Language of document : ECLI:EU:C:2019:218

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

19 de março de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Sistema de Dublim — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Transferência do requerente de asilo para o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional — Conceito de “fuga” — Modalidades de prorrogação do prazo de transferência — Artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Risco sério de trato desumano ou degradante no termo do procedimento de asilo — Condições de vida dos beneficiários de proteção internacional no referido Estado‑Membro»

No processo C‑163/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgerichtshof Baden‑Württemberg (Tribunal Administrativo Superior de Bade‑Vurtemberga, Alemanha), por Decisão de 15 de março de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de abril de 2017, no processo

Abubacarr Jawo

contra

Bundesrepublik Deutschland,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Prechal, M. Vilaras, E. Regan, F. Biltgen, K. Jürimäe e C. Lycourgos, presidentes de secção, A. Rosas, E. Juhász, M. Ilešič (relator), J. Malenovský, L. Bay Larsen e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: M. Wathelet,

secretário: M. Aleksejev, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 8 de maio de 2018,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Jawo, por B. Münch e U. Bargon, Rechtsanwälte,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze, R. Kanitz, M. Henning e V. Thanisch, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo belga, por C. Van Lul e P. Cottin, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por L. Cordi e L. D’Ascia, avvocati dello Stato,

–        em representação do Governo húngaro, por M. M. Tátrai, Z. Fehér e G. Koós, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo neerlandês, por J. Langer, M. Bulterman, C. S. Schillemans e M. Gijzen, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Brandon e C. Crane, na qualidade de agentes, assistidos por D. Blundell, barrister,

–        em representação do Governo suíço, por E. Bichet, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Condou‑Durande e C. Ladenburger, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 25 de julho de 2018,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 2, e do artigo 29.o, n.os 1 e 2, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31; a seguir «Regulamento Dublim III»), bem como do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Abubacarr Jawo à Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha) a respeito de uma decisão de transferência do interessado para Itália.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        Sob a epígrafe «Proibição da tortura», o artigo 3.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), estipula:

«Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.»

 Direito da União

 Carta

4        Nos termos do artigo 1.o da Carta, sob a epígrafe «Dignidade do ser humano»:

«A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.»

5        O artigo 4.o da Carta, sob a epígrafe «Proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes», enuncia:

«Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

6        O artigo 47.o da Carta, sob a epígrafe «Direito à ação e a um tribunal imparcial», enuncia, no seu primeiro parágrafo:

«Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.»

7        O artigo 51.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.o 1:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.»

8        O artigo 52.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios», enuncia, no seu n.o 3:

«Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela [CEDH], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.»

 Regulamento Dublim III

9        O Regulamento Dublim III revogou e substituiu o Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise [d]e um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1; a seguir «Regulamento Dublim II»). Os considerandos 4, 5, 19, 32 e 39 do Regulamento Dublim III enunciam:

«(4)      As conclusões do Conselho [Europeu, na sua reunião especial] de Tampere[, em 15 e 16 de outubro de 1999,] precisaram igualmente que o [sistema europeu comum de asilo] deverá incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo.

(5)      Este método deverá basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deverá permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

[…]

(19)      A fim de garantir a proteção efetiva dos direitos das pessoas em causa, deverão ser previstas garantias legais e o direito efetivo de recurso contra as decisões de transferência para o Estado‑Membro responsável, nos termos, nomeadamente, do artigo 47.o da [Carta]. A fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso contra essas decisões deverá abranger a análise da aplicação do presente regulamento e da situação jurídica e factual no Estado‑Membro para o qual o requerente é transferido.

[…]

(32)      No que se refere ao tratamento das pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, os Estados‑Membros encontram‑se vinculados pelas obrigações que lhes incumbem por força de instrumentos de direito internacional, nomeadamente pela jurisprudência pertinente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

[…]

(39)      O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos, nomeadamente, pela [Carta]. Em particular, o presente regulamento visa assegurar o pleno respeito do direito de asilo garantido pelo artigo 18.o da [Carta], bem como dos direitos nela reconhecidos nos artigos 1.o, 4.o, 7.o, 24.o e 47.o Por conseguinte, o presente regulamento deverá ser aplicado em conformidade.»

10      Nos termos do artigo 2.o, alínea n), do Regulamento Dublim III, entende‑se por «[r]isco de fuga», para efeitos deste regulamento, «o risco de que um requerente, um nacional de um país terceiro ou um apátrida, objeto de um procedimento de transferência, possa fugir, avaliado num caso individual com base em critérios objetivos definidos pela lei».

11      O artigo 3.o do Regulamento Dublim III, sob a epígrafe «Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.

2.      Caso o Estado‑Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado‑Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado‑Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado‑Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da [Carta], o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado‑Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar‑se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado‑Membro designado com base nos critérios estabelecidos no capítulo III ou para o primeiro Estado‑Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável passa a ser o Estado‑Membro responsável.

[…]»

12      O capítulo VI do Regulamento Dublim III, intitulado «Procedimentos de tomada e retomada a cargo», contém, nomeadamente, os artigos 27.o e 29.o deste regulamento.

13      O artigo 27.o do Regulamento Dublim III, sob a epígrafe «Vias de recurso», dispõe, no seu n.o 1:

«O requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.»

14      A secção VI do capítulo VI do Regulamento Dublim III, consagrada às transferências dos requerentes para o Estado‑Membro responsável, contém o artigo 29.o deste regulamento, sob a epígrafe «Modalidades e prazos», que prevê:

«1.      A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

Se as transferências para o Estado‑Membro responsável forem efetuadas sob forma de uma partida controlada ou sob escolta, os Estados‑Membros devem garantir que são realizadas em condições humanas e no pleno respeito dos direitos fundamentais e da dignidade humana.

[…]

2.      Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. Este prazo pode ser alargado para um ano, no máximo, se a transferência não tiver sido efetuada devido a retenção da pessoa em causa, ou para 18 meses, em caso de fuga.

[…]

4.      A Comissão adota atos de execução que regulem os procedimentos de consulta e o intercâmbio de informações entre os Estados‑Membros, em especial em caso de transferências adiadas ou atrasadas, as transferências na sequência de aceitação por omissão, ou em casos de transferência de menores ou dependentes e casos de transferência controlada. […]»

 Regulamento de Execução

15      O Regulamento (CE) n.o 1560/2003 da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento (CE) n.o 343/2003 (JO 2003, L 222, p. 3), conforme alterado pelo Regulamento de Execução (UE) n.o 118/2014 da Comissão, de 30 de janeiro de 2014 (JO 2014, L 39, p. 1) (a seguir «Regulamento de Execução»), contém as modalidades de aplicação do Regulamento Dublim II e, agora, as do Regulamento Dublim III.

16      O capítulo III do Regulamento de Execução, intitulado «Execução da transferência», contém, nomeadamente, o artigo 9.o deste regulamento, o qual, sob a epígrafe «Adiamento da transferência e transferências tardias», dispõe:

«1.      O Estado‑Membro responsável deve ser informado sem demora de qualquer adiamento da transferência devido quer a um procedimento de recurso ou de revisão com efeitos suspensivos, quer a circunstâncias materiais tais como o estado de saúde do requerente, a indisponibilidade do meio de transporte ou o facto de o requerente se ter eximido à execução da transferência.

1‑A.      Sempre que uma transferência tenha sido adiada a pedido do Estado‑Membro que procede à transferência, este último e o Estado‑Membro responsável devem retomar a comunicação para que possa ser organizada uma nova transferência o mais rapidamente possível, em conformidade com o artigo 8.o, e o mais tardar duas semanas a partir do momento em que as autoridades tomem conhecimento da cessação das circunstâncias que estiveram na origem do atraso ou do adiamento. Nesse caso, antes da transferência, deve ser enviado um formulário‑tipo atualizado para a transferência de dados antes de uma transferência, como constante do anexo VI.

2.      Incumbe ao Estado‑Membro que, por um dos motivos enunciados no artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento [Dublim III], não pode proceder à transferência no prazo normal de seis meses a contar da data da aceitação do pedido de tomada a cargo ou de retomada a cargo da pessoa em causa ou da decisão final sobre um recurso ou revisão com efeitos suspensivos, informar o Estado‑Membro responsável de tal facto antes do termo deste prazo. Caso contrário, a responsabilidade pelo tratamento do pedido de proteção internacional e as outras obrigações decorrentes do Regulamento [Dublim III] incumbem ao Estado‑Membro requerente, em conformidade com o disposto no artigo 29.o, n.o 2, do referido regulamento.

[…]»

 Diretiva Qualificação

17      O capítulo VII da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9; a seguir «Diretiva Qualificação»), no qual figuram os artigos 20.o a 35.o desta diretiva, define o conteúdo da proteção internacional.

18      O artigo 34.o da Diretiva Qualificação, sob a epígrafe «Acesso aos mecanismos de integração», prevê:

«A fim de facilitar a integração dos beneficiários de proteção internacional na sociedade, os Estados‑Membros devem assegurar o acesso a programas de integração que considerem apropriados, a fim de ter em conta as necessidades específicas dos beneficiários do estatuto de refugiado ou do estatuto de proteção subsidiária, ou criar condições prévias que garantam o acesso a esses programas.»

 Diretiva Acolhimento

19      A Diretiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 96; a seguir «Diretiva Acolhimento»), prevê, no seu artigo 5.o, sob a epígrafe «Informação»:

«1.      Os Estados‑Membros devem informar os requerentes, num prazo razoável nunca superior a 15 dias após a apresentação do seu pedido de proteção internacional, pelo menos das vantagens de que poderão beneficiar e das obrigações que terão de respeitar no âmbito das condições de acolhimento.

[…]

2.      Os Estados‑Membros asseguram que as informações referidas no n.o 1 são fornecidas por escrito e numa língua que os requerentes compreendam ou seja razoável presumir que compreendem. Essas informações podem também ser prestadas oralmente, quando for adequado.»

20      O artigo 7.o da Diretiva Acolhimento, sob a epígrafe «Residência e liberdade de circulação», dispõe:

«1.      Os requerentes podem circular livremente no território do Estado‑Membro de acolhimento ou no interior de uma área que lhes for fixada por esse Estado‑Membro. A área fixada não deve afetar a esfera inalienável da vida privada e deve deixar uma margem de manobra suficiente para garantir o acesso a todos os benefícios previstos na presente diretiva.

2.      Os Estados‑Membros podem decidir da residência do requerente por razões de interesse público, de ordem pública ou, sempre que necessário, para o rápido tratamento e acompanhamento eficaz do seu pedido de proteção internacional.

3.      Os Estados‑Membros podem sujeitar a atribuição das condições materiais de acolhimento à residência efetiva dos requerentes de asilo num local determinado, a fixar pelos Estados‑Membros. Essa decisão, que pode ter caráter genérico, deve ser tomada de forma individual e ser estabelecida no direito nacional.

4.      Os Estados‑Membros devem prever a possibilidade de conceder aos requerentes uma autorização temporária de abandonar o local de residência referido nos n.os 2 e 3 e/ou a área fixada referida no n.o 1. As decisões devem ser tomadas de forma individual, objetiva e imparcial e, no caso de serem negativas, devem ser fundamentadas.

O requerente não carece de autorização para comparecer junto das autoridades e dos tribunais, se a sua comparência for necessária.

5.      Os Estados‑Membros devem exigir aos requerentes que comuniquem o seu endereço às autoridades competentes e que as notifiquem, o mais rapidamente possível, de qualquer alteração de endereço.»

 Direito alemão

21      O § 60a da Gesetz über den Aufenthalt, die Erwerbstätigkeit und die Integration von Ausländern im Bundesgebiet (Lei relativa à residência, ao trabalho e à integração de estrangeiros no território federal; a seguir «Aufenthaltsgesetz»), conforme alterada, com efeitos a partir de 6 de agosto de 2016, pela Integrationsgesetz (Lei relativa à integração), de 31 de julho de 2016 (BGBl. 2016 I, p. 1939; a seguir «Integrationsgesetz»), tem por epígrafe «Suspensão temporária do afastamento (tolerância)» e dispõe, no seu n.o 2:

«Será suspenso o afastamento de um estrangeiro enquanto esse afastamento for impossível por razões de facto e de direito e não tenha sido concedida uma autorização de permanência. […] É possível [emitir um documento de concessão de] um período de tolerância a um estrangeiro (Duldung) (a seguir “documento de tolerância”) se razões prementes de índole humanitária ou pessoal, ou interesses públicos importantes, exigirem a manutenção da sua presença temporária no território federal. É concedido um documento de tolerância por razões prementes de índole pessoal, na aceção da terceira frase, sempre que o estrangeiro frequente ou tenha frequentado, na Alemanha, [uma] formação profissional qualificada numa profissão técnica reconhecida pelo Estado ou por entidade equiparável, não estiverem preenchidos os requisitos a que se refere o n.o 6 e não [estiver] prevista a adoção de medidas concretas com vista à cessação da residência. Nos casos a que se refere a quarta frase, o [documento] de tolerância é [emitido] pela duração da formação profissional, tal como prevista no contrato de formação. […]»

22      O § 29 da Asylgesetz (Lei relativa ao direito de asilo), conforme alterada, com efeitos a partir de 6 de agosto de 2016, pela Integrationsgesetz (a seguir «AsylG»), tem por epígrafe «Pedidos inadmissíveis» e prevê:

«(1)      Um pedido de asilo é inadmissível quando

1.      Outro Estado‑Membro seja responsável pela análise do pedido de asilo

a)      Nos termos do [Regulamento Dublim III], ou

b)      Nos termos de outras disposições do direito da União Europeia ou de convenção internacional,

[…]»

23      O § 31 da AsylG, sob a epígrafe «Decisão do Serviço competente em matéria de pedidos de asilo», dispõe, no seu n.o 3:

«Nos casos a que se refere o n.o 2 e sempre que forem proferidas decisões acerca de pedidos de asilo inadmissíveis, impõe‑se verificar se estão preenchidos os pressupostos [estabelecidos no] § 60, n.os 5 ou 7, da Aufenthaltsgesetz. Pode‑se prescindir dessa verificação quando o estrangeiro for reconhecido como beneficiário do direito de asilo ou quando lhe for reconhecido o estatuto de proteção internacional na aceção do § 1, n.o 1, ponto 2.»

24      O § 34a da AsylG, sob a epígrafe «Ordem de afastamento», prevê:

«(1)      Caso o estrangeiro deva ser afastado para um país terceiro seguro (§ 26a) ou para o Estado responsável pelo procedimento de asilo (§ 29, n.o 1, ponto 1), o Serviço ordena o afastamento para esse Estado logo que se constate que está em condições de ser executado. O mesmo se aplica ainda que o estrangeiro tenha apresentado o pedido de asilo junto de outro Estado responsável pelo procedimento de asilo, segundo regras da União Europeia ou de convenção internacional, ou tenha desistido do referido pedido antes da prolação da decisão do Serviço. A adoção da medida não carece de aviso prévio nem de fixação de prazo. Caso não seja possível ordenar o afastamento nos termos da primeira ou da segunda frase, o Serviço notifica o afastamento iminente para o Estado em causa.

(2)      Os requerimentos a que se refere o § 80, n.o 5, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (Verwaltungsgerichtsordnung), que tenham por objeto a ordem de afastamento, devem ser apresentados no prazo de uma semana após a respetiva notificação. Em caso de apresentação tempestiva do requerimento, o afastamento fica suspenso até que seja proferida decisão judicial. […]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

25      A. Jawo é, segundo as suas próprias declarações, nacional da Gâmbia, nascido em 23 de outubro de 1992.

26      Após ter abandonado a Gâmbia em 5 de outubro de 2012, A. Jawo chegou, por via marítima, a Itália, de onde prosseguiu viagem para a Alemanha. Em 23 de dezembro de 2014, apresentou um pedido de asilo neste último Estado‑Membro.

27      Uma vez que, segundo a base de dados Eurodac, A. Jawo já tinha apresentado um pedido de asilo em Itália, o Bundesamt für Migration und Flüchtlinge (Serviço Federal para as Migrações e os Refugiados, Alemanha) (a seguir «Serviço») pediu às autoridades italianas, em 26 de janeiro de 2015, para retomarem o interessado a cargo. Essas autoridades não deram resposta a este pedido.

28      Por Decisão de 25 de fevereiro de 2015, o Serviço, por um lado, declarou o pedido de asilo de A. Jawo não admissível e, por outro, ordenou o seu afastamento para Itália.

29      Em 4 de março de 2015, A. Jawo interpôs recurso desta decisão e, em 12 de março de 2015, apresentou um pedido de medidas provisórias. Por Despacho de 30 de abril de 2015, o Verwaltungsgericht Karlsruhe (Tribunal Administrativo de Karlsruhe, Alemanha), num primeiro momento, declarou este pedido não admissível, pelo facto de ter sido intempestivamente apresentado.

30      Em 8 de junho de 2015, A. Jawo devia ter sido transferido para Itália. Todavia, esta transferência não ocorreu pelo facto de A. Jawo não estar presente na estrutura de alojamento coletivo onde estava alojado, em Heidelberga (Alemanha). Interrogados a este respeito pelo Regierungspräsidium Karlsruhe (Governo da Região de Karlsruhe, Alemanha), os Serviços Técnicos para Emergências Habitacionais de Heidelberga indicaram, em 16 de junho de 2015, que, segundo o responsável pela infraestrutura, A. Jawo já não se encontrava nessa estrutura de alojamento, há algum tempo.

31      Através de um formulário datado de 16 de junho de 2015, o Serviço informou as autoridades italianas de que, segundo as informações obtidas nesse mesmo dia, não era possível, naquele momento, proceder à transferência de A. Jawo por este se encontrar em fuga. Era igualmente indicado nesse formulário que a transferência do interessado teria lugar, o mais tardar, em 10 de agosto de 2016, «em conformidade com o artigo 29.o, n.o 2, do [Regulamento Dublim III]».

32      É pacífico que, no dia em que o formulário em causa foi notificado às autoridades italianas, A. Jawo estava novamente presente em Heidelberga, mas que esta informação não era do conhecimento do Serviço. Todavia, não está demonstrado que, no momento exato em que A. Jawo se apresentou em Heidelberga, o Serviço já tivesse comunicado esse formulário às autoridades italianas.

33      A propósito da sua ausência, A. Jawo declarou que, no início do mês de junho de 2015, tinha ido visitar um amigo que vive em Freiberg am Neckar (Alemanha). Tendo recebido da pessoa com quem partilhava o quarto em Heidelberga uma chamada telefónica a informá‑lo de que os serviços da polícia o procuravam, decidiu voltar a Heidelberga. Todavia, uma vez que não dispunha do dinheiro necessário para financiar o trajeto entre essas duas cidades, teve de o pedir emprestado. De regresso a Heidelberga, dirigiu‑se ao Sozialamt (Serviços Sociais), onde perguntou se ainda dispunha do seu quarto, o que lhe foi confirmado.

34      A. Jawo declarou, por outro lado, que ninguém lhe havia indicado que devia ter assinalado a sua ausência.

35      Em 3 de fevereiro de 2016, uma segunda tentativa de transferência falhou pelo facto de A. Jawo se ter recusado a embarcar no avião que devia assegurar a sua transferência.

36      Na sequência de um novo pedido de medidas provisórias, o Verwaltungsgericht Karlsruhe (Tribunal Administrativo de Karlsruhe), por Decisão de 18 de fevereiro de 2016, ordenou o efeito suspensivo do recurso interposto por A. Jawo em 4 de março de 2015.

37      Por Acórdão de 6 de junho de 2016, o referido órgão jurisdicional negou provimento a esse recurso.

38      No quadro do recurso interposto desse acórdão para o Verwaltungsgerichtshof Baden‑Württemberg (Tribunal Administrativo Superior de Bade‑Vurtemberga, Alemanha), A. Jawo alegou, nomeadamente, que não tinha fugido em junho de 2015 e que o Serviço não podia validamente prorrogar o prazo de transferência. Além disso, alegou que a sua transferência para Itália seria ilícita pelo facto de, nesse Estado‑Membro, existirem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III.

39      Durante o processo de recurso, o Serviço tomou conhecimento de que havia sido concedido ao recorrente, em Itália, um título nacional de residência por motivos humanitários, válido por um ano, que tinha expirado em 9 de maio de 2015. O órgão jurisdicional de reenvio considera, todavia, que a emissão desse título de residência não teve como consequência tornar inaplicável o Regulamento Dublim III, uma vez que o referido título não tinha conferido a A. Jawo proteção internacional, na aceção da Diretiva Qualificação.

40      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, para poder dirimir o litígio no processo principal, deve, antes de mais, responder à questão de saber se, em 16 de junho de 2015, ou seja, na data da notificação feita pelo Serviço ao Ministério do Interior italiano, o recorrente estava em «fuga», na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III.

41      Neste contexto, observa que o prazo de transferência de seis meses previsto no artigo 29.o, n.o 1, desse regulamento já tinha expirado na data da adoção da Decisão do Verwaltungsgericht Karlsruhe (Tribunal Administrativo de Karlsruhe), de 18 de fevereiro de 2016, que ordenou o efeito suspensivo do recurso interposto por A. Jawo, de modo que essa decisão já não era suscetível de prorrogar ou de interromper esse prazo.

42      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, embora se deva basear na definição do conceito de «risco de fuga» que consta do artigo 2.o, alínea n), do Regulamento Dublim III, que, na sua versão em língua alemã, se refere ao receio de o interessado «se subtrair» através da fuga ao procedimento de transferência, há que considerar que só está em causa um comportamento adotado intencionalmente pela pessoa em causa, a fim de evitar a transferência. Contudo, há razões válidas para considerar que, para efeitos da aplicação do artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III, basta que a autoridade competente não tenha tido conhecimento do local de residência do interessado à data da tentativa de transferência e no momento em que informou desse facto a autoridade competente do Estado‑Membro requerido. Com efeito, nada permite considerar que esta disposição se destina a punir um comportamento reprovável do interessado. Esta disposição tem por objetivo permitir assegurar o funcionamento efetivo do sistema de determinação do Estado‑Membro responsável, elaborado pelo legislador da União (a seguir «sistema de Dublim»), que poderia ser consideravelmente perturbado se as transferências fossem impedidas por razões alheias à esfera de responsabilidade do Estado‑Membro requerente. Por outro lado, pode ser difícil provar que as pessoas em causa se afastaram do seu local de residência com o objetivo de impedir a sua transferência.

43      Em seguida, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre as condições em que é desencadeada a prorrogação do prazo de seis meses, previsto no artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III, em caso de fuga. Salienta, a este respeito, que, embora a redação dessa disposição pareça, à primeira vista, sugerir que os Estados‑Membros devem chegar a acordo sobre esta questão, essa disposição pode igualmente dar lugar a uma interpretação segundo a qual o Estado‑Membro requerente pode decidir unilateralmente essa prorrogação do prazo, informando o Estado‑Membro requerido, antes do termo do prazo inicial de seis meses, do facto de a transferência não poder ocorrer dentro desse prazo e que será efetuada num prazo que o Estado‑Membro requerente indica nessa ocasião. Esta última interpretação, inspirada no artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento de Execução, pode ser privilegiada, a fim de garantir a efetividade do procedimento de transferência.

44      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se se, para apreciar a legalidade da transferência, deve ter em conta as condições de vida a que o requerente ficaria sujeito no Estado‑Membro requerido, caso o seu pedido de proteção internacional fosse deferido nesse Estado‑Membro, nomeadamente o risco sério de aí sofrer um trato contrário ao artigo 4.o da Carta.

45      Este órgão jurisdicional considera, a este respeito, que a análise da existência de falhas sistémicas, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III, não se pode limitar ao procedimento de asilo e às condições de acolhimento encontradas durante esse procedimento, devendo ser igualmente tida em conta a situação ulterior. Assim, a concessão de melhores condições de acolhimento durante o referido procedimento é insuficiente se a pessoa em causa, uma vez concedida a proteção internacional, puder ser confrontada com uma situação de indigência. A obrigação de efetuar tal análise global da situação do requerente antes da sua transferência constitui a contrapartida necessária do sistema de Dublim, que proíbe que as pessoas que requerem proteção escolham livremente o seu país de asilo. Em todo o caso, esta obrigação decorre do artigo 3.o da CEDH.

46      O órgão jurisdicional de reenvio salienta, por outro lado, que é certo que a Diretiva Qualificação apenas prevê, regra geral, a igualdade de tratamento em relação aos próprios nacionais do Estado‑Membro em causa. Esse «tratamento nacional» poderia, todavia, revelar‑se insuficiente para proteger a dignidade das pessoas a quem foi concedida proteção internacional, na medida em que estas, geralmente, estão vulneráveis e desenraizadas e não estão em condições de fazer valer efetivamente os direitos que o Estado‑Membro de acolhimento lhes garante. A fim de permitir a essas pessoas atingirem um nível comparável ao dos nacionais desse Estado‑Membro e poderem exercer efetivamente esses direitos, o artigo 34.o da Diretiva Qualificação exige que os Estados‑Membros assegurem às referidas pessoas um acesso efetivo a programas de integração, os quais desempenham uma função compensatória específica. Esta norma constitui uma exigência mínima, bem como a justificação do sistema de Dublim.

47      O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se, nomeadamente, ao relatório da Organização Suíça de Ajuda aos Refugiados, com o título «Condições de acolhimento em Itália», apresentado em agosto de 2016, que contém elementos concretos que permitem concluir que os beneficiários de proteção internacional nesse Estado‑Membro correm o risco de viver à margem da sociedade, sem domicílio fixo e na indigência. Segundo esse relatório, o caráter pouco desenvolvido do sistema social do referido Estado‑Membro é, no que respeita à população italiana, compensado pela solidariedade familiar, que não existe nos beneficiários de proteção internacional. O referido relatório menciona, além disso, uma quase inexistência, em Itália, de programas de integração de caráter compensatório e, nomeadamente, o caráter muito aleatório do acesso aos indispensáveis cursos de línguas. Por último, este relatório revela que, atendendo ao forte aumento do número de refugiados nos últimos anos, as significativas falhas estruturais do sistema social estatal não podem ser compensadas pelas organizações não governamentais e pelas Igrejas.

48      Nestas condições, o Verwaltungsgerichtshof Baden‑Württemberg (Tribunal Administrativo Superior de Bade‑Vurtemberga, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um requerente de asilo só se encontra em fuga, na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento [Dublim III], se deliberada e conscientemente se subtrair à ação das autoridades nacionais com competência para a execução da transferência, de modo a frustrar ou dificultar a transferência, ou basta que não permaneça na habitação que lhe foi atribuída, durante um período mais longo de tempo, e não informe as autoridades do seu paradeiro, impedindo assim a execução de uma transferência previamente planeada?

A pessoa em causa pode invocar a […] aplicação correta da [referida] disposição e alegar, em ação intentada contra a decisão de transferência, que o prazo de seis meses para a transferência expirou, porque não se encontrava em fuga?

2)      Para que se verifique o alargamento do prazo a que se refere o artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento [Dublim III], basta que o Estado‑Membro que procede à transferência informe o Estado‑Membro responsável, […] antes do termo do prazo, de que a pessoa em causa se encontra em fuga e simultaneamente indique um prazo concreto, que não exceda os 18 meses, para [a] execução da transferência, ou o alargamento só é possível se os Estados‑Membros envolvidos estabelecerem concertadamente um novo prazo?

3)      A transferência do requerente de asilo para o Estado‑Membro responsável é inadmissível se, caso lhe seja reconhecido estatuto de proteção internacional, ficar aí exposto, tendo em conta as condições de vida que então serão expectáveis, a um risco sério de ser sujeito a um trato desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.o da [Carta]?

Esta questão ainda cai no âmbito de aplicação do direito da União?

Quais os critérios de direito da União ao abrigo dos quais se impõe apreciar as condições de vida de uma pessoa à qual foi reconhecido o estatuto de proteção internacional?»

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

49      A pedido do órgão jurisdicional de reenvio, a Secção designada examinou a necessidade de submeter o presente processo à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Em 24 de abril de 2017, essa Secção decidiu, ouvido o advogado‑geral, não deferir esse pedido.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

50      Através da sua primeira questão, que se divide em duas partes, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, por um lado, se o artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, para se poder considerar que houve fuga da pessoa em causa, na aceção desta disposição, é necessário que ela se tenha subtraído deliberadamente às autoridades competentes, com o objetivo de frustrar a sua transferência, ou se, pelo contrário, é suficiente, a este respeito, que essa pessoa tenha abandonado o local de residência que lhe foi atribuído, sem essas autoridades terem sido informadas da sua ausência, de modo que a transferência não pode ser executada.

51      Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, no quadro de um processo contra uma decisão de transferência, a pessoa em causa pode invocar o artigo 29.o, n.o 2, deste regulamento, sustentando que o prazo de transferência expirou porque não tinha fugido.

52      No que respeita à primeira parte desta primeira questão, importa salientar que as disposições do artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, e n.o 2, do Regulamento Dublim III preveem, no termo do prazo imperativo de seis meses, a transferência de pleno direito da responsabilidade pela análise de um pedido de proteção internacional para o Estado‑Membro requerente, salvo se esse prazo tiver sido excecionalmente prorrogado por um ano, no máximo, em razão da impossibilidade de proceder à transferência do interessado devido à sua retenção, ou por dezoito meses, no máximo, em caso de fuga, casos em que a transferência da responsabilidade pela análise do seu pedido ocorre no termo do prazo assim fixado.

53      No que se refere à questão de saber em que condições se pode considerar que houve «fuga» do requerente, na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III, há que observar que este regulamento não contém indicações a este respeito.

54      Com efeito, o Regulamento Dublim III não define o conceito de «fuga» e nenhuma das suas disposições especifica expressamente se este conceito pressupõe que o interessado tenha tido a intenção de se subtrair à alçada das autoridades a fim de frustrar a sua transferência.

55      Ora, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre da exigência de uma aplicação uniforme do direito da União que, na medida em que uma disposição do direito da União não remeta para o direito dos Estados‑Membros no que respeita a um conceito específico, este último deve ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser efetuada tendo em conta não só os termos da disposição em causa mas também o seu contexto e o objetivo prosseguido pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 8 de março de 2018, DOCERAM, C‑395/16, EU:C:2018:172, n.o 20 e jurisprudência referida).

56      A este respeito, resulta do sentido comum do termo «fuga», que é empregue na maioria das versões linguísticas do artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III e que implica a vontade da pessoa em causa de escapar a alguém ou de se subtrair a algo, a saber, no presente contexto, às autoridades competentes e, assim, à sua transferência, que esta disposição, em princípio, só é aplicável quando essa pessoa se subtrai deliberadamente a essas autoridades. O artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento de Execução prevê, aliás, entre os possíveis motivos de adiamento de uma transferência, o facto de «o requerente se ter eximido à execução da transferência», o que implica a existência de um elemento intencional. Do mesmo modo, o artigo 2.o, alínea n), do Regulamento Dublim III define o conceito de «risco de fuga» referindo‑se, em certas versões linguísticas, como a versão em língua alemã, ao receio de o interessado «se subtrair» ao procedimento de transferência através da fuga.

57      O contexto em que se insere o artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III e os objetivos prosseguidos por este regulamento opõem‑se, no entanto, a uma interpretação desta disposição segundo a qual, numa situação em que a transferência não pode ser executada pelo facto de a pessoa em causa ter abandonado o local de residência que lhe foi atribuído, sem informar as autoridades competentes da sua ausência, essas autoridades devem provar que essa pessoa teve efetivamente a intenção de se subtrair a elas, a fim de frustrar a sua transferência.

58      Com efeito, resulta dos considerandos 4 e 5 do Regulamento Dublim III que este tem como finalidade estabelecer um método claro e operacional, baseado em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa, para determinar rapidamente o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de tal proteção e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

59      Tendo em conta este objetivo de celeridade, o prazo de transferência de seis meses estabelecido no artigo 29.o, n.o 1 e n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III visa assegurar que a pessoa em causa seja efetivamente transferida, o mais rapidamente possível, para o Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional, deixando o tempo necessário aos dois Estados‑Membros em causa — atendendo à complexidade prática e às dificuldades organizacionais ligadas à execução da transferência dessa pessoa —, para se concertarem com vista à realização dessa transferência, e, mais concretamente, ao Estado‑Membro requerente, para regular as modalidades da realização da transferência (v., neste sentido, Acórdão de 29 de janeiro de 2009, Petrosian, C‑19/08, EU:C:2009:41, n.o 40).

60      É neste contexto que o artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III permite, a título excecional, a prorrogação desse prazo de seis meses, a fim de ter em conta que é materialmente impossível o Estado‑Membro requerente proceder à transferência da pessoa em causa pelo facto de esta estar presa ou em fuga.

61      Ora, atendendo às consideráveis dificuldades que podem ser encontradas pelas autoridades competentes para apresentar prova das intenções da pessoa em causa, exigir que estas apresentem tal prova poderia permitir aos requerentes de proteção internacional que não quisessem ser transferidos para o Estado‑Membro designado como responsável pela análise do seu pedido pelo Regulamento Dublim III escapar às autoridades do Estado‑Membro requerente, até ao termo do prazo de seis meses, para que a responsabilidade por essa análise incumba a este último Estado‑Membro, por força do artigo 29.o, n.o 2, primeiro período, deste regulamento.

62      Por conseguinte, a fim de assegurar o funcionamento efetivo do sistema de Dublim e a realização dos seus objetivos, deve considerar‑se que, quando a transferência da pessoa em causa não possa ser executada pelo facto de esta ter abandonado o local de residência que lhe foi atribuído, sem ter informado as autoridades nacionais competentes da sua ausência, estas têm o direito de presumir que essa pessoa teve a intenção de se subtrair a essas autoridades com o objetivo de frustrar a sua transferência, desde que a referida pessoa tenha sido devidamente informada das obrigações que lhe incumbem a este respeito.

63      Neste contexto, importa salientar que, em aplicação do artigo 7.o, n.os 2 a 4, da Diretiva Acolhimento, os Estados‑Membros podem, como a República Federal da Alemanha parece ter efetivamente feito, limitar a possibilidade de os requerentes de asilo escolherem o seu local de residência e exigir que estes obtenham uma autorização administrativa prévia para abandonar esse local. Além disso, segundo o artigo 7.o, n.o 5, desta diretiva, os Estados‑Membros impõem aos requerentes que comuniquem o seu endereço às autoridades competentes e que as notifiquem, o mais rapidamente possível, de qualquer alteração de endereço.

64      No entanto, por força do artigo 5.o da Diretiva Acolhimento, os Estados‑Membros devem informar os requerentes dessas obrigações. Com efeito, não se pode acusar um requerente de ter abandonado o local de residência que lhe foi atribuído, sem ter informado as autoridades competentes e, se for caso disso, sem lhes ter solicitado autorização prévia, se esse requerente não tiver sido informado das referidas obrigações. No caso vertente, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o recorrente no processo principal foi efetivamente informado de tais obrigações.

65      Além disso, uma vez que não se pode excluir a existência de motivos válidos que justifiquem que o requerente não tenha informado as autoridades competentes da sua ausência, este deve conservar a possibilidade de demonstrar que não tinha a intenção de se subtrair a essas autoridades.

66      No que respeita à segunda parte da primeira questão, com que se pretende saber se, no quadro de um processo contra uma decisão de transferência, a pessoa em causa pode invocar o artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, alegando que o prazo de transferência tinha expirado porque não tinha fugido, há que declarar que decorre do Acórdão de 25 de outubro de 2017, Shiri (C‑201/16, EU:C:2017:805), proferido após a apresentação do presente pedido de decisão prejudicial, que esta requer uma resposta afirmativa.

67      Com efeito, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça concluiu, por um lado, que, para se assegurar de que a decisão de transferência impugnada foi adotada na sequência de uma aplicação correta dos procedimentos de tomada e de retomada a cargo instituídos pelo Regulamento Dublim III, o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência deve poder analisar as alegações de um requerente de proteção internacional segundo as quais essa decisão foi adotada em violação das disposições que figuram no artigo 29.o, n.o 2, desse regulamento, dado que o Estado‑Membro requerente já se tinha tornado o Estado‑Membro responsável, no dia da adoção da referida decisão, pelo facto de ter terminado o prazo de seis meses definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento (Acórdão de 25 de outubro de 2017, Shiri, C‑201/16, EU:C:2017:805, n.o 40).

68      Por outro lado, atendendo ao objetivo, mencionado no considerando 19 do Regulamento Dublim III, de garantir, em conformidade com o artigo 47.o da Carta, a proteção efetiva das pessoas em causa, bem como ao objetivo, mencionado no considerando 5 desse regulamento, de assegurar com celeridade a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, no interesse tanto dos requerentes dessa proteção como do bom funcionamento geral do sistema de Dublim, o requerente deve poder dispor de uma via de recurso efetiva e célere que lhe permita invocar o termo do prazo de seis meses definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, que ocorreu após a adoção da decisão de transferência (Acórdão de 25 de outubro de 2017, Shiri, C‑201/16, EU:C:2017:805, n.os 44 e 46).

69      O direito que a regulamentação alemã, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece reconhecer a um requerente que se encontre numa situação como a de A. Jawo, de invocar circunstâncias posteriores à adoção da decisão de transferência adotada a seu respeito, no âmbito de um recurso interposto dessa decisão, cumpre essa obrigação de prever uma via de recurso efetiva e célere (v., neste sentido, Acórdão de 25 de outubro de 2017, Shiri, C‑201/16, EU:C:2017:805, n.o 46).

70      Atendendo ao conjunto das considerações precedentes, há que responder da seguinte maneira à primeira questão:

–        O artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que há «fuga» de um requerente, na aceção desta disposição, quando este se subtrai deliberadamente às autoridades nacionais competentes para proceder à sua transferência, com o objetivo de frustrar essa transferência. Pode presumir‑se que é esse o caso quando essa transferência não pode ser executada pelo facto de esse requerente ter abandonado o local de residência que lhe foi atribuído, sem ter informado as autoridades nacionais competentes da sua ausência, desde que o requerente tenha sido informado das suas obrigações a este respeito, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. O referido requerente conserva a possibilidade de demonstrar que o facto de não ter informado essas autoridades da sua ausência se justifica por razões válidas e não pela intenção de se subtrair a essas autoridades.

–        O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, no quadro de um processo contra uma decisão de transferência, a pessoa em causa pode invocar o artigo 29.o, n.o 2, deste regulamento, alegando que, uma vez que não fugiu, o prazo de transferência de seis meses expirou.

 Quanto à segunda questão

71      Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, para prorrogar o prazo de transferência até dezoito meses, no máximo, é suficiente que o Estado‑Membro requerente, antes do termo do prazo de transferência de seis meses, informe o Estado‑Membro responsável de que a pessoa em causa fugiu e indique, simultaneamente, o novo prazo de transferência, ou se é necessário que estes dois Estados‑Membros cheguem a acordo quanto ao novo prazo.

72      A este respeito, há que salientar, antes de mais, que o artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III não prevê, para a prorrogação do prazo de transferência nas situações aí referidas, nenhuma concertação entre o Estado‑Membro requerente e o Estado‑Membro responsável. Assim, esta disposição distingue‑se do artigo 29.o, n.o 1, deste regulamento, que prevê expressamente que a transferência é efetuada após concertação entre os Estados‑Membros em causa.

73      Em seguida, o facto de se exigir igualmente concertação nas situações visadas no artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III tornaria esta disposição dificilmente aplicável e seria suscetível de a privar, em parte, do seu efeito útil. Com efeito, os contactos a que os dois Estados‑Membros em causa teriam de proceder para chegar a acordo quanto a uma prorrogação do prazo de transferência exigiriam tempo e recursos e não existiria um mecanismo eficaz para resolver os diferendos relativos à questão de saber se estão reunidas as condições de tal prorrogação. Por outro lado, bastaria que o Estado‑Membro requerido se mantivesse passivo para excluir uma prorrogação do prazo.

74      Por último, importa salientar que, por força do artigo 29.o, n.o 4, do Regulamento Dublim III, a Comissão adota atos de execução que regulem os procedimentos de consulta e o intercâmbio de informações entre os Estados‑Membros, em especial em caso de transferências adiadas ou atrasadas. Ora, o artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento de Execução precisa que incumbe ao Estado‑Membro que, por um dos motivos enunciados nesse artigo 29.o, n.o 2, não pode proceder à transferência no prazo normal de seis meses informar o Estado‑Membro responsável de tal facto, antes do termo deste prazo, não prevendo uma obrigação de concertação a este respeito.

75      Atendendo ao que precede, há que responder à segunda questão que o artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, para prorrogar o prazo de transferência até dezoito meses, no máximo, é suficiente que o Estado‑Membro requerente, antes do termo do prazo de transferência de seis meses, informe o Estado‑Membro responsável de que a pessoa em causa fugiu e indique, simultaneamente, o novo prazo de transferência.

 Quanto à terceira questão

76      Através da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 4.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um requerente de proteção internacional seja transferido, em aplicação do artigo 29.o do Regulamento Dublim III, para o Estado‑Membro que, em conformidade com esse regulamento, é responsável pelo tratamento do seu pedido de proteção internacional, quando, no caso de essa proteção ser concedida neste Estado‑Membro, esse requerente corresse um sério risco de sofrer um trato desumano ou degradante, na aceção desse artigo 4.o, devido às condições de vida previsíveis que encontraria enquanto beneficiário de proteção internacional no referido Estado‑Membro. Por outro lado, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se esta questão está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União. Além disso, pretende saber quais são, sendo caso disso, os critérios em função dos quais o juiz nacional deve apreciar as condições de vida de uma pessoa a quem tenha sido concedida proteção internacional.

77      A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que a decisão de um Estado‑Membro de transferir um requerente, em aplicação do artigo 29.o do Regulamento Dublim III, para o Estado‑Membro que, em conformidade com este regulamento, é responsável, em princípio, pela análise do pedido de proteção internacional constitui um elemento do sistema europeu comum de asilo e, portanto, aplica o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (v., por analogia, Acórdãos de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 68 e 69, e de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.os 53 e 54).

78      Por outro lado, resulta de jurisprudência constante que as disposições do Regulamento Dublim III devem ser interpretadas e aplicadas no respeito dos direitos fundamentais garantidos pela Carta, nomeadamente o seu artigo 4.o, que proíbe, sem possibilidade de derrogação, os tratos desumanos ou degradantes sob todas as suas formas, e reveste, assim, uma importância fundamental e de caráter geral e absoluto, uma vez que está estreitamente ligado ao respeito da dignidade do ser humano, referida no artigo 1.o da Carta (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 85 e 86, e de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.os 59, 69 e 93).

79      A terceira questão constitui, por conseguinte, uma questão de interpretação do direito da União, na aceção do artigo 267.o TFUE.

80      Em segundo lugar, importa recordar que o direito da União assenta na premissa fundamental segundo a qual cada Estado‑Membro partilha com todos os restantes Estados‑Membros, e reconhece que estes partilham com ele, uma série de valores comuns nos quais a União se funda, como precisado no artigo 2.o TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados‑Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito pelo direito da União que os aplica [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judicial), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 35 e jurisprudência referida], bem como no facto de que as respetivas ordens jurídicas nacionais estão em condições de fornecer uma proteção equivalente e efetiva dos direitos fundamentais reconhecidos pela Carta, nomeadamente nos artigos 1.o e 4.o desta, que consagram um dos valores fundamentais da União e dos seus Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 77 e 87).

81      O princípio da confiança mútua entre os Estados‑Membros tem, no direito da União, uma importância fundamental, dado que permite a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Mais especificamente, o princípio da confiança mútua impõe, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que cada um desses Estados‑Membros considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os restantes Estados‑Membros respeitam o direito da União e, muito particularmente, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito [v., neste sentido, Acórdãos de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 78, e de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judicial), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 36].

82      Por conseguinte, no contexto do sistema europeu comum de asilo, nomeadamente do Regulamento Dublim III, que se baseia no princípio da confiança mútua e que visa, através da racionalização dos pedidos de proteção internacional, acelerar o tratamento destes pedidos no interesse dos requerentes de asilo e dos Estados participantes, deve presumir‑se que o tratamento dado aos requerentes de tal proteção em cada Estado‑Membro é conforme com as exigências da Carta, da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], e da CEDH (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 78 a 80).

83      Contudo, não se pode excluir que este sistema depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado‑Membro, de modo que existe um sério risco de os requerentes de proteção internacional serem, em caso de transferência para esse Estado‑Membro, tratados de modo incompatível com os seus direitos fundamentais (Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 81).

84      Nestas condições, a aplicação de uma presunção inilidível segundo a qual os direitos fundamentais do requerente de proteção internacional serão respeitados no Estado‑Membro que, por força do Regulamento Dublim III, é designado como responsável pela análise do seu pedido é incompatível com a obrigação de interpretar e aplicar esse regulamento em conformidade com os direitos fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 99, 100 e 105).

85      Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que, por força do artigo 4.o da Carta, incumbe aos Estados‑Membros, incluindo aos órgãos jurisdicionais nacionais, não transferir um requerente de asilo para o Estado‑Membro responsável, na aceção do Regulamento Dublim II, que precedeu o Regulamento Dublim III, quando não possam ignorar que as falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado‑Membro constituem motivos sérios e comprovados para crer que o requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção desta disposição (Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 106).

86      O artigo 3.o, n.o 2, segundo e terceiro parágrafos, do Regulamento Dublim III, que codificou essa jurisprudência, precisa que, em tal situação, o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável passa a ser o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional se concluir, após analisar os critérios enunciados no capítulo III deste regulamento, que é impossível transferir o requerente para um Estado‑Membro designado com base nesses critérios ou para o primeiro Estado‑Membro onde foi apresentado o pedido.

87      Embora o artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III vise apenas a situação que está na origem do Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), a saber, a situação em que o risco real de tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o Carta, resulta de falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional no Estado‑Membro que, por força desse regulamento, é designado como responsável pela análise do pedido, decorre, todavia, dos n.os 83 e 84 do presente acórdão assim como do caráter geral e absoluto da proibição prevista nesse artigo 4.o que a transferência de um requerente para esse Estado‑Membro está excluída em todas as situações em que existam motivos sérios e comprovados para crer que o requerente corre tal risco por ocasião da sua transferência ou na sequência desta.

88      Para efeitos da aplicação do referido artigo 4.o, é indiferente, portanto, que seja no próprio momento da transferência, durante o procedimento de asilo ou no termo deste que a pessoa em causa corra, devido à sua transferência para o Estado‑Membro responsável, na aceção do Regulamento Dublim III, um risco sério de sofrer um trato desumano ou degradante.

89      Com efeito, como salientou o órgão jurisdicional de reenvio, o sistema europeu comum de asilo e o princípio da confiança mútua assentam na garantia de que a aplicação deste sistema não implica, em nenhuma fase e sob nenhuma forma, um risco sério de violação do artigo 4.o da Carta. A este respeito, seria contraditório que a existência de tal risco na fase do procedimento de asilo impedisse uma transferência, mas que o mesmo risco fosse tolerado quando este procedimento se concluísse com o reconhecimento de proteção internacional.

90      A este respeito, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência dispõe de elementos apresentados pela pessoa em causa para demonstrar a existência de tal risco, esse órgão jurisdicional deve apreciar, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, a existência de falhas sistémicas ou generalizadas, ou que afetem determinados grupos de pessoas (v., por analogia, Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 89).

91      Em terceiro lugar, no que se refere à questão de saber quais são os critérios à luz dos quais as autoridades nacionais competentes devem proceder a essa apreciação, importa sublinhar que, para serem abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 4.o da Carta, que corresponde ao artigo 3.o da CEDH, e cujo sentido e alcance são, portanto, por força do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, iguais aos conferidos por essa convenção, as falhas mencionadas no número anterior do presente acórdão devem ter um limiar de gravidade particularmente elevado, que depende do conjunto dos dados da causa (TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, § 254).

92      Esse limiar de gravidade particularmente elevado é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado‑Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar‑se, lavar‑se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (v., neste sentido, TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, §§ 252 a 263).

93      Como tal, o referido limiar não pode abranger situações que se caracterizem por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.

94      Uma circunstância como a evocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo a qual, nos termos do relatório mencionado no n.o 47 do presente acórdão, as formas de solidariedade familiar a que os nacionais do Estado‑Membro normalmente responsável pela análise do pedido de proteção internacional recorrem para fazer face às insuficiências do sistema social do referido Estado‑Membro, geralmente, não existem no caso dos beneficiários de proteção internacional nesse Estado‑Membro, não pode bastar para basear a conclusão de que um requerente de proteção internacional seria confrontado, em caso de transferência para o referido Estado‑Membro, com tal situação de privação material extrema.

95      No entanto, não se pode excluir totalmente que um requerente de proteção internacional possa demonstrar a existência de circunstâncias excecionais que lhe são próprias e que implicariam que, em caso de transferência para o Estado‑Membro normalmente responsável pelo tratamento do seu pedido de proteção internacional, se encontraria, devido à sua particular vulnerabilidade, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema suscetível de satisfazer os critérios mencionados nos n.os 91 a 93 do presente acórdão, após lhe ser concedido o benefício da proteção internacional.

96      No caso vertente, a existência de deficiências na aplicação, pelo Estado‑Membro normalmente responsável pela análise do pedido de proteção internacional, de programas de integração dos beneficiários de tal proteção não pode constituir um motivo sério e comprovado para crer que a pessoa em causa correria, em caso de transferência para esse Estado‑Membro, um risco real de ser sujeita a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta.

97      Em qualquer caso, o simples facto de a proteção social e/ou as condições de vida serem mais favoráveis no Estado‑Membro requerente do que no Estado‑Membro normalmente responsável pela análise do pedido de proteção internacional não é suscetível de confortar a conclusão segundo a qual a pessoa em causa ficaria exposta, em caso de transferência para este último Estado‑Membro, a um risco real de sofrer um trato contrário ao artigo 4.o da Carta.

98      Tendo em conta o conjunto das considerações precedentes, há que responder à terceira questão da seguinte maneira:

–        O direito da União deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo seu âmbito de aplicação a questão de saber se o artigo 4.o da Carta se opõe a que um requerente de proteção internacional seja transferido, em aplicação do artigo 29.o do Regulamento Dublim III, para o Estado‑Membro que, em conformidade com este regulamento, é normalmente responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional, quando, no caso de essa proteção ser concedida neste Estado‑Membro, esse requerente corresse um sério risco de sofrer um trato desumano ou degradante, na aceção desse artigo 4.o, devido às condições de vida previsíveis que encontraria enquanto beneficiário de proteção internacional no referido Estado‑Membro.

–        O artigo 4.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal transferência do requerente de proteção internacional, a menos que o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso da decisão de transferência conclua, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, que esse risco é real para o requerente, pelo facto de que, em caso de transferência, este se encontraria, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema.

 Quanto às despesas

99      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos EstadosMembros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, deve ser interpretado no sentido de há «fuga» de um requerente, na aceção desta disposição, quando este se subtrai deliberadamente às autoridades nacionais competentes para proceder à sua transferência, com o objetivo de frustrar essa transferência. Pode presumirse que é esse o caso quando essa transferência não pode ser executada pelo facto de esse requerente ter abandonado o local de residência que lhe foi atribuído, sem ter informado as autoridades nacionais competentes da sua ausência, desde que o requerente tenha sido informado das suas obrigações a este respeito, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. O referido requerente conserva a possibilidade de demonstrar que o facto de não ter informado essas autoridades da sua ausência se justifica por razões válidas e não pela intenção de se subtrair a essas autoridades.

O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que, no quadro de um processo contra uma decisão de transferência, a pessoa em causa pode invocar o artigo 29.o, n.o 2, deste regulamento, alegando que, uma vez que não fugiu, o prazo de transferência de seis meses expirou.

2)      O artigo 29.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que, para prorrogar o prazo de transferência até dezoito meses, no máximo, é suficiente que o EstadoMembro requerente, antes do termo do prazo de transferência de seis meses, informe o EstadoMembro responsável de que a pessoa em causa fugiu e indique, simultaneamente, o novo prazo de transferência.

3)      O direito da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo seu âmbito de aplicação a questão de saber se o artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia se opõe a que um requerente de proteção internacional seja transferido, em aplicação do artigo 29.o do Regulamento n.o 604/2013, para o EstadoMembro que, em conformidade com este regulamento, é normalmente responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional, quando, no caso de essa proteção ser concedida neste EstadoMembro, esse requerente corresse um sério risco de sofrer um trato desumano ou degradante, na aceção desse artigo 4.o, devido às condições de vida previsíveis que encontraria enquanto beneficiário de proteção internacional no referido EstadoMembro.

O artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal transferência do requerente de proteção internacional, a menos que o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso da decisão de transferência conclua, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, que esse risco é real para o requerente, pelo facto de que, em caso de transferência, este se encontraria, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.