Language of document : ECLI:EU:C:2019:762

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

19 de setembro de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Veículos a motor — Regulamento (CE) n.o 715/2007 — Artigo 6.o, n.o 1, primeiro período — Informações sobre a reparação e manutenção de veículos — Obrigações do construtor para com os operadores independentes — Acesso sem restrições e num formato normalizado a essas informações — Modalidades — Proibição de discriminações»

No processo C‑527/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha), por Decisão de 21 de junho de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de agosto de 2018, no processo

Gesamtverband AutoteileHandel eV

contra

KIA Motors Corporation,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz, C. Vajda, P. G. Xuereb (relator) e A. Kumin, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Gesamtverband Autoteile‑Handel eV, por M. Sacré, Rechtsanwalt,

–        em representação de KIA Motors Corporation, por T. Kopp, R. Polley e W. Holzapfel, Rechtsanwälte,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Huttunen, J. Hradil e A. C. Becker, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Gesamtverband Autoteile‑Handel eV (a seguir «Gesamtverband»), uma associação profissional alemã de comércio por grosso de peças de automóveis, à KIA Motors Corporation (a seguir «KIA»), um construtor automóvel sul‑coreano, a respeito da recusa por parte deste construtor em fornecer aos operadores independentes o acesso a informações sobre a reparação e manutenção de veículos num formato suscetível de tratamento eletrónico.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Regulamento n.o 715/2007

3        O considerando 8 do Regulamento n.o 715/2007 prevê:

«Para melhorar o funcionamento do mercado interno, nomeadamente no que diz respeito à livre circulação de mercadorias, à liberdade de estabelecimento e à liberdade de prestação de serviços, é necessário garantir o acesso ilimitado à informação sobre a reparação de veículos, através de uma função de pesquisa normalizada que possa ser utilizada para obter informações técnicas, bem como uma concorrência efetiva no mercado dos serviços de informação relativa à reparação e manutenção de veículos. Grande parte desta informação diz respeito aos sistemas de diagnóstico a bordo (onboard diagnostic, “OBD”) e à sua interação com outros sistemas dos veículos. Convém estabelecer as especificações técnicas que os sítios web dos fabricantes deverão respeitar, em conjunto com medidas específicas, para assegurar um acesso razoável das pequenas e médias empresas (“PME”). A adoção de normas comuns acordadas com a participação das partes interessadas, como é o caso do formato [Organização para o Aprofundamento de Normas de Informação Estruturadas (OASIS)], pode facilitar o intercâmbio de informação entre os fabricantes e os prestadores de serviços. É, por conseguinte, oportuno exigir inicialmente a utilização das especificações técnicas do formato OASIS e convidar a Comissão a solicitar à CEN/ISO [Comité Europeu de Normalização/Organização Internacional de Normalização] a continuação do desenvolvimento deste formato numa norma destinada à substituição tempestiva do formato OASIS.»

4        Segundo o seu considerando 27, os objetivos do regulamento consistem na «realização do mercado interno através da introdução de requisitos técnicos comuns relativos às emissões dos veículos a motor e a garantia de acesso à informação sobre a reparação e manutenção de veículos para os operadores independentes em pé de igualdade com as oficinas de reparação e os representantes autorizados».

5        O artigo 3.o do referido regulamento, intitulado «Definições», prevê, nos seus n.os 14 e 15:

«Para efeitos do presente regulamento e das respetivas medidas de execução, entende‑se por:

[…]

14.      “Informação relativa à reparação e manutenção de veículos”, toda a informação necessária para o diagnóstico, manutenção, inspeção, monitorização periódica, reparação, reprogramação ou reinicialização do veículo, fornecida pelo fabricante às oficinas de reparação e aos representantes autorizados, incluindo todas as posteriores alterações e suplementos da mesma. Esta informação inclui toda a informação requerida para equipar o veículo com peças ou outro equipamento;

15.      “Operadores independentes”, as empresas que não sejam oficinas de reparação ou representantes autorizados, direta ou indiretamente envolvidas na reparação e manutenção de veículos a motor, nomeadamente, as empresas de reparação, os fabricantes ou distribuidores de equipamento, de ferramentas de reparação ou de peças sobresselentes, os editores de informações técnicas, os clubes automobilísticos, as empresas de assistência rodoviária, os operadores de serviços de inspeção e ensaio e os operadores que ofereçam formação a empresas de instalação, fabrico e reparação de equipamento destinado a veículos movidos a combustíveis alternativos.»

6        O artigo 6.o do Regulamento n.o 715/2007, sob a epígrafe «Obrigações gerais», dispõe, no seu n.o 1:

«Os fabricantes devem facultar aos operadores independentes, através de sítios web, o acesso ilimitado e normalizado à informação relativa à reparação e manutenção de veículos, assegurando que o mesmo seja fácil, rápido e não discriminatório em comparação com as possibilidades dadas ou o acesso concedido a oficinas de reparação e representantes autorizados. A fim de facilitar a consecução deste objetivo, as informações em causa devem ser apresentadas de modo coerente, inicialmente em conformidade com os requisitos técnicos do formato OASIS […]»

7        O artigo 8.o deste regulamento, intitulado «Medidas de execução», prevê:

«As medidas necessárias à execução dos artigos 6.o e 7.o que se destinem a alterar elementos não essenciais do presente regulamento, completando‑o, devem ser aprovadas pelo procedimento de regulamentação com controlo a que se refere o n.o 3 do artigo 15.o Tais medidas abrangem a definição e a atualização de especificações técnicas respeitantes às modalidades de comunicação da informação relativa ao sistema OBD e à reparação e manutenção de veículos, devendo ser dada especial atenção às necessidades específicas das PME.»

 Regulamento n.o 692/2008

8        O Regulamento (CE) n.o 692/2008 da Comissão, de 18 de julho de 2008, que executa e altera o Regulamento n.o 715/2007 (JO 2008, L 199, p. 1), foi alterado pelo Regulamento (UE) n.o 566/2011 da Comissão, de 8 de junho de 2011 (JO 2011, L 158, p. 1) (a seguir «Regulamento n.o 692/2008»), para efeitos, designadamente, de reforçar os procedimentos de intercâmbio de dados relativos a componentes de veículos entre os fabricantes de automóveis e os operadores independentes.

9        O artigo 13.o do Regulamento n.o 692/2008, intitulado «Acesso à informação relativa ao sistema OBD do veículo e à informação relativa à reparação e manutenção de veículos», dispõe, no seu n.o 1:

«Nos termos dos artigos 6.o e 7.o do Regulamento [n.o 715/2007] e do Anexo XIV do presente regulamento, os fabricantes devem adotar as disposições e os procedimentos necessários para garantir que a informação […] relativa à reparação e manutenção de veículos é facilmente acessível.»

10      O ponto 2.1 do Anexo XIV do Regulamento n.o 692/2008 tem a seguinte redação:

«A informação relativa […] à reparação e manutenção de veículos disponível através de sítios Web segue as especificações técnicas do Documento OASIS SC2‑D5, “Format of Automotive Repair Information” […] e dos pontos 3.2, 3.5 (exceto 3.5.2), 3.6, 3.7 e 3.8 do Documento OASIS SC1‑D2, “Autorepair Requirements Specification”, […], utilizando‑se apenas texto aberto e formatos gráficos ou formatos suscetíveis de visualização e impressão utilizando apenas módulos de extensão (plugins) de software normalizado de acesso livre e de fácil instalação e que funcionem em sistemas operativos de utilização corrente. […] Quem solicitar o direito de reprodução ou republicação da informação deve negociar diretamente com o fabricante em causa. […]

Informações sobre todas as peças do veículo com as quais o veículo em questão, tal como identificado pelo número de identificação do veículo (VIN), assim como por outros critérios como a distância entre eixos, a potência do motor, o nível de acabamento, é equipado pelo fabricante e que podem ser substituídas por peças sobresselentes propostas pelo fabricante às suas oficinas de reparação ou representantes autorizados ou a terceiros por meio de referência ao número do equipamento de origem, devem ser disponibilizadas numa base de dados de fácil acesso para os operadores independentes.

Essa base de dados deve incluir o NIV, os números das peças de origem, a denominação das peças de origem, indicações de validade (datas de início e de fim de validade), indicações de montagem e, eventualmente, características de estrutura.

A informação contida na base de dados deve ser regularmente atualizada. As atualizações devem incluir, em particular, todas as alterações introduzidas em cada veículo após a sua produção, se esta informação estiver disponível aos representantes autorizados.»

 Regulamento n.o 566/2011

11      O considerando 12 do Regulamento n.o 566/2011 tem a seguinte redação:

«A fim de garantir uma concorrência efetiva no mercado dos serviços de informação relativa à reparação e manutenção de veículos e, no intuito de clarificar que tal informação também cobre as informações que é necessário fornecer a outros operadores independentes que não as oficinas de reparação, em ordem a garantir que o mercado das empresas de reparação e manutenção independentes, no seu conjunto, pode competir com os representantes autorizados, independentemente de o fabricante fornecer essas informações diretamente aos representantes e às oficinas de reparação autorizadas, são necessárias mais clarificações quanto aos dados respeitantes às informações a fornecer em conformidade com o Regulamento [n.o 715/2007].»

 Direito alemão

12      Resulta da decisão de reenvio que a Gesamtverband invoca a violação de certas disposições da Gesetz gegen den unlauteren Wettbewerb (Lei contra a Concorrência Desleal), tanto na sua versão em vigor até 10 de dezembro de 2015 (a seguir «antiga versão da UWG») como na versão em vigor depois dessa data (a seguir «nova versão da UWG»).

13      O § 4, n.o 11, da antiga versão da UWG dispunha:

«Pratica um ato de concorrência desleal quem, designadamente,

[…]

11.      Violar uma disposição legal que se destine, designadamente, a regulamentar o comportamento no mercado no interesse dos operadores do mercado.»

14      Esta disposição foi substituída, na nova versão da UWG, pelo § 3a, que prevê:

«Pratica um ato desleal quem infringir uma disposição legal destinada a regular o comportamento dos operadores no mercado no interesse dos operadores, quando a infração for suscetível de prejudicar significativamente os interesses de consumidores, de outros operadores no mercado ou dos concorrentes.»

15      O § 8, n.o 1, primeiro período, da UWG, tanto na antiga como na nova versão, permite propor uma ação de cessação imediata do comportamento (eliminação) e, em caso de risco de reincidência, de cessação do comportamento no futuro (abstenção) contra qualquer pessoa que cometa um ato comercial ilícito, no sentido dos §§ 3 e 7 desta lei. Nos termos do § 3, n.o 1, da antiga versão da UWG, os atos de concorrência desleal são ilícitos quando sejam suscetíveis de afetar sensivelmente os interesses dos concorrentes, dos consumidores ou de outros operadores do mercado. Nos termos do § 3, n.o 1, da nova versão da UWG, os atos de concorrência desleal são ilícitos.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16      A Gesamtverband assim como os operadores independentes que são seus associados dispõem, no que se refere aos veículos comercializados pela KIA, de um acesso de simples leitura a uma base de dados em que estão armazenadas as informações sobre a reparação e manutenção desses veículos, na aceção do artigo 3.o, n.o 14, do Regulamento n.o 715/2007.

17      A Gesamtverband pediu à KIA para aceder igualmente, por si própria ou através dos seus associados, às informações da base de dados num formato que permita o seu tratamento eletrónico.

18      Recorreu depois ao Landgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional de Frankfurt am Main, Alemanha) pedindo que este ordenasse à KIA que pusesse à sua disposição e dos seus associados informações no formato requerido. Aquele tribunal condenou a KIA em conformidade com o pedido da Gesamtverband. O Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Frankfurt am Main, Alemanha), conhecendo do recurso interposto daquela sentença pela KIA, considerou que o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 715/2007 não impõe à KIA que dê à Gesamtverband e aos seus associados o acesso a essas informações num formato que permita o seu tratamento eletrónico e decidiu que só devia ser assegurado aos operadores independentes o acesso a essas informações como simples leitura, pois tal forma de acesso não constitui discriminação entre esses operadores e os concessionários e as oficinas de reparação contratualmente ligados à KIA. A Gesamtverband interpôs recurso de «Revision» da sentença da segunda instância para o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha).

19      O tribunal de reenvio considera que a solução do litígio depende da resposta à questão de saber se a forma como a KIA decidiu pôr essas informações à disposição dos operadores independentes é conforme com o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 ou se, pelo contrário, essa disposição exige que tais informações sejam disponibilizadas num formato que possa ser tratado eletronicamente.

20      Segundo o tribunal de reenvio, mesmo que o acesso às informações sobre a reparação e manutenção de veículos num formato que permita aos operadores independentes fazer o tratamento eletrónico pudesse ter um efeito positivo sobre o funcionamento do mercado interno e promover uma concorrência efetiva no mercado dos serviços da informação sobre a reparação e manutenção dos veículos, a obrigação de pôr essas informações à disposição dos operadores independentes num formato que possa ser tratado eletronicamente não parece resultar da letra do artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 nem da referência à norma OASIS constante dessa disposição. O tribunal de reenvio expõe igualmente que, atendendo ao teor do ponto 2.1, primeiro parágrafo, primeiro e quarto períodos, e segundo parágrafo, do Anexo XIV do Regulamento n.o 692/2008 e à génese deste ponto 2.1, o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 poderia ser interpretado no sentido de que o construtor não está obrigado a pôr a disponibilizar as informações em causa num formato que possa ser tratado eletronicamente. Tal interpretação é ainda corroborada pela intenção da Comissão de prever, no novo regulamento‑quadro de receção por tipo, a obrigação de pôr as informações em causa à disposição dos operadores independentes num formato legível pelo computador e suscetível de ser tratado eletronicamente.

21      O tribunal de reenvio acrescenta que o Tribunal de Justiça deve igualmente precisar o alcance da proibição de discriminação prevista no artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que um construtor automóvel abriu, em benefício dos concessionários e das oficinas de reparação oficiais, um canal de informações suplementar para a venda de peças sobresselentes de origem, contratando um prestador de serviços de informações.

22      No que diz respeito aos canais de informações a que as oficinas de reparação independentes têm acesso, o tribunal de reenvio esclareceu que a KIA põe o seu catálogo de peças de origem à disposição da empresa LexCom, que permite às oficinas de reparação independentes procurarem, no portal Internet «partslink24» dessa empresa, peças sobresselentes de origem da KIA através do VIN dos veículos. O tribunal de reenvio observou que a Gesamtverband não alegou que as informações sobre a reparação e manutenção de veículos existentes nos canais de informações a que os concessionários e as oficinas de reparação ligados contratualmente à KIA tinham acesso eram mais completas ou de melhor qualidade do que aquelas a que os operadores independentes podiam aceder através do portal Internet da KIA.

23      Nestas condições, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o fabricante facultar aos operadores independentes as informações visadas no artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento [n.o 715/2007] num formato eletrónico que permita o seu tratamento posterior?

2)      São os operadores independentes objeto de uma discriminação proibida pelo artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento [n.o 715/2007] quando um fabricante, por intermédio de um prestador de serviços de informação, lança um novo canal para a venda de peças [sobresselentes] de origem por concessionários ou oficinas de reparação autorizados?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

24      Com a primeira questão, o tribunal de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que os fabricantes de automóveis devem facultar aos operadores independentes acesso às informações sobre a reparação e manutenção dos veículos num formato suscetível de ser tratado eletronicamente.

25      Importa referir que, nos termos daquela disposição, os fabricantes devem facultar aos operadores independentes, através de sítios web, o acesso ilimitado e normalizado à informação relativa à reparação e manutenção de veículos, assegurando que o mesmo seja fácil, rápido e não discriminatório em comparação com as possibilidades dadas ou o acesso concedido às oficinas de reparação e aos representantes autorizados.

26      A este respeito, impõe‑se constatar que a letra do artigo 6, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 não permite, por si só, responder à questão colocada pelo tribunal de reenvio, uma vez que, desde logo, aquela se limita a indicar que o formato em que devem ser disponibilizas as informações deve ser normalizado, o que não permite determinar se as informações devem ser disponibilizadas como simples leitura ou num formato suscetível de tratamento eletrónico.

27      Com efeito, resulta quer do considerando 8 e do artigo 6.o, n.o 1, segundo período, do Regulamento n.o 715/2007 quer do ponto 2.1, primeiro parágrafo, do Anexo XIV do Regulamento n.o 692/2008 que o caráter normalizado do formato deve ser entendido no sentido de que as informações devem ser conformes às exigências técnicas da norma OASIS por forma a permitir encontrar informações técnicas pertinentes e facilitar o intercâmbio de informação. Ora, não resulta dessa norma que os fabricantes estejam obrigados a facultar o acesso às informações em causa num formato suscetível de ser objeto de tratamento eletrónico, tanto mais que quer o formato de simples leitura quer o formato suscetível de tratamento eletrónico permite encontrar as informações técnicas pretendidas, facilitando o seu intercâmbio.

28      Em seguida, se é certo que, segundo a letra do artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007, os fabricantes têm a obrigação de facultar «o acesso ilimitado» à informação relativa à reparação e manutenção de veículos, a disponibilização da mesma como simples leitura não pode ser considerada, ao contrário do que sustentam a Gesamtverband e a Comissão, como uma restrição do acesso a essa informação. Com efeito, dado que esta disposição opera uma distinção entre, por um lado, o acesso a facultar, o qual deve ser «ilimitado», e, por outro, o formato em que deve ser facultado, a inexistência de restrições refere‑se ao próprio conteúdo da informação que deve ser disponibilizada aos operadores independentes e não às modalidades dessa disponibilização.

29      Finalmente, o facto de, em virtude do artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007, as informações em causa deverem ser fácil e rapidamente acessíveis não significa que elas devam ser acedidas num formato suscetível de tratamento eletrónico. A mesma conclusão se aplica à exigência resultante do artigo 6.o, n.o 1, segundo período, do Regulamento n.o 715/2007, segundo a qual as informações devem ser prestadas de forma coerente, objetivo que é aliás assegurado pelo caráter normalizado do formato.

30      Contudo, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, para interpretar uma disposição de direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (v, designadamente, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 44 e jurisprudência aí referida). A génese de uma disposição do direito da União pode igualmente revestir elementos pertinentes para a sua interpretação (Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o., C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 47 e jurisprudência aí referida).

31      No que diz respeito, em primeiro lugar, ao contexto em que se insere o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007, importa referir, em primeiro lugar, que o ponto 2.1, primeiro parágrafo, do Anexo XIV do Regulamento n.o 692/2008 prevê que o operador independente que «solicitar o direito de reprodução ou republicação» da informação deve negociar diretamente com o fabricante em causa. Resulta desta disposição que a Comissão, a que o artigo 8.o do Regulamento n.o 715/2007 atribui a competência de tomar todas as medidas necessárias para aplicação do artigo 6.o deste regulamento, parece ter‑se baseado na premissa de que o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 apenas exige que o acesso às informações através da simples leitura das mesmas.

32      Em segundo lugar, o ponto 2.1, segundo parágrafo, do Anexo XIV do Regulamento n.o 692/2008 prevê que as informações sobre reparação e manutenção de veículos são disponibilizadas «numa base de dados», sem precisar que o acesso a essas informações deve ser facultado num formato suscetível de tratamento eletrónico. Daqui decorre que a única obrigação imposta aos fabricantes por esta disposição é a de constituir uma base de dados. Assim, as modalidades segundo as quais os operadores independentes podem tomar conhecimento das informações constantes dessas bases de dados, ou seja, o facto de só disporem de um acesso de simples leitura a essas informações ou de poderem dispor das mesmas num formato suscetível de tratamento eletrónico, não são abrangidas pelo ponto 2.1.

33      Além disso, é facto assente que, ao elaborar o Regulamento n.o 566/2011, a Comissão pretendeu alterar o ponto 2.1 do Anexo XIV do Regulamento n.o 692/2008 para impor o acesso às informações em causa, ou pelo menos a algumas delas, num formato que permitisse o seu tratamento eletrónico. Ora, essa proposta da Comissão não foi acolhida na versão final do Regulamento n.o 566/2011. Uma vez que, nos termos do considerando 12 do Regulamento n.o 566/2011, a Comissão expôs serem «necessárias mais clarificações quanto aos dados respeitantes às informações a fornecer em conformidade com o Regulamento [n.o 715/2007]», daqui resulta que a Comissão considerava, nessa data, que, por um lado, o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 não exigia a disponibilização das informações em causa num formato suscetível de tratamento eletrónico e, por outro, que não se tratava de introduzir essa obrigação no Regulamento n.o 566/2011.

34      Além disso, no que se refere ao argumento da Gesamtverband de que o Regulamento (UE) 2018/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, relativo à receção e fiscalização do mercado dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas diferentes destinados a esses veículos, que altera os Regulamentos n.o 715/2007 e (CE) n.o 595/2009 e que revoga a Diretiva 2007/46/CE (JO 2018, L 151, p. 1), aplicável, de acordo com o seu artigo 91.o, a partir de 1 de setembro de 2020, é relevante para interpretar o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007, basta salientar que só no decurso do processo legislativo respeitante ao Regulamento 2018/858 é que foi introduzida a obrigação de colocar as informações sobre a reparação e manutenção dos veículos à disposição dos operadores independentes num formato suscetível de tratamento eletrónico, que passou a constar do seu artigo 61.o, n.o 1. Daqui resulta que não pode considerar‑se que essa obrigação já estava prevista no Regulamento n.o 715/2007.

35      Em segundo lugar, no que se refere aos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 715/2007, resulta dos seus considerandos 8 e 27 que o mesmo visa realizar e melhorar o funcionamento do mercado interno, garantindo o acesso ilimitado às informações em causa, de modo a assegurar uma concorrência efetiva no mercado dos serviços de informação relativa à reparação e manutenção de veículos. Esse objetivo resulta igualmente, em substância, do considerando 12 do Regulamento n.o 566/2011.

36      A este respeito, importa constatar que, embora o acesso às informações em causa por uma forma que permitisse o seu tratamento eletrónico facilitasse a sua utilização pelos operadores e, portanto, contribuísse para garantir uma concorrência efetiva em todos esses mercados e para o bom funcionamento do mercado interno, nada indica que esses objetivos só pudessem ser atingidos obrigando os fabricantes a facultar o acesso às informações em causa naquele formato.

37      Em face do exposto, há que responder à primeira questão que o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que não obriga os fabricantes de automóveis a facultar aos operadores independentes o acesso às informações sobre reparação e manutenção dos veículos num formato suscetível de tratamento eletrónico.

 Quanto à segunda questão

38      Com a segunda questão, o tribunal de reenvio pergunta se o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que o facto de um fabricante de automóveis abrir, em benefício dos concessionários e das oficinas de reparação oficiais, um canal de informações suplementar para a venda de peças sobresselentes de origem recorrendo a um prestador de serviços de informação constitui um acesso discriminatório dos operadores independentes relativamente ao que é dado aos concessionários e às oficinas de reparação oficiais na aceção daquela disposição.

39      A este respeito, importa recordar que resulta do artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 que o acesso às informações em causa, facultado aos operadores independentes, não deve ser discriminatório relativamente ao acesso facultado aos concessionários e oficinas de reparação oficiais, no sentido de que estes últimos não devem ser colocados numa posição mais vantajosa no que se refere tanto ao conteúdo das informações disponibilizadas como às modalidades de acesso às mesmas.

40      No processo principal, a Gesamtverband alega que as oficinas de reparação independentes que fazem uma pesquisa no sítio Internet «partslink24» da empresa LexCom só encontram, relativamente às peças sobresselentes a utilizar para veículos da marca KIA, peças sobresselentes de origem dos concessionários oficiais da KIA, o que pode constituir uma vantagem para estes. Mas não se trata de uma discriminação no sentido do artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007, que apenas se reporta ao acesso às informações em causa concedido, por um lado, aos operadores independentes e, por outro, aos concessionários e às oficinas de reparação oficial. Ora, resulta das explicações aduzidas pelo tribunal de reenvio que a Gesamtverband não alegou que os concessionários e as oficinas de reparação contratualmente ligados à KIA tivessem acesso, através do portal Internet da LexCom, a informações sobre reparação e manutenção de veículos que fossem mais completas ou de melhor qualidade do que aquelas a que os operadores independentes podiam aceder através do portal Internet da KIA.

41      Em face do exposto, há que responder à segunda questão que o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que o facto de um fabricante de automóveis abrir em benefício dos concessionários e das oficinas de reparação oficiais um canal de informações suplementar para a venda de peças sobresselentes de origem pelos concessionários e oficinas de reparação oficiais, recorrendo a um prestador de serviços de informação, não constitui um acesso discriminatório dos operadores independentes relativamente ao que é facultado aos concessionários e oficinas de reparação oficiais, na aceção desta disposição, uma vez que os operadores independentes dispõem também de um acesso às informações sobre a reparação e manutenção dos veículos, não discriminatório quanto ao conteúdo e ao acesso facultado aos concessionários e oficinas de reparação oficiais.

 Quanto às despesas

42      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos, deve ser interpretado no sentido de que não obriga os fabricantes de automóveis a facultar aos operadores independentes o acesso às informações sobre reparação e manutenção dos veículos num formato suscetível de tratamento eletrónico.

2)      O artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que o facto de um fabricante de automóveis abrir em benefício dos concessionários e das oficinas de reparação oficiais um canal de informações suplementar para a venda de peças sobresselentes de origem pelos concessionários e oficinas de reparação oficiais, recorrendo a um prestador de serviços de informação, não constitui um acesso discriminatório dos operadores independentes relativamente ao que é facultado aos concessionários e oficinas de reparação oficiais, na aceção desta disposição, uma vez que os operadores independentes dispõem também de um acesso às informações sobre a reparação e manutenção dos veículos, não discriminatório quanto ao conteúdo e ao acesso facultado aos concessionários e oficinas de reparação oficiais.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.