CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
ANTHONY MICHAEL COLLINS
apresentadas em 20 de janeiro de 2022 (1)
Processo C‑430/21
RS
[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia)]
«Reenvio prejudicial — Estado de direito — Princípio da independência judicial — Artigo 2.o TUE — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Disposição da Constituição de um Estado‑Membro, conforme interpretada pelo seu Tribunal Constitucional, segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais não têm competência para examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição nacional declarada constitucional por uma decisão do Tribunal Constitucional — Processo disciplinar»
I. Introdução
1. Pode um juiz nacional ser impedido de examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição do direito nacional que tenha sido considerada constitucional pelo Tribunal Constitucional desse Estado Membro, correndo o risco de ser alvo de processos e sanções disciplinares em consequência desse exame? É esta a questão fundamental do presente pedido de decisão prejudicial da Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia). O pedido tem por objeto, em substância, a interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). Convida o Tribunal de Justiça a interpretar novamente estas disposições num contexto em que um tribunal constitucional nacional questiona diretamente o primado do direito da União.
2. O pedido surge no âmbito de um requerimento apresentado ao órgão jurisdicional de reenvio relativo à duração de um processo na sequência de uma queixa contra um procurador e dois juízes que foi registada no Parchetul de pe lângă Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie — Secția pentru Investigarea Infracțiunilor din Justiție (Ministério Público junto do Tribunal Superior de Cassação e Justiça da Roménia – Secção de investigação das infrações cometidas no âmbito do sistema judiciário) (a seguir «SIIJ»).
3. No Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393) (a seguir «Acórdão Asociaţia “Forumul Judecătorilor din România”») (2), o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que uma regulamentação nacional que prevê a criação da SIIJ é contrária ao direito da União quando a sua instituição não seja justificada por imperativos objetivos e verificáveis relativos à boa administração da justiça e não seja acompanhada de garantias específicas identificadas pelo Tribunal de Justiça (3).
4. No Acórdão n.o 390/2021 (4), proferido em 8 de junho de 2021, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) da Roménia julgou improcedente uma exceção de inconstitucionalidade das disposições da legislação nacional relativas à instituição e ao funcionamento da SIIJ. A Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) observou que, nas suas decisões anteriores, tinha declarado que as disposições em causa eram constitucionais e afirmou que não via nenhuma razão para se afastar dessas decisões, não obstante o Acórdão do Tribunal de Justiça Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România». A Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) reconheceu que, embora o artigo 148.o, n.o 2, da Constituição romena preveja o primado do direito da União sobre as disposições contrárias do direito nacional, este princípio não pode eliminar ou negar a identidade constitucional nacional. Esta disposição limita‑se a assegurar o primado do direito da União sobre o «direito infraconstitucional». Não confere ao direito da União primado sobre a Constituição da Roménia, pelo que um órgão jurisdicional nacional não tem legitimidade para examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição de direito interno declarada constitucional pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional). O Acórdão n.o 390/2021 tem, portanto, claras implicações sobre o primado do direito da União e sobre o efeito dos acórdãos do Tribunal de Justiça que ultrapassam o âmbito do contencioso relativo à SIIJ.
5. As questões submetidas pela Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) não dizem diretamente respeito à questão do primado do direito da União nem à legalidade, à luz do direito da União, da instituição e do funcionamento da SIIJ. Concentram‑se antes no papel dos órgãos jurisdicionais nacionais de assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União e na independência dos juízes no contexto da decisão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no Acórdão n.o 390/2021.
6. Antes de examinar as questões submetidas, exporei as disposições pertinentes do direito nacional, o litígio no processo principal e a tramitação do presente processo no Tribunal de Justiça.
II. Direito romeno
A. Constituição romena
7. O artigo 148.o, n.os 2 a 4, da Constituția României (a seguir «Constituição romena») dispõe:
«(2) Na sequência da adesão, as disposições dos Tratados constitutivos da União Europeia e as outras regulamentações comunitárias vinculativas prevalecem sobre as disposições em contrário da legislação nacional, em conformidade com o disposto no Ato de Adesão.
(3) O disposto nos n.os 1 e 2 do presente artigo é igualmente aplicável, por analogia, à adesão aos atos de revisão dos Tratados constitutivos da União Europeia.
(4) O Parlamento, o Presidente da Roménia, o Governo e a autoridade judiciária garantem o cumprimento das obrigações decorrentes do Ato de Adesão e do disposto no n.o 2 do presente artigo.»
B. Código de Processo Penal
8. O artigo 4881 do Codul de procedură penală (Código de Processo Penal) prevê, nomeadamente, que, se o exercício da ação penal não for concluído dentro de um prazo razoável, a pessoa lesada pode apresentar uma reclamação decorrido pelo menos um ano após o início do processo penal, requerendo a aceleração do processo.
9. O artigo 4885, n.o 1, do Código de Processo Penal prevê, nomeadamente, que, quando se pronuncia sobre a reclamação, o juiz dos direitos e liberdades, ou o órgão jurisdicional competente, deve verificar a duração do processo com base nas medidas tomadas, nos documentos dos autos e nas observações apresentadas.
10. O artigo 4886, n.o 1, do Código de Processo Penal prevê, nomeadamente, que, se o juiz dos direitos e liberdades, ou o órgão jurisdicional competente, considerar que a reclamação é procedente, dá‑lhe provimento e fixa o prazo dentro do qual o procurador deve conhecer do litígio.
C. Lei n.o 303/2004
11. Nos termos do artigo 99, alínea ș), da Legea nr. 303/2004 privind statutul judecătorilor și procurorilor (Lei n.o 303/2004 Relativa ao Estatuto dos Juízes e dos Procuradores), de 28 de junho de 2004 (a seguir «Lei n.o 303/2004»), o não cumprimento das decisões da Tribunal Constitucional constitui uma infração disciplinar (5).
III. Litígio no processo principal e questões prejudiciais
12. RS foi condenado na sequência de um processo penal na Roménia. Em 1 de abril de 2020, a mulher de RS apresentou uma queixa‑crime contra três magistrados: um procurador e dois juízes. Na sua queixa acusava o procurador dos crimes de repressão ilícita e de abuso no exercício de funções. Alegou, em substância, que o procurador tinha instaurado processos penais em violação dos direitos de defesa de RS e tinha deduzido acusação contra ele com base em falsos testemunhos. Além disso, a mulher de RS acusou os dois juízes de abuso no exercício de funções pelo facto de, durante o processo de recurso, não terem apreciado um pedido de requalificação jurídica dos factos, nem terem proferido decisão sobre o mesmo, violando, assim, os direitos de defesa.
13. Uma vez que a queixa‑crime dizia respeito a magistrados, foi registada na SIIJ. Em 14 de abril de 2020, o procurador junto da SIIJ instaurou processos penais, alegando que os magistrados tinham cometido os crimes de repressão ilícita e abuso no exercício de funções.
14. Em 10 de junho de 2021, RS apresentou na Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova), enquanto tribunal dos direitos e liberdades, uma reclamação relativa à duração do processo penal pendente na SIIJ. Pediu que o tribunal fixasse uma data até à qual o procurador responsável pelo processo o deveria concluir.
15. A SIIJ transmitiu os autos relativos ao processo penal ao órgão jurisdicional de reenvio, a pedido deste último.
16. O órgão jurisdicional de reenvio observa que, no litígio que lhe foi submetido, deve dar ou negar provimento à reclamação. Se negar provimento à reclamação, os autos serão devolvidos à SIIJ, por a duração do processo não ter excedido um período de tempo razoável. Se o órgão jurisdicional de reenvio der provimento à reclamação, deve fixar um prazo dentro do qual o processo deve ser tratado, devolvendo depois os autos à SIIJ. Afigura‑se que o incumprimento deste último prazo não implica quaisquer consequências jurídicas.
17. O órgão jurisdicional de reenvio considera que, para se pronunciar sobre a reclamação que lhe foi submetida, deve analisar: i) a legislação nacional que rege a instituição e o funcionamento da SIIJ, ii) os critérios desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» para decidir se a SIIJ funciona ou não em conformidade com o direito da União e, iii), o efeito na instituição e no funcionamento da SIIJ do Acórdão n.o 390/2021, no qual a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) julgou improcedente a exceção de inconstitucionalidade dos artigos 881 a 889 da Legea nr. 304/2004 privind organizarea judiciară (Lei n.o 304/2004, Relativa à Organização do Sistema Judicial), de 28 de junho de 2004 (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 827, de 13 de setembro de 2005) (a seguir «Lei n.o 304/2004»).
18. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, bem como a Decisão 2006/928, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que preveja a criação de uma secção especializada do Ministério Público com competência exclusiva para conduzir inquéritos sobre as infrações cometidas pelos juízes e procuradores, sem que a criação da referida secção seja justificada por imperativos objetivos e verificáveis relativos à boa administração da justiça e seja acompanhada de garantias específicas. Além disso, o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de nível constitucional de um Estado‑Membro, conforme interpretada pelo seu tribunal constitucional, segundo a qual um órgão jurisdicional de grau inferior não está autorizado a não aplicar, por sua própria iniciativa, uma disposição nacional abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2006/928, que, à luz de um acórdão do Tribunal de Justiça, considere contrária a esta decisão ou ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.
19. Resulta de extratos do Acórdão n.o 390/2021 reproduzidos pelo órgão jurisdicional de reenvio no seu pedido de decisão prejudicial que a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) reconheceu que, por força do artigo 148.o da Constituição romena, que rege a relação entre o direito nacional e o direito da União, deve garantir o primado do direito da União. «Porém, esse primado, ou precedência, não deve ser interpretado como exclusão ou negação da identidade constitucional nacional, consagrada no artigo 11.o, n.o 3, da Constituição, conjugado com o artigo 152.o da mesma, enquanto garantia de um núcleo identitário essencial da Constituição da Roménia, que não deve ser relativizado no processo de integração europeia. Por força dessa identidade constitucional, o Tribunal Constitucional tem legitimidade para garantir o primado da Constituição no território da Roménia (v., mutatis mutandis, Acórdão de 30 de junho de 2009, 2 BvE 2/08 e o., proferido pelo Tribunal Constitucional Federal da República Federal da Alemanha)» (6).
20. A Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) considerou que um órgão jurisdicional tem legitimidade para apreciar a conformidade com o direito da União de uma disposição que faça parte do direito interno, à luz do artigo 148.o da Constituição. Em caso de conflito, esse órgão jurisdicional é competente para dar precedência às disposições do direito da União em litígios relativos aos direitos subjetivos dos cidadãos. A Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) considerou que a referência ao direito interno é exclusivamente à legislação infraconstitucional, uma vez que, por força do seu artigo 11.o, n.o 3, a Constituição romena mantém uma posição hierarquicamente superior no direito da Roménia. Assim, o artigo 148.o da Constituição romena não confere ao direito da União primado sobre a Constituição, pelo que um órgão jurisdicional nacional não tem legitimidade para examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição de direito interno declarada constitucional à luz do artigo 148.o da Constituição (7).
21. Além disso, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) considerou que as obrigações impostas pela Decisão 2006/928 vinculam as autoridades romenas competentes no sentido de colaborarem institucionalmente com a Comissão Europeia (o Parlamento romeno e o Governo romeno). Uma vez que os órgãos jurisdicionais não estão habilitados a cooperar com as instituições políticas da União, não estão vinculados desse modo. A Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) considerou que a aplicação do n.o 7 da parte decisória do Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», segundo o qual um órgão jurisdicional «está autorizado a não aplicar, por sua própria iniciativa, uma disposição nacional abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2006/928, que, à luz de um acórdão do Tribunal de Justiça, considere contrária a esta decisão ou ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE», não encontra fundamento na Constituição romena, porquanto o artigo 148.o desta consagra o primado do direito da União sobre as disposições de leis internas em contrário. Os relatórios da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho sobre os progressos realizados pela Roménia ao abrigo do mecanismo de cooperação e de verificação, elaborados com base na Decisão 2006/928 (a seguir «relatórios MCV»), quanto ao seu conteúdo e aos seus efeitos, tal como estabelecidos pelo Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» do Tribunal de Justiça, na opinião da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) «não constituem normas de direito europeu às quais um órgão jurisdicional deva reconhecer a aplicação com prioridade, não aplicando a legislação nacional». O órgão jurisdicional nacional não pode dar prioridade à aplicação de recomendações em detrimento da legislação nacional, porque os relatórios MCV não são atos normativos, pelo que não podem entrar em conflito com a legislação interna. A decisão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) expressa, assim, a conclusão de que a disposição do direito nacional é conforme com a Constituição romena à luz do seu artigo 148.o (8).
22. Uma vez que o Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» não pode inverter a jurisprudência da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) quanto ao efeito na instituição e no funcionamento da SIIJ da Decisão 2006/928 na fiscalização da constitucionalidade e, implicitamente, quanto à violação do artigo 148.o da Constituição, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) julgou improcedente a exceção de inconstitucionalidade suscitada relativamente à Lei n.o 304/2004.
23. O órgão jurisdicional de reenvio considera que as questões prejudiciais têm um nexo direto com a resolução do litígio que lhe foi submetido. A reclamação relativa à duração do processo penal diz respeito a um processo pendente na SIIJ. O juiz que conhece dessa reclamação deve examinar todas as circunstâncias que afetam a duração do processo penal. Nelas se incluem a legislação que rege as atividades da SIIJ, o volume de trabalho da SIIJ tendo em conta o número de procuradores, o ritmo de resolução dos processos e a questão da conformidade do funcionamento da SIIJ com o Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România». Este exercício permitirá ao juiz que conhece da reclamação determinar se a atuação da SIIJ, no quadro normativo atual e com a composição atual, está justificada por imperativos objetivos e verificáveis relativos à boa administração da justiça. Em especial, coloca‑se a questão de saber se a SIIJ está em condições de conduzir um processo penal respeitando devidamente o direito de qualquer pessoa a um processo equitativo, incluindo no que toca à duração do processo. O órgão jurisdicional de reenvio observa que, no n.o 221 do Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», o Tribunal de Justiça declarou que, no que respeita aos direitos consagrados nos artigos 47.o e 48.o da Carta, importa que as regras que regulam a organização e o funcionamento de uma entidade como a SIIJ sejam concebidas de maneira a assegurar que os processos contra juízes e procuradores sejam julgados num prazo razoável.
24. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio deve decidir se os autos devem ser devolvidos, para efeitos da continuação do processo penal, a uma procuradoria a respeito da qual se pode considerar, à luz do Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», que atua em violação do direito da União.
25. O órgão jurisdicional de reenvio considera que está obrigado a escolher entre a aplicação do direito da União, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», e a aplicação do Acórdão n.o 390/2021. Se o juiz optar por aplicar o Acórdão do Tribunal de Justiça e não aplicar o Acórdão n.o 390/2021, pode ser alvo de um processo disciplinar, por força do artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004, uma vez que a inobservância da decisão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) constitui uma infração disciplinar. Tal processo disciplinar pode conduzir à suspensão do juiz das suas funções. A perspetiva de que tais consequências podem ocorrer é suscetível de interferir na independência do juiz para decidir no litígio que lhe foi submetido.
26. O órgão jurisdicional de reenvio faz igualmente referência ao caso de um juiz da Curtea de Apel Pitești (Tribunal de Recurso de Pitești, Roménia) que foi relatado na imprensa. Aplicando os artigos 2.o e 19.o TUE, a Decisão 2006/928 e o Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», o juiz da Curtea de Apel Pitești (Tribunal de Recurso de Pitești) declarou que a SIIJ não era «justificada por imperativos objetivos e verificáveis relativos à boa administração da justiça e não [oferecia] garantias específicas que [permitissem], por um lado, excluir qualquer risco de que essa secção [fosse] utilizada como instrumento de exercício de um controlo político da atividade dos juízes singulares e dos procuradores suscetível de prejudicar a sua independência e que, por outro lado, [garantissem] que a sua competência [pudesse] ser exercida em relação a estes últimos no pleno respeito das obrigações decorrentes dos artigos 47.o e 48.o da [Carta]». Assim, exigiu que o procurador se declarasse incompetente para conhecer do processo, afastando, desse modo, as disposições do artigo 881 da Lei n.o 304/2004 para efeitos da determinação da competência. Em consequência dessa decisão, a Inspecția Judiciară (Inspeção judicial, Roménia) instaurou um processo disciplinar contra esse juiz por alegada falta, que consistia no exercício das suas funções de má‑fé ou com negligência grave na tramitação de um processo decorrente de uma reclamação relativa à duração do processo.
27. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, assim, se uma prática que consiste em submeter a um processo disciplinar um juiz que, com fundamento no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» considerou que as disposições nacionais relativas à SIIJ são contrárias ao direito da União, é conforme com o princípio da independência dos juízes.
28. Nestas circunstâncias, a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe‑se a uma disposição nacional, como a do artigo 148.o, n.o 2, da Constituição da Roménia, tal como interpretada pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) na sua Decisão n.o 390/2021, segundo a qual os juízes nacionais não podem examinar a conformidade com as disposições do direito da União Europeia de uma disposição nacional declarada constitucional por uma decisão da Curtea Constituțională?
2) O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe‑se a uma disposição nacional, como a do artigo 99.o, alínea ș), da [Lei n.o 303/2004], que permite a instauração de um processo disciplinar e a aplicação de sanções disciplinares a um juiz pela inobservância de um acórdão da Curtea Constituțională, quando o juiz seja chamado a estabelecer o primado da aplicação do direito da União Europeia, face aos considerandos de uma decisão da Curtea Constituțională, disposição nacional que proíbe o juiz de aplicar um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia e ao qual esse juiz reconhece o primado?
3) O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe‑se às práticas judiciais nacionais que proíbem esse juiz, sob pena de sanções disciplinares, de aplicar a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia em processos penais como a reclamação relativa à duração razoável do processo penal, regulada pelo artigo 4881 do Código de Processo Penal romeno?»
IV. Tramitação processual no Tribunal de Justiça
29. A Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) pediu que o presente pedido de decisão prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente ou, a título subsidiário, à tramitação acelerada, em conformidade, nomeadamente, com o artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça.
30. Em apoio do seu pedido, o órgão jurisdicional de reenvio indicou que tinham sido instaurados processos disciplinares relativos à aplicação do direito da União em conformidade com a interpretação do Tribunal de Justiça no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România». Estes processos prejudicam gravemente a independência dos juízes e a estabilidade do sistema judicial. Além disso, as incertezas criadas pelas disposições nacionais controvertidas poderiam afetar o funcionamento do sistema de cooperação judiciária instituído pelo artigo 267.o TFUE.
31. Em 30 de julho de 2021, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, indeferir o pedido da Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) no sentido de submeter o pedido de decisão prejudicial a tramitação prejudicial urgente.
32. Quanto ao pedido de tramitação acelerada, o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal pode, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos. Além disso, quando um processo suscita graves incertezas que envolvem questões fundamentais de direito constitucional e de direito da União, pode ser necessário, tendo em conta as circunstâncias específicas desse processo, tratá‑lo em prazos curtos (9).
33. Em 12 de agosto de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de submeter o presente pedido de decisão prejudicial a tramitação acelerada, em conformidade com o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo. O presidente do Tribunal de Justiça baseou a sua decisão no facto de as questões relativas ao primado do direito da União suscitadas pelo presente reenvio prejudicial revestirem uma importância fundamental para a Roménia e para a ordem constitucional da União.
34. O presidente do Tribunal de Justiça fixou a data de apresentação das observações escritas em 27 de setembro de 2021. Em conformidade com o artigo 105.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a data da audiência de alegações foi fixada em 23 de novembro de 2021.
35. Os Governos romeno, neerlandês e belga apresentaram observações escritas, tal como a Comissão Europeia. Foram apresentadas perguntas escritas às partes, a outros interessados e ao Governo romeno para resposta na audiência de 23 de novembro de 2021.
36. O Governo romeno e a Comissão apresentaram alegações orais na audiência de 23 de novembro de 2021.
V. Quanto à admissibilidade
37. O órgão jurisdicional de reenvio indicou que a necessidade de apresentar o presente pedido de decisão prejudicial surgiu do conflito entre o Acórdão n.o 390/2021 da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) e o Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e, em especial, da necessidade de apurar se, no âmbito do exame da reclamação que lhe foi submetida, o órgão jurisdicional de reenvio pode, em conformidade com esse acórdão do Tribunal de Justiça, examinar as disposições relativas à instituição e ao funcionamento da SIIJ, a fim de determinar se são contrárias ao artigo 2.o e ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e ao artigo 47.o da Carta.
38. As observações escritas não continham qualquer objeção à admissibilidade das questões prejudiciais. Na audiência de 23 de novembro de 2021, tanto o Governo romeno como a Comissão aceitaram que as questões prejudiciais são admissíveis.
39. A Comissão considerou que as circunstâncias do processo principal se distinguem das que deram origem ao Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234). Em primeiro lugar, neste processo, os litígios nos processos principais não estavam relacionados com o direito da União e os juízes nacionais não eram chamados a aplicar o direito da União. Pelo contrário, no processo principal no caso ora em apreço, o juiz nacional é chamado a aplicar o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, a Decisão 2006/928 e o Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România». Em segundo lugar, resulta do Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 54), que processos disciplinares contra os dois juízes que tinham apresentado os pedidos de decisão prejudicial tinham sido encerrados. A ameaça de processos disciplinares tinha‑se, assim, tornado hipotética. No caso em apreço, a ameaça de um processo disciplinar ao juiz que apresentou o pedido de decisão prejudicial não é hipotética, uma vez que ainda não aplicou o direito da União. Além disso, uma decisão contrária ao Acórdão n.o 390/2021 da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) constitui automaticamente uma infração, por força do artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004. Em terceiro lugar, a Comissão considerou que, à luz destas considerações, as três questões prejudiciais estão interligadas.
40. O Governo romeno, por seu lado, sublinhou a pertinência do artigo 19.o, n.o 1, TUE relativamente à legalidade da duração do processo na SIIJ no processo principal. Admitiu igualmente que o risco de um juiz ser alvo de sanções disciplinares pode constituir um fator relevante no processo principal.
41. Por uma questão de exaustividade, proponho‑me examinar a admissibilidade de todas as questões prejudiciais.
42. Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende apurar, em substância, se o princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta, se opõe a uma disposição nacional, como a do artigo 148.o, n.o 2, da Constituição da Roménia, conforme interpretada pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no seu Acórdão n.o 390/2021, segundo a qual os juízes nacionais não podem examinar a conformidade com as disposições do direito da União Europeia de uma disposição nacional declarada constitucional por uma decisão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional).
43. Segundo jurisprudência constante, embora as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas por um órgão jurisdicional nacional beneficiem de uma presunção de pertinência, o objetivo do processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE não é emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas. Pelo contrário, como decorre dos próprios termos desta disposição, esta exige que a questão submetida a título prejudicial seja «necessária» para o «julgamento da causa» pelo órgão jurisdicional de reenvio no processo que lhe foi submetido (10).
44. O artigo 267.o TFUE confere, portanto, aos órgãos jurisdicionais nacionais a mais ampla faculdade de recorrerem ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo neles pendente suscita questões que exigem interpretação das disposições do direito da União necessárias para a decisão da causa que lhes é submetida. É assim, nomeadamente, que o tribunal que não decide em última instância, se considerar que a apreciação de direito feita pelo tribunal de grau superior, mesmo de nível constitucional, o pode levar a proferir uma sentença contrária ao direito da União, deve ter a faculdade de submeter ao Tribunal de Justiça as questões que o preocupam (11).
45. Sem antecipar o exame do mérito da primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio, é evidente que a decisão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no Acórdão n.o 390/2021 poderia levar o órgão jurisdicional de reenvio a proferir uma sentença contrária ao direito da União e, em especial, às disposições referidas nessa questão, a saber, o artigo 2.o o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE bem como o artigo 47.o da Carta. Considero, portanto, que a primeira questão é admissível.
46. Com a segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende apurar, em substância, se o princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta, se opõe a uma disposição do direito nacional ou a uma prática judicial nacional que permite a instauração de um processo disciplinar e a aplicação de sanções disciplinares a um juiz que aplique disposições do direito da União, conforme interpretadas pelo Tribunal de Justiça, e não respeita, assim, um acórdão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional).
47. Embora o Governo romeno e a Comissão tenham concordado, na audiência, que estas questões são admissíveis, à luz do Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234), considero que o Tribunal de Justiça deve examinar oficiosamente esta questão.
48. Nesse processo, perguntava‑se ao Tribunal de Justiça se o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE se opõe a uma legislação nacional que aumenta consideravelmente o risco de violação da independência dos juízes ou elimina as garantias de processos disciplinares independentes contra os mesmos. O Tribunal de Justiça declarou que não parecia existir um nexo de ligação entre a disposição do direito da União a que as questões diziam respeito, a saber, o artigo 19.o, n.o 1, TUE, e os litígios submetidos ao órgão jurisdicional de reenvio, que consistiam em processos contra o Tesouro Público com vista ao pagamento de quantias e à redução de penas de «arrependidos» (12). Além disso, o Tribunal de Justiça considerou que os litígios nos processos principais não tinham qualquer relação com o facto de os juízes que apresentaram os pedidos de decisão prejudicial serem, em consequência desses pedidos, potencialmente sujeitos à instauração de um processo disciplinar (13).
49. À semelhança da Comissão, considero que as três questões prejudiciais estão interligadas e se sobrepõem umas às outras. Todas as três questões têm por objeto o princípio da independência dos juízes e a compatibilidade com o direito da União de disposições nacionais, conforme interpretadas pelo tribunal constitucional nacional, que impedem ou dificultam a aplicação do direito da União pelo órgão jurisdicional de reenvio, em particular o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, bem como o artigo 47.o da Carta, conforme interpretados pelo Tribunal de Justiça. Acresce que é manifesto o elemento de conexão entre as disposições do direito da União a que estas questões se referem, a saber, o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, bem como o artigo 47.o da Carta, e o litígio no processo principal, que diz respeito à legalidade de um processo na SIIJ na sequência do Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e do Acórdão n.o 390/2021 da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional).
50. Considero, além disso, que a admissibilidade do problema mais específico suscitado na segunda e terceira questões, de saber se o ou os juízes do presente reenvio prejudicial podem potencialmente ser alvo de um processo disciplinar nos termos do artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004 por aplicarem a decisão constante do Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», ou mesmo a decisão que pode vir a ser proferida pelo Tribunal de Justiça no presente processo prejudicial, em vez de respeitarem o Acórdão n.o 390/2021 da Curtea Constituță (Tribunal Constitucional), está «profundamente interligada» (14) com o mérito da primeira questão (15). Na minha opinião, seria artificial ignorar esse nexo (16).
51. Além disso, tendo em conta os termos claros e inequívocos do artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004, o risco de tais processos disciplinares não é remoto, mas uma probabilidade real em relação ao juiz ou juízes no processo principal.
52. A este respeito, no recente Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio) (C‑564/19, EU:C:2021:949, n.os 85 a 87), o Tribunal de Justiça estabeleceu uma distinção relativamente ao seu anterior Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234).
53. No Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio) (C‑564/19, EU:C:2021:949, n.os 85 a 87), o Tribunal de Justiça julgou admissível uma questão que lhe tinha sido submetida a respeito do princípio da independência judicial e da possibilidade, nos termos do direito nacional, de instaurar um processo disciplinar contra um juiz por ter apresentado um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE. O Tribunal de Justiça indicou, em primeiro lugar, que existia uma estreita ligação entre a questão prejudicial relativa a um eventual processo disciplinar e outra questão prejudicial em que se pedia uma interpretação do artigo 267.o TFUE. O Tribunal de Justiça considerou, assim, que a questão do eventual processo disciplinar visava, em substância, determinar se, ao decidir do mérito do litígio que lhe tinha sido submetido, o juiz de reenvio podia abster‑se de cumprir a decisão de um tribunal superior sem ter de recear a reabertura do processo disciplinar de que foi objeto. O Tribunal de Justiça declarou igualmente que o juiz de reenvio era confrontado com um obstáculo processual, que resultava de uma aplicação contra si de uma regulamentação nacional, que devia levantar antes de poder decidir o litígio no processo principal sem interferência externa e com total independência.
54. Considero que existem paralelos claros entre o presente processo e o processo que deu origem ao Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio) (C‑564/19, EU:C:2021:949, n.os 85 a 87) (17) no que respeita à admissibilidade de questões relativas a um potencial processo disciplinar contra um juiz que proceda a um reenvio prejudicial e respeite a decisão posterior do Tribunal de Justiça. Sugiro, portanto, que o Tribunal de Justiça adote uma abordagem realista da admissibilidade desta questão no contexto específico do caso em apreço. Uma vez que um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça vincula o juiz nacional quanto à interpretação do direito da União para a resolução do litígio no processo principal (18), considero que as questões relativas ao risco de responsabilidade disciplinar dos juízes nacionais que apliquem qualquer resposta que o Tribunal de Justiça possa vir a dar na sequência de um pedido de decisão prejudicial são «necessárias» para a decisão do litígio que lhe foi submetido.
VI. Quanto ao mérito
55. As questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio visam, em substância, apurar se o princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta, se opõe a uma disposição de direito nacional de um Estado‑Membro por força da qual os órgãos jurisdicionais nacionais não são competentes para examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição nacional que tenha sido considerada constitucional pelo tribunal constitucional desse Estado‑Membro e, no caso de tal exame ser feito, os juízes podem ser objeto de processos disciplinares e de sanções.
A. Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România»
56. No Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», o Tribunal de Justiça indicou claramente as circunstâncias em que uma entidade como a SIIJ não respeitaria as exigências do artigo 2.o e do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, bem como da Decisão 2006/928 (19). O Tribunal de Justiça reafirmou igualmente a sua jurisprudência constante relativa ao princípio do primado do direito da União, por força do qual qualquer órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se no âmbito da sua competência, tem a obrigação de não aplicar qualquer disposição nacional — seja ela de nível legislativo ou constitucional, conforme interpretada pelo tribunal constitucional — contrária a uma disposição de direito da União que tenha efeito direto (20).
57. Uma vez que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e os objetivos de referência estabelecidos na Decisão 2006/928 têm efeito direto (21), o Tribunal de Justiça declarou que um órgão jurisdicional nacional deve, no âmbito das suas competências, garantir o seu pleno efeito, não aplicando, se necessário, qualquer disposição nacional em contrário (22).
58. Não me proponho reexaminar a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a conformidade de uma entidade como a SIIJ com o direito da União nem sobre a aplicação concreta do efeito direto e do primado do direito da União no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România». Os dois parâmetros (23) enunciados no n.o 223 desse acórdão para apreciar a conformidade da SIIJ com o direito da União são claros. Além disso, a obrigação que decorre dos princípios do efeito direto e do primado do direito da União, de não aplicar legislação, práticas administrativas ou jurisprudência nacionais contrárias ao direito da União, a qual incumbe a todos os órgãos do Estado — como os órgãos jurisdicionais nacionais, incluindo os tribunais constitucionais nacionais, bem como as autoridades administrativas — encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União, é perfeitamente clara (24).
59. É ponto assente, portanto, que é incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União qualquer disposição de uma ordem jurídica nacional ou qualquer prática legislativa, administrativa ou judicial, de um tribunal constitucional ou de outro tipo, que tenha por efeito diminuir a eficácia do direito da União pelo facto de recusar ao juiz competente para a aplicação desse direito o poder de, no próprio momento dessa aplicação, fazer tudo o que for necessário para não aplicar as disposições legislativas nacionais ou a jurisprudência nacional que eventualmente obstem à plena eficácia das normas diretamente aplicáveis do direito da União (25).
60. Além disso, num processo como o presente, o juiz nacional, tendo exercido a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, de submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, está vinculado, para a resolução do litígio no processo principal, pela interpretação das disposições em causa feita pelo Tribunal de Justiça e deve, se for esse o caso, afastar as apreciações de um tribunal superior, ou mesmo de um tribunal constitucional, se considerar, à luz dessa interpretação, que tais disposições não são conformes com o direito da União (26).
61. O Governo romeno indicou nas suas observações escritas que as duas condições estabelecidas pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no Acórdão n.o 390/2021 para que o direito da União prime sobre a Constituição romena estão reunidas no que respeita ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE. Assim, segundo este Governo, o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE é suficientemente claro, preciso e unívoco e reveste um certo nível de pertinência constitucional, pelo que o seu conteúdo regulamentar pode justificar uma eventual violação da Constituição pelo direito nacional. Embora isso possa ser verdade, não reconhece que o Tribunal de Justiça, no n.o 249 do Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», declarou que os objetivos de referência enunciados na Decisão 2006/928 têm efeito direto. Assim, declarou‑se no n.o 251 desse acórdão que, em caso de violação comprovada do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE ou da Decisão 2006/928, o princípio do primado do direito da União obriga o órgão jurisdicional de reenvio a não aplicar as disposições nacionais que lhe sejam contrárias, independentemente da sua origem legislativa ou constitucional.
62. A obrigação de não aplicar legislação, práticas administrativas ou jurisprudência nacionais, seja qual for a sua natureza, que sejam contrárias ao direito da União, é uma expressão concreta do funcionamento tanto do princípio da atribuição decorrente dos artigos 4.o, n.o 1, e 5.o TUE, como do princípio da cooperação leal decorrente do artigo 4.o, n.o 3, TUE (27). Salvo em circunstâncias excecionais, esta obrigação não afeta a identidade nacional de um Estado‑Membro, inerente, por exemplo, às suas estruturas políticas e constitucionais fundamentais (28), que devem ser respeitadas em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, TUE (29) e com o terceiro parágrafo do preâmbulo da Carta. Nos casos em que um Estado‑Membro invoca a identidade nacional para justificar o incumprimento de disposições do direito da União, o Tribunal de Justiça examinará se essas disposições constituem efetivamente uma ameaça genuína e suficientemente grave a um interesse fundamental da sociedade ou às estruturas políticas e constitucionais fundamentais de um Estado‑Membro (30). Afirmações vagas, gerais e abstratas não atingem esse limiar. Com efeito, resulta do pedido de decisão prejudicial que a própria Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) não identificou o aspeto da identidade nacional que é afetado pelo Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România».
63. Por conseguinte, a afirmação genérica da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio no seu pedido de decisão prejudicial, segundo a qual o direito da União não prima sobre a Constituição romena, pelo que os órgãos jurisdicionais romenos não têm competência para examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição de direito interno que tenha sido declarada constitucional pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), é demasiado ampla e indefinida para refletir uma manifestação ponderada de identidade nacional por parte de um Estado‑Membro da União Europeia, ao abrigo do artigo 4.o, n.o 2, TUE (31).
64. Em qualquer caso, todas as afirmações de identidade nacional devem respeitar os valores comuns referidos no artigo 2.o TUE (32) e assentar nos valores indivisíveis e universais mencionados no segundo parágrafo do preâmbulo da Carta (33). Em tais casos, o Estado de direito (34) e a tutela jurisdicional efetiva ocupam um lugar central. É sobre esta questão que passo agora a debruçar‑me.
65. Antes de o fazer, observo que o teor da decisão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no Acórdão n.o 390/2021 pode suscitar sérias dúvidas quanto ao respeito por esse órgão jurisdicional dos princípios essenciais do direito da União, conforme interpretados pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România». Além disso, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) não submeteu ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, a fim de prevenir o risco de uma interpretação incorreta do direito da União.
66. A este respeito, no seu Acórdão de 4 de outubro de 2018, Comissão/França (Imposto sobre os rendimentos mobiliários retido na fonte) (C‑416/17, EU:C:2018:811, n.os 107 a 109), o Tribunal de Justiça recordou que o incumprimento de um Estado‑Membro pode, em princípio, ser declarado, nos termos do artigo 258.o TFUE, qualquer que seja o órgão desse Estado cuja ação ou omissão dê origem ao incumprimento, incluindo as instituições constitucionalmente independentes. Na medida em que não exista recurso jurisdicional da decisão de um órgão jurisdicional nacional, este está, em princípio, obrigado a questionar o Tribunal de Justiça, na aceção do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, quando lhe é submetida uma questão relativa à interpretação do Tratado FUE. A obrigação de apresentar uma questão prejudicial tem como objetivo evitar que se estabeleça em qualquer Estado‑Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras do direito da União. O Tribunal de Justiça declarou que, não tendo o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) submetido uma questão prejudicial, nos termos do procedimento previsto no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, a fim de determinar uma questão específica que não se impunha com tal evidência que não desse lugar a qualquer dúvida razoável, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dessa disposição.
67. Na audiência de 23 de novembro de 2021, o Governo romeno confirmou que a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) é um órgão jurisdicional de última instância quando decide sobre questões relativas à Constituição romena.
B. Disposições aplicáveis do direito da União
68. O Tribunal de Justiça teve, nos últimos anos, a oportunidade de se pronunciar sobre o princípio da independência dos juízes dos Estados‑Membros em aplicação do direito da União e sobre a articulação entre o artigo 2.o TUE, o artigo 19.o, n.o 1, TUE, o artigo 267.o TFUE e o artigo 47.o da Carta (35). As origens recentes desta jurisprudência remontam ao Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C‑64/16, EU:C:2018:117). Embora este acórdão seja um marco importante no desenvolvimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça nesta matéria, não formulou, na minha opinião, quaisquer conceitos novos, tendo antes reiterado um certo número de princípios‑chave já existentes na jurisprudência do Tribunal de Justiça.
69. No que respeita às disposições aplicáveis do direito da União, é ponto assente que o artigo 19.o TUE concretiza o valor do Estado de direito conforme consagrado no artigo 2.o TUE. Não há, portanto, necessidade de examinar separadamente o artigo 2.o TUE (36). Na ordem jurídica da União, o artigo 19.o TUE confia a responsabilidade pela fiscalização jurisdicional ao Tribunal de Justiça e aos órgãos jurisdicionais nacionais. A garantia de independência, inerente à missão de julgar e essencial ao bom funcionamento do sistema de cooperação judiciária que constitui o artigo 267.o TFUE, é exigida, portanto, em ambos os níveis da ordem jurídica da União.
70. Embora as questões submetidas façam referência ao princípio da independência dos juízes, não há qualquer indicação nos autos submetidos ao Tribunal de Justiça de que a independência do órgão jurisdicional de reenvio tenha sido de alguma forma comprometida, para além da restrição imposta pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no Acórdão n.o 390/2021 e pelo artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004, no que respeita à aplicação do direito da União pelo órgão jurisdicional de reenvio. Embora o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE não se refira especificamente à independência judicial, segundo jurisprudência constante, para garantir que as instâncias que podem ser chamadas a pronunciar‑se sobre questões relacionadas com a aplicação ou a interpretação do direito da União possam assegurar a proteção jurisdicional efetiva exigida por essa disposição, é fundamental que seja preservada a sua independência, como confirma o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que menciona o acesso a um tribunal «independente» entre as exigências ligadas ao direito fundamental a um recurso efetivo. Esta exigência de independência dos órgãos jurisdicionais, que é inerente à missão de julgar, faz parte do conteúdo essencial do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e do direito fundamental a um processo equitativo, que reveste importância essencial enquanto garante da proteção de todos os direitos que o direito da União confere aos particulares e da preservação dos valores comuns aos Estados‑Membros, enunciados no artigo 2.o TUE, designadamente do valor do Estado de direito (37). O que está em jogo é a capacidade do órgão jurisdicional de reenvio de estabelecer as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União, como prevê o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (38), tendo em conta as limitações que lhe são impostas pelo artigo 148.o, n.o 2, da Constituição romena, conforme interpretado pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no Acórdão n.o 390/2021.
71. O artigo 19.o TUE atribui aos órgãos jurisdicionais nacionais e ao Tribunal de Justiça a responsabilidade de garantir a plena aplicação do direito da União em todos os Estados‑Membros e de assegurar a tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos ao abrigo desse direito (39). O artigo 19.o TUE prevê, assim, um sistema de justiça descentralizado em que a responsabilidade pela aplicação do direito da União é partilhada entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais.
72. O princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, a que se refere o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, constitui um princípio geral do direito da União que é atualmente afirmado no artigo 47.o da Carta, de modo que a primeira dessas disposições obriga todos os Estados‑Membros a estabelecerem as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva, na aceção designadamente da segunda dessas disposições, nos domínios abrangidos pelo direito da União (40). Assim, por um lado, o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 20 de abril de 2021, Repubblika (41), declarou que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE se destina a ser aplicado no contexto de uma ação ou recurso que tenha por objeto contestar a conformidade com o direito da União de disposições do direito nacional em relação às quais se alega poderem afetar a independência dos juízes. Por outro lado, o artigo 47.o da Carta consagra, a favor de qualquer pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados, o direito a uma ação perante um tribunal.
73. Uma vez que não resulta claramente do pedido de decisão prejudicial se RS, no litígio no processo principal, invoca um direito que lhe é conferido por uma disposição do direito da União, afigura‑se que, em conformidade com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta (42), o seu artigo 47.o poderá, enquanto tal, não ser aplicável ao litígio no processo principal. No entanto, uma vez que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE impõe a todos os Estados‑Membros que estabeleçam as vias de recurso necessárias para assegurar, nos domínios abrangidos pelo direito da União, uma proteção jurisdicional efetiva, na aceção, nomeadamente, do artigo 47.o da Carta, esta última disposição deve ser devidamente tomada em consideração para efeitos da interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (43).
C. Tutela jurisdicional efetiva exercida por juízes independentes
74. Resulta do pedido de decisão prejudicial que a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova), competente em matéria de direitos e liberdades, foi chamada a pronunciar‑se sobre uma reclamação apresentada por RS relativa à duração de um processo penal na SIIJ. Nada nos autos submetidos ao Tribunal de Justiça indica que o órgão jurisdicional de reenvio não seja competente para conhecer desta reclamação.
75. Afigura‑se igualmente que, nos termos do artigo 148.o, n.o 2, da Constituição romena, conforme interpretado pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) no Acórdão n.o 390/2021, os órgãos jurisdicionais nacionais não podem examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição do direito nacional que tenha sido considerada constitucional por um acórdão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional). Assim, o direito nacional impede efetivamente o órgão jurisdicional de reenvio de apreciar se a instituição e o funcionamento da SIIJ são conformes com o direito da União e, quando necessário e adequado, em conformidade, nomeadamente, com as indicações dadas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România», de não aplicar as disposições pertinentes do direito nacional em causa, em conformidade com os princípios do primado do direito da União e do efeito direto.
76. Esta situação é agravada pela ameaça potencial, por força do artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004, de instaurar um processo disciplinar e aplicar sanções disciplinares a um juiz por inobservância de um acórdão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) (44).
77. Segundo jurisprudência constante, embora a organização judiciária nos Estados‑Membros seja da competência destes últimos, estão obrigados a respeitar as obrigações que para eles decorrem do direito da União, em especial do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (45).
78. O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado‑Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, de aplicar integralmente o direito da União diretamente aplicável e proteger os direitos que este confere aos particulares, afastando a aplicação de qualquer disposição eventualmente contrária da lei nacional, quer esta seja anterior ou posterior à norma do direito da União (46).
79. Na minha opinião, a mesma obrigação decorre diretamente do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, que impõe (47) aos Estados‑Membros que estabeleçam as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União. Os órgãos jurisdicionais nacionais devem, portanto, garantir a aplicação plena do direito da União em todos os Estados‑Membros, bem como estabelecer as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva (48). A natureza da via de recurso a estabelecer pelos órgãos jurisdicionais nacionais depende da questão de saber se o ato ou a medida da União tem efeito direto. Quando o ato ou a medida não produzam efeito direto, o seu caráter vinculativo cria, não obstante, para os órgãos jurisdicionais nacionais, uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional (49). Em determinadas circunstâncias, o incumprimento desta obrigação pode servir de fundamento a uma ação de indemnização contra o Estado (50).
80. O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE constitui, assim, uma expressão concreta do princípio do primado do direito da União no Tratado da União Europeia (51).
81. O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE exige igualmente que os órgãos jurisdicionais nacionais chamados a pronunciar‑se sobre questões relacionadas com a interpretação e a aplicação do direito da União sejam independentes. Esta exigência é confirmada pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que refere o acesso a um tribunal «independente» como requisito do direito fundamental à ação (52). Os órgãos jurisdicionais em questão devem, assim, poder exercer as suas funções com total autonomia, sem estarem submetidos a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receberem ordens ou instruções de nenhuma proveniência. É apenas por este meio que estão protegidos contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a sua independência de julgamento e influenciar o conteúdo e o resultado das suas decisões (53).
82. Entre essas intervenções ou pressões externas proibidas figuram as decisões de um tribunal constitucional nacional, como o Acórdão n.o 390/2021 da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), que visa impedir que outros órgãos jurisdicionais nacionais — agindo no âmbito das competências que lhes são conferidas ao abrigo do direito nacional — garantam a plena aplicação do direito da União e a tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos ao abrigo desse direito.
83. Na minha opinião, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), no Acórdão n.o 390/2021, arrogou‑se ilegalmente uma competência em violação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em violação do princípio do primado do direito da União e em violação da exigência fundamental de um poder judicial independente.
84. Uma regra ou prática de direito nacional, nos termos da qual as apreciações jurídicas de um tribunal constitucional vinculam outro órgão jurisdicional nacional com competência, ao abrigo do direito nacional, para aplicar o direito da União, não pode retirar a este último o seu mandato independente para aplicar essa lei e para assegurar uma proteção jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União. Tais regras e práticas reduzem a eficácia do direito da União e são incompatíveis com a própria natureza do direito da União, incluindo o Estado de direito consagrado no artigo 2.o TUE (54). A este respeito, importa recordar que, no seu Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C‑64/16, EU:C:2018:117, n.o 36), o Tribunal de Justiça declarou que a própria existência de uma fiscalização jurisdicional efetiva destinada a assegurar o cumprimento do direito da União é inerente a um Estado de direito.
85. Por conseguinte, considero que o princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta, se opõe a uma disposição ou a uma prática do direito nacional nos termos da qual os órgãos jurisdicionais nacionais de um Estado‑Membro não têm competência para examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição de direito nacional que tenha sido considerada constitucional por uma decisão do tribunal constitucional desse Estado‑Membro. Por maioria de razão, este mesmo princípio opõe‑se à instauração de um processo disciplinar e à aplicação de sanções disciplinares a um juiz em consequência desse exame.
VII. Conclusão
86. À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pela Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia) do seguinte modo:
O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, opõe‑se a uma disposição ou a uma prática do direito nacional de um Estado‑Membro nos termos da qual os órgãos jurisdicionais nacionais não têm competência para examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição de direito nacional que tenha sido considerada constitucional por uma decisão do tribunal constitucional desse Estado‑Membro. Este mesmo princípio opõe‑se à instauração de um processo disciplinar e à aplicação de sanções disciplinares a um juiz em consequência desse exame.