório segundo as regras de direito nacional, incluindo no que diz respeito à questão de saber a quem deve aproveitar o benefício da dúvida se for impossível determinar algumas dessas circunstâncias de modo juridicamente bastante.

47      Por outro lado, embora o Tribunal de Justiça tenha efetivamente decidido que, em princípio, o benefício da dúvida aproveita à pessoa que invoca a qualidade de consumidor, caso os elementos objetivos dos autos não sejam suscetíveis de constituir prova bastante de que a operação que esteve na base da celebração de um contrato com dupla finalidade tinha um objetivo profissional não negligenciável (v., por analogia, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 50), não é, em contrapartida, possível deduzir desta jurisprudência que o efeito útil das disposições que regulam a competência em matéria de contratos celebrados pelos consumidores exige a concessão desse benefício à pessoa que invoca a qualidade de consumidor no que respeita a todas as circunstâncias que envolveram a celebração do contrato, nomeadamente, relativamente a todas as circunstâncias relativas ao comportamento da pessoa em causa (v., por analogia, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 51).

48      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à quinta questão que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando, no âmbito da apreciação global das informações que estão à disposição do órgão jurisdicional nacional, for impossível determinar de modo juridicamente bastante certas circunstâncias que rodearam a celebração de um contrato, no que respeita, nomeadamente, às menções que constam do mesmo ou à intervenção de um intermediário na sua celebração, o órgão jurisdicional nacional deve apreciar o valor probatório dessas informações segundo as regras de direito nacional, incluindo no que se refere à questão de saber se o benefício da dúvida deve aproveitar à pessoa que invoca a qualidade de «consumidor», na aceção dessa disposição.

 Quanto às despesas

49      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

1)      O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

para determinar se uma pessoa que celebrou um contrato abrangido pela alínea c) desta disposição pode ser qualificada de «consumidor», na aceção da referida disposição, há que ter em conta as finalidades atuais ou futuras prosseguidas pela celebração desse contrato, independentemente da natureza assalariada ou independente da atividade exercida pela pessoa em causa.

2)      O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012

deve ser interpretado no sentido de que:

para determinar se uma pessoa que celebrou um contrato abrangido pela alínea c) dessa disposição pode ser qualificada de «consumidor», na aceção da referida disposição, pode ser tida em conta a impressão criada pelo seu comportamento, que consistiu, nomeadamente, na circunstância de a pessoa que invocou a qualidade de consumidor não ter reagido às cláusulas contratuais que a designavam como empresária, na circunstância de essa mesma pessoa ter celebrado o contrato através de um intermediário, que exercia atividades profissionais no domínio abrangido pelo referido contrato, que, depois da assinatura desse mesmo contrato, questionou a outra parte a respeito da possibilidade de o imposto sobre o valor acrescentado ser mencionado na respetiva fatura, ou ainda na circunstância de essa pessoa ter vendido o bem que era objeto do contrato pouco tempo depois da sua celebração e de ter realizado um eventual lucro.

3)      O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012

deve ser interpretado no sentido de que:

quando, no âmbito da apreciação global das informações que estão à disposição do órgão jurisdicional nacional, for impossível determinar de modo juridicamente bastante certas circunstâncias que rodearam a celebração de um contrato, no que respeita, nomeadamente, às menções que constam do mesmo ou à intervenção de um intermediário na sua celebração, o órgão jurisdicional nacional deve apreciar o valor probatório dessas informações segundo as regras de direito nacional, incluindo no que se refere à questão de saber se o benefício da dúvida deve aproveitar à pessoa que invoca a qualidade de «consumidor», na aceção dessa disposição.


Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.