Language of document : ECLI:EU:C:2022:963

Processo C694/20

Orde van Vlaamse Balies e o.

contra

Vlaamse Regering

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Grondwettelijk Hof)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 8 de dezembro de 2022

«Reenvio prejudicial — Cooperação administrativa no domínio da fiscalidade — Troca automática de informações obrigatória em relação aos mecanismos transfronteiriços a comunicar — Diretiva 2011/16/UE, conforme alterada pela Diretiva (UE) 2018/822 — Artigo 8.o‑AB, n.o 5 — Validade — Sigilo profissional do advogado — Dispensa da obrigação de comunicação concedida ao advogado intermediário sujeito ao sigilo profissional — Obrigação de este advogado intermediário notificar qualquer outro intermediário que não seja seu cliente das suas obrigações de comunicação — Artigos 7.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

1.        Aproximação das legislações — Cooperação administrativa no domínio da fiscalidade — Diretiva 2011/16 — Troca de informações a pedido — Intermediário — Conceito — Advogado no exercício da sua atividade — Inclusão

(Diretiva 2011/16 do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2018/822, artigo 3.°, ponto 21)

(cf. n.os 21, 22)

2.        Direitos fundamentais — Respeito da vida privada e familiar — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Consagração na Carta dos Direitos Fundamentais e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem — Nível de proteção assegurado pela Carta não viola o garantido pela referida convenção

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 47.° e 53.°, n.° 3)

(cf. n.° 26)

3.        Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais — Respeito da vida privada e familiar — Restrição ao exercício dos direitos e liberdades consagrados na Carta — Requisitos — Restrição prevista por lei — Respeito do conteúdo essencial dos direitos — Respeito do princípio da proporcionalidade — Prossecução de um objetivo de interesse geral — Alcance — Luta contra o planeamento fiscal agressivo e prevenção do risco de evasão e de fraude fiscais — Inclusão

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.° e 52.°, n.° 1)

(cf. n.os 34‑41, 44)

4.        Aproximação das legislações — Cooperação administrativa no domínio da fiscalidade — Diretiva 2011/16 — Troca de informações a pedido — Obrigações de informação e de cooperação impostas aos advogados — Violação do direito a um processo equitativo — Inexistência

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°; Diretiva 2011/16, artigo 8.° AB, n.° 5)

(cf. n.os 60‑65)

5.        Aproximação das legislações — Cooperação administrativa no domínio da fiscalidade — Diretiva 2011/16 — Troca de informações a pedido — Obrigações de informação e de cooperação impostas aos advogados — Sigilo profissional do advogado — Dispensa da obrigação de comunicação concedida ao advogado intermediário sujeito ao sigilo profissional — Obrigação de este advogado intermediário notificar qualquer outro intermediário, que não seja seu cliente, das suas obrigações de comunicação — Violação do respeito da vida privada e familiar — Invalidade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 7.°; Diretiva 2011/16, artigo 8.° AB, n.° 5)

(cf. n.os 19, 27‑32, 46‑53, 56‑66 e disp.)

Resumo

No que diz respeito à cooperação administrativa das autoridades fiscais nacionais dos Estados‑Membros, uma alteração da Diretiva 2011/16 (1) pela Diretiva 2018/822 estabeleceu uma obrigação de comunicação às autoridades competentes, que incumbe aos intermediários envolvidos em mecanismos transfronteiriços de planeamento fiscal de caráter potencialmente agressivo (2). Esta obrigação de comunicação é imposta a todos os intervenientes que estão habitualmente envolvidos na conceção, comercialização, organização ou administração da aplicação de tais mecanismos, bem como àqueles que prestam assistência ou aconselhamento e, na falta destes, ao próprio contribuinte.

Segundo outra disposição da Diretiva 2011/16 alterada (3), cada Estado‑Membro pode tomar as medidas necessárias para conceder aos intermediários sujeitos ao sigilo profissional envolvidos nesses mecanismos o direito de serem dispensados da obrigação de comunicação quando esta seja contrária ao referido sigilo profissional aplicável por força do direito nacional. Nesse caso, o Estado‑Membro em questão vela por que esses intermediários notifiquem, sem demora, qualquer outro intermediário ou, na inexistência de um tal intermediário, o contribuinte relevante, das suas obrigações de comunicação. Todavia, os intermediários sujeitos ao sigilo profissional só podem beneficiar da dispensa da obrigação de comunicação na medida em que operem dentro dos limites do direito nacional aplicável que regula as suas profissões.

Para responder às exigências introduzidas pela Diretiva 2018/822 e para assegurar que o sigilo profissional não impede as comunicações necessárias, as disposições da regulamentação flamenga relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade que transpõe a referida diretiva preveem, nomeadamente, que um intermediário, quando esteja sujeito ao sigilo profissional, deve notificar a outro intermediário ou aos outros intermediários, por escrito e de forma fundamentada, que não pode cumprir a obrigação de comunicação, transferindo essa obrigação automaticamente para o outro intermediário ou para os outros intermediários.

A Orde van Vlaamse Balies (Ordem dos Advogados flamengos), a Belgian Association of Tax Lawyers (4) e três advogados contestam esta obrigação de notificação imposta ao advogado que atua como intermediário. Com efeito, é impossível cumprir este dever de notificação sem violar o sigilo profissional a que estão sujeitos os advogados. Além disso, a referida obrigação de notificação não é necessária, uma vez que o próprio cliente, assistido ou não pelo advogado, pode informar os outros intermediários e pedir‑lhes que cumpram a sua obrigação de comunicação. Assim, os recorrentes interpuseram no Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional, Bélgica) um recurso para suspensão das disposições de direito nacional em questão e a sua anulação total ou parcial.

O órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a validade da disposição da Diretiva 2011/16 alterada (5) que impõe a obrigação de notificação.

Com o seu acórdão, o Tribunal de Justiça, reunido em Grande Secção, considera esta disposição inválida à luz do artigo 7.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (6), na medida em que a sua aplicação pelos Estados‑Membros tem por efeito impor ao advogado que atua como intermediário, quando está dispensado da obrigação de comunicação devido ao sigilo profissional a que está sujeito, de notificar sem demora qualquer outro intermediário que não seja seu cliente das suas obrigações de comunicação por força dessa disposição.

Apreciação do Tribunal de Justiça

O Tribunal de Justiça precisa, a título preliminar, que a questão só tem por objeto a validade, à luz dos artigos 7.° e 47.° da Carta, da obrigação de notificação prevista pela Diretiva 2011/16 alterada na medida em que a notificação deva ser feita, por um advogado que atua como intermediário, a outro intermediário que não seja seu cliente. Com efeito, quando a notificação é efetuada pelo advogado intermediário ao seu cliente, seja este último intermediário ou o contribuinte relevante, essa notificação não é suscetível de pôr em causa o respeito dos direitos e das liberdades em questão, garantidos pela Carta.

Para verificar a validade da obrigação de notificação, o Tribunal de Justiça interpreta o artigo 7.° da Carta à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a disposição correspondente, a saber, o artigo 8.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (7). Segundo esta jurisprudência, este último artigo protege a confidencialidade de toda e qualquer correspondência entre pessoas singulares e concede uma proteção reforçada à troca de informações entre os advogados e os seus clientes. O Tribunal conclui daí que o artigo 7.° da Carta garante não só a atividade de defesa, mas também o sigilo da consulta jurídica, tanto em relação ao seu conteúdo como à sua existência. Por conseguinte, salvo em situações excecionais, as pessoas que consultam um advogado devem poder legitimamente confiar que o seu advogado não divulgará a ninguém, sem o seu consentimento, que elas o consultam.

Esta proteção conferida ao sigilo profissional dos advogados justifica‑se pela missão fundamental que lhes é atribuída numa sociedade democrática, a saber, a defesa dos litigantes. Esta missão comporta a exigência de que qualquer litigante tenha a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado para obter, de forma independente, aconselhamento jurídico, confiando na sua lealdade.

Ora, a obrigação, expressamente prevista na Diretiva 2011/16 alterada, imposta ao advogado intermediário dispensado da obrigação de declaração, de notificar sem demora aos outros intermediários que não são seus clientes as suas obrigações de comunicação implica necessariamente que estes adquirirem conhecimento da identidade do advogado intermediário que notifica, da sua apreciação de que o mecanismo em causa deve ser comunicado, e do facto de que foi consultado a esse respeito. O Tribunal de Justiça constata que isso implica uma ingerência no direito ao respeito das comunicações entre os advogados e os seus clientes, garantido pelo artigo 7.o da Carta. Além disso, esta obrigação de notificação induz, indiretamente, outra ingerência neste mesmo direito, resultante da divulgação à administração fiscal, pelos terceiros intermediários assim notificados, da identidade e da consulta ao advogado intermediário.

No que se refere a uma eventual justificação destas ingerências, o Tribunal de Justiça recorda que o direito ao respeito das comunicações entre os advogados e os seus clientes pode ser restringido desde que essas restrições estejam previstas por lei, respeitem o conteúdo essencial desses direitos e, na observância do princípio da proporcionalidade, sejam necessárias e correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

No caso em apreço, o Tribunal de Justiça constata que quer o princípio da legalidade e quer o conteúdo essencial do direito ao respeito das comunicações entre os advogados e os seus clientes são respeitados.

Quanto à proporcionalidade da ingerência, o Tribunal de Justiça recorda que a alteração introduzida em 2018 à Diretiva 2011/16 enquadra‑se numa cooperação fiscal internacional que tem por objetivo contribuir para a prevenção do risco de evasão e de fraude fiscais, que constituem objetivos de interesse geral reconhecidos pela União.

Todavia, mesmo admitindo que a obrigação de notificação que incumbe ao advogado sujeito ao sigilo profissional, seja efetivamente adequada para contribuir para a luta contra o planeamento fiscal agressivo e a prevenção do risco de evasão e de fraude fiscais, não é necessária para alcançar esses objetivos e, nomeadamente, para assegurar que as informações relativas aos mecanismos transfronteiriços sejam transmitidas às autoridades competentes. Com efeito, todos os intermediários estão, em princípio, obrigados a transmitir a estas autoridades as referidas informações. Por conseguinte, nenhum intermediário pode alegar utilmente que ignorava as obrigações de comunicação, claramente enunciadas na diretiva, às quais está direta e individualmente sujeito.

Além disso, uma vez que cada intermediário só está dispensado da obrigação de comunicação se puder provar que esta já foi efetuada por outro intermediário, não há que recear que os intermediários confiem, sem verificarem, que o advogado intermediário efetue a comunicação exigida. De resto, ao prever que o sigilo profissional pode conduzir a uma dispensa da obrigação de comunicação, a diretiva converte o advogado intermediário numa pessoa da qual os outros intermediários não podem, a priori, esperar nenhuma iniciativa suscetível de os desonerar das suas próprias obrigações de comunicação.

Quanto à divulgação, pelos terceiros intermediários notificados, da identidade e da consulta do advogado intermediário à administração fiscal, esta também não se afigura necessária para a prossecução dos objetivos da diretiva. Com efeito, a obrigação de comunicação que incumbe aos outros intermediários não sujeitos ao sigilo profissional e, na falta desses intermediários, a que incumbe ao contribuinte relevante, garantem, em princípio, que a administração fiscal seja informada. Além disso, a administração fiscal pode, depois de ter recebido essa informação, pedir informações adicionais diretamente ao contribuinte relevante, que poderá então dirigir‑se ao seu advogado para que este o assista, ou proceder a uma ação inspetiva da situação fiscal deste contribuinte.

Assim, o Tribunal de Justiça declara que a obrigação de notificação prevista na diretiva da União viola o direito ao respeito das comunicações entre o advogado e o seu cliente, garantido pelo artigo 7.° da Carta, na medida em que prevê que o advogado intermediário, sujeito ao sigilo profissional, é obrigado a notificar a qualquer outro intermediário que não seja seu cliente as suas obrigações de comunicação.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça afasta a aplicabilidade ao caso em apreço do artigo 47.° da Carta, uma vez que esta pressupõe a existência de uma ligação com um processo judicial. Todavia, tal ligação não existe no caso em apreço, uma vez que a obrigação de notificação se constitui numa fase precoce, o mais tardar quando o mecanismo transfronteiriço a declarar acaba de ser finalizado e está pronto a ser aplicado, portanto fora do âmbito de um processo judicial ou da sua preparação. Por conseguinte, dado que a obrigação de notificação substitui, para o advogado intermediário sujeito ao sigilo profissional, a obrigação de comunicação não implica ingerência no direito a um processo equitativo, garantido pelo artigo 47.° da Carta.


1      Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade e que revoga a Diretiva 77/799/CEE (JO 2011, L 64, p. 1), conforme alterada pela Diretiva (UE) 2018/822 do Conselho, de 25 de maio de 2018, que altera a Diretiva 2011/16/UE no que diz respeito à troca automática de informações obrigatória no domínio da fiscalidade em relação aos mecanismos transfronteiriços a comunicar (JO 2018, L 139, p. 1) (a seguir «Diretiva 2011/16 alterada»).


2.      Artigo 8.°‑AB, n.° 1, da Diretiva 2011/16 alterada, conforme inserido pela Diretiva 2018/822.


3      Artigo 8.°‑AB, n.° 5, da Diretiva 2011/16 alterada, conforme inserido pela Diretiva 2018/822.


4      Uma associação profissional de advogados.


5      Artigo 8.°‑AB, n.° 5, da Diretiva 2011/16 alterada.


6      A seguir «Carta».


7      Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950.