Language of document : ECLI:EU:T:2000:141

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção)

25 de Maio de 2000 (1)

«Concorrência - Rejeição de uma denúncia - Interesse comunitário - Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância - Remessa pelo Tribunal de Justiça»

No processo T-77/95,

Union française de l'express (UFEX), anteriormente Syndicat français de l'express international (SFEI), com sede em Roissy-en-France (França),

DHL International, com sede em Roissy-en-France,

Service CRIE, com sede em Paris (França),

May Courier, com sede em Paris,

representados por E. Morgan de Rivery, advogado no foro de Paris, e J. Derenne, advogado nos foros de Bruxelas e de Paris, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório do advogado A. Schmidt, 7, Val Sainte Croix,

recorrentes,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por R. Lyal, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente, assistido por J.-Y. Art, advogado no foro de Bruxelas, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de C. Gómez de la Cruz, membro do Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,

recorrida,

que tem por objecto um pedido de anulação da Decisão SG (94) D/19144 da Comissão, de 30 de Dezembro de 1994, que rejeitou a denúncia do Syndicat français de l'express international, de 21 de Dezembro de 1990,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Segunda Secção),

composto por: J. Pirrung, presidente, R. M. Moura Ramos e A. W. H. Meij, juízes,

secretário: B. Pastor, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 9 de Fevereiro de 2000,

profere o presente

Acórdão

1.
    O presente acórdão é proferido após remessa do processo por acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1999, UFEX e o./Comissão (C-119/97 P, Colect., p. I-1341, a seguir «acórdão de 4 de Março de 1999»), dado que este último anulou o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Janeiro de 1997, SFEI e o./Comissão (T-77/95, Colect., p. II-1, a seguir «acórdão de 15 de Janeiro de 1997»).

Factos na origem do litígio e tramitação processual anterior

2.
    Em 21 de Dezembro de 1990, o SFEI (actual UFEX), sindicato profissional de que são membros os três outros recorrentes, apresentou uma denúncia à Comissão para que fosse declarada a violação, por parte do Estado francês e pelos correios franceses (a seguir «La Poste»), na qualidade de empresa, de determinadas regrasdo Tratado CEE (que passou a ser Tratado CE, a seguir «Tratado»), nomeadamente em matéria de concorrência. Esta denúncia foi posteriormente completada pelos recorrentes.

3.
    À luz do artigo 86.° do Tratado (actual artigo 82.° CE), os recorrentes denunciavam a assistência logística e comercial alegadamente fornecida por La Poste à sua filial, a Société française de messageries internationales (a seguir «SFMI»), que desenvolve actividade no sector do correio rápido internacional.

4.
    A título da assistência logística, os recorrentes contestavam a disponibilização das infra-estruturas de La Poste, com vista à recolha, triagem, transporte, distribuição e entrega do correio ao cliente, a existência de um procedimento privilegiado de desalfandegamento normalmente reservado a La Poste e a concessão de condições financeiras privilegiadas. A título da assistência comercial, os recorrentes apontavam, por um lado, a transferência de elementos da sua organização comercial, como a clientela e a capacidade de atrair clientela e, por outro, a existência de operações de promoção e de publicidade realizadas por La Poste em benefício da SFMI.

5.
    O abuso de posição dominante de La Poste teria consistido em esta ter feito beneficiar a sua filial SFMI da sua infra-estrutura, em condições anormalmente vantajosas, a fim de alargar a posição dominante que tinha no mercado do serviço postal de base ao mercado conexo do serviço de correio rápido internacional. Esta prática abusiva ter-se-ia traduzido em subvenções cruzadas em benefício da SFMI.

6.
    Além disso, os recorrentes sustentavam que à luz dos artigos 90.° do Tratado (actual artigo 86.° CE), 3.°, alínea g), do Tratado [que passou, após alteração, a artigo 3.°, alínea g), CE], 5.° do Tratado (actual artigo 10.° CE) e 86.° do Tratado, as actuações ilícitas de La Poste em matéria de assistência à sua filial tinham origem numa série de instruções e directivas emanadas do Estado francês.

7.
    Em 30 de Dezembro de 1994, a Comissão adoptou uma decisão que rejeitou a denúncia (a seguir «decisão impugnada»). O SFEI foi notificado da mesma em 4 de Janeiro de 1995.

8.
    Esta decisão, sob a forma de ofício assinado pelo Sr. Van Miert, membro da Comissão, está assim redigida (não se reproduz a numeração dos parágrafos):

«A Comissão reporta-se à V. denúncia apresentada aos meus serviços em 21 de Dezembro de 1990, à qual estava anexa cópia de uma denúncia separada apresentada em 20 de Dezembro de 1990 ao Conselho da Concorrência francês. Ambas as denúncias diziam respeito aos serviços expresso internacionais da administração postal francesa.

Em 28 de Outubro de 1994, os serviços da Comissão enviaram a V. Ex.as um ofício com base no artigo 6.° do Regulamento n.° 99/63, em que se indicava que os elementos obtidos aquando da instrução do processo não permitiam à Comissão dar seguimento favorável à V. denúncia quanto aos aspectos relacionados com o artigo 86.° do Tratado e em que V. Ex.as eram convidados a apresentar comentários a esse respeito.

Nos V. comentários de 28 de Novembro último, V. Ex.as mantiveram a mesma posição no que respeita ao abuso da posição dominante dos correios franceses e da SFMI.

Assim, e atentos esses comentários, a Comissão informa V. Ex.as pelo presente da sua decisão final relativamente à V. denúncia de 21 de Dezembro de 1990 no que respeita ao início de um procedimento nos termos do artigo 86.°

A Comissão considera, pelas razões que pormenorizou no ofício de 28 de Outubro último, que não existem no caso vertente elementos bastantes que demonstrem a subsistência de alegadas infracções, para poder dar seguimento favorável ao V. pedido. A esse respeito, os V. comentários de 28 de Novembro último não trazem qualquer elemento novo que permita à Comissão modificar tal conclusão, que se baseia nas razões abaixo expendidas.

Por um lado, o Livro Verde sobre o Desenvolvimento do Mercado Único dos Serviços Postais, bem como as Directrizes para o Desenvolvimento dos Serviços Postais Comunitários [COM (93)247 final, de 2 de Junho de 1993], abordam, entre outros, os principais problemas suscitados na denúncia do SFEI. Embora estes documentos só contenham propostas de lege ferenda, devem designadamente ser tomados em consideração para apreciar se a Comissão utiliza de modo adequado os seus recursos limitados, e designadamente se os seus serviços se dedicam a desenvolver um quadro regulamentar sobre o futuro do mercado dos serviços postais mais do que averiguar por sua própria iniciativa a propósito de alegadas infracções trazidas ao seu conhecimento.

Por outro lado, uma averiguação efectuada nos termos do Regulamento n.° 4064/89 na 'joint-venture‘ (GD Net) criada pela TNT, por La Poste e por quatro outras administrações postais levou a Comissão à publicação da sua decisão de 2 de Dezembro de 1991, no processo n.° IV/M.102. Na decisão de 2 de Dezembro de 1991, a Comissão decidiu não se opor à concentração notificada e declará-la compatível com o mercado comum. Salientou particularmente que, no que respeitava à 'joint-venture‘, 'a transacção proposta não cria ou não reforça uma posição dominante que possa entravar de modo significativo a concorrência no mercado comum ou numa parte importante deste‘.

Alguns pontos essenciais da decisão incidiam no impacto que as actividades da ex-SFMI podiam ter na concorrência: o acesso exclusivo da SFMI aos equipamentos de La Poste foi reduzido no seu raio de acção e deveria terminardois anos após a fusão, ficando assim afastada de qualquer actividade de prestação de serviços de La Poste. Qualquer facilidade de acesso legalmente concedida por La Poste à SFMI devia ser oferecida, de modo idêntico, a qualquer outro operador expresso com o qual La Poste celebrasse um contrato.

Este resultado vai ao encontro das soluções propostas para o futuro que V. Ex.as tinham apresentado em 21 de Dezembro de 1990. Tinham pedido que a SFMI fosse obrigada a pagar os serviços dos correios à mesma taxa que se os comprasse a uma empresa privada, no caso de a SFMI optar por continuar a utilizar esses serviços; que 'se ponha termo a todos os auxílios e discriminações‘ e que 'a SFMI adapte os seus preços em função do valor real dos serviços oferecidos por La Poste‘.

Por conseguinte, é evidente que os problemas relativos à concorrência actual e futura no domínio dos serviços expresso internacionais por V. Ex.as evocados foram resolvidos de modo adequado pelas medidas já adoptadas pela Comissão.

Se V. Ex.as entenderem que as condições impostas a La Poste no processo n.° IV/M.102 não foram respeitadas, nomeadamente em matéria de transporte e de publicidade, caber-lhes-á apresentar - na medida do possível - as provas, e eventualmente apresentar uma denúncia com base no artigo 3.°, n.° 2 do Regulamento n.° 17/62. Contudo, afirmações que indicam 'que actualmente as tarifas (excluindo eventuais descontos) praticadas pela SFMI permanecem substancialmente inferiores às dos membros do SFEI‘ (página 3 da V. carta de 28 de Novembro) ou que 'a Chronopost utiliza camiões P e T como suporte publicitário‘ (auto de verificação anexo à V. carta) devem ser consubstanciadas em elementos de facto que justifiquem um inquérito pelos serviços da Comissão.

As iniciativas que a Comissão tome nos termos do artigo 86.° do Tratado têm como objectivo manter uma concorrência real no mercado interno. No caso do mercado comunitário dos serviços expresso internacionais, tendo em conta o desenvolvimento significativo acima detalhado, teria sido necessário fornecer novas informações a propósito de eventuais violações do artigo 86.° para permitir à Comissão justificar a sua intenção de averiguar as referidas actividades.

Por outro lado, a Comissão considera que não está obrigada a examinar eventuais violações das regras de concorrência que tenham ocorrido no passado se o único objecto ou efeito de tal exame for o de servir os interesses individuais das partes. A Comissão não vê interesse em iniciar tal inquérito nos termos do artigo 86.° do Tratado.

Pelas razões mencionadas, informo que a V. denúncia é rejeitada.»

9.
    Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 6 de Março de 1995, os ora recorrentes interpuseram um recurso com vista à anulação da decisão impugnada.

10.
    Por acórdão de 15 de Junho de 1997, o Tribunal de Primeira Instância negou provimento ao recurso após ter considerado, essencialmente, que a Comissão tinha o direito de arquivar a denúncia com fundamento na ausência de interesse comunitário, uma vez que as práticas constantes dessa denúncia tinham cessado após a apresentação da mesma.

11.
    Por acórdão proferido em recurso, o Tribunal de Justiça anulou o acórdão de 15 de Janeiro de 1997, devolveu o processo ao Tribunal de Primeira Instância e reservou para final a decisão quanto a despesas.

12.
    No que se refere ao sétimo fundamento do recurso, o Tribunal de Justiça declarou nomeadamente o seguinte (n.° 96): «o Tribunal de Primeira Instância, ao julgar, sem se assegurar se se tinha verificado que os efeitos anticoncorrenciais tinham deixado de persistir e, eventualmente, se não eram susceptíveis de conferir à denúncia um interesse comunitário, que a instrução de uma denúncia relativa a infracções passadas não correspondia à função atribuída à Comissão pelo Tratado, mas servia essencialmente para facilitar às denunciantes a demonstração de uma falta a fim de obter uma indemnização por perdas e danos nos órgãos jurisdicionais nacionais, seguiu uma concepção errada da missão da Comissão no domínio da concorrência.»

13.
    No décimo segundo fundamento do recurso para o Tribunal de Justiça era censurado ao Tribunal de Primeira Instância o facto de se ter pronunciado sobre o fundamento assente num desvio de poder sem ter examinado todos os documentos invocados e, nomeadamente, uma carta endereçada por Sir Leon Brittan ao presidente da Comissão, documento cuja junção o Tribunal de Primeira Instância se recusou a ordenar. Quanto a este ponto, o Tribunal de Justiça declarou nomeadamente (n.° 110): «o Tribunal de Primeira Instância não podia rejeitar o pedido das recorrentes de ordenar a apresentação de um documento aparentemente pertinente para a resolução do litígio porque este documento não tinha sido junto aos autos e nenhum elemento permitia confirmar a sua existência.»

Tramitação processual após a remessa e pedidos das partes

14.
    Após a remessa do processo pelo Tribunal de Justiça, as partes apresentaram as suas observações escritas em conformidade com o artigo 119.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância.

15.
    A título de medidas de organização do processo, o Tribunal solicitou aos recorrentes que juntassem a carta de Sir Leon Brittan (v. supra n.° 13). Os recorrentes satisfizeram essa solicitação nos prazos fixados.

16.
    Como o juiz A. Potocki estava impedido de participar no exame do processo, o presidente do Tribunal designou, em 16 de Outubro de 1999, um outro juiz para o substituir. Por decisão de 20 de Outubro de 1999, foi nomeado um novo juiz relator.

17.
    Com base no relatório preliminar do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância (Segunda Secção) decidiu dar início à fase oral do processo sem medidas de instrução prévias.

18.
    Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões do Tribunal na audiência pública que se efectuou em 9 de Fevereiro de 2000. Nesta altura a Comissão apresentou igualmente uma cópia da carta de Sir Leon Brittan.

19.
    Os recorrentes concluem pedindo que o Tribunal se digne:

-    anular a decisão impugnada;

-    condenar a Comissão nas despesas da instância na sua totalidade.

20.
    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    negar provimento ao recurso;

-    condenar os recorrentes nas despesas.

Questão de mérito

21.
    Tirando as consequências do acórdão do Tribunal de Justiça no qual este apenas considerou dois dos doze fundamentos do recurso, os recorrentes, no quadro do presente processo, invocaram a título principal dois fundamentos que consistem, respectivamente, em violação do artigo 86.° do Tratado e em violação das normas jurídicas relativas à apreciação do interesse comunitário. A título subsidiário sustentam que a decisão impugnada está viciada por desvio de poder.

22.
    No caso em apreço, o Tribunal considera que importa examinar antes de mais o fundamento que consiste na violação das normas jurídicas relativas à apreciação do interesse comunitário.

Argumentos das partes

23.
    Os recorrentes observam que a persistência dos efeitos de uma infracção e a gravidade desta só podem ser apreciadas se estiver provado que esta infracção existiu mesmo. Sustentam que a cessação da infracção não é um critério relevante para rejeitar uma denúncia por falta de interesse comunitário (v., nomeadamente, n.° 95 do acórdão do Tribunal de Justiça).

24.
    Por um lado, o artigo 86.° do Tratado aplica-se necessariamente a factos passados (conclusões do advogado-geral no processo onde foi proferido o acórdão do Tribunal de Justiça, n.os 68 e 71, e acórdão do Tribunal de Justiça de 31 de Março de 1998, França e o./Comissão, C-68/94 e C-30/95, Colect., p. I-1375, n.os 179 e 180). Se bastasse que os factos ilícitos tivessem cessado para se eximir ao artigo 86.° do Tratado, qualquer empresa em situação de posição dominante teria a possibilidade de cessar as suas práticas para assegurar a sua impunidade (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 6 de Outubro de 1994, Tetra Pak/Comissão, T-86/91, Colect., p. II-755, n.° 29).

25.
    Por outro lado, o artigo 86.° do Tratado aplica-se às infracções e aos seus efeitos. A cessação das práticas em causa não poderá, portanto, restabelecer o equilíbrio da concorrência por estas afectado. A Comissão deverá verificar que esta cessação das práticas foi acompanhada do desaparecimento dos seus efeitos anticoncorrenciais sob pena deixar subsistir uma situação de concorrência falseada.

26.
    As circunstâncias do caso em apreço revelam a persistência dos efeitos das infracções denunciadas e a sua gravidade. A persistência dos efeitos resulta da parte de mercado adquirida, em dois anos, e conservada, pela SFMI, graças aos subsídios cruzados ilegais e de que beneficiou por parte de La Poste. A estrutura da concorrência ficou portanto afectada. Quanto à gravidade das infracções denunciadas, as recorrentes salientam que as mesmas duraram de 1986 a 1991 e remetem para diversos relatórios de peritos (relatório Braxton de 1990, relatório RSV de Maio de 1993 e relatório Bain de 1996) que quantificaram a importância das infracções. Além disso, a dimensão comunitária do mercado em questão não pode ser contestada (conclusões do advogado-geral no processo em que foi proferido o acórdão de 4 de Março de 1999, n.° 79).

27.
    Nestas condições, se a Comissão tivesse procedido às verificações exigidas pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão, só poderia ter concluído pela existência de um interesse comunitário.

28.
    Finalmente, os recorrentes sublinham que a atribuição duma indemnização por um órgão jurisdicional nacional à empresa vítima de práticas ilícitas não pode, por si só, restabelecer o equilíbrio da concorrência. Com efeito, a acção prosseguida pela Comissão tem por objectivo a manutenção de uma concorrência não falseada, o que corresponde à defesa do interesse geral. Em contrapartida, a atribuição duma indemnização tem em vista a protecção dos interesses individuais dos concorrentes (conclusões do advogado-geral no processo em que foi proferido o acórdão de 4 de Março de 1999, n.os 73 e 74). Além disso, o montante das reparações devidas aos recorrentes por La Poste é radicalmente diferente do dos subsídios cruzados ilegais que a SFMI deve reembolsar a La Poste. Só o reembolso em questão e não a reparação do prejuízo sofrido, será susceptível de restabelecer uma situação de concorrência não falseada.

29.
    A Comissão sustenta que o raciocínio dos recorrentes se baseia numa interpretação errada do acórdão do Tribunal de Justiça.

30.
    Nos termos deste acórdão, uma decisão de rejeição de uma denúncia estará viciada por ilegalidade quando se basear unicamente na verificação da cessação das práticas denunciadas pelo queixoso e não analisar a persistência eventual dos efeitos e a gravidade da infracção alegada. Ora, tal não é o caso da decisão impugnada.

31.
    A própria Comissão considera que a cessação das práticas contrárias às regras da concorrência não é em si um fundamento que justifique a rejeição de uma denúncia. Em particular, a persistência de efeitos anticoncorrenciais pode justificar o prosseguimento do inquérito em relação a uma infracção passada. A Comissão dispõe todavia de uma margem de apreciação no sentido de que lhe compete apreciar se a gravidade destes efeitos justifica o prosseguimento do inquérito. Em qualquer circunstância, a Comissão não considerou no presente processo que a cessação de uma prática alegadamente contrária ao Tratado retirasse em si mesma todo o interesse ao prosseguimento do inquérito.

32.
    A ausência de interesse comunitário no caso em apreço resulta, nomeadamente, da conclusão de que as medidas adoptadas na altura do processo GD Net tinham permitido resolver os problemas relativos à concorrência actual e futura do sector em causa. Mesmo supondo que as práticas denunciadas tivessem constituído um abuso de posição dominante na altura em que foram concretizadas, não teriam impedido o desenvolvimento de uma concorrência não falseada no sector em causa. Assim, não pode ser censurado à Comissão o facto de não ter examinado a persistência eventual dos efeitos anticoncorrenciais das práticas denunciadas.

33.
    A tomada em conta da persistência dos referidos efeitos resulta igualmente da menção, na decisão impugnada, de que o único objectivo ou efeito do exame da denúncia é servir os interesses individuais das partes. Com efeito, esta conclusão mostra que a Comissão considerou, perante os elementos que lhe tinham sido relatados, que as práticas denunciadas não produziam efeitos suficientes sobre a concorrência para justificar um interesse comunitário no prosseguimento do inquérito.

34.
    Além disso, a Comissão, em 28 de Outubro de 1994, indicou aos recorrentes que os problemas de concorrência actual e futura por eles denunciados tinham sido resolvidos. Em resposta, os recorrentes não apresentaram qualquer elemento de facto circunstanciado susceptível de demonstrar que as práticas em causa prosseguiam ou continuavam a produzir efeitos, o que poderia ter justificado o prosseguimento do inquérito (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 27 de Novembro de 1997, Tremblay e o./Comissão, T-224/95, Colect., p. II-2215, n.os 62 a 64).

Apreciação do Tribunal

35.
    O Tribunal considera que este fundamento suscita, essencialmente, a questão de saber se a Comissão cumpriu as suas obrigações no âmbito do exame da denúncia feita pelo recorrente.

36.
    As obrigações da Comissão, quando lhe é apresentada uma denúncia, nos termos do artigo 3.° do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento de aplicação dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), foram definidas por uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Primeira Instância, confirmada em último lugar, pelo acórdão de 4 de Março de 1999 (n.os 86 e segs.).

37.
    Resulta desta jurisprudência que a Comissão é obrigada a examinar atentamente o conjunto dos de elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pelos denunciantes a fim de apreciar se os referidos elementos deixam transparecer um comportamento de natureza a falsear o jogo da concorrência no interior do mercado comum e a afectar o comércio entre Estados-Membros (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1992, Automec/Comissão, T-24/90, Colect., p. II-2223, n.° 79). Além disso, os denunciantes têm o direito de conhecer o seguimento da sua denúncia através de uma decisão da Comissão, susceptível de ser objecto de recurso contencioso (acórdão de 4 de Março de 1999, n.° 86 e a jurisprudência citada).

38.
    Todavia, a Comissão só é obrigada a efectuar uma instrução ou a tomar uma decisão definitiva quanto à existência ou não de infracção alegada pelos denunciantes se a denúncia estiver dentro da sua competência exclusiva. Ora, não é esse o caso no presente processo que diz respeito à aplicação do artigo 86.° do Tratado em relação à qual a Comissão e as autoridades nacionais dispõem de uma competência partilhada (acórdão de 4 de Março de 1999, n.° 87, acórdão Automec/Comissão, já referido, n.° 90, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 24 de Janeiro de 1995, Tremblay e o./Comissão, T-5/93, Colect., p. II-185, n.os 59 e 91, assim como a jurisprudência mencionada e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 16 de Dezembro de 1999, Micro Leader Business/Comissão, T-198/98, Colect., p. I-0000, n.° 27).

39.
    Com efeito, a Comissão, a quem é atribuída pelo artigo 89.°, n.° 1, do Tratado (que passou, após alteração, a artigo 85.°, n.° 1, CE) a missão de velar pela aplicação dos princípios fixados pelos artigos 85.° do Tratado (actual artigo 81.° CE) e 86.° do Tratado, deve definir e pôr em prática a orientação da política comunitária da concorrência. A fim de realizar eficazmente esta tarefa, tem o direito de conceder graus de prioridade diferentes às denúncias submetidas à sua apreciação (acórdão de 4 de Março de 1999, n.° 88).

40.
    Daqui resulta que a Comissão pode não só decidir a ordem pela qual as denúncias são examinadas mas igualmente rejeitar uma denúncia por inexistência de interessecomunitário suficiente para a prossecução da análise do processo (acórdão Tremblay e o./Comissão, de 24 de Janeiro de 1993, já referido, n.° 60).

41.
    Finalmente, para apreciar o interesse comunitário em prosseguir o exame do processo a Comissão deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto e, compete-lhe, nomeadamente, ponderar a importância da lesão que o comportamento incriminado é susceptível de causar ao funcionamento do mercado comum, a probabilidade de poder provar a sua existência e a extensão das diligências de investigação necessárias para desempenhar, nas melhores condições, a sua missão de vigilância do cumprimento dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 13 de Dezembro de 1999, SGA/Comissão, T-189/95, T-39/96 e T-123/96, Colect., p. I-0000, n.° 52, e de 21 de Janeiro de 1999, Riviera auto service e o./Comissão, T-185/96, T-189/96 e T-190/96, Colect., p. II-93, n.° 46, acórdão Automec/Comissão,, já referido, n.° 86 e acórdão Tremblay e o./Comissão de 24 de Janeiro de 19995, já referido, n.° 62).

42.
    O poder discricionário de que a Comissão dispõe quando define ordens de prioridade não é, no entanto, ilimitado (acórdão de 4 de Março de 1999, n.os 89 a 95). Assim, a Comissão está vinculada por uma obrigação de fundamentação quando se recusa a prosseguir o exame de uma denúncia, devendo esta fundamentação ser suficientemente precisa e detalhada para colocar o Tribunal em condições de exercer um controlo efectivo sobre o exercício pela Comissão do seu poder discricionário de definição das prioridades. Este controlo tem em vista verificar se a decisão controvertida não se baseia em factos materialmente inexactos e se não está viciada de qualquer erro de direito, nem de qualquer erro manifesto de apreciação ou de desvio de poder (acórdão, Automec/Comissão, já referido, n.° 80, acórdão SGA/Comissão, já referido, n.° 41, e acórdão Micro Leader Business/Comissão, já referido, n.° 27).

43.
    Acresce que o Tribunal de Justiça sublinhou, no acórdão de 4 de Março de 1999 (n.° 92), que a Comissão, quando adopta ordens de prioridade no tratamento das denúncias submetidas à sua apreciação, não pode considerar excluídas a priori do seu campo de acção certas situações que fazem parte da missão que lhe é confiada pelo Tratado. O Tribunal de Justiça prosseguiu realçando o seguinte:

«93    Neste quadro, a Comissão é obrigada a apreciar em cada caso a gravidade dos pretensos atentados à concorrência e a persistência dos seus efeitos. Esta obrigação implica nomeadamente que tenha em conta a duração e a importância das infracções denunciadas bem como a sua incidência na situação da concorrência na Comunidade.

94    Quando, após cessação das práticas que os causaram, persistirem efeitos anticoncorrenciais, a Comissão continua portanto a ser competente, ao abrigo dos artigos 2.°, n.° 3, alínea g), e 86.° do Tratado, para agir com vista à sua eliminaçãoou à sua neutralização (v., neste sentido, acórdão de 21 de Fevereiro de 1973, Europemballage e Continental Can/Comissão, 6/72, Colect., p. 109, n.os 24 e 25).

95    A Comissão não pode apenas basear-se no simples facto de que práticas pretensamente contrárias ao Tratado cessaram para decidir arquivar por falta de interesse comunitário uma denúncia destas práticas, sem ter verificado se não persistiam efeitos anticoncorrenciais e se, eventualmente, a gravidade dos alegados atentados à concorrência ou a persistência dos seus efeitos não eram susceptíveis de conferir a esta denúncia um interesse comunitário.

96    Face às considerações anteriores, verifica-se que o Tribunal de Primeira Instância, ao julgar, sem se assegurar se se tinha verificado que os efeitos anticoncorrenciais tinham deixado de persistir e, eventualmente, se não eram susceptíveis de conferir à denúncia um interesse comunitário, que a instrução de uma denúncia relativa a infracções passadas não correspondia à função atribuída à Comissão pelo Tratado, mas servia essencialmente para facilitar às denunciantes a demonstração de uma falta a fim de obter uma indemnização por perdas e danos nos órgãos jurisdicionais nacionais, seguiu uma concepção errada da missão da Comissão no domínio da concorrência.»

44.
    Resulta do que antecede que a Comissão, a quem o SFEI apresentou uma queixa denunciando infracções ao artigo 86.° do Tratado, estava obrigada a apreciar, com base em todos os elementos de facto e de direito recolhidos, a gravidade e a duração das infracções alegadas assim como a eventual persistência do seus efeitos, e isto mesmo que as práticas alegadamente abusivas tivessem cessado após a apresentação da denúncia.

45.
    Neste quadro, a Comissão devia, nomeadamente, verificar se a cessação das práticas denunciadas implicava necessariamente o desaparecimento definitivo das distorções da concorrência alegadas ou deixava subsistir um desequilíbrio concorrencial, no caso concreto a manutenção da posição da SFEI obtida pelas práticas alegadamente contrárias ao Tratado. Por conseguinte, a Comissão devia assegurar-se da eventual persistência dos efeitos anticoncorrenciais das referidas práticas sobre o mercado em causa.

46.
    Importa verificar se a decisão impugnada satisfaz as exigências supramencionadas.

47.
    Nesta decisão, após uma descrição das diversas fases do procedimento administrativo, a Comissão realça que não existem elementos bastantes que demonstrem a subsistência das alegadas infracções para poder dar seguimento à denúncia (quinto parágrafo). Em apoio desta conclusão, a Comissão remete para o Livro Verde sobre o desenvolvimento do mercado único dos serviços postais assim como para as directrizes para o desenvolvimento dos serviços postais comunitários. Sublinha que «só contêm propostas lege ferenda» destinadas a definir um «quadro regulamentar sobre o futuro do mercado dos serviços postais» (sexto parágrafo).

48.
    A Comissão apoia-se, além disso, na sua decisão «GD Net» de 2 de Dezembro de 191 e declara compatível com o mercado comum a criação por várias administrações postais, entre elas La Poste, de uma empresa comum no sector do correio internacional rápido (sétimo parágrafo). Enumera diversos pontos desta decisão, a saber, a redução do acesso exclusivo da SFMI aos equipamentos de La Poste, devendo este acesso terminar «dois anos após a fusão», e a obrigação de La Poste de oferecer a qualquer outro operador do sector em causa, com o qual celebrasse um contrato, qualquer facilidade de acesso análoga à concedida à SFMI (oitavo parágrafo). A Comissão sublinha, a seguir, que «este resultado vai ao encontro das soluções propostas [pela SFEI] para o futuro» (nono parágrafo).

49.
    Nesta fase da análise, verifica-se que nem os parágrafos supramencionados da decisão impugnada nem, aliás, a decisão GD Net demonstram que a Comissão apreciou a gravidade e a duração das infracções alegadas na denúncia assim como a eventual subsistência dos seus efeitos. A decisão impugnada, com efeito, apenas incide sobre a evolução futura do mercado em causa que a Comissão pretende ter analisado no Livro Verde, as linhas directrizes e a sua decisão GD Net.

50.
    Nestas circunstâncias, o décimo parágrafo da decisão impugnada, apresentado como uma conclusão e nos termos do qual «os problemas relativos à concorrência actual e futura no domínio dos serviços expresso internacionais [...] foram resolvidos de modo adequado pelas medidas já adoptadas pela Comissão», deve ser considerado uma asserção não fundamentada. Dado que os nove primeiros parágrafos da decisão impugnada se pronunciam, essencialmente, apenas sobre a evolução futura do mercado em causa, não podem fundar nenhuma conclusão relativa à «concorrência actual».

51.
    O respeito pela Comissão das obrigações que lhe incumbem no quadro do exame da denúncia também não resulta dos restantes parágrafos da decisão impugnada, nos quais a instituição se limita a invocar a possibilidade de os denunciantes apresentarem uma nova denúncia no caso de considerarem que as condições impostas a La Poste na decisão GD Net não foram respeitadas (décimo primeiro parágrafo) e fornecerem novas informações a propósito de eventuais violações do artigo 86.° do Tratado (décimo segundo parágrafo).

52.
    Revela-se assim que a Comissão não apreciou, no caso concreto, a gravidade e a duração das infracções alegadas assim como a eventual subsistência dos seus efeitos. Finalmente, ao considerar que não era obrigada a investigar infracções passadas se o único objecto ou efeito de tal exame fosse o de servir os interesses individuais das partes (décimo terceiro parágrafo), a Comissão não cumpriu, no caso concreto, a sua missão no domínio da concorrência que não era, é certo, procurar reunir as condições para uma reparação dos danos pecuniários alegadamente sofridos por uma ou várias empresas, mas garantir, na sequência da denúncia apresentada por um organismo representando a quase totalidade dosoperadores privados franceses activos no mercado em causa, uma situação de concorrência não falseada.

53.
    A presente análise revela, portanto, que a Comissão, ao arquivar a denúncia por falta de interesse comunitário com base nos elementos fornecidos na decisão impugnada, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem no quadro do tratamento de uma denúncia por abuso de posição dominante.

54.
    Tendo os representantes da Comissão afirmado, no Tribunal de Primeira Instância, que a apreciação das infracções alegadas e a eventual subsistência dos seus efeitos tinha efectivamente tido lugar, importa referir que a análise da decisão impugnada, tal como acima foi feita, não pode ser posta em causa por estas declarações. Com efeito, uma decisão deve bastar-se a si própria e a sua fundamentação não pode resultar de explicações escritas ou orais dadas posteriormente, quando a decisão em questão já foi objecto de um recurso para o tribunal comunitário (v. por exemplo, o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 12 de Dezembro de 1996, Rendo e o./Comissão, T-16/91, RV, Colect., p. II-1827, n.° 45 e, por analogia, o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 6 de Abril de 2000, Kuijer/Conselho, T-188/98, Colect., p. I-0000, n.os 78 e 43).

55.
    Assim, deve ser anulada a decisão impugnada, sem que seja necessário examinar o fundamento que consiste em violação do artigo 86.° do Tratado e o fundamento invocado a título subsidiário que consiste em desvio de poder.

Quanto às despesas

56.
    O acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Maio de 1997, que tinha condenado os recorrentes nas despesas, foi anulado. No acórdão proferido em recurso desde último, o Tribunal de Justiça reservou para final a decisão quanto às despesas. Compete pois ao Tribunal de Primeira Instância decidir, no presente processo, a totalidade das despesas inerentes aos diferentes processos.

57.
    Por força do disposto no n.° 2 do artigo 87.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, a parte vencida deve ser condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. Tendo a Comissão sido vencida, e as recorrentes pedido a sua condenação nas despesas, há que condenar a Comissão a suportar a totalidade das despesas efectuadas no Tribunal de Primeira Instância e no Tribunal de Justiça.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção),

decide:

1)    É anulada a Decisão SG (94) D/19144 da Comissão, de 30 de Dezembro de 1994, que rejeitou a denúncia do Syndicat français de l'express international, de 21 de Dezembro de 1990.

2)    A Comissão suportará as suas despesas e a totalidade das despesas efectuadas pelos recorrentes no Tribunal de Primeira Instância e no Tribunal de Justiça.

Pirrung
Moura Ramos
Meij

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 25 de Maio de 2000.

O secretário

O presidente

H. Jung

J. Pirrung


1: Língua do processo: francês.