Language of document : ECLI:EU:C:2016:985

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

21 de dezembro de 2016 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 4.o, n.o 2, TUE — Respeito da identidade nacional dos Estados‑Membros inerente às respetivas estruturas fundamentais políticas e constitucionais, incluindo no que respeita à autonomia local e regional — Organização interna dos Estados‑Membros — Autarquias locais — Instrumento jurídico que cria uma nova entidade de direito público e organiza a transferência de competências e responsabilidades para a execução de atribuições públicas — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 1.o, n.o 2, alínea a) — Conceito de ‘contrato público’»

No processo C‑51/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberlandesgericht Celle (Tribunal de Segunda Instância de Celle, Alemanha), por decisão de 17 de dezembro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de fevereiro de 2015, no processo

Remondis GmbH & Co. KG Region Nord

contra

Region Hannover,

sendo intervenientes:

Zweckverband Abfallwirtschaft Region Hannover,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, M. Vilaras, J. Malenovský, M. Safjan e D. Šváby (relator), juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: K. Malacek, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 20 de abril de 2016,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Remondis GmbH & Co. KG Region Nord, por M. Figgen e R. Schäffer, Rechtsanwälte,

–        em representação da Region Hannover, por H. Jagau, Regionspräsident, R. Van der Hout, advocaat, T. Mühe e M. Fastabend, Rechtsanwälte,

–        em representação da Zweckverband Abfallwirtschaft Region Hannover, por W. Siederer e L. Viezens, Rechtsanwälte,

–        em representação do Governo francês, por D. Colas e J. Bousin, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo austríaco, por M. Fruhmann, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. C. Becker e A. Tokár, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de junho de 2016,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114, e retificação no JO 2004, L 351, p. 44).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Remondis GmbH & Co. KG Region Nord (a seguir «Remondis») à Region Hannover (Região de Hanôver, Alemanha) a propósito da legalidade da transferência, pela segunda, das atribuições de recolha e tratamento de resíduos que a primeira prosseguia para a Zweckverband Abfallwirtschaft Region Hannover (Associação de autarquias para a gestão de resíduos da Região de Hanôver, Alemanha, a seguir «associação de autarquias RH»).

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18, aplicável ao litígio no processo principal, dispõe que, para os efeitos daquela, os «‘[c]ontratos públicos’ são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na aceção da presente diretiva».

4        A Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65), revogou a Diretiva 2004/18 com efeitos a 18 de abril de 2016.

5        O considerando 4 da Diretiva 2014/24 enuncia:

«As formas cada vez mais diversificadas de ação pública tornaram necessário definir de forma mais clara o próprio conceito de contratação; essa clarificação não deverá contudo alargar o âmbito de aplicação da presente diretiva em relação ao da Diretiva 2004/18/CE. As regras da União em matéria de contratação pública não pretendem abranger todas as formas de despesa pública, mas apenas a aquisição de obras, fornecimentos ou serviços, a título oneroso, por contratação pública. […]

[…]»

6        O artigo 1.o, n.o 6, desta diretiva dispõe:

«Os acordos, decisões ou outros instrumentos jurídicos que organizem a transferência de poderes e responsabilidades pela execução de missões públicas entre autoridades adjudicantes ou agrupamentos de autoridades adjudicantes, e que não prevejam uma remuneração pela execução dos contratos, são considerados uma questão de organização interna dos Estado‑Membro em causa e, como tal, não são de forma alguma afetados pela presente diretiva.»

 Direito alemão

7        De acordo com a legislação federal sobre resíduos e a Niedersächsische Abfallgesetz (Lei da Baixa Saxónia sobre os resíduos), tanto na redação em vigor à data da constituição da associação de autarquias RH, interveniente no processo principal, como na redação atualmente em vigor, o tratamento dos resíduos é atribuição das autarquias locais designadas por esta última lei ou das comunidades constituídas por essas autarquias.

8        A Niedersächsische Zweckverbandsgesetz (Lei da Baixa Saxónia sobre as associações de autarquias), na redação em vigor à data da constituição da associação de autarquias RH, previa, no seu § 1, que os municípios e associações de municípios podem agrupar‑se em associações de autarquias (associações de autarquias voluntárias) ou ser agrupadas em associações de autarquias (associações de autarquias obrigatórias) para efeitos do cumprimento de determinadas atribuições que têm o direito ou o dever de prosseguir. Neste caso, de acordo com o § 2, n.o 1, dessa lei, os direitos e deveres relativos à prossecução dessas atribuições são transferidos para a associação de autarquias.

9        Por força do § 4 da referida lei, essas associações de autarquias são entidades de direito público que se administram a si próprias, sob a sua própria responsabilidade.

10      O § 29, n.o 1, dessa mesma lei impõe às autarquias locais membros de uma associação de autarquias que paguem contribuições determinadas anualmente na medida em que as outras receitas dessa associação de autarquias não bastem para cobrir as despesas conexas com as suas atribuições.

11      A Niedersächsisches Gesetz über die kommunale Zusammenarbeit (Lei da Baixa Saxónia sobre a cooperação intermunicipal), atualmente em vigor, contém disposições comparáveis. Daí decorre, nomeadamente, que as autarquias que transferem atribuições para uma associação de autarquias ficam, nessa medida, desobrigadas de cumprir essas atribuições.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12      De acordo com a legislação federal e a legislação do Land Niedersachsen (Land da Baixa Saxónia, Alemanha) sobre resíduos, era da competência da Região de Hanôver e da Stadt Hannover (cidade de Hanôver) a recolha e tratamento de resíduos nos territórios, respetivamente, do antigo Landkreis Hannover (distrito de Hanôver) e da cidade de Hanôver.

13      Na perspetiva de uma reorganização pretendida por essas duas autarquias, a cidade de Hanôver, num primeiro momento, a saber, 29 de novembro de 2002, transferiu a sua própria competência para a região de Hanôver. Num segundo momento, em 19 de dezembro seguinte, as referidas autarquias aprovaram, em conjunto, a Verbandsordnung des Zweckverbandes Abfallwirtschaft Region Hannover (Regulamento da associação de autarquias para a gestão dos resíduos da região de Hanôver, a seguir «regulamento da associação de autarquias RH»), pela qual organizaram o funcionamento dessa associação de autarquias, nova entidade de direito público a que as duas autarquias fundadoras atribuíram várias competências, algumas das quais inicialmente eram comuns a essas autarquias e outras específicas de cada uma, e que substituiu nomeadamente a Região de Hanôver na recolha de resíduos. Esta entidade foi constituída em 1 de janeiro de 2003.

14      Para permitir à associação de autarquias RH o cumprimento das atribuições que lhe foram cometidas, nos termos do § 5 do regulamento da associação de autarquias RH, a Região de Hanôver e a cidade de Hanôver transferiram para esta última, a título gratuito, os respetivos organismos incumbidos do cumprimento das atribuições de recolha dos resíduos, de limpezas das estradas e de prestação de serviços de inverno, e a Região de Hanôver cedeu‑lhe 94,9% das participações na Abfallentsorgungsgesellschaft Region Hannover mbH, sociedade que assegurava o tratamento dos resíduos por conta dessa região, e que esta até então detinha integralmente.

15      Com o mesmo objetivo, o § 4, n.o 5, do regulamento da associação de autarquias RH também permite a esta recorrer aos serviços de terceiros para cumprir as suas atribuições e, para esse efeito, adquirir participações em empresas e entidades, recurso esse autorizado pelo § 22 da Kreislaufwirtschaftsgesetz (Lei da reciclagem dos resíduos).

16      O referido regulamento dispõe, no seu § 4, n.o 4, que a associação de autarquias RH procede à recolha dos resíduos para os valorizar e que essa associação de autarquias pode celebrar contratos com sistemas mistos (Duale systeme) para recolher embalagens, podendo essas tarefas ser transferidas para a Abfallentsorgungsgesellschaft Region Hannover.

17      De acordo com o § 4, n.o 6, do mesmo regulamento, essa associação de autarquias está habilitada a aprovar disposições estatutárias e regulamentares relativas, nomeadamente, à cobrança de taxas.

18      Nos termos do § 7 do regulamento da associação de autarquias RH, a sua assembleia é composta pelos responsáveis pela administração da Região de Hanôver e da cidade de Hanôver, os quais estão vinculados pelas instruções dadas pela autarquia que representam. Estes responsáveis têm o direito de votar nessa assembleia no tocante às competências que foram transferidas pela autarquia que representam.

19      O § 8 desse regulamento prevê que a referida assembleia tem competência, nomeadamente, para o alterar e para eleger o responsável pela gestão da associação de autarquias RH.

20      De acordo com o § 16 do referido regulamento, esta associação de autarquias deve, a longo prazo, pelo menos cobrir as suas despesas com recurso às suas receitas. Contudo, caso as suas receitas sejam insuficientes face às suas despesas, as autarquias que a constituem são obrigadas a pagar uma contribuição determinada anualmente, para compensar os prejuízos.

21      Resulta da decisão de reenvio que a transferência de atribuições conexa com a constituição de uma associação de autarquias voluntária ou obrigatória se traduz na perda, por parte das autarquias membros dessa associação, das correspondentes competências.

22      Em 2011, ou seja, no nono ano de funcionamento da associação de autarquias RH, esta e a Abfallentsorgungsgesellschaft Region Hannover realizaram, em comum, um volume de negócios de 189 020 912 euros, dos quais 11 232 173,89 euros (isto é, aproximadamente 6%) provinham de transações comerciais realizadas com terceiros. Segundo as previsões para 2013, os montantes correspondentes são, respetivamente, de 188 670 370,92 euros e de 13 085 190,85 euros.

23      A Remondis, sociedade comercial que atua no setor dos resíduos, apresentou um pedido de fiscalização de um procedimento de adjudicação de um contrato público, atualmente pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

24      A Remondis considera que a operação global que consistiu na fundação dessa associação de autarquias e na concomitante transferência de atribuições para esta pelas autarquias que dela são membros constitui um contrato público, na aceção, nomeadamente, do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18, ainda que, inicialmente, essa operação não estivesse abrangida pelas regras sobre contratos públicos, uma vez que se enquadrava na exceção identificada no acórdão de 18 de novembro de 1999, Teckal (C‑107/98, EU:C:1999:562, n.o 50). Com efeito, verificaram‑se as duas condições exigidas no âmbito dessa exceção, a saber, por um lado, o exercício, pela entidade pública que adjudica um contrato público, sobre a pessoa que essa entidade encarrega de executar o contrato, de um controlo análogo ao que essa entidade exerce sobre os seus próprios serviços e, por outro, a realização, por essa pessoa, do essencial da sua atividade com a referida entidade pública. Ora, segundo a Remondis, atendendo à importância do volume de negócios que a associação de autarquias RH realiza desde 2013 com terceiros, essa associação de autarquias já não realiza o essencial da sua atividade com as autarquias que a fundaram. A Remondis deduz daí que deve passar a considerar‑se que a referida operação global é uma adjudicação ilícita, e como tal nula, de um contrato público. Logo, a Região de Hanôver, que é a entidade competente para a recolha dos resíduos, devia organizar um procedimento de adjudicação de contrato público, na medida em que não queria cumprir ela própria essa atribuição.

25      Por seu turno, a Região de Hanôver e a associação de autarquias RH entendem que a constituição da segunda e a transferência de competências para a mesma não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito dos contratos públicos.

26      Com efeito, esta constituição e esta transferência provêm de uma decisão estatutária, e não de um contrato ou de um acordo administrativo. Acresce que essas autarquias se referem à Diretiva 2014/24, em especial ao seu artigo 1.o, n.o 6, relativo aos mecanismos de transferência de competências e de responsabilidades para efeitos do cumprimento de atribuições públicas.

27      O órgão jurisdicional de reenvio indica que o desfecho do processo principal depende, antes de mais, da questão de saber se a operação que consistiu, para a Região de Hanôver e a cidade de Hanôver, em constituir a associação de autarquias RH e em transferir determinadas atribuições para a mesma constituiu um contrato público na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio não duvida do caráter oneroso dessa operação, face, por um lado, à transferência a título gratuito dos meios anteriormente utilizados por essas duas autarquias para o cumprimento das atribuições transferidas para essa associação de autarquias e, por outro, ao compromisso dessas autarquias de cobrir os eventuais excedentes das despesas dessa associação de autarquias face às suas receitas.

28      Esse órgão jurisdicional explica que, não obstante, se pode considerar que essa operação não constituiu a adjudicação de um contrato público. Com efeito, não existe contrato nenhum e não está em causa nenhuma empresa. Por outro lado, trata‑se de uma medida de organização interna do Estado garantida pela norma constitucional da autonomia municipal, que consiste na redistribuição de competências entre autarquias locais, na sequência da qual as autarquias a que as atribuições em causa cabiam ficam totalmente desobrigadas de as cumprir.

29      Porém, o referido órgão jurisdicional manifesta dúvidas quanto à procedência desta opinião face à jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente do acórdão de 13 de junho de 2013, Piepenbrock (C‑386/11, EU:C:2013:385), de que resulta que a própria existência de uma delegação de atribuições, que implica que delas fique liberada a autarquia a que inicialmente as mesmas cabiam, é irrelevante para a qualificação como contrato público.

30      Por outro lado, decorre desse acórdão que só devem ser tidas em conta duas exceções à aplicação das normas sobre contratos públicos, a saber, a identificada no acórdão de 18 de novembro de 1999, Teckal (C‑107/98, EU:C:1999:562), e as cooperações intermunicipais ditas «horizontais». Logo, poder‑se‑á sustentar que, uma vez que a criação de uma associação de autarquias, acompanhada da transferência de competências para este, não se enquadra em nenhuma dessas exceções, o direito dos contratos públicos é aplicável a este tipo de operações.

31      Porém, inversamente, o órgão jurisdicional de reenvio salienta, por um lado, que essa operação provém, em rigor, de um acordo horizontal entre várias entidades públicas, e não de um acordo celebrado entre essas entidades e a associação de autarquias.

32      Por outro lado, a constituição de uma associação de autarquias pode não só ser decidida livremente pelas autarquias mas também ser imposta às autarquias em causa pela respetiva autoridade tutelar. Ora, nessa situação, não há contrato, pelo que é difícil ver aí um contrato público. Suscita‑se então a questão de saber se uma operação da mesma natureza, a saber, uma transferência de competências para uma associação de autarquias, pode ser alvo de tratamento diferente consoante a natureza voluntária ou coerciva dessa transferência.

33      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por outro lado, sobre as consequências que decorrem da conclusão de que uma operação global como a que está em causa no processo principal constitui um contrato público, em especial sobre a questão de saber se esse contrato deve ser encarado da perspetiva da exceção identificada no acórdão de 18 de novembro de 1999, Teckal (C‑107/98, EU:C:1999:562), ou antes como uma cooperação entre autarquias para cumprimento das atribuições que lhes incumbem.

34      Nestas condições, o Oberlandesgericht Celle (Tribunal de Segunda Instância de Celle, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um acordo celebrado entre duas coletividades territoriais, com base no qual estas coletividades criam, através de estatutos, uma associação de utilidade pública conjunta, com personalidade jurídica, a qual passa a desempenhar, enquanto competência própria, certas funções que até aí eram da competência das coletividades associadas, representa um ‘contrato público’ na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a)[,] da Diretiva [2004/18], quando esta transferência tem por objeto serviços na aceção desta diretiva e ocorre a título oneroso, a associação de utilidade pública passa a desempenhar atividades que vão além das funções que eram anteriormente da competência das coletividades associadas e a transferência de funções não pertenc[e] ‘aos dois tipos de contratos’ que, ainda que celebrados por entidades públicas, não entram, contudo, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça […], no âmbito de aplicação do direito da União em matéria de contratos públicos [(mais recentemente: acórdão de 13 de junho de 2013, Piepenbrock, C‑386/11, EU:C:2013:385, n.os 33 e segs.)]?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: para efeitos da resposta à questão de saber se a criação de uma associação de utilidade pública e a transferência de funções para esta associação, associada a essa criação, não é, a título excecional, abrangida pelo âmbito de aplicação do direito dos contratos públicos da União, devem ser observados os princípios que o Tribunal de Justiça desenvolveu em relação aos contratos celebrados entre uma entidade pública e uma pessoa dela juridicamente distinta, segundo os quais o direito da União em matéria de contratos públicos não é aplicável, quando, simultaneamente, a referida entidade exerce sobre a pessoa em causa um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços e essa pessoa realiza o essencial da sua atividade com a entidade ou as entidades que a compõem (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão [de 18 de novembro de 1999,] Teckal, C‑107/98, EU:C:1999:562, n.o 50), ou, pelo contrário, devem ser observados os princípios que o Tribunal de Justiça desenvolveu em relação aos contratos que instituem uma cooperação entre entidades públicas com o objetivo de assegurar a realização de uma missão de serviço público que é comum a ambas (v., a este respeito, acórdão [de 19 de dezembro de 2012,] Ordine degli Ingegneri della Provincia di Lecce e o., C‑159/11, [EU:C:2012:817,] n.os 34 e segs.)?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

35      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que constitui um contrato público um acordo celebrado entre duas autarquias, como o que está em causa no processo principal, com base no qual estas aprovam os estatutos de uma associação de autarquias, pessoa coletiva de direito público, e atribuem a essa nova entidade pública determinadas competências que até então cabiam a essas autarquias e passam a ser competências específicas dessa associação de autarquias.

36      Segundo o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18, um contrato público é um contrato a título oneroso, celebrado por escrito entre um ou vários operadores económicos e uma ou várias entidades adjudicantes, que tem por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços, na aceção dessa diretiva.

37      Para efeitos da possível qualificação de contrato público, face a esta definição, de uma operação que inclui várias fases, essa operação deve ser apreciada globalmente e tendo em conta a sua finalidade (v., neste sentido, acórdão de 10 de novembro de 2005, Comissão/Áustria, C‑29/04, EU:C:2005:670, n.o 41).

38      No caso vertente, é necessário, pois, considerar todas as várias fases da operação em causa no processo principal. A este respeito, resulta da decisão de reenvio que a Região de Hanôver e a cidade de Hanôver decidiram em conjunto criar, por ato regulamentar, uma nova entidade de direito público, para lhe atribuírem determinadas competências, parcialmente comuns e parcialmente específicas dessas autarquias. Simultaneamente, estas últimas dotaram esta nova entidade de determinadas capacidades que lhe permitiriam cumprir as atribuições a que essas competências correspondiam. Com efeito, essas autarquias atribuíram‑lhe os recursos que elas próprias tinham até então afetado ao exercício das referidas competências e comprometeram‑se a cobrir eventuais défices orçamentais da referida entidade, que por outro lado tinha o direito de cobrar taxas e de arrecadar o respetivo montante, assim como o direito de exercer determinadas atividades que não correspondiam ao exercício das competências que para ela foram transferidas, embora fossem da mesma natureza que determinadas atividades cujo desempenho decorre do exercício dessas competências. Por último, a nova entidade caracteriza‑se pela autonomia de funcionamento, mas deve observar as decisões de uma assembleia composta por representantes das duas autarquias fundadoras da primeira, assembleia essa que é órgão dessa entidade e tem competência, nomeadamente, para eleger a pessoa responsável pela gestão da referida entidade.

39      Neste contexto, importa notar, a título preliminar, que a indicação, dada pelo órgão jurisdicional de reenvio, de que as atividades em causa no processo principal são «serviços» na aceção da Diretiva 2004/18 tem unicamente por objeto esclarecer que a aplicação dessa diretiva não pode ser afastada nesse aspeto. Em contrapartida, o facto de uma atividade que é da competência de uma autoridade pública constituir um serviço mencionado na referida diretiva não basta, por si só, para a tornar aplicável, uma vez que as referidas autoridades são livres de recorrer ou não a contratos públicos para cumprir as atribuições de interesse público que lhes cabem (v., neste sentido, acórdão de 9 de junho de 2009, Comissão/Alemanha, C‑480/06, EU:C:2009:357, n.o 45 e jurisprudência referida).

40      Além disso, importa, em primeiro lugar, recordar que a repartição das competências num Estado‑Membro beneficia da proteção conferida pelo artigo 4.o, n.o 2, TUE, segundo o qual a União está obrigada a respeitar a identidade nacional dos Estados‑Membros, refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, incluindo no que se refere à autonomia local e regional (v., neste sentido, acórdão de 12 de junho de 2014, Digibet e Albers, C‑156/13, EU:C:2014:1756, n.o 34).

41      Por outro lado, uma vez que essa repartição de competências não é estática, a proteção conferida pelo artigo 4.o, n.o 2, TUE também incide sobre as reorganizações de competências dentro de um Estado‑Membro, como o advogado‑geral observou nos n.os 41 e 42 das suas conclusões. Estas reorganizações, que podem tomar a forma de reatribuições de competências de uma autoridade pública para outra, impostas por uma autoridade hierarquicamente superior, ou de transferências voluntárias de competências entre autoridades públicas, têm a consequência de uma autoridade anteriormente competente se liberar, ou ser liberada, da obrigação e do direito de cumprir uma atribuição de interesse público, ao passo que uma outra autoridade passa a ter essa obrigação e esse direito.

42      Em segundo lugar, refira‑se que essa reatribuição ou essa transferência de competências não cumpre todas as condições que a definição do conceito de contrato público impõe.

43      Com efeito, só um contrato celebrado a título oneroso pode constituir um contrato público abrangido pela Diretiva 2004/18, caráter oneroso esse que implica que a entidade adjudicante que celebrou um contrato de empreitada de obras públicas receba, com base no mesmo, uma prestação mediante uma contraprestação, a qual deve revestir um interesse económico direto para a entidade adjudicante (v., neste sentido, acórdão de 25 de março de 2010, Helmut Müller, C‑451/08, EU:C:2010:168, n.os 47 a 49). A natureza sinalagmática do contrato é, pois, uma característica essencial de um contrato público, como observou o advogado‑geral no n.o 36 das suas conclusões.

44      Ora, independentemente da circunstância de uma decisão relativa à atribuição de competências públicas não caber no domínio das transações económicas, o próprio facto de ser retirada a uma autoridade pública uma competência que esta anteriormente tinha faz desaparecer, no que essa autoridade diz respeito, qualquer interesse económico no cumprimento das atribuições a que essa competência corresponde.

45      Por conseguinte, a reafetação dos meios utilizados para o exercício da competência, que são transmitidos pela autoridade que deixa de ter competência para a que passa a tê‑la, não deve ser analisada como um preço, constituindo, pelo contrário, uma consequência lógica, senão mesmo necessária, da transferência voluntária ou da reatribuição imposta da primeira autoridade para a segunda.

46      Do mesmo modo, não constitui uma remuneração o compromisso, por parte da autoridade que toma a iniciativa da transferência de uma competência ou que decide da reatribuição de uma competência, de assumir o encargo com os eventuais excedentes dos custos face às receitas que podem resultar do exercício dessa competência. Com efeito, trata‑se de uma garantia destinada a terceiros e cuja necessidade decorre, no caso vertente, do princípio de que uma autoridade pública não pode ser alvo de um processo de insolvência. Ora, a própria existência desse princípio pertence à organização interna de um Estado‑Membro.

47      Contudo, e em terceiro lugar, importa sublinhar que uma transferência de competência entre autoridades públicas tem de cumprir determinadas condições para poder ser considerada um ato de organização interna e, como tal, estar abrangida pela liberdade dos Estados‑Membros garantida pelo artigo 4.o, n.o 2, TUE.

48      A este respeito, é certo que uma situação como a que está em causa no processo principal não é idêntica à situação a que se refere o acórdão de 20 de outubro de 2005, Comissão/França (C‑264/03, EU:C:2005:620). Com efeito, neste último processo, estava em causa determinar se o tipo de mandato em causa constituía uma transferência pontual de autoridade pública para uma entidade, para a realização de um projeto que, em princípio, era da competência de outra entidade, e não uma transferência dessa competência em si. Não obstante, estes vários tipos de transferência são da mesma natureza, ainda que de amplitudes diferentes, pelo que o ensinamento essencial desse acórdão sobre este tema pode ser extrapolado para o caso vertente.

49      Como observou o advogado‑geral no n.o 53 das suas conclusões, uma transferência de uma competência deve, para poder ser considerada como tal, abranger não só as responsabilidades conexas com a competência transferida, nomeadamente a obrigação de cumprir as atribuições que subjazem a essa competência, mas também os poderes que são corolário dessa competência. Isso exige que a autoridade pública a que é atribuída uma competência tenha o poder de organizar o cumprimento das atribuições conexas com essa competência e de aprovar o quadro regulamentar dessas atribuições e que disponha de autonomia financeira que lhe permita assegurar o financiamento das referidas atribuições. Em contrapartida, não é isso que sucede se a autoridade inicialmente competente conservar a responsabilidade principal relativa a essas mesmas atribuições, reservar para si o controlo financeiro dessas atribuições ou dever aprovar previamente as decisões que a entidade que associou a si pretende tomar.

50      Neste aspeto, uma situação como a em causa no processo principal distingue‑se nitidamente da que estava no centro do processo que deu origem ao acórdão de 13 de junho de 2013, Piepenbrock (C‑386/11, EU:C:2013:385), em que uma autarquia se limitava a confiar a outra, mediante uma compensação financeira, o desempenho de determinadas tarefas materiais, reservando‑se o controlo da respetiva execução, como o Tribunal de Justiça constatou no n.o 41 desse acórdão.

51      Não se pode, pois, verificar uma transferência de competências se a autoridade pública que adquiriu a nova competência não a exercer autonomamente e sob a sua própria responsabilidade.

52      Como notou o advogado‑geral no n.o 56 das suas conclusões, essa autonomia de ação não significa que a entidade que tem a nova competência deva estar subtraída a qualquer influência por parte de qualquer outra entidade pública. Com efeito, uma entidade que transfere uma competência pode conservar um determinado direito de supervisão das atribuições conexas com esse serviço público. Contudo, essa influência exclui, em princípio, qualquer ingerência nas modalidades concretas de cumprimento das atribuições a que a competência transferida corresponde. Numa situação como a do processo principal, essa influência pode ser exercida por intermédio de um órgão, como uma assembleia‑geral, composta por representantes das autarquias anteriormente competentes.

53      Autonomia de ação tão‑pouco significa que uma reatribuição imposta ou uma transferência voluntária de uma competência deva ser irreversível. Com efeito, como se observou no n.o 39 do presente acórdão, a repartição de competências dentro de um Estado‑Membro não pode ser considerada estática, pelo que são concebíveis reorganizações sucessivas. Saliente‑se, aliás, que as situações em causa no acórdão de 20 de outubro de 2005, Comissão/França (C‑264/03, EU:C:2005:620), não tinham natureza permanente, visto que se tratava de transferências pontuais de autoridade pública para uma entidade, para realização de um projeto que, em princípio, era da competência de outra entidade, que conservava essa competência de princípio, situações que deviam ter sido consideradas alheias ao direito dos contratos públicos se não apresentassem as características que o Tribunal de Justiça salientou no n.o 54 desse acórdão, que levaram a considerar que, nesse caso, não se verificou uma real transferência. Por conseguinte, e como salientou o advogado‑geral no n.o 54 das suas conclusões, nada obsta a que uma competência transferida ou reatribuída no âmbito de uma organização dos serviços públicos seja ulteriormente objeto de nova transferência ou de nova reatribuição por ocasião de uma subsequente reorganização.

54      Por último, e de forma a abordar todos os aspetos a que o órgão jurisdicional de reenvio aludiu, recorde‑se que a autorização ou proibição de as entidades públicas dos Estados‑Membros, ou de determinadas categorias das mesmas, exercerem uma atividade no mercado, fora da sua ação de interesse geral, enquadra‑se na regulamentação interna dos Estados‑Membros, aos quais cabe apreciar se essa atividade é compatível ou não com os objetivos institucionais e estatutários dessas entidades (v., neste sentido, acórdão de 23 de dezembro de 2009, CoNISMa, C‑305/08, EU:C:2009:807, n.o 48). Assim, a possibilidade ou não de entidades públicas implicadas numa transferência de competências exercerem determinadas atividades no mercado cabe igualmente na organização interna dos Estados‑Membros e, de resto, é irrelevante para a natureza dessa transferência, uma vez que se verificam as condições especificadas nos n.os 47 a 51 do presente acórdão.

55      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão da seguinte forma:

–        o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que não constitui um contrato público um acordo celebrado entre duas autarquias, como o que está em causa no processo principal, com base no qual estas aprovam os estatutos de uma associação de autarquias, pessoa coletiva de direito público, e atribuem a essa nova entidade pública determinadas competências que até então cabiam a essas autarquias e passam a ser competências específicas dessa associação de autarquias;

–        todavia, essa transferência de competências para cumprimento de atribuições públicas só se verifica se abranger, em simultâneo, as responsabilidades conexas com a competência transferida e os poderes que são corolário dessa competência, de modo a que a autoridade pública que adquiriu a nova competência tenha autonomia decisória e financeira, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 Quanto à segunda questão

56      Em face da resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretado no sentido de que não constitui um contrato público um acordo celebrado entre duas autarquias, como o que está em causa no processo principal, com base no qual estas aprovam os estatutos de uma associação de autarquias, pessoa coletiva de direito público, e atribuem a essa nova entidade pública determinadas competências que até então cabiam a essas autarquias e passam a ser competências específicas dessa associação de autarquias.

Todavia, essa transferência de competências para cumprimento de atribuições públicas só se verifica se abranger, em simultâneo, as responsabilidades conexas com a competência transferida e os poderes que são corolário dessa competência, de modo a que a autoridade pública que adquiriu a nova competência tenha autonomia decisória e financeira, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Assinaturas


** Língua do processo: alemão.