Language of document : ECLI:EU:T:2013:451

Processo T‑333/10

Animal Trading Company (ATC) BV e o.

contra

Comissão Europeia

«Responsabilidade extracontratual — Polícia sanitária — Medidas de salvaguarda em situação de crise — Medidas de proteção relativas à presença de gripe aviária de alta patogenicidade em determinados países terceiros — Proibição de importação de aves selvagens capturadas em meio natural — Violação suficientemente caracterizada de normas jurídicas que conferem direitos aos particulares — Violação manifesta e grave dos limites do poder de apreciação — Diretivas 91/496/CE e 92/65/CE — Princípio da precaução — Dever de diligência — Proporcionalidade»

Sumário — Acórdão do Tribunal Geral (Primeira Secção) de 16 de setembro de 2013

1.      Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Prejuízo — Nexo de causalidade — Condições cumulativas

(Artigo 340.°, segundo parágrafo, TFUE)

2.      Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Violação suficientemente caracterizada do direito da União — Margem de apreciação da instituição reduzida ou inexistente no momento da adoção do ato — Necessidade de ter em conta elementos circunstanciais

(Artigo 340.°, segundo parágrafo, TFUE)

3.      Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Violação suficientemente caracterizada do direito da União — Controlos veterinários e zootécnicos no comércio intracomunitário de animais vivos e de produtos de origem animal — Proibição de importação de aves selvagens em cativeiro em razão do perigo grave para os animais ou a saúde humana — Violação do dever de diligência e do dever de fundamentação

(Artigo 37.° CE; Diretiva 91/496 do Conselho, artigo 18.°, n.° 1; Decisão 2005/760 da Comissão)

4.      Agricultura — Aproximação das legislações em matéria de polícia sanitária — Controlos veterinários e zootécnicos no comércio intracomunitário de animais vivos e de produtos de origem animal — Medidas de salvaguarda em caso de perigo grave para os animais ou a saúde humana — Princípio da precaução — Poder de apreciação da Comissão

[Artigos 3.°, alínea p), CE, 6.° CE, 152.°, n.° 1, CE, 153.°, n.os 1 e 2, CE e 174.°, n.os 1 e 2, CE; Diretiva 91/496 do Conselho, artigo 18.°, n.° 1]

5.      Agricultura — Aproximação das legislações em matéria de polícia sanitária — Controlos veterinários e zootécnicos no comércio intracomunitário de animais vivos e de produtos de origem animal — Diretiva 91/496 — Medidas de salvaguarda contra a gripe aviária de alta patogenicidade — Alcance geográfico alargado apesar da falta de prova científica — Violação do princípio da proporcionalidade

(Diretiva 91/496 do Conselho, artigo 18.°, n.° 1; Decisão 2005/760 da Comissão)

6.      Agricultura — Aproximação das legislações em matéria de polícia sanitária — Controlos veterinários e zootécnicos no comércio intracomunitário de animais vivos e de produtos de origem animal — Adoção pela Comissão de disposições regulamentares que têm por efeito proibir a importação de aves selvagens capturadas em meio natural — Artigos 17.° e 18.° da Diretiva 92/65 — Base jurídica adequada

[Artigos 37.° CE, 152.° CE e 174.° CE; Regulamento n.° 318/2007 da Comissão; Diretivas do Conselho 89/662, artigo 17.°, e 92/65, artigos 17.°, n.os 2, alínea b), 3, alínea c), e 4, alínea a), 18.°, n.° 1, e 26.°]

7.      Agricultura — Aproximação das legislações em matéria de polícia sanitária — Controlos veterinários e zootécnicos no comércio intracomunitário de animais vivos e de produtos de origem animal — Adoção pela Comissão de disposições regulamentares que têm por efeito proibir a importação de aves selvagens capturadas em meio natural — Violação do princípio da igualdade de tratamento — Falta

(Regulamento n.° 318/2007 da Comissão; Diretiva 92/65 do Conselho, artigo 1.°, terceiro parágrafo)

8.      Agricultura — Aproximação das legislações em matéria de polícia sanitária — Controlos veterinários e zootécnicos no comércio intracomunitário de animais vivos e de produtos de origem animal — Regulamento n.° 318/2007 que impõe uma proibição de importação de aves selvagens capturadas em meio natural — Direito de propriedade e livre exercício das atividades profissionais — Restrições justificadas no interesse geral

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 16.° e 17.°; Regulamento n.° 318/2007 da Comissão)

9.      Responsabilidade extracontratual — Responsabilidade por ato lícito — Comportamento abrangido pela competência normativa da União — Exclusão — Limites

(Artigo 340.°, segundo parágrafo, TFUE)

1.      V. texto da decisão.

(cf. n.° 61)

2.      Em matéria de responsabilidade extracontratual da União, quando a instituição em causa disponha apenas de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infração ao direito comunitário pode bastar para provar a existência de uma violação suficientemente caracterizada de uma regra de direito que confere direitos aos particulares. Todavia, não existe nenhuma ligação automática entre, por um lado, a falta de poder de apreciação da instituição em causa e, por outro, a qualificação da infração de violação suficientemente caracterizada do direito da União. Com efeito, ainda que apresente um caráter determinante, o alcance do poder de apreciação da instituição em causa não consubstancia um critério exclusivo. Só a verificação de uma irregularidade que uma administração normalmente prudente e diligente não teria cometido, em circunstâncias análogas, permite fundar a responsabilidade da União. Compete por isso ao juiz da União, após ter determinado, em primeiro lugar, se a instituição em causa dispunha de margem de apreciação, tomar em consideração, em seguida, a complexidade da situação a regular, as dificuldades de aplicação ou de interpretação dos textos, o grau de clareza e de precisão da regra violada e o caráter intencional ou indesculpável do erro cometido.

(cf. n.os 62, 63)

3.      Quanto à existência de responsabilidade extracontratual da União em virtude da adoção da Decisão 2005/760, relativa a determinadas medidas de proteção relacionadas com a gripe aviária de alta patogenicidade em determinados países terceiros no que diz respeito às importações de aves em cativeiro, uma eventual violação suficientemente caracterizada das regras de direito em causa deve assentar numa violação manifesta e grave dos limites do lato poder de apreciação de que o legislador da União dispõe no exercício das competências em matéria de política agrícola comum nos termos do artigo 37.° CE. Com efeito, o exercício desse poder discricionário implica a necessidade de o legislador da União antecipar e avaliar evoluções em matéria ecológica, científica, técnica e económica de natureza complexa e incerta.

A este respeito, ao adotar a Decisão 2005/760, no exercício do poder de apreciação de que dispõe nos termos do artigo 18.°, n.° 1, da Diretiva 91/496, que fixa os princípios relativos à organização dos controlos veterinários dos animais provenientes de países terceiros introduzidos na Comunidade, a Comissão violou, na falta de fundamentação e de elementos factuais concretos e suficientemente sólidos do ponto de vista científico que poderiam justificar a abordagem global na referida decisão, designadamente uma avaliação científica dos riscos tão exaustiva quanto possível, o seu dever de diligência e, assim, uma regra de direito que confere direitos aos particulares, ao adotar um comportamento que uma instituição diligente não teria tido, quando colocada em circunstâncias idênticas. Esta violação do princípio de diligência é suficientemente caracterizada para implicar a responsabilidade extracontratual da União quanto à adoção ilegal da Decisão 2005/760.

(cf. n.os 64, 84, 91, 93)

4.      O princípio da precaução constitui um princípio geral do direito da União que impõe que as autoridades em causa tomem, no exercício preciso das competências que lhes são atribuídas pela regulamentação aplicável, as medidas apropriadas para prevenir certos riscos potenciais para a saúde pública, para a segurança e para o ambiente, fazendo prevalecer as exigências de proteção desses interesses sobre os interesses económicos, sem ter de esperar que a realidade e a gravidade de tais riscos sejam plenamente demonstradas. Em especial, quando for impossível determinar com certeza a existência ou o alcance do risco alegado devido à natureza insuficiente, não conclusiva ou imprecisa dos resultados dos estudos levados a cabo, mas persista a probabilidade de um prejuízo real para a saúde pública na hipótese de o risco se concretizar, esse princípio justifica a adoção de medidas restritivas e objetivas.

Quanto à adoção de uma medida de salvaguarda com base na primeira hipótese do artigo 18.°, n.° 1, da Diretiva 91/496, que fixa os princípios relativos à organização dos controlos veterinários dos animais provenientes de países terceiros introduzidos na Comunidade, a saber, a manifestação ou propagação de «uma zoonose, uma doença ou causa suscetível de constituir perigo grave para os animais ou a saúde humana», a Comissão goza de um amplo poder de apreciação ao abrigo do princípio da precaução. Assim, pode, em conformidade com o referido princípio, adotar medidas de salvaguarda a fim de prevenir a propagação potencial dessas doenças, quando razões graves de polícia sanitária o justifiquem. Além disso, resulta da jurisprudência que as instituições da União dispõem igualmente de um amplo poder de apreciação quanto à determinação do nível de risco julgado inaceitável para a sociedade para efeitos de aplicação do princípio da precaução e, designadamente, a adoção de medidas de salvaguarda.

(cf. n.os 79 a 82)

5.      No que diz respeito à fiscalização jurisdicional das condições de aplicação de tal princípio, tendo em conta o amplo poder de apreciação de que dispõe o legislador comunitário em matéria de política agrícola comum, só o carácter manifestamente inadequado de uma medida adotada neste domínio, em relação ao objetivo que a instituição competente pretende prosseguir, pode afetar a legalidade de tal medida. Assim, não se trata de determinar se as medidas adotadas pelo legislador eram as únicas ou as melhores possível, mas se as mesmas eram manifestamente inadequadas face ao objetivo prosseguido.

Tratando‑se de uma medida de salvaguarda adotada pela Comissão ao abrigo do seu poder de apreciação nos termos do artigo 18.°, n.° 1, da Diretiva 91/496, que fixa os princípios relativos à organização dos controlos veterinários dos animais provenientes de países terceiros introduzidos na Comunidade, e determinando a suspensão temporária das importações de aves selvagens de alcance geral, medida essa tomada com o objetivo de proteger a saúde animal e a saúde humana, essa medida era também manifestamente desproporcionada, pelo menos do ponto de vista geográfico, quando existe uma falta de provas científicas que a possam justificar. Nestas condições, não se provou que não existiam medidas menos restritivas, ou seja, uma suspensão de importação geograficamente mais limitada e, por conseguinte, que a medida foi necessária e adequada à prossecução do objetivo visado.

(cf. n.os 99, 102, 103)

6.      Na medida em que estabelece uma proibição total e indiferenciada de importação no que respeita às aves selvagens capturadas em meio natural, o Regulamento n.° 318/2007, que estabelece condições de sanidade animal aplicáveis às importações para a Comunidade de certas aves e as respetivas condições de quarentena, assenta numa base jurídica adequada, a saber o artigo 17.°, n.° 2, alínea b), o n.° 3, e o artigo 18.°, n.° 1, primeiro e quarto travessão, da Diretiva 92/65 que define as condições de polícia sanitária que regem o comércio e as importações na Comunidade de animais, sémens, óvulos e embriões não sujeitos, no que se refere às condições de polícia sanitária, às regulamentações comunitárias específicas referidas na secção I do anexo A da Diretiva 90/425.

Com efeito, em primeiro lugar, o regime de comércio e importação de animais para a União, conforme estabelecido, designadamente, pela Diretiva 92/65, assenta no princípio de que, por razões de polícia sanitária e de prevenção, qualquer importação de animais provenientes de países terceiros é, em princípio, proibida e só é permitida mediante uma autorização expressa dependente do cumprimento de formalidades e controlos prévios obrigatórios.

Em segundo lugar, resulta do princípio da autorização prévia que a importação para a União só pode ter lugar no respeito das exigências referidas na Diretiva 92/65, designadamente no seu artigo 17.°, n.° 2. Com fundamento nessa disposição, a Comissão está habilitada a excluir ou eliminar determinados países terceiros dessa lista, com a consequência de que qualquer importação de animais provenientes dos referidos países é automaticamente proibida.

Em terceiro lugar, resulta do artigo 17.°, n.° 3, alínea c), e n.° 4, alínea a), primeiro travessão, e do artigo 18.°, n.° 1, primeiro e quarto travessão, da Diretiva 92/65, que a Comissão dispõe de um amplo poder de apreciação para «fixar regras de polícia sanitária que regulem a colocação no mercado de animais e produtos de origem animal», na aceção do quinto considerando da referida diretiva.

Em quarto lugar, ainda que a Diretiva 92/65 seja unicamente baseada no artigo 37.° CE relativo à política agrícola comum, insere‑se igualmente no quadro da execução das políticas da União em matéria de proteção da saúde e do ambiente nos termos do artigo 152.° CE e do artigo 174.° CE e, por isso, deve ser igualmente interpretada à luz do princípio da precaução para cuja execução a Comissão dispõe de um amplo poder de apreciação, tendo em conta, nomeadamente, o disposto no artigo 17.°, n.° 3, alínea c), da Diretiva 92/65.

(cf. n.os 139 a 144, 146, 147)

7.      Quanto à proibição de importação de aves selvagens capturadas em meio natural adotada pelo Regulamento n.° 318/2007, que estabelece condições de sanidade animal aplicáveis às importações para a Comunidade de certas aves e as respetivas condições de quarentena, o mero facto de que um risco de nível equivalente ao apresentado pelas aves selvagens podia, se fosse caso disso, justificar excluir igualmente outras categorias de aves do âmbito de aplicação do mesmo regulamento não era enquanto tal suscetível de justificar uma desigualdade de tratamento, cujo respeito deve ser conjugado com o do princípio da legalidade, não podendo ninguém invocar em seu benefício uma ilegalidade cometida em benefício de outrem. De igual modo, a desigualdade de tratamento entre as aves de companhia e as aves selvagens é unicamente imputável ao regime específico aplicável às aves de companhia referidas no artigo 1.°, terceiro parágrafo, da Diretiva 92/65 que define as condições de polícia sanitária que regem o comércio e as importações na Comunidade de animais, sémens, óvulos e embriões não sujeitos, no que se refere às condições de polícia sanitária, às regulamentações comunitárias específicas referidas na secção I do anexo A da Diretiva 90/425 não pode afetar a legalidade do Regulamento n.° 318/2007, na medida em que este não autoriza as importações de aves selvagens.

(cf. n.os 172, 181)

8.      Quanto às medidas de proibição de importação de aves selvagens capturadas em meio natural, adotadas pelo Regulamento n.° 318/2007, que estabelece condições de sanidade animal aplicáveis às importações para a Comunidade de certas aves e as respetivas condições de quarentena, as referidas medidas prosseguem um objetivo legítimo de interesse geral, a saber, a proteção da saúde humana e da saúde animal face ao risco de propagação do vírus da gripe aviária, e não são manifestamente desproporcionadas para o efeito. Assim, não podem ser consideradas uma intervenção desproporcionada e intolerável que tenha violado o núcleo dos direitos de propriedade e de livre exercício de uma atividade económica. A este respeito, na medida em que o referido regulamento continue a autorizar a importação de aves criadas em cativeiro, a atividade económica de importação dessas aves continua a ser possível.

(cf. n.° 190)

9.      V. texto da decisão.

(cf. n.° 195)