Language of document : ECLI:EU:C:2022:777

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 13 de outubro de 2022 (1)

Processo C449/21

Towercast

contra

Autorité de la concurrence,

Ministère de l’Économie,

sendo intervenientes:

Tivana Topco S.A.,

Tivana Midco S.A.R.L.,

TDF Infrastructure Holding S.A.S.,

TDF Infrastructure S.A.S.,

Tivana France Holdings S.A.S.

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França)]

«Concorrência — Controlo das operações de concentração de empresas (“Controlo das concentrações”) — Artigo 21.o do Regulamento (CE) n.o 139/2004 (“Regulamento das Concentrações Comunitárias”) — Aplicabilidade exclusiva da legislação relativa ao controlo das concentrações — Controlo nacional das concentrações — Incumprimento dos limiares — Artigo 102.o TFUE — Abuso de posição dominante no mercado — Aplicabilidade direta — Regulamento (CE) n.o 1/2003»






Índice


V. Conclusão


I.      Introdução

1.        Com a sua questão prejudicial relativa à relação existente, à luz do artigo 102.o TFUE, entre as regras de controlo ex ante das concentrações e as regras de controlo ex post do caráter abusivo, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se uma autoridade nacional da concorrência pode examinar a posteriori, com base no artigo 102.o TFUE, uma concentração dirigida por uma empresa em posição dominante no mercado, quando essa concentração não tenha atingido os limiares aplicáveis em matéria de volume de negócios, definidos no Regulamento (CE) n.o 139/2004 (a seguir «Regulamento das Concentrações Comunitárias») (2) e na legislação nacional relativa ao controlo das concentrações, e, por conseguinte, não tenha sido objeto de qualquer exame ex ante adequado.

2.        O litígio no processo principal tem especificamente por objeto a aplicação complementar ou para preenchimento de lacunas do artigo 102.o TFUE em relação às regras nacionais aplicáveis em matéria de controlo das concentrações. No essencial, a questão prejudicial visa esclarecer se o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias implica um exame das concentrações exclusivamente com base na legislação relativa ao controlo das concentrações e uma exclusão da aplicação paralela ou a posteriori do artigo 102.o TFUE (denominado «efeito de bloqueio»). A fim de determinar mais pormenorizadamente a relação entre estas disposições, é necessário ter em consideração a sua respetiva natureza jurídica e função no sistema de direito da União de proteção da concorrência no mercado interno e os seus objetivos fundamentais.

3.        Para o efeito, após a apresentação do quadro jurídico (II.) e da matéria de facto (III.), debruçar‑me‑ei sobre a relação entre o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias e o artigo 102.o TFUE tendo em conta a sua posição na hierarquia das normas e a sua aplicabilidade direta (IV.A). Em seguida, examinarei o resultado desta análise à luz dos objetivos do sistema do direito da União para limitar as distorções da concorrência (IV.B). Por último, analisarei a questão de saber se e em que medida o resultado alcançado pode ser conciliado com a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça e com o princípio da segurança jurídica (IV.C).

II.    Quadro jurídico

A.      Direito derivado da União

1.      Regulamento (CE) n.o 139/2004

4.        Os considerandos 2 e 6 do Regulamento das Concentrações Comunitárias estabelecem:

«(2) Com vista à realização dos objetivos do Tratado, a alínea g) do n.o 1 do artigo 3.o confia à Comunidade a incumbência do estabelecimento de um regime que garanta que a concorrência não seja falseada no mercado interno. […]

(6) Impõe‑se, por conseguinte, a criação de um instrumento jurídico específico que permita um controlo eficaz de todas as concentrações em função do seu efeito sobre e estrutura da concorrência na Comunidade e que seja o único aplicável às referidas concentrações. […]»

5.        O considerando 7 do Regulamento das Concentrações Comunitárias afirma o seguinte quanto ao fundamento jurídico:

«(7) Os artigos 81.o e 82.o, embora aplicáveis, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a determinadas concentrações, não são suficientes para abranger todas as operações suscetíveis de se revelarem incompatíveis com o regime de concorrência não falseada previsto no Tratado. O presente regulamento deverá, por conseguinte, basear‑se não apenas no artigo 83.o, mas principalmente no artigo 308.o do Tratado. […]»

6.        Os considerandos 8 e 9 do Regulamento das Concentrações Comunitárias dizem respeito à repartição de competências e ao âmbito de aplicação do referido regulamento:

«(8) As disposições a adotar no presente regulamento deverão ser aplicáveis às modificações estruturais importantes cujos efeitos no mercado se projetem para além das fronteiras nacionais de um Estado‑Membro. […] As concentrações que não são objeto do presente regulamento são, em princípio, da competência dos Estados‑Membros.

(9) É conveniente definir o âmbito de aplicação do presente regulamento em função do domínio geográfico da atividade das empresas em causa, circunscrevendo‑o mediante limiares de natureza quantitativa, a fim de abranger as concentrações que se revestem de uma dimensão comunitária. […]»

7.        O artigo 1.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias define o âmbito de aplicação do presente regulamento, nomeadamente com base nos limiares relativos ao volume de negócios previstos no n.o 2:

«1. Sem prejuízo do n.o 5 do artigo 4.o e do artigo 22.o, o presente regulamento é aplicável a todas as concentrações de dimensão comunitária definidas no presente artigo.

2. Uma concentração tem dimensão comunitária quando: […]»

8.        O artigo 3.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias define o conceito de «concentração»:

«1. Realiza‑se uma operação de concentração quando uma mudança de controlo duradoura resulta da:

a)      Fusão de duas ou mais empresas ou partes de empresas anteriormente independentes; ou

b)      Aquisição por uma ou mais pessoas, que já detêm o controlo de pelo menos uma empresa, ou por uma ou mais empresas por compra de partes de capital ou de elementos do ativo, por via contratual ou por qualquer outro meio, do controlo direto ou indireto do conjunto ou de partes de uma ou de várias outras empresas. […]»

9.        O artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias diz respeito à delimitação do âmbito de aplicação do presente regulamento em relação a outros instrumentos jurídicos da União:

«1. Apenas o presente regulamento se aplica às concentrações definidas no artigo 3.o, e [o Regulamento] (CE) n.o 1/2003 […] não [é aplicável] salvo no que se refere às empresas comuns sem dimensão comunitária e que tenham por objeto ou efeito a coordenação do comportamento concorrencial de empresas que se mantenham independentes. […]»

10.      Por último, o artigo 22.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias estabelece nomeadamente:

«1. Um ou mais Estados‑Membros podem solicitar à Comissão que examine qualquer concentração, tal como definida no artigo 3.o, que não tenha dimensão comunitária na aceção do artigo 1.o, mas que afete o comércio entre Estados‑Membros e ameace afetar significativamente a concorrência no território do Estado‑Membro ou Estados‑Membros que apresentam o pedido. […]

[…]

(3) […] O Estado‑Membro ou Estados‑Membros que apresentaram o pedido deixam de aplicar à concentração a sua legislação nacional de concorrência. […]»

2.      Regulamento (CEE) n.o 4064/89

11.      O Regulamento (CEE) n.o 4064/89 (3) é o antecessor do Regulamento das Concentrações Comunitárias atualmente aplicável.

12.      Os seus considerandos 6 a 8 previam:

«(6) Considerando que os artigos 85.o e 86.o do Tratado, embora aplicáveis, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a determinadas concentrações, não são todavia suficientes para impedir todas as operações suscetíveis de se revelar incompatíveis com o regime de concorrência não falseada previsto no Tratado;

(7) Considerando, por conseguinte, que se impõe a criação de um novo instrumento jurídico, sob a forma de regulamento, que permita um controlo eficaz de todas as operações de concentração em função do seu efeito sobre a estrutura da concorrência na Comunidade e que seja o único aplicável às referidas concentrações;

(8) Considerando que esse regulamento se deve basear, por conseguinte, não apenas no artigo 87.o do Tratado, mas principalmente no seu artigo 235.o, por força do qual a Comunidade se pode dotar dos poderes de ação necessários à realização dos seus objetivos. […]»

13.      O artigo 22.o do Regulamento n.o 4064/89 contém, nos seus n.os 1 e 2, a disposição que antecedeu o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias e, no seu n.o 3, a disposição que antecedeu o artigo 22.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias:

«1. O presente regulamento é exclusivamente aplicável às operações de concentração definidas no artigo 3.o

2. Os Regulamentos n.o 17 (CEE), n.o 1017/68 (CEE), n.o 4056/86 e (CEE) n.o 3975/87 não são aplicáveis às concentrações definidas no artigo 3.o

3. Se verificar, a pedido de um Estado‑Membro, que uma operação de concentração, tal como definida no artigo 3.o mas sem dimensão comunitária na aceção do artigo 1.o, cria ou reforça uma posição dominante, dando assim origem a entraves significativos a uma concorrência efetiva no território do Estado‑Membro em questão, a Comissão pode, na medida em que essa concentração afete o comércio entre Estados‑Membros, tomar as decisões previstas nos n.o 2, segundo parágrafo, e n.os 3 e 4 do artigo 8.o […]»

B.      Direito nacional

14.      O artigo L. 490‑9 do Code de commerce (Código Comercial) dispõe, nomeadamente, o seguinte:

«Para efeitos da aplicação dos artigos 81.o a 83.o do Tratado que institui a Comunidade Europeia, […] a Autoridade da Concorrência, [entre outros], dispõ[e] das respetivas competências que lhe foram reconhecidas pelos artigos do presente código e pelo Regulamento (CE) n.o 139/2004 […] e pelo Regulamento (CE) n.o 1/2003 […]. As regras processuais previstas pelos presentes textos são‑lhe aplicáveis.»

15.      A legislação francesa prevê igualmente um controlo ex ante das concentrações. O artigo L. 430‑1 do Código Comercial define o conceito de concentração. O artigo L. 430‑2 do mesmo código estabelece os limiares relativos ao volume de negócios que determinam a aplicação da legislação relativa ao controlo das concentrações.

16.      O artigo L. 430‑9 do Código Comercial prevê ainda que

«[a] Autoridade da Concorrência pode, em caso de abuso de uma posição dominante […], ordenar, por decisão fundamentada, que a empresa ou o grupo de empresas em causa […] altere, complete ou rescinda, num determinado prazo, todos os acordos e atos através dos quais realizou a concentração do poder económico que permitiu o abuso. […]»

III. Matéria de facto e pedido de decisão prejudicial

17.      O litígio no processo principal e o pedido de decisão prejudicial têm origem num recurso interposto pela sociedade francesa Towercast S.A.S.U., sediada em Paris (França) (a seguir «Towercast»), contra uma decisão da Autorité de la concurrence francesa (a seguir «Autoridade da Concorrência Francesa»), através da qual esta indeferiu uma reclamação apresentada pela Towercast por abuso de posição dominante no mercado da sociedade francesa TDF Infrastructure Holding S.A.S. (a seguir «TDF») (4).

18.      Em 15 de novembro de 2017, a Towercast submeteu à Autoridade da Concorrência Francesa uma reclamação relativa à aquisição (controlo) da sociedade Itas S.A.S. pela TDF em 13 de outubro de 2016. A Towercast alegou que esta aquisição constitui um abuso de posição dominante no mercado, uma vez que a TDF colocou entraves à concorrência nos mercados grossistas, a montante e a jusante, dos serviços de difusão da televisão digital terrestre (Digital Video Broadcasting — televisão digital terrestre ou TDT), reforçando significativamente a sua posição dominante nestes mercados.

19.      O mercado francês de difusão da televisão digital terrestre, cujo monopólio legal era originalmente detido pela TDF, foi liberalizado no início de 2004. Porém, nos últimos anos, assistiu‑se novamente a uma forte concentração, de forma que, aquando da aquisição impugnada, apenas três empresas, a Towercast, a Itas e a TDF, operavam ainda neste mercado, detendo a TDF incontestavelmente, de longe, a maior quota de mercado.

20.      A aquisição da Itas pela TDF situava‑se abaixo dos limiares previstos no artigo 1.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias e no artigo L. 430‑2 do Código Comercial e, por conseguinte, não foi objeto de um controlo ex ante pela Comissão ou pela Autoridade da Concorrência Francesa. Não houve tão‑pouco lugar a uma remessa à Comissão nos termos do mecanismo previsto no artigo 22.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias.

21.      Por Decisão de 16 de janeiro de 2020, a Autoridade da Concorrência Francesa indeferiu a reclamação apresentada pela Towercast com base no facto de o alegado abuso de posição dominante no mercado não ter ficado provado. É certo que a TDF ocupa tal posição. Todavia, com a adoção do Regulamento n.o 4064/89 foi traçada uma linha divisória clara entre, por um lado, o controlo das concentrações e, por outro, o controlo das práticas anticoncorrenciais nos termos dos artigos 101.o e 102.o TFUE, pelo que o Regulamento das Concentrações Comunitárias é apenas e exclusivamente aplicável às concentrações na aceção do artigo 3.o do referido regulamento. Por conseguinte, o artigo 102.o TFUE deixou de ser aplicável, a menos que se verifique um comportamento anticoncorrencial dissociado da concentração. Tal não sucede, todavia, no caso em apreço.

22.      A Towercast interpôs recurso desta decisão na Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França).

23.      Por Decisão de 1 de julho de 2021, que deu entrada no dia 21 de julho de 2021, a Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) submeteu à apreciação do Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 267.o TFUE, a seguinte questão prejudicial no que se refere à aplicação divergente do artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias nos Estados‑Membros:

Deve o artigo 21.o, n.o 1, do [Regulamento das Concentrações Comunitárias] ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma operação de concentração, que não tem dimensão comunitária na aceção do artigo 1.o do referido regulamento, situada abaixo dos limiares de controlo ex ante obrigatório previstos pelo direito nacional e que não foi objeto de uma remessa à Comissão Europeia ao abrigo do artigo 22.o do referido regulamento, seja apreciada por uma autoridade nacional da concorrência como constitutiva de um abuso de posição dominante proibido pelo artigo 102.o TFUE, tendo em conta a estrutura da concorrência num mercado de dimensão nacional?

24.      A Towercast, a Autoridade da Concorrência Francesa, a França, a Itália, os Países Baixos, a Comissão Europeia, a TDF e a Tivana Topco apresentaram tanto observações escritas, como participaram — com exceção da Itália — na audiência de 6 de julho de 2022.

IV.    Apreciação jurídica

A.      Relação entre o artigo 21.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias e o artigo 102.o TFUE

1.      Determinação do âmbito de aplicação do Regulamento das Concentrações Comunitárias no seu artigo 21.o

25.      O artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias define o âmbito de aplicação deste regulamento, no que diz respeito à análise das concentrações, por referência e em contraposição à aplicação das restantes disposições de direito derivado da União em matéria de concorrência. Com efeito, esta disposição exclui expressamente a aplicação do Regulamento n.o 1/2003 (5) às concentrações, salvo no que se refere às «empresas comuns [com caráter de cooperação] sem dimensão comunitária e que tenham por objeto ou efeito a coordenação do comportamento concorrencial de empresas que se mantenham independentes», e que, consequentemente, são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 101.o TFUE.

26.      Por conseguinte, no Acórdão «Austria Asphalt», o Tribunal de Justiça confirmou a aplicação exclusiva do Regulamento das Concentrações Comunitárias à análise das concentrações, excluindo, a este respeito, uma aplicação do Regulamento n.o 1/2003 (6). Neste sentido, este regulamento é apenas aplicável aos comportamentos das empresas que, como as empresas comuns com caráter de cooperação, não devem ser qualificadas de concentração, sendo, contudo, suscetíveis de implicar uma coordenação contrária ao artigo 101.o TFUE (7). Deste modo, o Acórdão «Austria Asphalt» não contém qualquer declaração geral sobre a relação entre a legislação relativa ao controlo das concentrações, por um lado, e os artigos 101.o e 102.o TFUE, por outro.

27.      Em contrapartida, a exclusão da aplicação do Regulamento n.o 1/2003 às concentrações, ordenada pelo n.o 1 do artigo 21.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias, não responde à questão da aplicabilidade do artigo 102.o TFUE. Esta resposta é ainda mais importante quando, como sucede no caso em apreço, a concentração em causa não atinge nem os limiares previstos pelo direito da União, nem os limiares previstos a nível nacional, nem tão‑pouco foi objeto de remessa à Comissão nos termos do artigo 22.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias, pelo que não há lugar a qualquer controlo ex ante com base na legislação relativa ao controlo das concentrações (8).

28.      Na resposta à questão de saber se o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias exclui a aplicação do artigo 102.o TFUE, a natureza deste artigo enquanto disposição de direito primário e a sua aplicabilidade direta são particularmente relevantes.

2.      Aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE

29.      O artigo 102.o TFUE é uma disposição de direito primário, cuja aplicabilidade direta é, há muito, reconhecida pelo Tribunal de Justiça (9).

30.      Além disso, do princípio da hierarquia das normas (10) e do consequente princípio do conflito de leis — lex superior derogat legi inferiori — decorre que uma disposição de direito derivado não pode restringir o âmbito de aplicação, nem a aplicabilidade direta de uma disposição de direito primário, devendo antes cumprir o disposto por esta última e, por sua vez, ser interpretada, se necessário, restritivamente à luz dessa disposição de direito primário (11).

31.      Por conseguinte, é certo que o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias pode excluir a aplicação do Regulamento n.o 1/2003, que se destina a executar designadamente o artigo 102.o TFUE (12), às concentrações. Todavia, independentemente do que precede e contrariamente ao entendimento da Autoridade da Concorrência Francesa, a proibição prevista no artigo 102.o TFUE permanece diretamente aplicável e a sua execução não se encontra bloqueada. Esta proibição é suficientemente clara, precisa e incondicional, pelo que não necessita de uma disposição de direito derivado que ordene ou permita expressamente a sua aplicação pelas autoridades e órgãos jurisdicionais nacionais (13).

32.      A aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE permite que os particulares imponham às autoridades e aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros a posição jurídica que lhes é atribuída; isto relaciona‑se inversamente com o dever das autoridades públicas de proteção desta posição jurídica (14). Além disso, com base nesta aplicabilidade direta e no primado a ela associado dos artigos 101.o e 102.o TFUE, o Tribunal de Justiça concluiu que as autoridades nacionais da concorrência devem deixar de aplicar a legislação nacional que contraria o direito da União (15).

33.      Porém, se da aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE resultar um dever de aplicação para as autoridades nacionais, menor possibilidade terá, a este respeito, uma disposição de direito derivado, como o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias, de produzir o efeito de bloqueio defendido pela Autoridade da Concorrência Francesa.

34.      Também a redação desta disposição, que utiliza o termo «apenas» (16), em nada altera esta conclusão. O mesmo é válido para a redação do considerando 6 do Regulamento das Concentrações Comunitárias, segundo qual impõe‑se que este regulamento «seja o único [instrumento] aplicável às referidas concentrações» [na aceção do artigo 3.o] (17).

35.      Esta situação é confirmada pela escolha do artigo 103.o TFUE — a par do artigo 352.o TFUE — como base jurídica para o Regulamento das Concentrações Comunitárias (18). Tal como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de declarar, o Regulamento das Concentrações Comunitárias visa igualmente executar os artigos 101.o e 102.o TFUE e faz parte de um quadro normativo destinado a assegurar a plena proteção da concorrência no mercado interno (19). Tal demonstra, por sua vez, que este regulamento não se encontra, em termos de hierarquia de normas, num plano de igualdade com os artigos 101.o e 102.o TFUE, nem é suscetível, na qualidade de norma de execução, de alterar, muito menos de limitar, o âmbito de aplicação destas normas de referência.

36.      Uma vez que, devido ao primado do direito da União, as disposições de direito nacional contrárias não se podem opor à execução do artigo 102.o TFUE e este artigo deve ser interpretado de forma uniforme em toda a União (20), a referência da Towercast, da TDF e da Tivana Topco à sua aplicação eventualmente divergente nas ordens jurídicas dos Estados‑Membros carece igualmente de fundamento e é irrelevante para a resposta a dar à questão prejudicial.

37.      No que se refere ao argumento apresentado, nomeadamente, pela TDF, de que uma concentração, que se situa abaixo dos limiares e, por conseguinte, não tem de ser notificada, deixa de poder ser posta em causa a posteriori através da aplicação do artigo 102.o TFUE, gostaria de acrescentar que os limiares previstos no artigo 1.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias ou em normas nacionais correspondentes não podem, tal como o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias, restringir ou excluir a aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE.

38.      Tal resulta igualmente da função atribuída aos limiares. Por um lado, estes regulam a repartição das competências entre a Comissão e as autoridades nacionais da concorrência e determinam, em consequência, a legislação aplicável à análise da concentração (21). Por outro, estes limiares baseiam‑se na apreciação do legislador e na presunção ilidível que lhe está associada de que as concentrações, que ultrapassam determinados limiares, são particularmente significativas e são suscetíveis de ter efeitos adversos na estrutura do mercado e na concorrência, de modo que exigem um controlo regulamentar ex ante (22). Inversamente, o facto de não se atingirem esses limiares em matéria de volume de negócios implica a presunção de que a concentração em causa não requer tal controlo ex ante. No entanto, os limiares, enquanto tais, nada dizem sobre se, em determinados casos, é possível proceder, com base no artigo 102.o TFUE, a um controlo ex post do comportamento das empresas em posição dominante no mercado no contexto de uma operação de concentração.

B.      Funcionamento e natureza da proteção conferida pelo direito da União contra distorções da concorrência

39.      A posição na hierarquia das normas e a aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE, referidas nos n.os 29 a 38, são, na realidade, suficientes para fundamentar o facto de que a sua aplicabilidade às concentrações não pode ser excluída pelo artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias. Além disso, o funcionamento e a natureza da proteção conferida pelo direito da União contra distorções da concorrência no mercado interno apontam igualmente para uma aplicação complementar do artigo 102.o TFUE a uma operação de concentração.

40.      Embora o Regulamento das Concentrações Comunitárias preveja um sistema preventivo obrigatório de controlo ex ante para alterações da estrutura do mercado, o comportamento das empresas no mercado — seja ele um comportamento coordenado ou atos unilaterais — está apenas sujeito, em conformidade com o Regulamento n.o 1/2003, a um controlo ex post repressivo. Esta função foi ainda reforçada pelo sistema de exceção legal introduzido por este regulamento, segundo o qual, com base na (agora plena) aplicabilidade direta dos artigos 101.o e 102.o TFUE, as tarefas de controlo e de execução foram confiadas, em grande medida, às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais (descentralização) (23). Todavia, o seu poder de apreciação na aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE é, por sua vez, limitado pelos princípios da aplicabilidade direta e do primado do direito da União (24).

41.      É certo que a autonomia do controlo preventivo das concentrações é salientada pelo considerando 6 do Regulamento das Concentrações Comunitárias (25), segundo o qual este controlo, enquanto «instrumento jurídico específico» deve ser o «único» instrumento para avaliar o impacto das concentrações sobre a concorrência no mercado interno (26). Além disso, o Tribunal de Justiça opôs‑se a um alargamento inadmissível do âmbito de aplicação deste regulamento a operações que não contribuam para a realização de uma concentração (27). Ao agir deste modo, o Tribunal de Justiça pôs termo a uma «intrusão» das disposições deste regulamento noutros domínios do direito da concorrência (28).

42.      No entanto, contrariamente ao que sustentam o Governo francês e a Autoridade da Concorrência Francesa, daqui não se pode concluir que o Regulamento das Concentrações Comunitárias tem um caráter exaustivo de Lex specialis.

43.      Tal não resulta tão‑pouco do facto de, nos termos do artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias, o Regulamento n.o 1/2003, nomeadamente, não se aplicar às concentrações. Na verdade, desta situação decorre que a análise de eventuais efeitos anticoncorrenciais de uma concentração deve realizar‑se primordialmente ao abrigo da legislação relativa ao controlo das concentrações na qualidade de regime especial relativamente aos artigos 101.o e 102.o TFUE. Todavia, tal não exclui a possibilidade de um controlo ex post do comportamento de uma empresa em posição dominante no mercado no contexto de uma tal concentração. Além disso, não teria sido legalmente possível ao legislador adotar uma disposição de direito derivado que excluísse a aplicação do artigo 102.o TFUE, hierarquicamente superior e diretamente aplicável.

44.      A favor da aplicação do artigo 102.o TFUE a par do Regulamento das Concentrações Comunitárias aponta igualmente o facto de este regulamento — como se depreende do seu considerando 7 — se basear não só no artigo 103.o TFUE, como também na autorização para completar o Tratado prevista no artigo 325.o TFUE. O considerando 6 do Regulamento n.o 4064/89 (n.o 12, supra) confirma esta situação ao esclarecer que a introdução de um regime de controlo das concentrações deve destinar‑se a colmatar lacunas, no que diz respeito às concentrações, no sistema de proteção contra distorções da concorrência.

45.      Em sentido inverso, a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça demonstra que o artigo 102.o TFUE possui um vasto campo de aplicação, tanto mais que os seus exemplos de comportamentos abusivos não são exaustivos (29). Por conseguinte, o comportamento das empresas em posição dominante no mercado aquando da preparação ou da execução da aquisição de um concorrente pode igualmente enquadrar‑se no âmbito de aplicação material desta disposição e ser objeto do seu efeito direto. Isto é tanto mais assim quanto é certo que a exclusão abusiva de um concorrente do mercado pode ter diversas manifestações (30) e à empresa que detém uma posição dominante incumbe uma responsabilidade especial de não prejudicar, através do seu comportamento, uma concorrência efetiva e não falseada no mercado interno (31).

46.      Ao contrário do que defendem a TDF, a Tivana Topco, a Autoridade da Concorrência Francesa, bem como os Governos francês e neerlandês, esta conclusão está em total consonância com as minhas Conclusões (32) e com o Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo «Austria Asphalt» (33). Com efeito, este caso dizia apenas respeito à delimitação do âmbito de aplicação do Regulamento das Concentrações Comunitárias em relação ao do Regulamento n.o 1/2003 no que se refere à análise ex ante de uma operação de concentração que tinha por objeto a criação de uma empresa comum de pleno exercício. Em contrapartida, questões relativas a um eventual controlo ex post da concentração ou do comportamento das empreses envolvidas, nomeadamente à luz do artigo 102.o TFUE, não eram objeto do processo (34).

47.      Contrariamente à opinião da Autoridade da Concorrência Francesa, do Governo francês, da Tivana Topco e da TDF, bem como do órgão jurisdicional de reenvio, o mecanismo de remessa previsto no artigo 22.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias, que, a pedido dos Estados‑Membros, pode excecionalmente atribuir competência à Comissão para concentrações sem dimensão comunitária, é igualmente irrelevante para a interpretação da relação existente entre o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias e o artigo 102.o TFUE (35). Com efeito, o artigo 22.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias não pode tão‑pouco justificar, enquanto disposição de direito derivado, a exclusão da aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE num caso como o presente (n.os 29 a 33, supra).

48.      Pelo contrário, a aplicação complementar do artigo 102.o TFUE, à semelhança da do artigo 22.o do Regulamento das Concentrações Comunitárias, é suscetível de contribuir para a proteção eficaz da concorrência no mercado interno, desde que as concentrações problemáticas em termos de concorrência não atinjam os limiares previstos em matéria de controlo das concentrações e, por conseguinte, não estejam, em princípio, sujeitas a qualquer controlo ex ante. Tal como apontado pelo Governo italiano e pela Comissão, manifestou‑se, nomeadamente nos últimos anos, uma lacuna em matéria de proteção no registo e controlo, em matéria de concorrência, das aquisições de start‑ups inovadoras, por exemplo, no domínio dos serviços de Internet, da indústria farmacêutica ou da tecnologia médica [denominadas «killer acquisitions» (aquisições assassinas)]. Tal diz respeito a situações em que empresas estabelecidas e com poder crescente no mercado adquirem, numa fase inicial de desenvolvimento, empresas emergentes, mas ainda com um baixo volume de negócios, que operam no mesmo mercado, num mercado vizinho, ou num mercado situado a montante ou a jusante, a fim de as eliminarem como concorrentes e consolidarem a sua própria posição no mercado (36). Por conseguinte, a fim de assegurar uma proteção eficaz da concorrência a este respeito, as autoridades nacionais da concorrência devem poder recorrer, pelo menos, ao instrumento «mais fraco» (37) do controlo repressivo ex post nos termos do artigo 102.o TFUE, uma vez verificados os pressupostos para esse efeito. Essa necessidade pode existir igualmente no caso de aquisições em mercados fortemente concentrados como o do caso em apreço, se o seu objetivo for eliminar a pressão concorrencial feita por parte de um concorrente emergente.

49.      Tal conduz à questão controversa entre as partes no processo de saber se, e em que medida, os princípios estabelecidos no Acórdão «Continental Can» (38) sobre a aplicabilidade do artigo 102.o TFUE às concentrações devem continuar a aplicar‑se.

C.      Pertinência do Acórdão «Continental Can» e segurança jurídica

50.      Com base nas considerações que precedem, as declarações proferidas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão «Continental Can» devem, em todo o caso, ser clarificadas.

51.      Neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, no que diz respeito à aplicabilidade do artigo 86.o do Tratado CE (atual artigo 102.o TFUE), nomeadamente, o seguinte:

«A alteração da concorrência, sendo proibida quando resulte de comportamentos abrangidos pelo artigo 85.o, não pode tornar‑se lícita quando esses comportamentos, levados a cabo sob a ação de uma empresa dominante, conseguem materializar‑se numa integração de empresas entre si. […]

Assim, o facto de uma empresa em posição dominante reforçar essa posição ao ponto de o grau de domínio assim atingido prejudicar substancialmente a concorrência, ou seja, deixar subsistir apenas empresas dependentes, no seu comportamento, da empresa dominante, pode constituir um abuso» (39).

52.      Daqui poderá mesmo deduzir‑se que o artigo 102.o TFUE é plenamente aplicável ao controlo das concentrações.

53.      No entanto, este acórdão deve ser entendido à luz do quadro jurídico existente à data, em especial do facto de que o Tribunal de Justiça, «na ausência de disposições expressas» (40), considerava necessário um controlo das concentrações em conformidade com o artigo 86.o do Tratado CE, a fim de garantir uma proteção adequada do funcionamento correto da concorrência no mercado comum. Atualmente, porém, tais «disposições expressas» figuram indubitavelmente no Regulamento das Concentrações Comunitárias; além disso, de acordo com a intenção do legislador, estas disposições destinam‑se expressamente a colmatar lacunas identificadas, na altura, pelo Tribunal de Justiça (41).

54.      No entanto, tendo em conta a aplicabilidade complementar do artigo 102.o TFUE acima defendida para efeitos de controlo de comportamentos abusivos no contexto de uma operação de concentração, esta jurisprudência não ficou, apesar da criação de um sistema de controlo das concentrações no domínio do direito da União, totalmente desprovida do seu objeto. Tal é confirmado tanto pelo considerando 7 do Regulamento das Concentrações Comunitárias (n.o 5, supra), que parece referir‑se a esta jurisprudência, como pelo facto de o Acórdão «Continental Can» se basear, por seu lado, no objetivo do Tratado de proteger a concorrência no mercado comum da forma mais eficaz e completa possível (42). A breve declaração, frequentemente invocada pelas partes no processo, constante de uma nota das minhas Conclusões no processo «Austria Asphalt», segundo a qual o referido Acórdão «Continental Can» se tinha tornado «obsoleto» (43), dizia respeito a outra questão prejudicial e, por conseguinte, a outro objeto do processo (nomeadamente a aplicação do artigo 101.o TFUE a empresas comuns), pelo que não pode ser generalizada.

55.      Deste modo, continua por esclarecer a questão suscitada pelas partes de saber em que condições haverá lugar a uma aplicação complementar do artigo 102.o TFUE no contexto de uma concentração à luz do Acórdão «Continental Can» e do princípio da segurança jurídica.

56.      A este respeito, devem distinguir‑se duas situações, nomeadamente, por um lado, a situação subjacente ao presente processo, em que, não se tendo atingido os limiares, não se procedeu a qualquer análise ex ante da concentração ao abrigo da legislação relativa ao controlo das concentrações, e, por outro lado, uma eventual «análise dupla», paralela ou sucessiva, de uma concentração à luz tanto da legislação relativa ao controlo das concentrações, como do artigo 102.o TFUE.

57.      Tal como indicado nos n.os 29 a 48 das presentes conclusões, a aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE às concentrações não está excluída por lei. Tal aplica‑se, sem restrições, num caso como o presente, em que, como resulta do n.o 20, não se realizou qualquer análise ex ante da concentração ao abrigo da legislação relativa ao controlo das concentrações, não existindo, portanto, qualquer risco de análise dupla.

58.      No entanto, a conclusão seria diferente na situação hipotética de se ter efetivamente realizado uma análise ex antes quer pelas autoridades nacionais da concorrência com base na legislação nacional relativa ao controlo das concentrações, quer pela Comissão com base no Regulamento das Concentrações Comunitárias. Poderá uma tal concentração ser objeto de um controlo complementar ex post à luz do artigo 102.o TFUE?

59.      No que se refere ao respeito pelo princípio da segurança jurídica, é importante fazer notar que o legislador pretendia, em princípio, excluir uma tal análise dupla, como demonstrado pelo artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento das Concentrações Comunitárias (n.o 43, supra). Por conseguinte, em meu entender, ainda há espaço — não obstante a natureza de disposição do direito primário e a aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE — para a aplicação do princípio da lex specialis derogat legi generali.

60.      Não existe, assim, qualquer contradição com o princípio da hierarquia das normas referido no n.o 30 das presentes conclusões. Com efeito, o artigo 102.o TFUE continua, na realidade, em princípio, a ser aplicável. Todavia, uma concentração autorizada ao abrigo das regras mais específicas do controlo das concentrações, cujos efeitos sobre a estrutura de mercado e as condições de concorrência tenham sido declarados compatíveis com o mercado interno, não poderá (mais), enquanto tal, ser qualificada como abuso de posição dominante no mercado, na aceção do artigo 102.o TFUE, a menos que se verifiquem outros comportamentos por parte da empresa em causa que possam constituir uma infração. Por conseguinte, as declarações proferidas no Acórdão «Continental Can», que também neste caso poderão ser mal interpretadas no sentido uma eventual análise dupla de uma concentração, deverão ser clarificadas em conformidade.

61.      Tendo em consideração estes pressupostos, as consequências jurídicas decorrentes da aplicabilidade complementar da legislação relativa ao controlo das concentrações e do artigo 102.o TFUE, têm um impacto muito menor sobre a execução das concentrações e a segurança jurídica do que o alegado, por exemplo, pelo Governo neerlandês e pela TDF.

62.      Por um lado, tal decorre da aplicação do princípio da lex specialis derogat legi generali, segundo o qual a autorização da concentração nos termos da legislação relativa ao controlo das concentrações e da alteração por ela operada da estrutura de mercado e das condições de concorrência exclui necessariamente a existência de facto de um abuso na aceção do artigo 102.o TFUE (n.os 59 e 60, supra). Por conseguinte, uma tal concentração não poderá tão‑pouco ser objeto de uma ordem posterior, por exemplo, nos termos do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, para dissolver a entidade resultante da concentração. Por outro lado, um controlo ex post, nos termos do artigo 102.o TFUE, pode apenas dizer respeito a concentrações operadas por uma empresa em posição dominante no mercado.

63.      Assim, na prática jurídica, a eventual aplicação complementar do artigo 102.o TFUE reduz‑se aos casos, que, devido ao poder de mercado dessa empresa, exigem desde o início um controlo em matéria de concorrência, mas que não estão sujeitos a qualquer análise ex ante com base na legislação relativa ao controlo das concentrações. E mesmo nestes casos, contrariamente aos receios de algumas partes no processo, face a uma infração no que respeita ao primado das soluções de conduta e ao princípio da proporcionalidade, não existe, em geral, qualquer risco de anulação posterior da concentração (44), mas apenas a aplicação de uma coima (45).

64.      Por último, tendo em conta o princípio da segurança jurídica, gostaria de fazer referência ao pedido apresentado a título subsidiário pela Tivana Topco para limitar no tempo os efeitos do acórdão do Tribunal de Justiça.

65.      A este respeito, deve recordar‑se que a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito da União, no exercício da competência que lhe é atribuída pelo artigo 267.o TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Só a título excecional é que o Tribunal de Justiça pode, aplicando o princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica da União, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição por si interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa‑fé. Para que se possa decidir por esta limitação, é necessário que se encontrem preenchidos dois requisitos essenciais, a saber, a boa‑fé dos interessados e o risco de perturbações graves (46).

66.      No presente caso, não posso afirmar que estes últimos requisitos estão preenchidos. Por um lado, à luz da jurisprudência assente relativa à aplicabilidade direta do artigo 102.o TFUE e do Acórdão «Continental Can», os interessados não podem ter agido de boa‑fé ao interpretar esta disposição de forma diferente à acima indicada nos n.os 29 e seguintes. Por outro, o risco de perturbações graves, à luz do acima referido  nos n.os 55 e seguintes, é igualmente excluído.

67.      Face ao exposto, não existe uma razão convincente para a exclusão categórica da aplicação do artigo 102.o TFUE a um caso como o presente, nem para uma limitação no tempo dos efeitos do acórdão do Tribunal de Justiça.

V.      Conclusão

68.      Pelos motivos indicados, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma ao pedido de decisão prejudicial:

O artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 139/2004 do Conselho, de 20 de janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas (Regulamento do controlo das concentrações) deve ser interpretado no sentido de que não proíbe que uma concentração, que não tenha dimensão comunitária, na aceção do artigo 1.o do referido regulamento, nem tenha atingido os limiares previstos ao abrigo do direito nacional para uma análise ex ante, nem tão‑pouco seja objeto de remessa à Comissão em conformidade com o artigo 22.o do mesmo regulamento, seja examinada por uma autoridade nacional da concorrência a fim de averiguar se essa concentração constitui, tendo em conta as estruturas da concorrência num mercado nacional, um abuso de posição dominante no mercado nos termos do artigo 102.o TFUE.


1      Língua original: alemão.


2      Regulamento do Conselho, de 20 de janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas (JO 2004, L 24, p. 1).


3      Regulamento do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, relativo ao controlo das operações de concentração de empresas (JO 1989, L 395, p. 1), a seguir «Regulamento n.o 4064/89».


4      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a TDF é uma filial da sociedade luxemburguesa Tivana Topco S.A.


5      Regulamento do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.o e 82.o do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1), a seguir «Regulamento n.o 1/2003».


6      Acórdão de 7 de setembro de 2017, Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:643, n.o 32): «Como resulta do artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento n.o 139/2004, apenas este diploma se aplica às concentrações definidas no seu artigo 3.o, às quais o Regulamento n.o 1/2003 não é, em princípio, aplicável». Este caso dizia respeito a uma empresa comum de pleno exercício, na aceção do artigo 3.o, n.o 4, do Regulamento das concentrações comunitárias, que preenchia o conceito de concentração. V., também, Acórdão de 31 de maio de 2018, Ernst & Young (C‑633/16, EU:C:2018:371), e Despacho de 29 de janeiro de 2020, Silgan Closures e Silgan Holdings/Comissão (C‑418/19 P, não publicado, EU:C:2020:43, n.o 50).


7      Acórdãos de 7 de setembro de 2017, Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:643, n.o 33), e de 31 de maio de 2018, Ernst & Young (C‑633/16, EU:C:2018:371, n.o 57).


8      V., a este respeito, Acórdão do Tribunal Geral de 13 de julho de 2022, Illumina/Comissão (T‑227/21, EU:T:2022:447).


9      V., nomeadamente, Acórdãos de 21 de março de 1974, BRT et Société belge des auteurs, compositeurs et éditeurs (127/73, EU:C:1974:25, n.os 15 e seg.), de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 20), e de 14 de março de 2019, Skanska Industrial Solutions e o. (C‑724/17, EU:C:2019:204, n.o 24).


10      V. Acórdão de 26 de junho de 2012, Polónia/Comissão (C‑335/09 P, EU:C:2012:385, n.o 127).


11      V. para uma interpretação conforme com o direito primário: Acórdão de 20 de janeiro de 2021, Comissão/Printeos (C‑301/19 P, EU:C:2021:39, n.os 70 e segs.).


12      V. considerando 1 do Regulamento n.o 1/2003.


13      V., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 1989, Saeed Flugreisen e Silver Line Reisebüro (66/86, EU:C:1989:140, n.o 32).


14      Particularmente claro no Acórdão de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465, n.os 19 a 24).


15      Acórdão de 9 de setembro de 2003, CIF (C‑198/01, EU:C:2003:430, n.os 49 e 50) tendo em conta o Acórdão de 22 de junho de 1989, Costanzo (103/88, EU:C:1989:256, n.o 31).


16      V., a título de exemplo, também «alone» na versão inglesa, «seul» na versão francesa, «solo» na versão italiana e «uitsluitend» na versão neerlandesa.


17      V. também considerando 7 do Regulamento n.o 4064/89.


18      V. considerando 7 do Regulamento das concentrações comunitárias.


19      Acórdãos de 7 de setembro de 2017, Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:643, n.o 31), e de 31 de maio de 2018, Ernst & Young (C‑633/16, EU:C:2018:371, n.o 55), bem como as minhas Conclusões no processo Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:322, n.o 35).


20      Acórdão de 9 de setembro de 2003, CIF (C‑198/01, EU:C:2003:430, n.os 49 e 50). V. também Acórdão de 13 de fevereiro de 1969, Wilhelm e o. (14/68, EU:C:1969:4, n.o 6).


21      V. considerandos 8 e 9 do Regulamento das concentrações comunitárias.


22      V. considerandos 3 a 5 e 8 do Regulamento das concentrações comunitárias.


23      V. considerando 4 e artigos 5.o e 6.o do Regulamento n.o 1/2003.


24      Deste modo, contrariamente à Comissão, as autoridades nacionais da concorrência não podem, em especial, suspender a análise do comportamento das empresas em posição dominante no mercado por falta de «interesse da União»; v. nomeadamente Acórdão de 4 de março de 1999, Ufex e o./Comissão (C‑119/97 P, EU:C:1999:116, n.os 88 e 89); Acórdãos do Tribunal Geral de 16 de maio de 2017, Agria Polska e o./Comissão (T‑480/15, EU:T:2017:339, n.os 34 e segs.) e de 13 de julho de 2022, Design Light & Led Made in Europe e Design Luce & Led Made in Italy/Comissão (T‑886/19, não publicado, EU:T:2022:442, n.os 38 e segs.).


25      V., igualmente, considerando 7 do Regulamento n.o 4064/89.


26      V., igualmente, Despacho de 29 de janeiro de 2020, Silgan Closures e Silgan Holdings/Comissão (C‑418/19 P, não publicado, EU:C:2020:43, n.o 50).


27      Acórdão de 31 de maio de 2018, Ernst & Young (C‑633/16, EU:C:2018:371, n.o 58).


28      V., igualmente, as Conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo Ernst & Young (C‑633/16, EU:C:2018:23, n.os 68 e 69). V., além disso, as minhas Conclusões no processo Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:322, n.o 37) e o Acórdão do Tribunal Geral de 20 de novembro de 2002, Lagardère e Canal+/Comissão (T‑251/00, EU:T:2002:278, n.os 77 a 79).


29      V., nomeadamente, Acórdãos de 14 de novembro de 1996, Tetra Pak/Comissão (C‑333/94 P, EU:C:1996:436, n.o 37), de 15 de março de 2007, British Airways/Comissão (C‑95/04 P, EU:C:2007:166, n.o 57), de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão (C‑280/08 P, EU:C:2010:603, n.o 173), e de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige (C‑52/09, EU:C:2011:83, n.o 26).


30      V., quanto às diferentes formas da denominada prática abusiva de exclusão, a Comunicação da Comissão — Orientação sobre as prioridades da Comissão na aplicação do artigo 82.o do Tratado CE a comportamentos de exclusão abusivos por parte de empresas em posição dominante (JO 2009, C 45, p. 7).


31      Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o. (C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 153).


32      V. as minhas Conclusões no processo Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:322, n.os 36 e 37).


33      Acórdãos de 7 de setembro de 2017, Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:643, n.os 31 a 33) e de 31 de maio de 2018, Ernst & Young (C‑633/16, EU:C:2018:371, n.os 54 e segs.).


34      O mesmo se aplica ao Despacho de 29 de janeiro de 2020, Silgan Closures e Silgan Holdings/Comissão (C‑418/19 P, não publicado, EU:C:2020:43, n.o 50).


35      V., a este respeito, Acórdão do Tribunal Geral de 13 de julho de 2022, Illumina/Comissão (T‑227/21, EU:T:2022:447).


36      V., com mais detalhes, Comunicação da Comissão, Orientações sobre a aplicação do mecanismo de remessa previsto no artigo 22.o do Regulamento das Concentrações para determinadas categorias de casos (JO 2021, C 113, p. 1), n.os 9 e 10, bem como Acórdão do Tribunal Geral de 13 de julho de 2022, Illumina/Comissão (T‑227/21, EU:T:2022:447).


37      V., desde logo, as minhas Conclusões no processo Austria Asphalt (C‑248/16, EU:C:2017:322, n.o 36).


38      Acórdão de 21 de fevereiro de 1973, Europemballage e Continental Can/Comissão (6/72, EU:C:1973:22).


39      Acórdão de 21 de fevereiro de 1973, Europemballage e Continental Can/Comissão (6/72, EU:C:1973:22, n.os 25 e 26).


40      Acórdão de 21 de fevereiro de 1973, Europemballage e Continental Can/Comissão (6/72, EU:C:1973:22, n.o 25).


41      Considerandos 5 a 8 do Regulamento das concentrações comunitárias e considerandos 6 e 7 do Regulamento n.o 4064/89.


42      Acórdão de 21 de fevereiro de 1973, Europemballage e Continental Can/Comissão (6/72, EU:C:1973:22, n.o 25).


43      C‑248/16, EU:C:2017:322, n.o 37, nota 18.


44      Quanto à autorização da Comissão para apenas impor soluções de caráter estrutural em situações excecionais, v. artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003.


45      V. artigos 23.o e 24.o do Regulamento n.o 1/2003.


46      V. Acórdão de 22 de junho de 2021, Latvijas Republikas Saeima (Pontos de penalização) (C‑439/19, EU:C:2021:504, n.os 132 e 133 e jurisprudência referida).