Language of document : ECLI:EU:C:2018:20

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 18 de janeiro de 2018(1)

Processo C‑528/16

Confédération paysanne

Réseau Semences Paysannes

Les Amis de la Terre France

Collectif vigilance OGM et Pesticides 16

Vigilance OG2M

CSFV 49

OGM: dangers

Vigilance OGM 33

Fédération Nature & Progrès

contra

Premier ministre

Ministre de l’agriculture, de l’agroalimentaire et de la forêt

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França)]

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Agricultura — Diretivas 2001/18/CE e 2002/53/CE — Interpretação e apreciação da validade — Conceito de «organismo geneticamente modificado» — Catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas — Novas técnicas de mutagénese que aplicam procedimentos de engenharia genética — Mutagénese aleatória e dirigida — Âmbito da isenção — Grau de harmonização — Princípio da precaução»






I.      Introdução

1.        A «Diretiva OGM», Diretiva 2001/18/CE, «regula a libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados (a seguir “OGM”) e a sua colocação no mercado no território da União» (2). Em especial, os organismos abrangidos por essa diretiva apenas podem ser autorizados após uma avaliação dos riscos para o ambiente. Estão igualmente sujeitos a obrigações de rastreabilidade, rotulagem e monitorização.

2.        O artigo 3.o, n.o 1, em conjugação com o anexo I B, dispõe que a diretiva OGM não é aplicável aos organismos obtidos através de determinadas técnicas de modificação genética, tais como a mutagénese (a seguir «isenção da mutagénese»).

3.        A mutagénese implica uma alteração do genoma de uma espécie viva. Ao contrário da transgénese, não implica, em princípio, a inserção de DNA alienígeno num organismo vivo. As técnicas de mutagénese evoluíram ao longo do tempo em consequência do progresso científico na biotecnologia. Para a Confédération paysanne e o., algumas das técnicas desenvolvidas mais recentemente apresentam riscos para a saúde e para o ambiente. Por isso, interpuseram recurso no órgão jurisdicional de reenvio, com vista à anulação de uma disposição nacional que isenta os organismos obtidos por mutagénese das obrigações aplicáveis aos OGM.

4.        Neste contexto, o Tribunal de Justiça é chamado a esclarecer o alcance exato da Diretiva OGM, mais concretamente o âmbito de aplicação, a teleologia e os efeitos da isenção da mutagénese — e potencialmente apreciar a sua validade. De forma mais ampla, o Tribunal de Justiça é chamado a ponderar a questão do tempo, mais precisamente o modo como a passagem do tempo e a evolução do conhecimento científico e técnico devem influenciar quer a interpretação jurídica quer a apreciação da validade da legislação da UE, efetuadas tendo presente o princípio da precaução.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União Europeia

1.      Direito primário

5.        O artigo 191.o, n.o 2, TFUE dispõe que:

«A política da União no domínio do ambiente terá por objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear‑se‑á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor‑pagador.

Neste contexto, as medidas de harmonização destinadas a satisfazer exigências em matéria de proteção do ambiente incluirão, nos casos adequados, uma cláusula de salvaguarda autorizando os Estados‑Membros a tomar, por razões ambientais não económicas, medidas provisórias sujeitas a um processo de controlo da União.»

2.      Direito secundário

a)      Diretiva OGM

6.        O considerando 8 da Diretiva OGM salienta que o «princípio da precaução foi tomado em conta na elaboração da presente diretiva e deverá ser igualmente tomado em conta aquando da sua aplicação».

7.        O considerando 17 dispõe que «a presente diretiva não deve ser aplicável a organismos obtidos por meio de certas técnicas de modificação genética que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado».

8.        O objetivo desta diretiva é apresentado no artigo 1.o:

«Em conformidade com o princípio da precaução, a presente diretiva tem por objetivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros e a proteção da saúde humana e do ambiente quando:

–        são efetuadas libertações no ambiente deliberadas de organismos geneticamente modificados para qualquer fim diferente da colocação no mercado, no território da Comunidade,

–        são colocados no mercado, no território da Comunidade, produtos que contenham ou sejam constituídos por organismos geneticamente modificados.»

9.        O artigo 2.o, n.o 2, contém definições. Entende‑se por:

«“Organismo geneticamente modificado” (OGM), qualquer organismo, com exceção do ser humano, cujo material genético tenha sido modificado de uma forma que não ocorre naturalmente por meio de cruzamentos e/ou de recombinação natural;

No âmbito desta definição:

a)      A modificação genética ocorre, pelo menos, quando são utilizadas as técnicas referidas na parte 1 do anexo I A;

b)      Não se considera que as técnicas referidas na parte 2 do anexo I A resultem em modificações genéticas.»

10.      O artigo 3.o estabelece isenções. O n.o 1 dispõe que a Diretiva OGM «não é aplicável aos organismos obtidos através das técnicas de modificação genética enumeradas no anexo I B».

11.      O artigo 4.o estabelece obrigações gerais para os Estados‑Membros. Em especial, o n.o 1 dispõe que: «[o]s Estados‑Membros devem assegurar, em conformidade com o princípio da precaução, que sejam tomadas todas as medidas adequadas para evitar os efeitos negativos para a saúde humana e para o ambiente que possam resultar da libertação deliberada de OGM ou da sua colocação no mercado. […]».

12.      De acordo com o artigo 27.o, as medidas para adaptação ao progresso técnico das partes C e D do anexo II, dos anexos III a VI e da parte C do anexo VII, que têm por objeto alterar elementos não essenciais da presente diretiva, são aprovadas pelo procedimento de regulamentação com controlo a que se refere o n.o 3 do artigo 30.o»

13.      O anexo I A estabelece as técnicas referidas no artigo 2.o, n.o 2. A parte 1 do anexo I A dispõe que:

«As técnicas de modificação genética referidas no n.o 2, alínea a), do artigo 2.o, são, nomeadamente:

1)      Técnicas de recombinação de ácidos nucleicos que envolvam a formação de novas combinações de material genético através da inserção de moléculas de ácidos nucleicos em vírus, plasmídeos de bactérias ou outros vetores, independentemente do modo como sejam produzidas fora do organismo, e respetiva incorporação num organismo hospedeiro em que não ocorrem naturalmente mas onde poderão continuar a ser propagadas;

2)      Técnicas, incluindo a microinjeção, a macroinjeção e o microencapsulamento, que envolvam a introdução direta num organismo de material geneticamente transmissível preparado fora desse organismo;

3)      Técnicas de fusão celular (incluindo a fusão protoplástica) ou de hibridação em que células viáveis com combinações novas de material geneticamente transmissível sejam formadas através da fusão de duas ou mais células através de meios ou métodos que não ocorrem naturalmente.»

14.      A parte 2 do anexo I A estabelece as técnicas referidas no artigo 2.o, n.o 2, alínea b), «cujos resultados não são considerados modificações genéticas desde que não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de organismos geneticamente modificados obtidos por técnicas/métodos diferentes dos excluídos pelo anexo I B:

1)      Fertilização in vitro,

2)      Processos naturais como a conjugação, a transdução e a transformação,

3)      Indução da poliploidia».

15.      Por último, o anexo I B enumera as técnicas referidas no artigo 3.o, n.o 1:

«Ficam excluídos do âmbito da presente diretiva os organismos resultantes das seguintes técnicas/métodos de modificação genética, desde que estes não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de organismos geneticamente modificados diferentes dos obtidos por uma ou mais das técnicas/métodos:

1)      Mutagénese,

2)      Fusão celular (incluindo a fusão protoplástica) de células vegetais de organismos resultantes que podem trocar material genético através dos métodos tradicionais de cultura.»

b)      Diretiva 2002/53

16.      O considerando 16 da Diretiva 2002/53, de 13 de junho de 2002, que diz respeito ao catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas (3), dispõe: «Em consequência da evolução científica e técnica, é atualmente possível desenvolver variedades por modificação genética. Portanto, ao determinar se devem ser aceites variedades geneticamente modificadas na aceção da Diretiva 90/220/CEE [(4)] do Conselho […], os Estados‑Membros devem ter em conta os riscos relativos à sua disseminação voluntária no ambiente. Além disso, convém estabelecer as condições em que as variedades geneticamente modificadas são aceites».

17.      O artigo 4.o, n.o 4, dispõe que, «[a]s variedades geneticamente modificadas, na aceção dos n.os 1 e 2 do artigo 2.o da Diretiva 90/220/CEE, só serão aceites se tiverem sido tomadas todas as medidas adequadas para evitar efeitos adversos para a saúde humana e o ambiente».

18.      De acordo com o artigo 7.o, n.o 4, dessa Diretiva:

«a)      No caso de uma variedade geneticamente modificada a que se refere o n.o 4 do artigo 4.o, será efetuada uma avaliação dos riscos para o ambiente semelhante à prevista na Diretiva 90/220/CEE.

b)      Os procedimentos destinados a garantir que a avaliação dos riscos para o ambiente e outros elementos pertinentes são equivalentes aos fixados na Diretiva 90/220/CEE serão estabelecidos, sob proposta da Comissão, num regulamento do Conselho a adotar com fundamento na adequada base jurídica do Tratado. Até à entrada em vigor do referido regulamento, as variedades geneticamente modificadas apenas serão aceites para inclusão num catálogo nacional depois de terem sido admitidas para comercialização em conformidade com a Diretiva 90/220/CEE.

c)      Os artigos 11.o a 18.o da Diretiva 90/220/CEE deixam de ser aplicáveis às variedades geneticamente modificadas quando o regulamento a que se refere a alínea b) entrar em vigor.»

19.      Em conformidade com o artigo 9.o, n.o 5, da diretiva: «[o]s Estados‑Membros velarão por que as variedades geneticamente modificadas que foram admitidas sejam claramente indicadas como tais no catálogo de variedades. Velarão igualmente por que qualquer pessoa que comercialize tais variedades indique claramente no seu catálogo de vendas que se trata de uma variedade geneticamente modificada».

B.      Direito francês

20.      O artigo L. 531‑1 do Code de l’environnement (Código do Ambiente) define organismo geneticamente modificado como um «organismo cujo material genético tenha sido modificado de uma forma que não por meio de cruzamentosou de recombinação naturais».

21.      O artigo L. 531‑2 do código dispõe que «não estão submetidos às disposições do presente título e dos artigos L. 125‑3 e L. 515‑13 os organismos geneticamente modificados obtidos por técnicas que, pelo seu caráter natural, não resultem em modificações genéticas ou por aquelas que tenham sido objeto de utilização tradicional sem inconvenientes demonstrados para a saúde pública ou para o ambiente. A lista destas técnicas é fixada por decreto após parecer do Haut Conseil des biotechnologies (Conselho Superior da Biotecnologia)».

22.      O artigo D. 531‑2 do código dispõe: «As técnicas referidas no artigo L. 531‑2, que não resultam em modificações genéticas, são as seguintes: […] 2.o Sob condição de não implicarem a utilização de organismos geneticamente modificados como organismos recetores ou parentais: a) A mutagénese».

23.      O artigo D. 531‑3 do código acrescenta que: «As técnicas e as definições mencionadas nos artigos D. 531‑1 e D. 531‑2 são interpretadas e aplicadas em função da evolução dos conhecimentos científicos na área da engenharia genética, da genética molecular e da biologia celular».

III. Factos na origem do litígio, tramitação do processo e questões prejudiciais

24.      A Confédération paysanne é um sindicato agrícola francês que defende os interesses dos pequenos agricultores. Para efeitos do presente processo, está coligada com outras oito associações (5) que têm como objetivo a proteção do ambiente e/ou a divulgação de informação relativa aos perigos dos OGM (a seguir, conjuntamente, «recorrentes»).

25.      Como decorre do despacho do órgão jurisdicional de reenvio, as variedades de sementes resistentes a herbicidas provêm da transgénese ou da mutagénese. As variedades resistentes a herbicidas não seletivos (como o glifosato) resultam, nessa medida, da transgénese. Contudo, as variedades obtidas por mutagénese tornaram igualmente possível desenvolver elementos de resistência a herbicidas seletivos. As únicas sementes resistentes a herbicidas inscritas no catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas são provenientes da mutagénese aleatória in vitro. Assim, estão incluídas no catálogo comum 46 variedades de girassol resistentes a herbicidas e seis variedades de colza resistentes a herbicidas. Contudo, até à data, não foi incluída no catálogo comum nenhuma variedade de sementes resistentes a herbicidas proveniente de técnicas de mutagénese dirigida.

26.      Os recorrentes contestam o facto de os organismos obtidos por mutagénese estarem isentos das obrigações estabelecidas nas disposições do Código do Ambiente relativas a OGM. Os recorrentes consideram que as técnicas de mutagénese evoluíram ao longo do tempo. Antes da adoção da Diretiva OGM, em 2001, apenas as técnicas convencionais de mutagénese e as técnicas aleatórias in vivo que implicavam radiações ionizantes ou a exposição de plantas a agentes químicos eram utilizadas de forma habitual. Posteriormente, o progresso técnico levou ao surgimento de técnicas de mutagénese que podem ser executadas por diferentes meios (mutagénese aleatória in vitro e mutagénese dirigida — referidas como «novas técnicas de mutagénese»). Através dessas técnicas, é possível selecionar as mutações de forma a obter um produto que seja resistente apenas a determinados herbicidas.

27.      Para os recorrentes, a utilização de variedades de sementes resistentes a herbicidas obtidas por mutagénese dá origem a um risco de dano significativo para o ambiente e para a saúde humana e animal. Conduz a uma acumulação de moléculas cancerígenas ou de desreguladores endócrinos nas plantas cultivadas destinadas ao consumo humano ou animal. Os recorrentes invocam, além disso, os riscos de efeitos não intencionais, como mutações não desejadas ou «fora do alvo» noutras partes do genoma. Consideram que tal resulta das técnicas utilizadas para a modificação do genoma in vitro e para a regeneração de plantas a partir das células assim modificadas.

28.      Com base nestes argumentos, os recorrentes apresentaram ao Premier ministre (Primeiro‑Ministro) um pedido de revogação do artigo D. 531‑2 do Código do Ambiente (6) e de proibição do cultivo e da comercialização das variedades de colza tolerantes aos herbicidas.

29.      O Primeiro‑Ministro não respondeu ao pedido dos recorrentes. De acordo com o direito nacional, considera‑se que indeferiu o pedido.

30.      Por petição de 12 de março de 2015, dirigida ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França), órgão jurisdicional de reenvio, os recorrentes pediram a anulação dessa decisão de indeferimento tácito do Primeiro‑Ministro. Pediram igualmente que fosse ordenado ao Primeiro‑Ministro que tomasse todas as medidas necessárias para instaurar uma moratória sobre as variedades tolerantes aos herbicidas no prazo de um mês.

31.      Os recorrentes suscitaram vários argumentos no órgão jurisdicional de reenvio relativos à compatibilidade do artigo D.531‑2 do Código do Ambiente com a Diretiva OGM, com a Diretiva 2002/53 e com o princípio da precaução, o qual encontra igualmente acolhimento na Constituição francesa.

32.      Em primeiro lugar, alegam que o artigo D. 531‑2 do Código do Ambiente viola o artigo 2.o da Diretiva OGM. Alegam que os organismos obtidos por mutagénese constituem OGM na aceção deste artigo, embora, nos termos do artigo 3.o e do anexo I B, estejam isentos das obrigações estabelecidas relativamente à libertação e à colocação de OGM no mercado.

33.      Em segundo lugar, os recorrentes alegam que o artigo D. 531‑2 do Código do Ambiente viola o artigo 4.o da Diretiva 2002/53. Alegam que esta disposição não isenta as variedades obtidas por mutagénese das obrigações estabelecidas nessa diretiva para a inclusão de variedades geneticamente modificadas no catálogo comum das espécies de plantas agrícolas.

34.      Em terceiro lugar, os recorrentes alegam que o artigo D. 531‑2 da Carta do Ambiente viola o princípio da precaução tal como garantido pelo artigo 5.o da Carta do Ambiente, a qual tem estatuto constitucional em França. O artigo D. 531‑2 não tem suficientemente em conta os efeitos adversos para o ambiente e para a saúde humana e animal: estes estão relacionados com a libertação no ambiente de sementes provenientes de modificações genéticas obtidas por mutagénese e a colocação no mercado de produtos provenientes dessas culturas. Em consequência da exclusão da mutagénese do regime aplicável aos OGM, essas sementes não estão sujeitas a medidas preventivas nem a uma avaliação prévia nem a uma monitorização após a sua colocação no mercado.

35.      Para contextualizar, pode observar‑se que o terceiro argumento dos recorrentes parece ter sido inicialmente suscitado no órgão jurisdicional de reenvio como uma questão de direito interno: o artigo D.531‑2 do Código do Ambiente, que isenta a mutagénese das regras nacionais aplicáveis aos OGM, está em conformidade com o princípio da precaução, consagrado na Constituição francesa?

36.      No seu despacho de reenvio prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio identificou a questão como dizendo respeito a uma potencial (in)compatibilidade da isenção da mutagénese prevista no direito da UE com o princípio da precaução constante do direito da UE (7). De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, o conteúdo do artigo D.531‑2 do Código do Ambiente, que é a medida nacional de transposição, decorre necessariamente das obrigações estabelecidas na Diretiva OGM, pelo que é suposto refletir esta diretiva em termos substanciais. Pôr em causa a validade da primeira significa, por isso, pôr em causa, indiretamente, a validade da segunda (8). Assim, o órgão jurisdicional de reenvio pretende apurar se a diretiva em questão é, ela própria, válida à luz do princípio da precaução tal como consagrado no direito da UE (9).

37.      Neste contexto de facto e de direito, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender o processo e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Os organismos obtidos por mutagénese constituem organismos geneticamente modificados na aceção do artigo 2.o da Diretiva [2001/18], embora estejam excluídos, nos termos do artigo 3.o e do anexo I B da diretiva, das obrigações impostas relativamente à libertação e à colocação no mercado de organismos geneticamente modificados? Em especial, as técnicas de mutagénese, nomeadamente as novas técnicas de mutagénese dirigida que aplicam procedimentos de engenharia genética, podem ser consideradas técnicas incluídas entre as que são enumeradas no anexo I A, para o qual o artigo 2.o remete? Consequentemente, devem os artigos 2.o e 3.o e os anexos I A e I B da Diretiva [2001/18] ser interpretados no sentido de que excluem das medidas de precaução, de avaliação de [impacto] e de rastreabilidade todos os organismos e sementes obtidos por mutagénese ou excluem apenas os organismos obtidos através dos métodos convencionais de mutagénese aleatória por radiações ionizantes ou exposição a agentes químicos mutagénicos que já existiam antes de estes textos serem adotados?

2)      As variedades obtidas por mutagénese constituem variedades geneticamente modificadas, na aceção do artigo 4.o da Diretiva [2002/53], que não estão isentas das obrigações estabelecidas nesta diretiva? O âmbito desta diretiva é, pelo contrário, idêntico ao que resulta dos artigos 2.o e 3.o e do anexo I B da Diretiva [2001/18], e isenta igualmente as variedades obtidas por mutagénese das obrigações estabelecidas na Diretiva [2002/53] para a inscrição de variedades geneticamente modificadas no catálogo comum das espécies de plantas agrícolas?

3)       Os artigos 2.o e 3.o e o anexo I B da Diretiva [2001/18], na medida em que excluem a mutagénese do alcance das obrigações previstas na diretiva, constituem uma medida de harmonização completa que proíbe os Estados‑Membros de submeter os organismos obtidos por mutagénese à totalidade ou a parte das obrigações previstas na diretiva ou a qualquer outra obrigação ou os Estados‑Membros dispõem, no momento da respetiva transposição, de uma margem de apreciação para definirem o regime a aplicar aos organismos obtidos por mutagénese?

4)      A validade dos artigos 2.o e 3.o, e dos anexos I A e I B, da Diretiva [2001/18], à luz do princípio da precaução garantido pelo artigo 191.o, n.o 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, na parte em que estas disposições não submetem os organismos geneticamente modificados obtidos por mutagénese a medidas de precaução, de avaliação de impacto e de rastreabilidade, pode ser questionada atendendo à evolução dos procedimentos da engenharia genética, ao aparecimento de novas variedades de plantas obtidas graças a estas técnicas e às atuais incertezas científicas sobre os respetivos impactos e sobre os riscos potenciais daí resultantes para o ambiente e para a saúde humana e animal?»

38.      Apresentaram observações escritas os recorrentes, os Governos grego, francês, neerlandês, austríaco, sueco e do Reino Unido, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão Europeia. Com exceção dos Governos neerlandês e austríaco, todas as partes apresentaram alegações orais na audiência realizada em 3 de outubro de 2017.

IV.    Análise

39.      As presentes conclusões estão estruturadas da seguinte forma. Começarei por analisar a primeira questão, relativa à interpretação do âmbito de aplicação da Diretiva OGM e da isenção da mutagénese aí prevista (A). Em seguida, debruçar‑me‑ei sobre a terceira questão, relativa ao grau de harmonização alcançado pela Diretiva OGM a respeito da mutagénese e à questão relacionada da competência reguladora dos Estados‑Membros (B). Posteriormente, abordarei a quarta questão, relativa à compatibilidade da isenção da mutagénese com o princípio da precaução (C). Concluirei com a segunda questão, relativa à relação entre o âmbito de aplicação da Diretiva OGM e o da Diretiva 2002/53 no que diz respeito à isenção da mutagénese (D).

A.      Primeira questão

40.      A primeira questão incide, no essencial, sobre a interpretação do conceito de «mutagénese» constante do anexo I B da Diretiva OGM, em geral, e depois, especificamente, atendendo à passagem do tempo e ao surgimento de novas tecnologias, em especial à luz de considerações de segurança e/ou do princípio da precaução.

41.      Antes de abordar essa questão (2), tecerei algumas considerações introdutórias (1) sobre a terminologia utilizada (a) e o entendimento geral do princípio da precaução no direito da EU (b).

1.      Esclarecimentos preliminares

a)      Conceitos de base: mutagénese e transgénese

42.      Existem vários métodos que podem ser utilizados para modificar o património genético de um organismo vivo. Também não faltam potenciais definições para os conceitos genéricos utilizados neste contexto. A própria Diretiva OGM não contém qualquer definição genérica destes conceitos. Além disso, não compete ao Tribunal de Justiça começar a elaborar tais definições (profundamente científicas e factuais) no contexto de um reenvio prejudicial. Por conseguinte, para efeitos das presentes conclusões, utilizarei apenas as definições operatórias utilmente fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

43.      A transgénese é uma técnica de engenharia genética que consiste em inserir no genoma de uma espécie um ou mais genes provenientes de outra espécie. A Diretiva OGM não se refere expressamente ao conceito de transgénese. Contudo, de forma substancial, essa diretiva abrange várias técnicas que podem, normalmente, ser descritas como tal (10).

44.      A mutagénese não implica a inserção de DNA alienígeno num organismo vivo. Implica, contudo, uma modificação do genoma de uma espécie viva.

45.      As técnicas de mutagénese mudaram ao longo do tempo. De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, antes da adoção da Diretiva OGM, existiam apenas métodos convencionais ou aleatórios de mutagénese que eram aplicados in vivo a plantas inteiras. Essas técnicas foram utilizadas durante décadas, aparentemente sem criar quaisquer riscos identificáveis para o ambiente ou para a saúde.

46.      Gradualmente, foram aparecendo novas técnicas. Como explicou igualmente o órgão jurisdicional de reenvio, não só as técnicas de mutagénese aleatória foram aplicadas in vitro a células vegetais, mas também foram desenvolvidos métodos de mutagénese dirigida com aplicação de novas técnicas de engenharia genética, como a mutagénese dirigida por oligonucleotídeos (ODM) (11) ou a mutagénese por nuclease dirigida (SDN1) (12). Enquanto a mutagénese convencional dá origem a mutações aleatórias, algumas das novas técnicas provocam uma mutação precisa num gene.

b)      Princípio da precaução no direito da UE

47.      A beleza está nos olhos de quem a vê. Este parece ser também o caso no que diz respeito ao conteúdo, ao alcance e à potencial utilização do princípio da precaução. Ao longo dos anos, foram apresentadas varias premissas sobre o que é o princípio da precaução e a forma como deve ser utilizado, em especial pela doutrina jurídica e no discurso político.

48.      A abordagem judicial e o entendimento do princípio da precaução têm sido, compreensivelmente, muito mais limitadas, talvez mesmo prudentes (13). Na jurisprudência do Tribunal de Justiça, o princípio da precaução é entendido principalmente no sentido de que permite aos diferentes atores, como os Estados‑Membros, a Comissão ou as empresas, adotar medidas provisórias de gestão do risco sem terem de esperar que a realidade e a gravidade de tais riscos sejam plenamente demonstradas (14). Em domínios harmonizados pelo direito da UE, tais medidas devem ser adotadas com base em disposições de direito secundário que deem especial expressão a esse princípio, por exemplo, cláusulas de salvaguarda (15) ou outras disposições dedicadas ao tratamento de novas informações no que diz respeito aos riscos para a saúde ou para o ambiente decorrentes de um determinado produto (16). Na falta de harmonização, a justificação para a adoção de medidas restritivas pode fundamentar‑se, de forma autónoma, no princípio da precaução. Aquelas devem, no entanto, respeitar as obrigações gerais do direito da UE que recaem sobre os Estados‑Membros, nomeadamente as que decorrem dos artigos 34.o e 36.o TFUE (17).

49.      Contudo, tais medidas provisórias de gestão do risco apenas podem ser adotadas se estiverem preenchidas determinadas condições. É jurisprudência uniforme que «a aplicação correta do princípio da precaução pressupõe, em primeiro lugar, a identificação das consequências potencialmente negativas para a saúde pública das substâncias ou géneros alimentícios em causa e, em segundo lugar, uma avaliação global do risco para a saúde baseada nos dados científicos disponíveis mais fiáveis e nos resultados mais recentes da investigação internacional» (18). Por outras palavras, estas duas exigências implicam que as medidas de proteção «não podem ser validamente fundamentadas com base numa abordagem puramente hipotética do risco, alicerçada em simples suposições ainda não verificadas cientificamente. Pelo contrário, medidas de proteção como estas, não obstante o seu caráter provisório e ainda que se revistam de caráter preventivo, apenas podem ser tomadas se baseadas numa avaliação dos riscos tão completa quanto possível, tendo em conta as circunstâncias específicas do caso em apreço, que mostram que essas medidas se impõem» (19).

50.      Além disso, «quando for impossível determinar com certeza a existência ou o alcance do risco alegado devido à natureza insuficiente, não conclusiva ou imprecisa dos resultados dos estudos levados a cabo, mas persista a probabilidade de um prejuízo real para a saúde pública na hipótese de o risco se realizar, o princípio da precaução justifica a adoção de medidas restritivas» (20).

51.      Se essas condições estiverem preenchidas, podem ser adotadas medidas não discriminatórias, objetivas e proporcionadas.

52.      É um facto que, na realidade, o limiar preciso para desencadear a adoção de medidas preventivas ou temporárias em aplicação do princípio da precaução pode variar, dependendo, em especial, da redação exata do instrumento de direito secundário específico em questão (21).

53.      O limite, em todos esses casos, é o de que devem estar identificados, pelo menos, alguns riscos com base em dados científicos (22). Ao contrário das medidas permanentes, o limiar para desencadear a aplicação do princípio da precaução no que diz respeito a medidas provisórias é mais baixo. Ainda assim, devem existir alguns dados claros sobre o(s) alegado(s) risco(s), que deve ser sustentado por um conjunto mínimo de dados científicos, provenientes de um número mínimo de diferentes fontes nacionais ou internacionais fiáveis. O mero receio de um risco induzido por algo novo, ou o risco, declarado de forma vaga e geral, de um risco quando não possa afirmar‑se de forma conclusiva que o novo produto é seguro, são insuficientes para desencadear a aplicação do princípio da precaução.

54.      Tendo em mente estes esclarecimentos, passo a abordar a primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio: o âmbito da Diretiva OGM e da isenção da mutagénese.

2.      Âmbito da Diretiva OGM e da isenção da mutagénese

55.      Na minha opinião, a primeira questão contém, efetivamente, duas subquestões. Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio procura apurar qual o âmbito de aplicação da Diretiva OGM: que organismos são abrangidos pela definição de OGM na aceção do artigo 2.o, n.o 2? Em segundo lugar, pretende saber qual o alcance da própria isenção da mutagénese, prevista no artigo 3.o, n.o 1, em conjugação com o anexo I B da Diretiva OGM: essa isenção abrange todos os organismos obtidos por mutagénese, incluindo os que são obtidos através de novas técnicas de mutagénese aplicadas após a adoção da Diretiva OGM? Ou apenas o subgrupo de organismos obtidos por determinadas técnicas, nomeadamente as que existiam antes da adoção da Diretiva OGM?

56.      Na minha opinião, desde que preencham as condições substantivas previstas no artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva OGM, os organismos obtidos por mutagénese são OGM na aceção da Diretiva OGM (a). Contudo, na medida em que o processo de mutagénese não envolva a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de OGM diferentes dos obtidos por uma ou mais das técnicas referidas no anexo I B, esses organismos estão isentos das obrigações estabelecidas na Diretiva OGM, por força do artigo 3.o, n.o 1, em conjugação com o anexo I B da Diretiva OGM (b).

a)      Mutagénese e OGM

57.      O artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva OGM define OGM como «qualquer organismo, com exceção do ser humano, cujo material genético tenha sido modificado de uma forma que não ocorre naturalmente por meio de cruzamentos e/ou de recombinação natural». Esta disposição acrescenta ainda que «[n]o âmbito desta definição: a) A modificação genética ocorre, pelo menos, quando são utilizadas as técnicas referidas na parte 1 do anexo I A; b) Não se considera que as técnicas referidas na parte 2 do anexo I A resultem em modificações genéticas».

58.      Assim, além da exigência geral, são acrescentadas duas listas que redefinem essa definição básica: uma lista «positiva», na parte 1 do anexo 1 A, e uma lista «negativa», na parte 2 do anexo I A.

59.      A «lista positiva» refere técnicas que, de uma forma ou de outra, implicam a inserção de material genético alienígeno no organismo recetor. Por conseguinte, afigura‑se que os organismos obtidos por transgénese, tal como acima definida (23), podem ser abrangidos por essa lista.

60.      Quanto à mutagénese, isso émenos claro. Contudo, atendendo apenas à definição constante do artigo 2.o, n.o 2, não vejo motivo para que não se considere que os organismos obtidos através desse método, desde que cumpram os critérios substantivos estabelecidos no artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva OGM, são abrangidos por essa definição. Tal conclusão decorre do texto, da lógica interna e do contexto mais amplo da Diretiva OGM.

61.      Em primeiro lugar, é claro que o artigo 2.o, n.o 2, não exige que tenha sido inserido DNA alienígeno num organismo para que este seja qualificado como OGM. Limita‑se a afirmar que o material genético deve ter sido modificado de uma forma que não ocorra naturalmente. A natureza aberta desta norma permite que os organismos obtidos através de métodos diferentes da transgénese sejam abrangidos pela definição de OGM. No que se refere, em especial, à mutagénese, está implícito na redação do artigo 3.o e do anexo I B da Diretiva OGM que a mutagénese pode igualmente ser qualificada, em princípio, como uma «técnica de modificação genética».

62.      Em segundo lugar, o facto de a mutagénese estar isenta das obrigações estabelecidas na Diretiva OGM pressupõe que os organismos obtidos através desse método podem ser OGM. Por isso, concordo com a conclusão da Comissão de que se seria ilógico isentar determinados organismos da aplicação da diretiva se tais organismos não pudessem ser, antes de mais, qualificados como OGM. Os organismos que estão excluídos não necessitam de ser objeto de isenção.

63.      Em terceiro lugar, como elemento de um contexto legislativo mais amplo, se o legislador da UE pretendesse excluir os organismos obtidos por mutagénese da definição de OGM prevista na Diretiva OGM, poderia ter previsto expressamente tal exclusão ao nível da própria definição, como fez noutros atos de direito secundário relativos a OGM (24).

64.      Por conseguinte, na minha opinião, um organismo obtido por mutagénese pode ser um OGM nos termos do artigo 2.o, n.o 2, se cumprir os critérios substantivos estabelecidos nessa disposição.

65.      Sem procurar fornecer qualquer definição que não conste da própria Diretiva OGM, mas sim articular, de forma clara, a relação lógica entre os conceitos utilizados na Diretiva OGM, existem essencialmente, como sublinhou utilmente o Governo do Reino Unido na audiência, três variáveis. Trata‑se do conceito de mutagénese; da definição de OGM nos termos do artigo 2.o, n.o 2; e da isenção nos termos do artigo 3.o, n.o 1, e do anexo I B. Estas podem gerar três conjuntos lógicos de cenários possíveis, consoante a técnica exata utilizada para a criação do organismo em questão.

66.      Em primeiro lugar, podem existir organismos obtidos por mutagénese que não sejam OGM na aceção da Diretiva OGM por não cumprirem os critérios previstos no artigo 2.o, n.o 2. Em segundo lugar, podem existir organismos obtidos por mutagénese que cumpram os critérios. Serão, por isso, OGM na aceção da diretiva, mas, se estiverem abrangidos pela isenção prevista no artigo 3.o, n.o 1, e no anexo I B, estarão isentos das obrigações estabelecidas nessa diretiva. Em terceiro lugar, podem existir organismos obtidos por mutagénese que cumpram os critérios previstos no artigo 2.o, n.o 2, mas não estejam isentos nos termos do anexo I B. O terceiro tipo de organismos será, assim, plenamente abrangido pela Diretiva OGM.

67.      Em suma, a qualificação como OGM resulta, por isso, apenas do cumprimento (ou não) dos critérios estabelecidos no n.o 2 do artigo 2.o da diretiva. O facto de esse organismo poder depois estar isento por força do artigo 3.o, n.o 1, em conjugação com o anexo I B, da Diretiva OGM não tem qualquer impacto na qualificação jurídica como OGM: tais organismos continuam a ser OGM nos termos da diretiva.

b)      Âmbito da isenção da mutagénese

68.      O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva OGM declara que a diretiva não é aplicável aos organismos obtidos através das técnicas referidas no anexo I B. No seu primeiro ponto, o anexo I B refere a «mutagénese». Uma vez que não existe nenhuma definição legal de mutagénese na diretiva, a segunda parte da primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional visa essencialmente saber se: por «mutagénese» devem entender‑se todas as técnicas de mutagénese ou apenas algumas? Se forem apenas algumas, quais?

69.      Nas alegações apresentadas ao Tribunal de Justiça foram expressadas opiniões divergentes quanto ao âmbito da isenção da mutagénese.

70.      Num extremo do espetro, os recorrentes consideram que a isenção da mutagénese deve ser interpretada à luz das condições que estavam em vigor em 2001, quando a Diretiva OGM foi adotada. Por conseguinte, apenas as técnicas de mutagénese que eram utilizadas de forma habitual à data da adoção da Diretiva OGM são abrangidas pela isenção da mutagénese, nomeadamente a mutagénese aleatória in vivo, ao contrário de quaisquer outras técnicas, quer se trate de mutagénese aleatória in vitro ou dirigida, a fortiori.

71.      No outro extremo do espetro, os Governos grego e do Reino Unido alegam que não deve ser efetuada qualquer distinção em matéria de mutagénese. Todos os desenvolvimentos tecnológicos subsequentes à adoção da Diretiva OGM devem ser abrangidos pelo âmbito da isenção da mutagénese, uma vez que, em 2001, era claramente previsível que o progresso científico relacionado com a mutagénese não ficaria por ali.

72.      Os outros interessados que apresentaram observações no Tribunal de Justiça situam‑se entre estas duas posições, embora talvez mais próximos das posições dos Governos grego e do Reino Unido.

73.      O Governo austríaco propõe que todas as técnicas de mutagénese que eram tradicionalmente utilizadas quando a Diretiva OGM foi adotada sejam consideradas isentas. As novas técnicas devem ser analisadas caso a caso para determinar se podem ser abrangidas pela isenção da mutagénese.

74.      Os Governos francês e neerlandês acolhem uma abordagem semelhante, embora centrada, em especial, na segurança. Alegam que apenas os organismos obtidos através de técnicas que sejam tão seguras quanto as técnicas tradicionais devem ser considerados isentos. O Governo francês alega, em especial, que o âmbito da isenção da mutagénese deve ser determinado à luz do princípio da precaução.

75.      O Governo sueco sublinha igualmente a dimensão de segurança, da qual retira, contudo, conclusões contrárias às dos Governos francês e neerlandês. Embora considere que a mutagénese dirigida não produz OGM na aceção do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva OGM, considera que tal técnica deve, ainda assim, estar isenta porque apresenta ainda menos riscos do que a mutagénese convencional e é semelhante às mutações espontâneas que ocorrem naturalmente. Os organismos obtidos através da inserção de DNA alienígeno (que envolva a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos) são, contudo, abrangidos pelo âmbito da diretiva porque não se trata de mutagénese.

76.      A Comissão (25) observa que não foram relatados especiais problemas relacionados com a mutagénese convencional desde os anos 60, quando foi utilizada pela primeira vez. Não existe uma verdadeira diferença entre a mutagénese in vitro e in vivo. A mutagénese in vitro é até anterior à adoção da Diretiva OGM e, em menor medida, à da sua antecessora (26).

77.      Através da utilização do termo genérico «mutagénese» no anexo I B, o artigo 3.o, n.o 1, da diretiva pode igualmente isentar as novas técnicas. Em 2001, o legislador da UE não podia ignorar o progresso tecnológico. Deve inferir‑se que era sua intenção incluir na isenção todas as técnicas de mutagénese. Assim, o legislador da UE manteve deliberadamente a designação genérica, mas acrescentou a proibição de utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos de modo a restringir o leque de técnicas que beneficiam da isenção.

78.      De acordo com a Comissão, deve ser efetuada uma avaliação caso a caso para determinar se os organismos obtidos por mutagénese podem ser considerados isentos, apreciando os diferentes processos utilizados para modificar o material genético, incluindo a possível utilização de técnicas de recombinação de ácidos nucleicos ou de OGM não isentos. Os organismos obtidos por mutagénese convencional (incluindo in vitro) e através de novas técnicas estão isentos desde que preencham as condições previstas no anexo I B.

79.      Na minha opinião, em concordância com a Comissão, existe apenas uma distinção relevante que deve ser feita de modo a esclarecer o âmbito da isenção da mutagénese: a ressalva constante do anexo I B, nomeadamente se a técnica de mutagénese «envolve […] a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de OGM diferentes dos obtidos […] por mutagénese [ou] fusão celular […] de células vegetais de organismos resultantes que podem trocar material genético através dos métodos tradicionais de cultura» (a seguir «ressalva do anexo I B») (1). Não devem — nem sequer podem — ser efetuadas judicialmente outras distinções (2).

1)      Ressalva do anexo I B

80.      A ressalva do anexo I B foi introduzida em 2001. Anteriormente, a Diretiva 90/220 isentou os organismos obtidos por mutagénese na única condição de «não implicarem a utilização de OGM como organismos recetores ou parentais» (27).

81.      Como observou a Comissão, o legislador da UE decidiu intencionalmente não estabelecer uma distinção entre as técnicas para determinar o âmbito da isenção da mutagénese. Ao mesmo tempo, restringiu efetivamente a isenção de modo a ter em conta os desenvovimentos tecnológicas em curso, acrescentando a ressalva decorrente da utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos. Essa ressalva foi estabelecida para ter em conta, de forma suficiente, o surgimento de novas técnicas de mutagénese.

82.      Assim, tendo apenas em conta o plano textual, é já manifestamente incorreto afirmar que a Diretiva OGM prevê uma isenção indiscriminada e sem critério para todas e quaisquer técnicas de mutagénese. Pelo contrário: a ressalva do anexo I B fornece uma qualificação significativa.

83.      A leitura contextualizada da diretiva OGM confirma a importância deste aditamento de 2001. A utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos consta, de facto, expressamente da parte I do anexo I A como uma técnica de modificação genética referida no artigo 2.o, n.o 2, alínea a) — lista positiva. A utilização de tais moléculas pode mesmo conduzir à elisão da presunção de que as técnicas enumeradas na parte 2 do anexo I A (nomeadamente a fertilização in vitro, os processos naturais e a indução da poliploidia) não dão origem a modificações genéticas.

84.      Assim, daqui decorre que as técnicas de mutagénese que cumpram os critérios estabelecidos no artigo 2.o, n.o 2, estão isentas das obrigações previstas na Diretiva OGM, desde que não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de OGM diferentes dos obtidos por mutagénese ou fusão celular de células vegetais de organismos resultantes, que podem trocar material genético através dos métodos tradicionais de cultura. Se esta condição constante do anexo I B não estiver preenchida, serão aplicáveis todas as obrigações estabelecidas na diretiva.

85.      Para concluir, poderá ser útil referir um aspeto complementar. É ponto assente que os Estados‑Membros estão obrigados a transpor corretamente todas as disposições de uma diretiva, incluindo os seus anexos (28). Embora não seja o que está diretamente em causa no presente processo, afigura‑se que o artigo D.531‑2 do Código do Ambiente (objeto de contestação a nível nacional) ainda está redigido nos mesmos termos em que está o antecessor do anexo I B da Diretiva 90/220. Essa medida nacional de transposição não parece refletir a ressalva da versão do anexo I B posterior a 2001. Contudo, compete apenas ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se tal é efetivamente o caso e, se assim for, que conclusões podem ser retiradas dessa constatação em termos de transposição correta da Diretiva OGM para o direito nacional.

2)      Outras distinções?

86.      Devem estabelecer‑se outras distinções entre as técnicas de mutagénese, para além da que decorre do anexo I B?

87.      Os recorrentes, os Governos francês e neerlandês e, de certo modo, também o Governo sueco argumentam, no essencial, que as técnicas de mutagénese devem ser distinguidas de acordo com o seu grau de segurança. Em especial, os recorrentes e o Governo francês propõem que se interprete o âmbito da isenção da mutagénese à luz do considerando 17 da Diretiva OGM e do princípio da precaução. Na sua opinião, tal deverá conduzir a uma interpretação restrita da isenção da mutagénese, confinada às técnicas que estavam «testadas e comprovadas» e que eram, por isso, consideradas seguras em 2001.

88.      Este argumento tem duas fases cronológicas. Para facilitar a apresentação, estas devem manter‑se separadas: em primeiro lugar, sugere‑se que, apesar do que escreveu, em 2001, o legislador da UE tinha a intenção de isentar apenas as técnicas seguras. Em segundo lugar, mesmo que tal não fosse o caso nessa altura, as preocupações de segurança que surgiram após essa data deviam conduzir, cerca de 17 anos depois, ao resultado de facto atual, ou seja, à limitação, em 2018, da isenção da mutagénese às técnicas que eram conhecidas e utilizadas em 2001.

89.      Discordo de ambas as premissas. Na minha opinião, em 2001, o legislador quis claramente dizer o que escreveu (i). Por várias razões, constitucionais e também práticas, não cabe certamente ao Tribunal de Justiça começar a reescrever judicialmente definições e categorias constantes de um diploma de direito secundário altamente técnico e complexo (ii).

i)      Intenção do legislador

90.      Os recorrentes e vários outros interessados basearam‑se, em grande medida, no considerando 17 para chegar à conclusão de que o legislador da UE apenas pretendeu isentar as técnicas de mutagénese seguras.

91.      Não posso concordar. Nem a redação nem o contexto histórico nem a lógica interna da Diretiva OGM sustentam essa premissa.

92.      Em primeiro lugar, quanto à redação, o considerando 17 afirma que «[a] presente diretiva não deve ser aplicável a organismos obtidos por meio de certas técnicas de modificação genética que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado». O considerando não contém nenhuma referência expressa à mutagénese. Certamente, dependendo do alcance exato da definição adotada para o conceito de «modificação genética» (pelo menos alguns tipos de) mutagénese serão provavelmente incluídos nesse conceito mais amplo. Contudo, o considerando 17 claramente não visa especificamente a mutagénese, pelo que não justifica a ideia de que a isenção específica foi introduzida à luz do considerando 17.

93.      Além disso, nem o artigo 3.o nem o anexo I B (que estabelecem a isenção da mutagénese) referem, de alguma forma, o considerando 17, por exemplo, reproduzindo a sua redação ou utilizando as suas categorias. Nenhuma dessas disposições sujeita ou justifica a isenção com base no «índice de segurança longamente comprovado» dos organismos isentos. Assim, o texto do considerando 17 não está claramente refletido nas categorias e nas definições constantes da Diretiva OGM.

94.      Em segundo lugar, e talvez ainda mais importante, a história legislativa desse considerando e da isenção da mutagénese demonstram claramente que o considerando 17 não pode simplesmente ser utilizado na interpretação do artigo 3.o, n.o 1, e do anexo I B. Se olharmos para a história legislativa da Diretiva 90/220, que precedeu a Diretiva OGM, o considerando 17 foi redigido e inserido pela Comissão antes sequer de a isenção da mutagénese ter sido discutida nas fases subsequentes do processo legislativo (29). Por outras palavras, a isenção da mutagénese só foi inserida mais tarde e independentemente do considerando 17.

95.      Em terceiro lugar, decorre da sistemática geral da Diretiva OGM que não se afigura que o legislador da UE tenha pretendido dividir a categoria da mutagénese com base na técnica precisa utilizada e no seu pretenso grau de segurança. Na audiência, a Comissão afirmou que o considerando 17 era uma simples declaração, enquanto o Conselho confirmou que o legislador da UE não tinha qualquer intenção de regular as técnicas de mutagénese, independentemente do nível de segurança destas.

96.      Além disso, no âmbito da Diretiva OGM, o legislador da UE já estabeleceu algumas distinções entre os vários métodos nos anexos I A e I B. Assim, é justo presumir que as distinções que o legislador da UE pretendia estabelecer ficaram efetivamente expressas. Em tal contexto, é difícil sustentar que, para além dessas distinções claras, o legislador da UE pretendia igualmente acrescentar um novo nível de complexidade a toda a estrutura, prevendo outras distinções implícitas entre as diferentes técnicas de mutagénese com base num critério de segurança que não constava da legislação.

97.      Assim, não tenho dúvidas de que, em 2001, o legislador escreveu o que pretendia escrever: os organismos obtidos através de técnicas de mutagénese estão isentos das obrigações estabelecidas na Diretiva OGM, a menos que sejam abrangidos pela ressalva do anexo I B.

ii)    Interpretação «cristalizada» ou dinâmica?

98.      Além do seu argumento quanto ao que o legislador da UE pretendia dizer em 2001, os recorrentes alegam, no essencial, que, em 2018, a isenção da mutagénese deve ser interpretada à luz das condições factuais que existiam em 2001. Por isso, apenas as técnicas seguras que eram utilizadas de forma habitual à data da adoção da Diretiva OGM são abrangidas pela isenção da mutagénese. O fundamento apresentado para tal interpretação é o princípio da precaução.

99.      Discordo.

100. De uma forma geral, a interpretação da lei e, em especial, de conceitos indeterminados constantes da lei, deve ser dinâmica. Deve responder à evolução da sociedade, quer técnica quer social. Assim, as categorias técnicas e morais evoluem ao longo do tempo: provavelmente, em 1818, a expressão «tratamento degradante» significava algo muito diferente do que significa em 2018. O mesmo vale para as definições mais técnicas, como a de «veículo» ou de «meio de comunicação». A ideia de que a interpretação de tais conceitos deve ficar «cristalizada» nas circunstâncias factuais ou sociais dominantes na altura em que esses conceitos foram integrados na lei constitui uma abordagem particularmente originalista da interpretação da lei, que não é habitual deste lado do Atlântico.

101. Mais especificamente, uma categoria genérica designada «mutagénese» deve assim, logicamente, incluir todas as técnicas que, no momento específico relevante para o caso em questão, se considere que fazem parte dessa categoria, incluindo também quaisquer novas técnicas.

102. Neste contexto, o princípio da precaução invocado pelos recorrentes é aparentemente visto como uma exceção interna ao princípio geral da interpretação dinâmica da lei. Supostamente, deve ser tirada uma fotografia dos domínios ou questões abrangidos por esse princípio que os cristalize no tempo.

103. Pondo de lado, por um momento, a questão de saber se o princípio de precaução pode ou não ser sequer invocado no caso em apreço com base nos documentos e elementos apresentados ao Tribunal de Justiça (30), parece(‑me) que, se pretendermos permanecer no domínio da interpretação jurídica, o princípio da precaução poderá desempenhar uma função diferente. Tal como noutros casos de interpretação jurídica, esse princípio pode ser utilizado para interpretar conceitos ou categorias indeterminados, quando existam dúvidas sobre o seu significado dentro de limites semânticos razoavelmente aceitáveis do texto escrito — quando existam várias (e igualmente plausíveis) opções em cima da mesa. Contudo, não pode levar a que se reescreva (31) as disposições do texto jurídico contrariando a própria redação destas, ou seja, contra legem (32).

104. Este é, de forma resumida, o problema constitucional das premissas de que os recorrentes partem. O que os recorrentes efetivamente solicitam não é uma interpretação da Diretiva OGM, mas uma reformulação judicial desta, mais concretamente a redefinição do âmbito da isenção prevista no artigo 3.o, n.o 1, e no anexo I B, contrária à letra da legislação, procurando obter a inserção por via judicial de categorias que claramente não estão previstas na própria legislação.

105. Tal revela então, por sua vez, vários problemas práticos que decorrem da premissa dos recorrentes, que reforçam ainda mais o motivo pelo qual tal avaliação deve ser efetuada pelo legislador perito e não pelo tribunal. Para referir apenas um, em jeito de conclusão: o critério proposto pelos recorrentes para tal reformulação judicial das normas atuais era incluir no anexo I B remodelado apenas técnicas que fossem seguras e já tivessem sido utilizadas de forma habitual em 2001. Contudo, como seriam tais técnicas exatamente definidas? Poderiam, de facto, ser identificadas? E o que dizer das técnicas que existiam, eram seguras, mas eram utilizadas apenas em laboratórios selecionados (de forma não habitual) em 2001? E se uma técnica que existia em 2001 tivesse sido ligeiramente modificada em 2005, mas a investigação que prenunciava essa modificação ou ampliação já existisse desde os anos 80? E o que dizer de uma técnica que existia e era utilizada de forma habitual em 2001, e que se acreditava, na altura, que era segura, mas que só mais tarde se concluísse que não o era totalmente? Incidentalmente, poderiam estes desenvolvimentos posteriores ser sequer tomados em consideração num mundo onde apenas os conhecimentos que existissem à data da adoção da lei deviam ser relevantes para a sua interpretação?

106. Por vezes, diz‑se, talvez não totalmente como um elogio, que colocar dois juristas numa sala significa ter de lidar com três opiniões jurídicas diferentes. Contudo, é de presumir que, perante critérios redigidos dessa forma, o mesmo possa rapidamente acontecer com (bio)cientistas, para não falar de reguladores nacionais que sejam chamados a aplicar tais critérios.

107. Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão da seguinte forma:

–        Desde que cumpram os critérios substantivos estabelecidos no artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/18, os organismos obtidos por mutagénese são organismos geneticamente modificados na aceção dessa diretiva;

–        A isenção prevista no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, em conjugação com o anexo I B, abrange todos os organismos obtidos através de qualquer técnica de mutagénese, independentemente da sua utilização à data da adoção dessa diretiva, desde que não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de organismos geneticamente modificados diferentes dos obtidos por um ou mais dos métodos referidos no anexo I B.

B.      Terceira questão

108. Através da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que determine se a Diretiva OGM constitui uma medida de harmonização completa ou parcial no que diz respeito aos organismos obtidos por mutagénese. O objetivo específico dessa questão é apurar se os Estados‑Membros podem adotar regras (nacionais) relativas à mutagénese apesar de esta estar isenta das obrigações estabelecidas na diretiva e/ou se, no processo de transposição da Diretiva OGM, podem igualmente aplicar à mutagénese as obrigações constantes da diretiva.

109. Nas suas observações escritas, a Comissão alegou que essa questão é inadmissível. Discordo e explicarei, primeiro, por que razão considero que a questão é admissível e, depois, por que razão considero que os Estados‑Membros são, em princípio, livres de regular os organismos obtidos por mutagénese.

110. Quanto à admissibilidade, a Comissão considera a terceira questão hipotética. A petição apresentada no órgão jurisdicional de reenvio contesta a legalidade do artigo D. 531‑2 do Código do Ambiente na medida em que essa disposição isenta os organismos obtidos por mutagénese das obrigações estabelecidas nas medidas nacionais de transposição da Diretiva OGM. De acordo com a Comissão, os recorrentes não pretendem que essa disposição nacional seja declarada inválida na medida em que vai além do que é exigido pela diretiva ao impor obrigações que não estão previstas nesta. Neste contexto, entende que a questão de saber se os Estados‑Membros têm margem para regular a mutagénese é hipotética.

111. Não concordo. De acordo com jurisprudência uniforme do Tribunal de Justiça, as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais gozam de uma presunção de pertinência (33). No caso presente, claramente não se afigura que essa presunção tenha sido elidida: bem pelo contrário.

112. No processo principal, os recorrentes pediram ao órgão jurisdicional de reenvio que decretasse uma moratória sobre as variedades obtidas por mutagénese tolerantes aos herbicidas. Embora não caiba ao Tribunal de Justiça determinar se o órgão jurisdicional de reenvio tem a competência necessária para adotar tais medidas, a terceira questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio parece relevante para determinar se os Estados‑Membros podem efetivamente ir além da Diretiva OGM e decidir sujeitar organismos obtidos por mutagénese às obrigações estabelecidas na diretiva ou a normas de origem exclusivamente nacional.

113. A existência e o alcance da margem de que os Estados‑Membros gozam dependem do grau de harmonização de uma determinada área, estabelecido numa diretiva. Em caso de harmonização completa de uma área de direito, os Estados‑Membros ficam impedidos de regular essa área, uma vez que a ação da UE já a ocupou totalmente. Os Estados‑Membros deixam de ter autonomia substantiva e margem de apreciação para adotar medidas de alcance geral (34). A sua margem de apreciação não vai além do que a medida de harmonização lhes permitir. Por outro lado, em caso de harmonização parcial, os Estados‑Membros permanecem livres de adotar normas gerais, desde que respeitem, de forma geral, os compromissos do direito primário da UE (35).

114. Deste ponto de vista, e obviamente sem prejuízo da divisão de competências interna do Estado‑Membro, compreendo por que razão um órgão jurisdicional nacional coloca tal questão. A terceira questão é, por conseguinte, admissível.

115. Quanto ao mérito dessa questão, resume‑se à questão de saber que escolha legislativa efetuou o legislador da UE em relação à mutagénese. A isenção da mutagénese prevista no artigo 3.o, n.o 1, e no anexo I B da Diretiva OGM pode ser entendida de duas formas.

116. Por um lado, pode propor‑se que, no que diz respeito à mutagénese, o legislador da UE efetuou uma opção legislativa. Procedeu a uma avaliação e, com base nela, chegou à conclusão de que todas as técnicas de mutagénese devem ser isentadas porque são seguras. Se assim for, o legislador da UE não só terá isentado a mutagénese das obrigações estabelecidas na diretiva, mas terá também, logicamente, impedido os Estados‑Membros de regular os organismos obtidos através desse método ao nível nacional. Nesse caso, o legislador da União Europeia é como um arquiteto que decidiu ter uma sala designada por «mutagénese» em sua casa, mas decidiu também manter essa sala vazia.

117. Por outro lado, pode também alegar‑se que, ao incluir a isenção da mutagénese, o legislador da UE não se pronunciou sobre a sua segurança. A exclusão significou simplesmente que o legislador da UE não pretendeu regular essa questão ao nível da UE. Tal significa então que o espaço de regulação permanece desocupado e, desde que os Estados‑Membros respeitem as obrigações gerais que para eles decorrem do direito da UE, podem legislar sobre organismos obtidos por mutagénese. Nesse caso, o arquiteto efetivamente decidiu deixar o espaço designado por «mutagénese» fora da sua casa.

118. Na minha opinião, esta segunda conceção da isenção da mutagénese está correta.

119. Em primeiro lugar, como já foi explicado, a premissa de que a isenção da mutagénese foi introduzida especificamente porque o legislador da UE chegou à firme conclusão de que todas as técnicas de mutagénese eram seguras não tem sustentação textual ou histórica clara na redação da Diretiva OGM (36). Assim, não há sinais de qualquer análise legislativa expressa efetuada a esse respeito.

120. Em segundo lugar, no plano mais abstrato, como foi pertinentemente sublinhado pelo Parlamento Europeu na audiência, dificilmente se pode presumir que um legislador razoável possa alguma vez pretender afirmar, en bloc e para o futuro, que algo é de tal modo seguro que não necessita de qualquer regulamentação, quer ao nível da UE quer ao nível do Estado‑Membro.

121. Em terceiro lugar, na audiência, o Conselho confirmou que, tanto quanto se podia apurar face à escassa documentação disponível relativa a esse período, o Conselho (a instituição que, no processo legislativo, introduziu efetivamente a isenção da mutagénese no texto (37)) não tinha qualquer intenção de declarar que todas as técnicas de mutagénese eram seguras.

122. Por último, a título relativamente acessório, mas em plena consonância com a referida abordagem dinâmica da interpretação jurídica (38), pode acrescentar‑se também que utilizar uma presunção inelidível da segurança da mutagénese para impedir os Estados‑Membros de legislar é dificilmente compaginável com os desenvolvimentos mais recentes em matéria de legislação relativa aos OGM na União Europeia. Atualmente, a Diretiva (UE) 2015/412 (39) permite efetivamente que os Estados‑Membros proíbam a libertação e a colocação no mercado de produtos abrangidos pela Diretiva OGM. Tal parece indicar uma certa renacionalização das competências no domínio dos OGM. Em tal contexto, excluir a mutagénese de uma orientação aplicável aos OGM em general seria muito surpreendente.

123. Neste contexto, sou da opinião de que os Estados‑Membros têm competência para regular organismos obtidos por mutagénese, desde que respeitem as obrigações gerais que para eles decorrem do direito da UE, tenham elas origem no direito secundário ou em normas de direito primário, como os artigos 34.o e 36.o TFUE.

124. Por conseguinte, proponho que a terceira questão seja respondida da seguinte forma: a Diretiva 2001/18 não impede os Estados‑Membros de adotar medidas que regulem a mutagénese, desde que, ao fazê‑lo, respeitem as obrigações gerais decorrentes do direito da UE.

C.      Quarta questão

125. A quarta questão diz respeito à validade da isenção da mutagénese prevista na Diretiva OGM. Baseia‑se na premissa de que, se o princípio da precaução não pode ser efetivamente utilizado para interpretar a isenção da mutagénese de uma forma que seja provavelmente compatível com o princípio da precaução, o mesmo princípio pode então ser invocado para questionar a validade da diretiva no que diz respeito ao âmbito da isenção.

126. No seu despacho de reenvio prejudicial, o órgão jurisdicional nacional estabelece uma distinção entre as técnicas de mutagénese consoante sejam anteriores ou posteriores à adoção da Diretiva OGM. No que diz respeito às técnicas anteriores, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a alegação de que a Diretiva OGM não respeitou o princípio da precaução na data da sua adoção pode ser rejeitada porque, durante décadas, foram utilizados métodos convencionais de mutagénese aleatória que não constituíram riscos identificáveis para o ambiente ou para a saúde. No que diz respeito às técnicas posteriores, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, desde a adoção da diretiva, foram obtidas novas variedades resistentes aos herbicidas como resultado das técnicas de mutagénese aleatória in vitro e de técnicas de mutagénese dirigida. O desenvolvimento de novas técnicas permite aumentar a produção de modificações do património genético a uma taxa sem comparação com as modificações suscetíveis de ocorrer natural ou aleatoriamente.

127. De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, existe atualmente incerteza científica relativamente ao impacto das novas técnicas e aos potenciais riscos daí resultantes para o ambiente e para a saúde humana e animal. Não foi efetuada uma avaliação dos riscos antes da comercialização das variedades não transgénicas, nem uma monitorização e uma rastreabilidade pós comercialização. As únicas avaliações relativas às variedades tolerantes aos herbicidas foram realizadas no contexto do procedimento de autorização da comercialização.

128. O órgão jurisdicional de reenvio afirmou também que, dada a inexistência de avaliação e de monitorização, podem existir riscos decorrentes dos efeitos não intencionais sobre o genoma da técnica de modificação genética utilizada ou das características da planta suscetível de ser obtida. Esses riscos estão relacionados com o impacto no ambiente e na saúde humana e animal do cultivo de variedades geneticamente modificadas resistentes a herbicidas. São, em parte, semelhantes aos que podem resultar de sementes provenientes da transgénese. Na medida em que a modificação direta do genoma permita obter os mesmos efeitos que a introdução de um gene estranho, as propriedades da planta assim obtida podem gerar riscos de danos.

129. Assim, dado o aparecimento de novas variedades de plantas obtidas através de novas técnicas de mutagénese e o facto de ser impossível determinar com certeza a existência e a extensão dos riscos daí decorrentes, a validade da Diretiva OGM pode ser questionada à luz do princípio da precaução ‑ na medida em que persiste a probabilidade de existirem danos reais se os riscos invocados se concretizarem.

130. Saliento, desde já, que, embora se possa ter algumas dúvidas quanto a algumas das afirmações do órgão jurisdicional de reenvio, não cabe ao Tribunal de Justiça envolver‑se na discussão dos factos. Contudo, gostaria de sublinhar um elemento chave que parece permear o despacho de reenvio prejudicial (bem como, nesse sentido, as alegações dos recorrentes). Afirma‑se que, dada a falta de avaliação e de monitorização dos organismos obtidos por mutagénese, existe o perigo de um risco que deve desencadear a aplicação do princípio da precaução. Por outras palavras, afirma‑se que é a falta de monitorização, em conjugação com a inexistência de dados científicos conclusivos que provem que os organismos obtidos por mutagénese são seguros, que constitui uma violação do princípio da precaução, o que pode justificar a anulação dos artigos 2.o e 3.o, e dos anexos I A e I B, da Diretiva OGM.

1.      Critério para apreciação da validade: «cristalização do n.o 2»?

131. Antes de passarmos à apreciação efetiva da validade no caso presente, deve clarificar‑se o elemento cronológico respeitante a essa avaliação. Pede‑se ao Tribunal de Justiça que aprecie a validade dos artigos 2.o e 3.o da Diretiva OGM, em conjugação com os seus anexos I A e I B, nas condições atuais, ou seja, à luz dos desenvolvimentos mais recentes relativos à mutagénese.

132. Contudo, é jurisprudência uniforme que a apreciação da validade de um ato de direito secundário é efetuada, em princípio, à luz dos factos e das circunstâncias que existiam na altura em que o ato foi adotado. A apreciação à luz dos factos e das circunstâncias existentes num momento posterior é excecional (40).

133. Penso que esta afirmação, na qual a Comissão e o Conselho se baseiam, necessita de refinamentos relativamente ao tipo de medida impugnada e aos fundamentos dessa impugnação.

134. Quanto ao tipo de medida da UE impugnada, pode existir uma abordagem diferente consoante se apreciem medidas individuais (decisões administrativas) ou medidas legislativas. As primeiras são, por natureza, essencialmente retrospetivas: estabelecem os direitos e as obrigações de um determinado conjunto de pessoas relativamente a um determinado momento. O estabelecimento de direitos e obrigações desta forma será, com certeza, também importante para o futuro. Mas determinantes para essa decisão são, na verdade, os factos e o direito existentes à data da sua adoção. As verdadeiras medidas legislativas, pelo contrário, são, por natureza, essencialmente prospetivas: visam regular um número indefinido de situações que ocorram no futuro. Para as medidas legislativas, a subsequente evolução da realidade social e factual é mais importante (41).

135. Tal está relacionado com os fundamentos da impugnação, o que é especialmente relevante no que diz respeito a medidas legislativas. Como é manifesto no caso em apreço, esses fundamentos podem ser relativos a: i) factos ou motivos que o legislador da UE devia ter tomado em consideração na altura da adoção do ato; e/ou ii) aqueles que ocorreram posteriormente.

136. A presente impugnação é essencialmente deste segundo tipo. Neste tipo de impugnação, claro que não se alega que o legislador da UE devia ter sido clarividente e previsto o futuro em 2001. No que diz respeito às opções legislativas efetuadas em 2001, os factos e as leis de 2001 naturalmente mantêm‑se como critério de apreciação.

137. O fundamento de impugnação é de índole ligeiramente diferente: alega‑se, efetivamente, que o legislador da UE, após a adoção da medida, não reagiu a novos desenvolvimentos técnicos e científicos importantes através de modificações ou de outros ajustamentos. Contudo, se, perante tal argumento, se reafirmar a fórmula‑padrão de que a apreciação da validade de um «ato de direito secundário é, em princípio, efetuada à luz dos factos e das circunstâncias que existiam na altura em que o ato foi adotado», qualquer desenvolvimento posterior se torna irrelevante para a questão da validade do ato de direito da UE.

138. Não me parece que tal abordagem seja correta. Logicamente, o dinamismo no direito deve funcionar nos dois sentidos: se se permite que os desenvolvimentos técnicos e sociais contribuam para a interpretação de conceitos e categorias indeterminados (42), então os mesmos fatores devem ser igualmente relevantes no contexto da subsequente apreciação judicial da validade.

139. Na minha opinião, existe um dever constitucional de a legislação ser relevante, no sentido de ser técnica e socialmente adequada, e, desde que seja necessário face a desenvolvimentos posteriores, ser atualizada. Como foi já explicado, de forma lúcida, pelo advogado‑geral J. Mischo (43) e igualmente replicado num contexto diferente noutro local (44): o legislador está obrigado a manter a sua regulamentação razoavelmente atualizada. Tal não significa necessariamente, muito menos numa ordem jurídica baseada na atribuição de competências, que exista um dever de legislar, um dever de ocupar novas áreas. Mas existe seguramente um dever de cuidar e de zelar pelas áreas já abrangidas (45).

140. Assim, o conteúdo exato de tal impugnação da validade não é a «omissão de tomar algo em consideração no momento da adoção do instrumento original», mas efetivamente a «omissão de manter esse instrumento atualizado após a sua adoção». O incumprimento desse dever pode ter como consequência, em casos extremos de falta de adequação técnica e social, uma possível declaração de invalidade das disposições legislativas específicas devido à inatividade, nomeadamentedevido à omissão de introduzir modificações. Gostaria de sublinhar a natureza muito excecional de tal passo, que apenas pode ser concretizado em casos de dissonância clara e grave entre a realidade modificada e a legislação efetivamente obsoleta.

141. Na minha opinião, o dever legislativo de atualizar é geral. Contudo, não tem a mesma força em todas as potenciais áreas de regulação. A função e o valor específicos do princípio da precaução tornam, nas áreas e questões abrangidas por esse princípio, esse dever crucial. Nas áreas sensíveis abrangidas por esse princípio são exigidos um cuidado e uma vigilância extra, o que se traduz na necessidade de atualizações e revisões regulares pelo legislador.

142. Por conseguinte, em resposta às opiniões manifestadas pelo Conselho e pela Comissão, não concordo com a premissa de que a validade de uma medida de direito da UE, seguramente no que diz respeito a legislação de caráter geral aplicável prospetivamente, deve ser apreciada tendo exclusivamente em conta os factos e os conhecimentos tal como eram à data da adoção dessa legislação. Se o fundamento de impugnação da validade for a omissão de tomar em consideração factos ou circunstâncias já conhecidas à data da adoção dessa legislação, uma fotografia dessa apreciação naturalmente «cristaliza» dessa forma. Contudo, existe um outro fundamento para uma possível impugnação da validade, ao qual já me referi nesta parte. Por definição, o seu foco direciona‑se para condições atuais: a apreciação judicial do cumprimento do dever de manter a legislação razoavelmente atualizada, com especial incidência no princípio da precaução, o que significa, inevitavelmente, que tal apreciação ocorre ex post.

2.      O presente processo

143. No presente processo, não descortino nenhum fundamento resultante do dever geral de atualizar legislação, in casu reforçado pelo princípio da precaução, que possa afetar a validade da isenção da mutagénese prevista tanto no artigo 3.o, n.o 1, como no anexo I B da Diretiva OGM.

144. Em primeiro lugar, o legislador da UE seguramente não pode ser acusado de não ter exercido a sua margem de apreciação no domínio dos OGM, quer em geral quer especificamente no que diz respeito à isenção da mutagénese. A Diretiva OGM e a regulamentação neste domínio foram, de facto, objeto de discussão e atualização regulares. A própria Diretiva OGM de 2001 não é apenas o resultado da modificação da Diretiva 90/220, que a precedeu — foi novamente modificada em 2008 (46). Em 2015, o sistema havia sido novamente modificado, permitindo aos Estados‑Membros proibir o cultivo de OGM no seu território com base em vários fundamentos diferentes (47). Além disso, a Diretiva OGM prevê a sua própria adaptação ao impor, no artigo 27.o, a adaptação de alguns anexos ao progresso técnico, embora não dos anexos I A ou I B.

145. A isenção da mutagénese foi também alterada com regularidade, por exemplo, em 2001, quando a ressalva do anexo I B foi restringida, acrescentando‑se a condição de que a mutagénese apenas está isenta se não envolver a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de OGM diferentes dos obtidos por uma ou mais das técnicas referidas no anexo I B (48). Assim, não pode seguramente alegar‑se que o legislador da UE não atualizou a legislação relevante.

146. Em segundo lugar, no que diz respeito à aplicação do princípio da precaução, de acordo com os elementos apresentados ao Tribunal de Justiça, parece existir muito pouca informação sobre os riscos concretos para a saúde ou para o ambiente no caso em apreço.

147. Recorde‑se (49) que o Tribunal de Justiça já afirmou claramente que as medidas de proteção «não podem ser validamente fundamentadas com base numa abordagem puramente hipotética do risco, alicerçada em simples suposições ainda não verificadas cientificamente. Pelo contrário, medidas de proteção como estas, não obstante o seu caráter provisório e ainda que se revistam de caráter preventivo, apenas podem ser tomadas se baseadas numa avaliação dos riscos tão completa quanto possível, tendo em conta as circunstâncias específicas do caso em apreço, que mostram que essas medidas se impõem» (50).

148. Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, de acordo com o princípio da precaução, a «incerteza quanto ao risco» não significa meras dúvidas de caráter genérico. Devem ser identificados riscos concretos para a saúde humana e para o ambiente, sustentados por um número mínimo de pesquisas científicas sérias e independentes que identifiquem riscos claros para a saúde humana ou para o ambiente. O receio de um risco, ou o risco de um risco, não é suficiente.

149. A este respeito, o papel do Tribunal de Justiça é necessariamente limitado. Seguramente não lhe compete comparar e analisar argumentos científicos. Essa é a tarefa do legislador da UE ou do executivo. Apesar de reconhecerem e respeitarem as diferentes sensibilidades e preocupações suscitadas pela questão mais ampla dos OGM, os documentos que foram apresentados ao Tribunal de Justiça não demonstram, na minha opinião, a existência de qualquer dissonância clara entre a legislação aplicável e os conhecimentos científicos que possa, nos cenários extremos acima descritos, justificar a intervenção do Tribunal de Justiça (51).

150. Em terceiro lugar, como resulta da resposta à terceira questão (52), as obrigações que decorrem da Diretiva OGM não se aplicam a (alguns tipos de) mutagénese. Todavia, a isenção da mutagénese não impede os Estados‑Membros de adotarem medidas que regulem esse subdomínio. A fortiori, os Estados‑Membros podem adotar medidas de proteção provisórias com base no princípio da precaução ou de normas existentes para esse efeito no direito nacional.

151. Este terceiro elemento é muito importante: naturalmente existirá um grau de responsabilidade diferente no dever de efetuar atualizações legislativas relevantes em domínios nos quais a União Europeia exerça a sua competência, em contraposição aos domínios nos quais os Estados‑Membros também possam legislar. É no primeiro cenário que o dever existirá claramente: se nos arrogamos exclusividade para uma determinada atividade, devemos exercer efetivamente essa atividade, desde que esta seja necessária. Pelo contrário, esse dever será muito menor, ou mesmo inexistente, quando qualquer parte que considere que o assunto lhe diz respeito possa fazê‑lo por si própria.

152. Por estes motivos, proponho que o Tribunal de Justiça responda no sentido de que a análise da quarta questão submetida não revelou qualquer fator suscetível de afetar a validade dos artigos 2.o e 3.o, e dos anexos I A e I B, da Diretiva OGM.

D.      Segunda questão

153. Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se a isenção prevista no artigo 3.o, n.o 1, e no anexo I B da Diretiva OGM se aplica igualmente no contexto da Diretiva 2002/53. O motivo da colocação desta questão é o facto de a Diretiva 2002/53, no seu artigo 4.o, n.o 4, remeter apenas para as definições de OGM constantes do artigo 2.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 90/220 (antecessora da atual Diretiva OGM), sem se referir à isenção da mutagénese prevista no artigo 3.o, n.o 1. Além disso, a própria Diretiva 2002/53 não prevê qualquer isenção relativa à mutagénese.

154. Na minha opinião, a Diretiva 2002/53 deve ser interpretada à luz da isenção da mutagénese prevista na Diretiva OGM, de modo a excluir a aplicação indireta da Diretiva OGM a variedades de espécies de plantas agrícolas obtidas por mutagénese. Começarei por apresentar as consequências que resultariam de uma interpretação meramente literal da Diretiva 2002/53 e, em seguida, explicarei por que considero que a Diretiva 2002/53 deve ser interpretada em conformidade com a Diretiva OGM.

155. A Diretiva 2002/53 estabelece obrigações gerais que se aplicam a variedades de espécies de plantas agrícolas: estas devem, nomeadamente, ser sujeitas a um exame oficial antes de ser aceites para inclusão no catálogo comum das espécies de plantas agrícolas. Simultaneamente, como decorre do artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53, esta diretiva prevê obrigações específicas para asvariedades de espécies de plantas agrícolas que sejam geneticamente modificadas na aceção do artigo 2.o, n.os 1 e 2, da anterior Diretiva OGM, ou seja, a Diretiva 90/220. Em especial, o artigo 7.o, n.o 4, alínea a), da Diretiva 2002/53 exige que a avaliação dos riscos para o ambiente seja semelhante à prevista na Diretiva 90/220.

156. No entanto, na Diretiva 2002/53, não há nenhuma referência a qualquer isenção que seja aplicável aos organismos obtidos por mutagénese. Os recorrentes alegam, por isso, que as variedades obtidas por mutagénese constituem variedades geneticamente modificadas na aceção da Diretiva 2002/53 e que devem ser sujeitas, nos termos do artigo 7.o, n.o 4, alínea a), a «uma avaliação dos riscos para o ambiente semelhante» à prevista na Diretiva OGM.

157. Prima facie, a conclusão a que os recorrentes chegaram com base no texto está correta. Ficou demonstrado supra (53) que os organismos obtidos por mutagénese podem constituir OGM na aceção do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva OGM, desde que cumpram os critérios substantivos enunciados nessa disposição. Como tal, esses organismos devem, por isso, ser também submetidos à avaliação dos riscos mais rigorosa prevista no artigo 7.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53.

158. Contudo, tal interpretação meramente literal da Diretiva 2002/53 é dificilmente aceitável. Conduziria a um resultado incorreto do ponto de vista sistemático, no qual determinadas obrigações previstas na Diretiva OGM (uma avaliação dos riscos para o ambiente semelhante) se aplicariam indiretamente a organismos que estão isentos de qualquer obrigação decorrente desta última diretiva.

159. Consequentemente, na minha opinião, a Diretiva 2002/53 deve ser interpretada à luz da Diretiva OGM, pelo que, apesar de constituírem variedades geneticamente modificadas, os organismos obtidos por mutagénese estão isentos das obrigações específicas estabelecidas na Diretiva 2002/53.

160. Dois argumentos sistemáticos militam a favor de tal interpretação da Diretiva 2002/53 em consonância com a Diretiva OGM.

161. Em primeiro lugar, deve existir coerência interna na Diretiva 2002/53. Assim, o artigo 4.o, n.o 4, deve ser lido em conjugação com o 7.o, n.o 4, alínea a), dessa diretiva. Como salientou o Governo francês, seria incoerente impor o mesmo tipo de obrigações, no que diz respeito à avaliação dos riscos para o ambiente, a variedades geneticamente modificadas nos termos da Diretiva 2002/53, quando estas estão expressamente isentas dessa avaliação nos termos da Diretiva OGM. Por conseguinte, a isenção da mutagénese deve igualmente aplicar‑se no contexto da Diretiva 2002/53.

162. Em segundo lugar, deve existir igualmente coerência externa entre a Diretiva 2002/53 e os instrumentos de direito secundário que regulam os OGM. Diferentemente da Diretiva OGM e de outros instrumentos de direito secundário que, de facto, excluem expressamente a mutagénese do seu âmbito (54), a Diretiva 2002/53 não diz principalmente respeito aos OGM. Regula as variedades de espécies de plantas agrícolas em geral. Seguramente, não visa regular os OGM em primeiro lugar, mas apenas os aborda incidentalmente para realçar a sua especificidade e o facto de serem regulados por normas especificas que devem prevalecer sobre as normas gerais.

163. Daqui decorre que a Diretiva 2002/53 não pode ser vista como lex specialis em relação à Diretiva OGM. Muito pelo contrário. A Diretiva 2002/53 é a lex generalis que se aplica a todo um conjunto de variedades de espécies de plantas agrícolas, incluindo variedades geneticamente modificadas. Dificilmente se pode conceber que produtos isentos das obrigações estabelecidas na legislação especializada relativa aos OGM tenham de observar obrigações substantivas equivalentes com base num diploma legislativo da UE que incide, a título principal, sobre um domínio diferente e apenas incidentalmente aborda os OGM.

164. Por essa mesma razão, não se pode retirar uma conclusão muito radical do facto de, ao contrário dos instrumentos de direito secundário que regulam os OGM acima referidos, a Diretiva 2002/53 não excluir expressamente os organismos obtidos por mutagénese da definição de variedades geneticamente modificadas nos termos do seu artigo 4.o, n.o 4. Uma vez mais se salienta que esta diretiva não regula principalmente os OGM. Contém principalmente obrigações gerais de exame que também se aplicam a organismos obtidos por mutagénese, não como variedades geneticamente modificadas, mas como um subgrupo de variedades de espécies de plantas agrícolas.

165. Em face destas considerações, considero que é necessário interpretar a Diretiva 2002/53 tendo em conta o âmbito de aplicação da Diretiva OGM e concluir que a isenção prevista na Diretiva OGM se aplica igualmente à Diretiva 2002/53. Assim, os organismos criados por mutagénese estão sujeitos às obrigações gerais estabelecidas na Diretiva 2002/53 aplicáveis a todas as variedades de espécies de plantas agrícolas a incluir no catálogo comum. Contudo, não estão sujeitos às obrigações específicas estabelecidas para as variedades geneticamente modificadas.

166. Justifica‑se, talvez, uma nota final, tendo em conta, em especial, as alegações repetidamente efetuadas no presente processo de que os organismos obtidos por mutagénese ficam sem qualquer controlo e supervisão. Recorde‑se que, como foi observado pela Comissão, os organismos obtidos por mutagénese, mesmo os que não são abrangidos pela ressalva do anexo I B e, por isso, não são regulados pela Diretiva OGM, podem ficar sujeitos, se for caso disso, às obrigações decorrentes de outras medidas de direito secundário da UE, como a legislação da UE sobre sementes (55) ou a legislação sobre pesticidas (56). Assim, verifica‑se claramente que as obrigações decorrentes de vários outros instrumentos de direito secundário da UE podem igualmente aplicar‑se aos organismos obtidos por mutagénese, para além das resultantes da Diretiva 2002/53.

167. Assim, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão da seguinte forma: a Diretiva 2002/53/CE, que diz respeito ao catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas, deve ser interpretada no sentido de que isenta as variedades obtidas por mutagénese das obrigações específicas nela estabelecidas para a inclusão de variedades geneticamente modificadas no catálogo comum das espécies de plantas agrícolas.

V.      Conclusão

168. À luz destas considerações, recomendo que o Tribunal de Justiça responda às questões que lhe foram submetidas pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) da seguinte forma:

1) Desde que cumpram os critérios estabelecidos no artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados e à sua colocação no mercado no território da União, e que revoga a Diretiva 90/220/CEE do Conselho, os organismos obtidos por mutagénese são organismos geneticamente modificados na aceção dessa diretiva;

A isenção prevista no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18/CE, em conjugação com o anexo I B desta, abrange todos os organismos obtidos por qualquer técnica de mutagénese, independentemente da sua utilização à data da adoção dessa diretiva, desde que não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de organismos geneticamente modificados diferentes dos obtidos por um ou mais dos métodos referidos no anexo I B;

2) A Diretiva 2002/53/CE, que diz respeito ao catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas, deve ser interpretada no sentido de que isenta as variedades obtidas por mutagénese das obrigações específicas nela estabelecidas para a inclusão de variedades geneticamente modificadas no catálogo comum das espécies de plantas agrícolas.

3) A Diretiva 2001/18/CE não impede os Estados‑Membros de adotarem medidas que regulem a mutagénese, desde que, ao fazê‑lo, respeitem as obrigações gerais decorrentes do direito da UE.

4) A análise da quarta questão submetida não revelou qualquer fator suscetível de afetar a validade dos artigos 2.o e 3.o, nem dos anexos I A e I B, da Diretiva 2001/18/CE.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados e que revoga a Diretiva 90/220/CEE do Conselho (JO 2001, L 106, p. 1).


3      Diretiva 2002/53/CE do Conselho, de 13 de junho de 2002, que diz respeito ao catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas (JO 2002, L 193, p. 1).


4      Diretiva do Conselho de 23 de abril de 1990, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados (JO 1990, L 117, p. 15).


5      A Réseau Semences Paysannes; a Amis de la Terre France; Collectif Vigilance OGM et Pesticides 16; a Vigilance OG2M; a CSFV 49; a OGM dangers; a Vigilance OGM 33; e a Fédération Nature & Progrès.


6      Reproduzido no n.o 22, supra, das presentes conclusões.


7      Para um exemplo anterior, relativo a outros princípios no contexto francês, v. acórdão de 16 de dezembro de 2008, Arcelor Atlantique et Lorraine e o.(C‑127/07, EU:C:2008:728).


8      Assemelhando‑se assim à situação abordada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 22 de junho 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.os 54 a 56).


9      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que «o princípio da precaução garantido pela disposição do artigo 191.o, n.o 2, TFUE tem um alcance que assegura a eficácia do respeito pelo princípio constitucional cuja violação os recorrentes invocam».


10      A parte I do anexo I A enumera, de forma não exaustiva, três técnicas diferentes que, de alguma forma, implicam a inserção artificial, através de métodos que não ocorrem naturalmente, de material geneticamente transmissível num organismo hospedeiro.


11      Aparentemente, a ODM consiste na introdução nas células de uma curta sequência de DNA que provocará uma mutação na célula idêntica à da célula que contém o oligonucleotídeo.


12      A SDN1 utiliza diferentes tipos de proteínas (nucleases de dedos de Zinco, TALEN, CRISPR/Cas9) capazes de cortar ou de editar o DNA.


13      Para uma análise pormenorizada da jurisprudência dos Tribunais da União Europeia, v., por exemplo Vilaça, J. L. C., «The Precautionary Principle in EC Law», in EU Law and Integration: Twenty Years of Judicial Application of EU Law, Hart Publishing, 2014, pp. 321 a 354.


14      V., no contexto do surto de EEB (Encefalopatia Espongiforme Bovina), acórdão de 5 de maio de 1998, National Farmers’ Union e o.(C‑157/96, EU:C:1998:191, n.o 63).


15      V., por exemplo, artigo 23.o da Diretiva OGM e artigo 12.o do Regulamento (CE) n.o 258/97 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de janeiro de 1997 relativo a novos alimentos e ingredientes alimentares (JO 1997, L 43, p. 1). No que diz respeito à caracterização destas últimas como dando especial expressão ao princípio da precaução, v., nomeadamente, acórdão de 9 de setembro de 2003, Monsanto Agricoltura Italia e o. (C‑236/01, EU:C:2003:431, n.o 110).


16      V., por exemplo, artigos 8.o e 20.o da Diretiva OGM [e, em relação à diretiva anterior, acórdão de 21 de março de 2000, Greenpeace France e o.(C‑6/99, EU:C:2000:148, n.o 44)]; ou artigo 16.o, n.o 3, da Diretiva 2000/29/CE do Conselho, de 8 de maio de 2000, relativa às medidas de proteção contra a introdução na Comunidade de organismos prejudiciais aos vegetais e produtos vegetais e contra a sua propagação no interior da Comunidade (JO 2000, L 169, p. 1). Em conexão com esta, v., acórdão de 9 de junho de 2016, Pesce e o. (C‑78/16 e C‑79/16, EU:C:2016:428).


17      V., por exemplo, acórdãos de 23 de setembro de 2003, Comissão/Dinamarca (C‑192/01, EU:C:2003:492, n.os 42 a 54), de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França (C‑333/08, EU:C:2010:44, n.os 85 a 93); e de 19 de janeiro de 2017, Queisser Pharma (C‑282/15, EU:C:2017:26, n.os 45 a 47).


18      V., por exemplo, acórdãos de 2 de dezembro de 2004, Comissão/Países Baixos (C‑41/02, EU:C:2004:762, n.o 53); de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França (C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 92); e de 19 de janeiro de 2017, Queisser Pharma (C‑282/15, EU:C:2017:26, n.o 56).


19      V., por exemplo, acórdãos de 8 de setembro de 2011, Monsanto e o. (C‑58/10 a C‑68/10, EU:C:2011:553, n.o 77); e de 13 de setembro de 2017, Fidenato e o. (C‑111/16, EU:C:2017:676, n.o 51).


20      V., por exemplo, acórdãos de 2 de dezembro de 2004, Comissão/Países Baixos (C‑41/02, EU:C:2004:762, n.o 54); de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França(C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 93); e de 19 de janeiro de 2017, Queisser Pharma (C‑282/15, EU:C:2017:26, n.o 57).


21      Para uma análise comparativa do artigo 7.o do Regulamento n.o 178/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios (JO 2002, L 31, p. 1), e do artigo 34.o do Regulamento n.o 1829/2003, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de setembro de 2003, relativo a géneros alimentícios e alimentos para animais geneticamente modificados (JO 2003, L 268, p. 1), v., por exemplo, conclusões que apresentei no processo Fidenato (C‑111/16, EU:C:2017:248).


22      V., igualmente, conclusões que apresentei no processo Queisser Pharma (C‑282/15, EU:C:2016:589, n.os 53 a 54).


23      V. n.o 43, supra, das presentes conclusões.


24      V., nomeadamente, artigo 2.o, n.o 5, do Regulamento (CE) n.o 1829/2003 e artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 1946/2003 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de julho de 2003, relativo ao movimento transfronteiriço de organismos geneticamente modificados (JO 2003, L 287, p. 1).


25      O Parlamento Europeu e o Conselho apresentaram observações apenas em relação à questão da validade da Diretiva OGM.


26      Diretiva 90/220/CEE.


27      Anexo I B da Diretiva 90/220.


28      Nesse sentido, v., por exemplo acórdãos de 23 de abril de 2009, Comissão/Bélgica (C‑287/07, não publicado, EU:C:2009:245, n.os 71 a 80), e de 27 de outubro de 2011, Comissão/Polónia (C‑311/10, não publicado, EU:C:2011:702, n.os 64 e 69).


29      O conteúdo do considerando 17 já estava presente, embora em termos ligeiramente diferentes, no considerando 7 da proposta inicial da Comissão que esteve na origem da Diretiva 90/220 [COM(88) 160 final]. Contudo, tanto quanto se pode apurar, a isenção da mutagénese apenas foi inserida na versão final dessa diretiva pelo Conselho, possivelmente também por influência do Conselho Económico e Social, que, pela primeira vez, referiu o conceito de mutagénese e a necessidade de uma isenção (v. Parecer do CES 89/C 23/15, JO C 23/45, de 30 de janeiro de 1989, n.o 2.2.2).


30      V., em geral, n.os 48 a 53, supra das presentes conclusões e ainda n.os 146 a 148, infra.


31      Contudo, a questão de saber se e em que medida os aspetos de interpretação (e a impossibilidade de alcançar um sentido satisfatório dentro dos limites do texto da disposição em causa) podem refletir‑se na questão da validade será abordada mais adiante, em conexão com a quarta questão (n.os 130 a 141 das presentes conclusões).


32      V., por exemplo, por analogia com os limites da interpretação conforme, acórdãos de 15 de abril de 2008, Impact (C‑268/06, EU:C:2008:223, n.o 100), ou de 15 de janeiro de 2014, Association de médiation sociale (C‑176/12, EU:C:2014:2, n.o 39).


33      V., por exemplo acórdãos de 6 de outubro de 2015, Târșia (C‑69/14, EU:C:2015:662, n.o 12), e de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania (C‑74/16, EU:C:2017:496, n.o 25).


34      Para o efeito, v., por exemplo, acórdãos de 25 de março de 1999, Comissão/Itália (C‑112/97, EU:C:1999:168, n.os 55 a 58); e de 8 de maio de 2003, ATRAL (C‑14/02, EU:C:2003:265, n.os 44 a 45).


35      V., por exemplo, acórdão de 16 de dezembro de 2008, Gysbrechts e Santurel Inter (C‑205/07, EU:C:2008:730, n.o 34 e segs.) De forma mais implícita, v., igualmente, acórdão de 30 de maio de 2013, F. (C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358).


36      V. n.os 90 a 97, supra. Por uma questão de clareza, gostaria de sublinhar que esta declaração não implica, de forma nenhuma, que o legislador da UE não tenha tido a segurança ou os conhecimentos científicos em conta quando redigiu a Diretiva OGM enquanto tal. O argumento aqui utilizado é muito mais preciso e restrito, designadamente o de que não existe qualquer nexo específico ou explícito a esse propósito entre o considerando 17 e o artigo 3.o, n.o 1, e o anexo I B.


37      V. nota 29, supra.


38      V. n.o 100, supra.


39      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2015, que altera a Diretiva 2001/18 no que se refere à possibilidade de os Estados‑Membros limitarem ou proibirem o cultivo de organismos geneticamente modificados (OGM) no seu território (JO 2015, L 68, p. 1).


40      «Quanto à possibilidade de invocar elementos novos, ocorridos posteriormente à adoção de um ato comunitário, para contestar a legalidade do mesmo, deve recordar‑se que, em qualquer caso, a legalidade de um ato deve ser apreciada em função dos elementos de facto e de direito existentes na data em que foi adotado» ‑ v. acórdãos de 7 de fevereiro de 1979, França/Comissão (15/76 e 16/76, EU:C:1979:29, n.o 7), e de 22 outubro de 2002, National Farmers’ Union (C‑241/01, EU:C:2002:604, n.o 37). Contudo, «a validade de um ato, po[de], em certos casos, ser apreciada em função de elementos novos verificados posteriormente à sua adoção» ‑ v. acórdãos de 17 de julho de 1997, SAM Schiffahrt e Stapf (C‑248/95 e C 249/95, EU:C:1997:377, n.o 47), e de 1 de outubro de 2009, Gaz de France ‑ Berliner Investissement (C‑247/08, EU:C:2009:600, n.o 50).


41      No seu acórdão de 22 de outubro de 2002, National Farmers’ Union (C‑241/01, EU:C:2002:604, n.o 38), o Tribunal de Justiça apenas aceitou a possibilidade de recorrer à ação por omissão numa situação relativa à não adoção, pela Comissão, de uma nova decisão administrativa, no contexto das medidas de emergência adotadas durante a crise da EEB. Contudo, a falta de legislação geral atualizada (potencialmente necessária) é uma situação muito diferente.


42      V. n.o 100, supra.


43      Conclusões do advogado‑geral J. Mischo no processo National Farmers’ Union (C‑241/01, EU:C:2002:415, n.o 51), que afirma que «no domínio jurídico, nada é intangível e que, designadamente, o que é hoje justificado talvez já não o seja amanhã, com a consequência de que o dever de qualquer legislador é, por um lado, verificar, se não permanentemente, pelo menos periodicamente, que as normas que estabeleceu ainda respondem às necessidades da sociedade e, por outro, modificar ou mesmo revogar as normas que já não se justificam e que já não são adequadas ao novo contexto no qual devem produzir os seus efeitos».


44      Nas conclusões que apresentei no processo Lidl (C‑134/15, EU:C:2016:169, n.o 90), propus que «o amplo poder de apreciação de que gozam as instituições da União em certos domínios não pode ser visto como um “cheque em branco” sem qualquer limite temporal, em que as escolhas regulamentares feitas no passado em relação à organização do mercado devam ser consideradas como uma justificação permanente e suficiente para a sua aplicação ininterrupta num contexto social e num mercado que têm sofrido alterações consideráveis. Recorrendo a uma metáfora, o legislador, tal como um guarda‑florestal, tem de cuidar regularmente da floresta legislativa. Além de plantar novas árvores, também deve, regularmente, desbastar a floresta e remover a madeira morta. Se não o fizer, é provável que outra entidade seja obrigada a intervir».


45      V., nesse sentido, igualmente acórdão de 12 de janeiro de 2006, Agrarproduktion Staebelow (C‑504/04, EU:C:2006:30, n.o 40).


46      Diretiva 2008/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008, que altera a Diretiva 2001/18/CE relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados, no que diz respeito às competências de execução atribuídas à Comissão (JO 2008, L 81, p. 45).


47      Diretiva 2015/412.


48      V. n.os 81 a 82, supra.


49      Como acima salientado nos n.os 48 a 53.


50      V., por exemplo, acórdãos de 8 de setembro de 2011, Monsanto e o. (C‑58/10 a C‑68/10, EU:C:2011:553, n.o 77), e de 13 de setembro de 2017, Fidenato e o. (C‑111/16, EU:C:2017:676, n.o 51). O sublinhado é meu.


51      V., igualmente, n.os 139 a 142, supra.


52      V. n.os 108 a 124, supra.


53      V. n.os 57 a 67, supra.


54      V. artigo 2.o, n.o 5, do Regulamento n.o 1829/2003 e artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1946/2003.


55      Diretiva 98/95/CE do Conselho, de 14 de dezembro de 1998, que altera, no que diz respeito à consolidação do mercado interno, às variedades de plantas geneticamente modificadas e aos recursos genéticos vegetais, as Diretivas 66/400/CEE, 66/401/CEE, 66/402/CEE, 66/403/CEE, 69/208/CEE, 70/457/CEE e 70/458/CEE relativas à comercialização de sementes de beterraba, sementes de plantas forrageiras, sementes de cereais, batatas de semente, sementes de plantas oleaginosas e de fibras e sementes de produtos hortícolas e ao catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas (JO 1999, L 25, p. 1).


56      Regulamento (CE) n.o 396/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de fevereiro de 2005, relativo aos limites máximos de resíduos de pesticidas no interior e à superfície dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais, de origem vegetal ou animal, e que altera a Diretiva 91/414/CEE do Conselho (JO 2005, L 70, p. 1); Regulamento (CE) n.o 1107/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, relativo à colocação dos produtos fitofarmacêuticos no mercado e que revoga as Diretivas 79/117/CEE e 91/414/CEE do Conselho (JO 2009, L 309, p. 1).