Language of document : ECLI:EU:C:2017:992

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

20 de dezembro de 2017 (*)

«Reenvio prejudicial — Regulamento (CE) n.o 6/2002 — Desenhos ou modelos comunitários — Artigo 110.o, n.o 1 — Falta de proteção — Cláusula denominada “de reparação” — Conceito de “componente de produtos complexos” — Reparação do produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original — Medidas que devem ser adotadas pelo utilizador para invocar a cláusula denominada “de reparação” — Jante automóvel réplica idêntica ao modelo de jante original»

Nos processos apensos C‑397/16 e C‑435/16,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentados pela Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão, Itália) e pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha), por decisões de 15 e de 2 de junho de 2016, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente em 18 de julho e em 4 de agosto de 2016, nos processos

Acacia Srl

contra

Pneusgarda Srl, em insolvência,

Audi AG (C‑397/16),

e

Acacia Srl,

Rolando D’Amato

contra

Dr. Ing. h.c. F. Porsche AG (C‑435/16),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: M. Ilešič (relator), presidente de secção, A. Rosas, C. Toader, A. Prechal e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: R. Schiano, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 14 de junho de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Acacia Srl e de R. D’Amato, por F. Munari, M. Esposito e A. Macchi, avvocati, B. Schneiders, D. Treue e D. Thoma, Rechtsanwälte,

–        em representação da Audi AG, por G. Hasselblatt, Rechtsanwalt, M. Cartella e M. Locatelli, avvocati,

–        em representação da Dr. Ing. h.c. F. Porsche AG, por B. Ackermann e C. Klawitter, Rechtsanwälte,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Santoro, S. Fiorentino e L. Cordi, avvocati dello Stato,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze, M. Hellmann e J. Techert, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por D. Segoin, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. Bulterman e H. Stergiou, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Samnadda, por V. Di Bucci e T. Scharf, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 28 de setembro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (JO 2002, L 3, p. 1).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois litígios que opõem, por um lado, a Acacia Srl à Pneusgarda Srl, em situação de insolvência, e à Audi AG e, por outro, a Acacia e o seu gerente, Rolando D’Amato, à Dr. Ing. h.c. F. Porsche AG (a seguir «Porsche»), a respeito de uma alegada contrafação, pela Acacia, dos modelos comunitários de que a Audi e a Porsche são titulares.

 Quadro jurídico

 Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio

3        O Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio foi aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986‑1994) (JO 1994, L 336, p. 1). O seu artigo 26.o, n.o 2, dispõe:

«Os membros podem prever exceções limitadas à proteção dos desenhos ou modelos industriais, desde que essas exceções não colidam de modo injustificável com a exploração normal dos desenhos ou modelos industriais protegidos e não prejudiquem de forma injustificável os legítimos interesses do titular do desenho ou modelo protegido, tendo em conta os legítimos interesses de terceiros.»

 Direito da União

 Diretiva 98/71/CE

4        O considerando 19 da Diretiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos (JO 1998, L 289, p. 28), enuncia:

«Considerando que a rápida adoção da presente diretiva é urgente para alguns setores industriais; que, nesta fase, não é possível proceder à aproximação integral das legislações dos Estados‑Membros em matéria de utilização de desenhos e modelos protegidos para permitir a reparação de produtos complexos de modo a voltar a dar‑lhes o aspeto original quando o produto a que se aplica ou em que está incorporado o desenho ou modelo for um componente de um produto complexo de cuja aparência dependa o desenho ou modelo protegido; que a falta de uma aproximação integral da legislação dos Estados‑Membros em matéria de utilização de desenhos ou modelos protegidos para efeitos de reparação de produtos complexos não deve constituir um obstáculo à aproximação das outras disposições nacionais da legislação sobre desenhos ou modelos que afetam mais diretamente o funcionamento do mercado interno; que, por essa razão, os Estados‑Membros devem entretanto manter em vigor quaisquer disposições, em conformidade com o Tratado, relativas à utilização do desenho ou modelo de componentes utilizados com vista à reparação de produtos complexos por forma a restituir‑lhes a aparência original ou, caso introduzam novas disposições relativas a essa utilização, estas devem ter por objetivo exclusivo liberalizar o mercado desses componentes; […]»

5        O artigo 14.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Disposição transitória», dispõe:

«Enquanto não tiverem sido adotadas alterações à presente diretiva, sob proposta da Comissão, nos termos do artigo 18.o, os Estados‑Membros manterão em vigor as respetivas disposições jurídicas existentes em matéria de utilização do desenho ou modelo de componentes utilizados com vista à reparação dos produtos complexos por forma a restituir‑lhes a aparência original, e apenas introduzirão alterações a essas disposições quando o objetivo das mesmas for a liberalização do mercado desses componentes.»

 Regulamento n.o 6/2002

6        Os considerandos 1, 9 e 13 do Regulamento n.o 6/2002 têm a seguinte redação:

«(1)      A instituição de um sistema unificado para a obtenção de um desenho ou modelo comunitário, beneficiando de proteção uniforme e produzindo os mesmos efeitos em todo o território da Comunidade, contribui para a prossecução dos objetivos da Comunidade definidos no Tratado.

[…]

(9)      As disposições substantivas do presente regulamento sobre desenhos ou modelos deveriam ser alinhadas com as correspondentes disposições da Diretiva 98/71/CE.

[…]

(13)      A Diretiva 98/71/CE não permite alcançar uma aproximação integral das legislações dos Estados‑Membros relativas à utilização de desenhos ou modelos protegidos com o objetivo de possibilitar a reparação de um produto complexo a fim de lhe restituir a sua aparência original, quando o desenho ou modelo é aplicado ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo, cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido. No âmbito do procedimento de conciliação da referida diretiva, a Comissão assumiu o compromisso de rever as consequências das disposições dela constantes, três anos após a data limite da sua transposição, especialmente no tocante aos setores industriais mais afetados. Nestas circunstâncias, parece apropriado não conferir proteção a título de desenho ou modelo comunitário a todo o desenho ou modelo que esteja aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo cuja aparência condicione o desenho ou modelo e que seja utilizado para possibilitar a reparação de um produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original, enquanto o Conselho não tiver aprovado a sua política nesta matéria, com base numa proposta da Comissão.»

7        O artigo 3.o deste regulamento dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, são aplicáveis as seguintes definições:

a)      “Desenho ou modelo” designa a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto resultante das suas características, nomeadamente, das linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação;

b)      “Produto” designa qualquer artigo industrial ou de artesanato, incluindo, entre outros, os componentes para montagem num produto complexo, as embalagens, as formas de apresentação, os símbolos gráficos e os carateres tipográficos, mas excluindo os programas de computador;

c)      “Produto complexo” designa qualquer produto composto por componentes múltiplos suscetíveis de serem dele retirados para o desmontar e nele recolocados para o montar novamente.»

8        O artigo 4.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Requisitos da proteção», enuncia:

«1.      Um desenho ou modelo será protegido enquanto desenho ou modelo comunitário na medida em que seja novo e possua caráter singular.

2.      Um desenho ou modelo aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo só é considerado novo e possuidor de caráter singular:

a)      Se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste último, e

b)      Se as características visíveis do componente satisfizerem, enquanto tal, os requisitos de novidade e singularidade.

3.      “Utilização normal”, na aceção da alínea a) do n.o 2, designa o uso do produto pelo utilizador final, excluindo as medidas de conservação, manutenção ou reparação.»

9        O artigo 19.o, n.o 1, deste regulamento tem a seguinte redação:

«Um desenho ou modelo comunitário registado confere ao seu titular o direito exclusivo de utilizar o desenho ou modelo e de proibir que um terceiro o utilize sem o seu consentimento. A referida utilização abrange, em especial, o fabrico, a oferta, a colocação no mercado, a importação, exportação ou utilização de um produto em que esse desenho ou modelo esteja incorporado, ou em que tenha sido aplicado, bem como a armazenagem desse produto para os mesmos efeitos.»

10      O artigo 110.o do Regulamento n.o 6/2002, sob a epígrafe «Disposição transitória», prevê:

«1.      Até à data de entrada em vigor das alterações ao presente regulamento com base numa proposta da Comissão sobre esta matéria, não existe proteção a título de desenho ou modelo comunitário para os desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados, na aceção do n.o 1 do artigo 19.o, para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original.

2.      A proposta da Comissão, referida no n.o 1, será apresentada em conjunto com, e terá em consideração, as alterações que a Comissão propuser sobre esta mesma matéria, em aplicação do artigo 18.o da Diretiva 98/71/CE.»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

 Processo C397/16

11      A Audi é titular de vários modelos comunitários de jantes automóveis de liga leve.

12      A Acacia fabrica, sob a marca WSP Italy, jantes automóveis de liga leve que são comercializadas no seu próprio sítio Internet, que está disponível em várias línguas. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, algumas dessas jantes são idênticas às jantes de liga leve da Audi. Nas jantes fabricadas pela Acacia é estampada a indicação «NOT OEM», que significa não fabricado como equipamento original. A documentação comercial e técnica que acompanha estes produtos, as faturas de venda e o sítio Internet da Acacia indicam que as jantes em causa só são vendidas como componentes de substituição destinados à reparação.

13      A Audi intentou no Tribunale di Milano (Tribunal de Milão, Itália) uma ação destinada, em substância, a que seja declarado que a produção e a comercialização pela Acacia das jantes em causa constituem uma contrafação dos seus modelos comunitários. Este órgão jurisdicional julgou esta ação procedente.

14      A Acacia interpôs recurso da decisão do referido órgão jurisdicional na Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão, Itália). Este último, depois de ter nomeadamente verificado que existem decisões contraditórias proferidas por órgãos jurisdicionais italianos e por outros Estados‑Membros no que diz respeito à aplicação da cláusula denominada «de reparação», concluiu que existem sérias dúvidas quanto à interpretação do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002.

15      Nestas condições, a Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Opõem‑se (a) os princípios em matéria de livre circulação das mercadorias e de liberdade de prestação de serviços no mercado interno; (b) o princípio da efetividade das normas da concorrência europeias e da liberalização do mercado interno; (c) os princípios do efeito útil e da aplicação uniforme do direito europeu na União Europeia; (d) as disposições de direito derivado da União Europeia, como a Diretiva 98/71 e, em especial, o seu artigo 14.o, o artigo 1.o do Regulamento [(UE)] n.o 461/2010 [da Comissão, de 27 de maio de 2010, relativo à aplicação do artigo 101.o, n.o 3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia a certas categorias de acordos verticais e práticas concertadas no setor dos veículos automóveis (JO 2010, L 129, p. 52)] e o [Regulamento n.o 124 da Comissão Económica para a Europa da Organização das Nações Unidas (UN/ECE) — Prescrições uniformes relativas à homologação de rodas para automóveis de passageiros e seus reboques (JO 2006, L 375, p. 604; retificação no JO 2007, L 70, p. 413)], a uma interpretação do artigo 110.o do Regulamento n.o 6/2002, que contém a cláusula de reparação, que exclua uma jante réplica, esteticamente idêntica à jante original de fábrica, homologada nos termos do referido Regulamento […] n.o 124, do conceito de componente de um produto complexo (automóvel) destinado a possibilitar a sua reparação e a restituir‑lhe a sua aparência original?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, obstam as normas sobre os direitos de propriedade industrial relativos aos modelos registados, após ponderação dos interesses referidos na primeira questão, à aplicação da cláusula de reparação relativamente a produtos complementares réplicas que possam ser escolhidos diferentemente pelo cliente, no pressuposto de que a cláusula de reparação deve ser interpretada em sentido restritivo e só pode ser invocada de modo limitado quanto a [componentes] de substituição com forma vinculada, ou seja, a componentes cuja forma tenha sido estabelecida de modo substancialmente inalterável relativamente à aparência exterior do produto complexo, excluindo outros componentes que devam ser considerados fungíveis e livremente aplicáveis ao gosto do cliente?

3)      Em caso de resposta afirmativa à segunda questão, que medidas devem ser adotadas pelo produtor de jantes réplicas para assegurar a legítima circulação dos produtos destinados à reparação e restituição da aparência exterior original do produto complexo?»

 Processo C435/16

16      A Porsche é titular de vários modelos comunitários de jantes automóveis de liga leve.

17      As jantes produzidas pela Acacia são comercializadas, na Alemanha, através do seu sítio Internet, o qual se dirige aos consumidores finais e se encontra disponível em língua alemã. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, algumas dessas jantes são idênticas às jantes de liga leve da Porsche. O referido órgão jurisdicional salienta que, segundo a Acacia, as jantes que esta fabrica e que são dirigidas aos veículos da Porsche só podem ser utilizadas em veículos deste fabricante. A Porsche alegou também perante o referido órgão jurisdicional que as jantes em causa também estão disponíveis em cores e em dimensões que não correspondem aos produtos de origem.

18      A Porsche intentou uma ação no Landgericht Stuttgart (Tribunal Regional de Estugarda, Alemanha) destinada, em substância, a que seja declarado que a produção e a comercialização pela Acacia das jantes em causa constituem uma contrafação dos seus modelos comunitários. Este órgão jurisdicional julgou essa ação procedente.

19      Tendo sido negado provimento ao recurso interposto pela Acacia e por R. D’Amato, estes últimos interpuseram recurso de Revision no órgão jurisdicional de reenvio. Este último órgão jurisdicional salienta que a procedência deste recurso depende da questão de saber se a Acacia pode invocar a cláusula denominada «de reparação» que figura no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002. Ora, a interpretação desta disposição suscita várias dificuldades.

20      Nestas condições, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A aplicação da [restrição prevista no] artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 circunscreve‑se a componentes com uma forma determinada, ou seja, a componentes cuja forma seja, em princípio, definitivamente determinada pela aparência do produto no seu todo, não sendo por isso — como no caso das jantes de um veículo automóvel — suscetível de livre escolha por parte dos clientes?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão: A aplicação da [restrição prevista no] artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 circunscreve‑se à oferta de produtos concebidos de forma semelhante, ou seja, a produtos que correspondam, também quanto à cor e ao tamanho, aos produtos originais?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão: [a restrição prevista no] artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 só é invocável pelo [vendedor] de um produto que viola, em princípio, o modelo ou desenho protegido quando esse [vendedor] garanta objetivamente que o seu produto se destina a ser adquirido exclusivamente para efeitos de reparação e não para outros efeitos, tais como a modernização ou a personalização do produto no seu todo?

4)      Em caso de resposta afirmativa à terceira questão: que medidas deve adotar o [vendedor] de um produto que viola, em princípio, o modelo ou desenho protegido para garantir objetivamente que o seu produto se destina a ser adquirido exclusivamente para efeitos de reparação e não para outros efeitos, tais como a modernização ou a personalização do produto no seu todo? Basta:

a)      que o [vendedor] indique no prospeto de venda que esta ocorre exclusivamente para efeitos de reparação no sentido de restituir ao produto no seu todo a sua aparência original ou

b)      é necessário que o [vendedor] faça depender a entrega da circunstância de o adquirente (comerciante ou consumidor) declarar, por escrito, que só utiliza o produto [vendido] para efeitos de reparação?»

21      Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 25 de abril de 2017, os processos C‑397/16 e C‑435/16 foram apensados para efeitos da fase oral e do acórdão.

 Quanto aos pedidos de reabertura da fase oral

22      Por requerimentos apresentados na Secretaria do Tribunal de Justiça, respetivamente, em 24 de novembro e em 1 de dezembro de 2017, a Porsche e a Audi pediram que fosse ordenada a reabertura da fase oral do processo, em aplicação do artigo 83.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

23      Em apoio dos seus pedidos, a Porsche e a Audi alegam, em substância, que as conclusões do advogado‑geral se baseiam em afirmações desprovidas de fundamento e que não foram objeto de contraditório, nomeadamente as que dizem respeito à origem da cláusula denominada «de reparação», que figura no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002.

24      Nos termos do artigo 83.o do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecido, ou quando, após o encerramento dessa fase, uma parte invocar um facto novo que possa ter influência determinante na decisão do Tribunal, ou ainda quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

25      Esta situação não se verifica no presente caso. Com efeito, não foi de forma nenhuma alegada a existência de um facto novo. Além disso, a origem da cláusula denominada «de reparação» foi abordada nomeadamente pela Comissão nas suas observações escritas e foi debatida por todas as partes na audiência. Assim, o Tribunal considera, ouvido o advogado‑geral, que dispõe de todos os elementos necessários para decidir.

26      Por outro lado, no que se refere às apreciações formuladas pela Porsche e pela Audi contra as conclusões do advogado‑geral, importa recordar, por um lado, que o Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e o seu Regulamento de Processo não preveem a possibilidade de as partes apresentarem observações em resposta às conclusões apresentadas pelo advogado‑geral (acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 23 e jurisprudência referida).

27      Por outro lado, nos termos do artigo 252.o, segundo parágrafo, TFUE, ao advogado‑geral cabe apresentar publicamente, com toda a imparcialidade e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua intervenção. A este respeito, o Tribunal de Justiça não está vinculado pelas conclusões do advogado‑geral nem pela fundamentação em que este baseia essas conclusões. Por conseguinte, o desacordo de uma parte com as conclusões do advogado‑geral, sejam quais forem as questões nelas examinadas, não constitui, em si mesmo, um fundamento justificativo da reabertura da fase oral do processo (acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 24 e jurisprudência referida).

28      À luz das considerações que precedem, o Tribunal de Justiça considera que não há que ordenar a reabertura da fase oral do processo.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à segunda questão no processo C397/16 e quanto à primeira questão no processo C435/16

29      Com a segunda questão no processo C‑397/16 e com a primeira questão no processo C‑435/16, que há que analisar em conjunto e em primeiro lugar, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, em substância, se o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que a cláusula denominada «de reparação» que este comporta subordina a exclusão da proteção a título de desenho ou modelo comunitário relativamente a um desenho ou modelo que constitui um componente de produtos complexos que é utilizado para possibilitar a reparação desse produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original à condição de a aparência do produto complexo condicionar o desenho ou modelo protegido.

30      A Audi, a Porsche e o Governo alemão alegam, em substância, que a cláusula denominada «de reparação», referida no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, só se aplica aos componentes de produtos complexos cuja aparência condicione o desenho ou modelo protegido, ou seja, cuja forma é imposta, pelo que as jantes automóveis de liga leve não podem ser abrangidas por esta disposição. Em contrapartida, a Acacia, tal como os Governos italiano, neerlandês e a Comissão, consideram que a aplicação da cláusula denominada «de reparação» não é limitada aos componentes cuja forma é imposta, ou seja, aos componentes cuja forma é determinada, em princípio, de forma invariável pela aparência do produto complexo e que, por conseguinte, não pode ser livremente escolhida pelo cliente, pelo que as jantes de liga leve podem ser abrangidas por esta disposição.

31      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, há que tomar em consideração não apenas os termos desta, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que esta faz parte. A origem de uma disposição do direito da União pode também revelar elementos pertinentes para a sua interpretação (v., neste sentido, acórdãos de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.o 50; de 1 de julho de 2015, Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland, C‑461/13, EU:C:2015:433, n.o 30; e de 18 de maio de 2017, Hummel Holding, C‑617/15, EU:C:2017:390, n.o 22).

32      Nos termos do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, «não existe proteção a título de desenho ou modelo comunitário para os desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados, na aceção do n.o 1 do artigo 19.o, para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original».

33      Ao contrário do considerando 13 do Regulamento n.o 6/2002, que enuncia que não havia que prever proteção a título de desenho ou modelo comunitário relativamente a um desenho ou modelo que é aplicado ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo «cuja aparência condiciona o desenho ou modelo» e que é utilizado para possibilitar a reparação de um produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original, o artigo 110.o, n.o 1, do mesmo regulamento limita‑se a prever que se deve tratar de «componentes de produtos complexos», que devem ser «utilizados […] para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original».

34      Resulta assim dos termos do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 que não figura de entre as condições enumeradas nesta disposição o facto de a aparência dos produtos complexos condicionar o desenho ou modelo protegido.

35      Em primeiro lugar, esta interpretação literal é corroborada pela origem da cláusula denominada «de reparação».

36      Com efeito, há que salientar, no que se refere aos trabalhos legislativos que antecederam a adoção da referida cláusula, que tanto a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo aos desenhos ou modelos comunitários (JO 1994, C 29, p. 20), como a Proposta alterada de Regulamento do Conselho relativo aos desenhos e modelos comunitários (JO 2001, C 62 E, p. 173) incluíam uma disposição que, embora não estivesse redigida em termos rigorosamente idênticos, previa especificamente que um desenho ou modelo aplicado num produto ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo «cuja aparência condiciona o desenho ou modelo» não podiam beneficiar de uma proteção a título do desenho ou modelo comunitário.

37      Contudo, como o advogado‑geral salientou, em substância, nos n.os 60 a 62 das suas conclusões, decorre do Relatório da Presidência do Comité dos Representantes Permanentes (Coreper) n.o 12420/00, de 19 de outubro de 2000 [documento interinstitucional 1993/0463 (CNS)] que, «na ótica de um acordo político sobre a proposta», foram apresentadas ao Coreper duas questões principais, uma das quais dizia especificamente respeito aos componentes de substituição. Assim, o referido relatório salientava que a maioria das delegações do referido comité considerava que era necessário, por um lado, que a redação da disposição em causa fosse próxima da redação do artigo 14.o da Diretiva 98/71 e, por outro, que os componentes de substituição fossem excluídos da proteção conferida pelo futuro regulamento «apenas na medida em que sejam utilizadas para possibilitar a reparação desse produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original».

38      É neste contexto que a exigência prevista na redação da disposição em causa, tal como figurava tanto na proposta como na proposta alterada da Comissão, referidas no n.o 36 do presente acórdão, relativa à circunstância de o produto no qual o desenho ou modelo é incorporado ou no qual é aplicado ser parte de um produto complexo «cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido», foi omitida da disposição que, afinal, veio a ser adotada pelo Conselho.

39      Resulta assim da origem do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 que a não limitação do alcance desta disposição aos componentes cuja forma é imposta pela forma do produto complexo resulta de uma escolha efetuada durante o processo legislativo.

40      De facto, como foi sublinhado pela Audi, pela Porsche e pelo Governo alemão, foi mantida no enunciado do considerando 13 do Regulamento n.o 6/2002 uma referência à necessidade de que a aparência do produto complexo «condicione o desenho ou modelo protegido». Contudo, atendendo às considerações que precedem, esta circunstância não parece ser decisiva. Aliás, conforme decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, embora o preâmbulo de um ato da União seja suscetível de precisar o conteúdo deste, não pode ser invocado para derrogar as próprias disposições do ato em causa (acórdão de 10 de janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C‑344/04, EU:C:2006:10, n.o 76 e jurisprudência referida).

41      Neste contexto, atendendo à intenção do legislador da União, conforme foi recordada nos n.os 36 a 38 do presente acórdão, não há que proceder a uma interpretação estrita do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 tal como mencionada no n.o 30 do presente acórdão, defendida pela Audi, pela Porsche e pelo Governo alemão, e que se baseia no caráter derrogatório ou transitório desta disposição.

42      A este respeito, por um lado, é certo que a cláusula denominada «de reparação» introduz um limite aos direitos de um titular de desenho ou modelo comunitário porquanto este se vê privado, quando estejam preenchidos os requisitos previstos no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, do direito exclusivo, previsto no artigo 19.o, n.o 1, deste regulamento, de proibir a qualquer terceiro a utilização de tal desenho ou modelo sem o seu consentimento, o que pode, com efeito, justificar que este artigo 110.o, n.o 1, seja objeto de uma interpretação estrita. No entanto, esta circunstância não pode justificar que a aplicação desta disposição fique subordinada a um requisito que a mesma não prevê.

43      Por outro lado, embora o artigo 110.o do Regulamento n.o 6/2002 se intitule «Disposição transitória» e preveja, além disso, no seu n.o 1, que a cláusula denominada «de reparação» só se aplica «[a]té à data de entrada em vigor das alterações ao [referido] regulamento», há que constatar que, por natureza, esta disposição se destina a ser aplicada até à sua alteração ou à sua revogação sob proposta da Comissão.

44      Em segundo lugar, a interpretação do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, que figura no n.o 34 do presente acórdão, é confortada por uma análise do contexto em que se insere a cláusula denominada «de reparação», militando o referido contexto em favor de uma interpretação coerente das disposições do Regulamento n.o 6/2002, por um lado, e das disposições da Diretiva 98/71, por outro.

45      A este respeito, em primeiro lugar, como o advogado‑geral salientou no n.o 55 das suas conclusões, tanto a Proposta de Diretiva do Parlamento e do Conselho relativa à proteção jurídica dos desenhos e modelos (JO 1993, C 345, p. 14) como a proposta de regulamento referida no n.o 36 do presente acórdão, as quais foram apresentadas em simultâneo pela Comissão, incluíam uma cláusula denominada «de reparação» cujo alcance se limitava aos componentes que fizessem parte de um produto complexo «cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido». Ao contrário da proposta de diretiva supracitada, a cláusula denominada «de reparação», tal como figura na Diretiva 98/71, não inclui semelhante restrição. Ora, conforme foi salientado no n.o 37 do presente acórdão, a alteração, aquando dos trabalhos legislativos que conduziram à adoção do Regulamento n.o 6/2002, da redação da cláusula denominada «de reparação» constante do artigo 110.o, n.o 1, deste regulamento visava aproximar esta redação à redação do artigo 14.o da Diretiva 98/71.

46      Em seguida, o considerando 9 do Regulamento n.o 6/2002 enuncia que havia que alinhar as disposições substantivas deste regulamento com as disposições homólogas da Diretiva 98/71.

47      Por último, decorre do artigo 110.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002 que qualquer proposta da Comissão que vise alterar a cláusula denominada «de reparação» constante do n.o 1 deste artigo deveria ser apresentada em conjunto com as alterações que viessem a ser propostas à denominada cláusula «de reparação» visada no artigo 14.o da Diretiva 98/71, em conformidade com o artigo 18.o desta diretiva, devendo também a Comissão, nos termos do referido artigo 110.o, n.o 2, tomar estas alterações em consideração.

48      Ora, o artigo 14.o da Diretiva 98/71 não inclui uma exigência segundo a qual a aparência do produto complexo deve condicionar o desenho ou modelo protegido, o que milita em favor de uma interpretação da cláusula denominada «de reparação» no sentido de esta não estar subordinada à condição de a aparência do produto complexo condicionar o desenho ou modelo protegido.

49      Em terceiro lugar, a interpretação do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, que figura no n.o 34 do presente acórdão, não é posta em causa pelo objetivo prosseguido pela cláusula denominada «de reparação», conforme foi especificado na exposição de motivos da proposta de regulamento visada no n.o 36 do presente acórdão.

50      Conforme decorre da referida exposição de motivos, a proteção conferida pelos desenhos e modelos comunitários é suscetível de ter efeitos indesejáveis por excluir ou limitar a concorrência no mercado, no que diz respeito nomeadamente a produtos complexos duradouros e caros como os veículos automóveis relativamente aos quais a proteção dos desenhos ou modelos que se aplicam a componentes particulares que compõem o produto complexo pode criar um verdadeiro mercado fechado para os componentes de substituição. Neste contexto, a cláusula denominada «de reparação» tem por objetivo evitar a criação de mercados fechados para certos componentes de substituição e, em particular, evitar que um consumidor que adquiriu um produto de longa duração, que pode ser caro, fique ilimitadamente vinculado, através da aquisição de componentes de substituição, ao fabricante do produto complexo.

51      Ora, como o advogado‑geral salientou, em substância, nos n.os 44 e 45 das suas conclusões, é precisamente para limitar a criação de mercados fechados para os componentes de substituição que a cláusula denominada «de reparação» visada no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 prevê que não deve existir uma proteção a título de desenho ou modelo comunitário para um desenho ou modelo comunitário que constitua um componente de um produto complexo que é utilizado com o objetivo de possibilitar a reparação deste produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original.

52      O objetivo de a cláusula denominada «de reparação» proceder, em certa medida, a uma liberalização do mercado dos componentes de substituição é de resto corroborado pelo considerando 19 e pelo artigo 14.o da Diretiva 98/71, nos termos dos quais as alterações das disposições legais nacionais relativas à utilização do desenho ou modelo de um componente utilizado para reparar um produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original só são autorizadas se estas alterações tiverem por objetivo liberalizar o mercado dos componentes em causa.

53      Resulta de todos os desenvolvimentos que precedem que o alcance do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 não é limitado aos componentes que fazem parte de um produto complexo cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido.

54      Atendendo às considerações que precedem, há que responder à segunda questão no processo C‑397/16 e à primeira questão no processo C‑435/16 que o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que a cláusula denominada «de reparação» que este comporta não subordina a exclusão da proteção a título de desenho ou modelo comunitário relativamente a um desenho ou modelo que constitui um componente de um produto complexo que é utilizado para possibilitar a reparação deste produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original à condição de a aparência do produto complexo condicionar o desenho ou modelo protegido.

 Quanto à primeira questão no processo C397/16 e quanto à segunda questão no processo C435/16

55      Com a primeira questão no processo C‑397/16 e com a segunda questão no processo C‑435/16, que há que analisar em conjunto e em segundo lugar, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, em substância, a que condições a cláusula denominada «de reparação» constante do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 subordina a exclusão da proteção a título de desenho ou modelo comunitário relativamente a um desenho ou modelo que constitui um componente de um produto complexo que é utilizado para possibilitar a reparação deste produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original.

56      No que diz respeito à primeira questão no processo C‑397/16, a Audi e o Governo alemão alegam, em substância, que uma jante réplica, esteticamente idêntica a uma jante original de fábrica, não é abrangida pelo conceito de componente de um produto complexo com o objetivo de possibilitar a sua reparação e de lhe restituir a aparência original, pelo que semelhante jante não é abrangida pela cláusula denominada «de reparação». A Acacia, os Governos italiano e neerlandês bem como a Comissão consideram, em contrapartida, que a jante réplica que seja esteticamente idêntica à jante original de fábrica é abrangida pelo conceito de componente de um produto complexo com o objetivo de possibilitar a sua reparação e de lhe restituir a sua aparência original.

57      No que se refere à segunda questão no processo C‑435/16, a Porsche, tal como os Governos italiano e neerlandês, bem como a Comissão, alegam, em substância, que, para que uma jante automóvel réplica seja abrangida pela cláusula denominada «de reparação», tal jante deve ter uma aparência idêntica à jante original. Por outro lado, a Acacia considera que a cláusula denominada «de reparação» é aplicável a todas as «variantes habituais» das jantes originais.

58      Nos termos do artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, não existe proteção a título de desenho ou modelo comunitário «para os desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados, na aceção do n.o 1 do artigo 19.o, para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original».

59      Decorre assim da redação desta disposição que a aplicação da cláusula denominada «de reparação» depende de estarem reunidos vários requisitos relativos, em primeiro lugar, à existência de um desenho ou modelo comunitário, em seguida, à presença de um «componente de produtos complexos» e, por último, à necessidade de uma «utiliza[ção] na aceção do n.o 1 do artigo 19.o, para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original».

60      Em primeiro lugar, há que salientar que se estiverem preenchidos os requisitos previstos no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, esta disposição exclui qualquer proteção relativamente a um «desenho ou modelo comunitário». Daqui resulta, como o advogado‑geral salientou, em substância, nos n.os 90 e 91 das suas conclusões, que o referido artigo 110.o, n.o 1, só é suscetível de se aplicar aos componentes que sejam objeto de uma proteção a título do desenho ou modelo comunitário e que, conforme resulta do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento, preencham os requisitos de proteção enunciados no referido regulamento, em particular no seu artigo 4.o

61      A este respeito, nos termos do artigo 4.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002, a proteção de um desenho ou modelo aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo só está assegurada, por um lado, se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste produto e, por outro, se as características visíveis do componente satisfizerem, enquanto tal, os requisitos de novidade e singularidade, previstos no n.o 1 deste artigo.

62      No caso em apreço, é facto assente que assim sucede com os modelos comunitários de jantes automóveis de que a Audi e a Porsche são titulares.

63      Em segundo lugar, o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 só se aplica aos «componentes de produtos complexos».

64      Há que salientar que o Regulamento n.o 6/2002 não define o conceito de «componente de produtos complexos». Contudo, decorre do artigo 3.o, alíneas b) e c), deste regulamento que se entende, por um lado, por «produto», qualquer artigo industrial ou de artesanato, incluindo, entre outros, os componentes para montagem num produto complexo e, por outro, por «produto complexo», qualquer produto composto por componentes múltiplos suscetíveis de serem dele retirados para o desmontar e nele recolocados para o montar novamente. Além disso, não existindo uma definição do conceito «componente» no referido regulamento, o mesmo deve ser entendido em conformidade com o seu sentido habitual na linguagem comum (v., neste sentido, acórdão de 4 de maio de 2006, Massachusetts Institute of Technology, C‑431/04, EU:C:2006:291, n.o 17 e jurisprudência referida).

65      Nestas condições, há que considerar que, por «componentes de produtos complexos», o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 visa múltiplos componentes, concebidos para serem montados num artigo industrial ou artesanal complexo, suscetíveis de serem retirados para o desmontar e o recolocar em tal artigo, e em cuja ausência este produto complexo não pode ser objeto de uma utilização normal.

66      No caso em apreço, há que constatar que uma jante automóvel deve ser qualificada de «componente de produtos complexos» na aceção da referida disposição porquanto tal jante é um componente do produto complexo que um automóvel consubstancia, sendo que, na falta deste produto, o automóvel não pode ser objeto de uma utilização normal.

67      Em terceiro lugar, o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 exige, para efeitos da aplicação da cláusula denominada «de reparação», que um componente de produtos complexos seja «utilizad[o], na aceção n.o 1 do artigo 19.o, para possibilitar a reparação dess[e] produt[o] complex[o]».

68      A este respeito, primeiro, decorre do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 que a «utilização» do componente, na aceção desta disposição, abrange o fabrico, a oferta, a colocação no mercado, a importação, exportação ou utilização de um produto em que esse desenho ou modelo esteja incorporado, ou em que tenha sido aplicado, bem como a armazenagem desse produto para os mesmos efeitos. Conforme decorre da redação deste artigo, este conceito é entendido de forma ampla, e inclui qualquer utilização de um componente para efeitos de reparação.

69      Segundo, a utilização do componente deve ter por objetivo «possibilitar a reparação» do produto complexo. A este respeito, como o advogado‑geral indicou, em substância, nos n.os 89 e 100 das suas conclusões, a exigência segundo a qual a utilização do componente deve possibilitar a «reparação» do produto complexo implica que o componente seja necessário para a utilização normal do produto complexo ou, por outras palavras, que o estado defeituoso ou a falta do componente seja suscetível de impedir essa utilização normal. Assim, a possibilidade de beneficiar da cláusula denominada «de reparação» requer que a utilização do componente seja necessária para reparar o produto complexo que se encontra defeituoso, nomeadamente devido à falta de um componente de origem ou a um dano causado a este.

70      Por conseguinte, está excluída da cláusula denominada «de reparação» qualquer utilização de um componente por motivos de decoração ou de simples conveniência, como seja, nomeadamente, a substituição de um componente por motivos estéticos ou de individualização do produto complexo.

71      Em quarto lugar, o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 exige, para efeitos da aplicação da cláusula denominada «de reparação», que a reparação do produto complexo seja efetuada «no sentido de lhe restituir a sua aparência original».

72      Tendo em conta o artigo 3.o, alínea a), do Regulamento n.o 6/2002, há que considerar que a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto resulta, em particular, das características das suas linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação.

73      A este respeito, como o advogado‑geral salientou nos n.os 103 e 104 das suas conclusões, os componentes referidos no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 contribuem para aparência do produto complexo. Com efeito, conforme foi recordado no n.o 60 do presente acórdão, só estão abrangidos por esta disposição os componentes que beneficiam de uma proteção a título de desenho ou modelo comunitário e que, por conseguinte, em conformidade com o disposto no artigo 4.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento, continuam visíveis durante a utilização normal do produto complexo, depois de incorporados no mesmo. Ora, um componente visível contribui necessariamente para a aparência do produto complexo.

74      É ainda necessário que a reparação seja efetuada para restituir ao produto complexo a sua aparência «original». Daqui resulta que, para que a cláusula denominada «de reparação» possa ser aplicada, o componente deve ser utilizado no sentido de restituir ao produto complexo a aparência que este tinha quando foi colocado no mercado.

75      Há que concluir que a cláusula denominada «de reparação» só se aplica aos componentes de um produto complexo que sejam visualmente idênticos aos componentes originais.

76      Esta interpretação é, de resto, conforme com o artigo 26.o, n.o 2, do Acordo sobre Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, que prevê que qualquer exceção à proteção dos desenhos e modelos industriais deve ser limitada e não pode prejudicar de forma injustificável a exploração normal de tais desenhos ou modelos nem causar um prejuízo injustificável dos interesses legítimos do titular, tendo em conta os interesses legítimos de terceiros. Com efeito, é o que sucede no presente caso, uma vez que a aplicação da cláusula denominada «de reparação» é limitada à utilização de um desenho ou modelo que constitui um componente de um produto complexo utilizado com o único objetivo de possibilitar a reparação efetiva desse produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original.

77      Por conseguinte, fica excluída qualquer utilização de um componente que não tenha por objetivo restituir ao produto complexo a aparência que este tinha quando foi colocado no mercado. É o que sucede nomeadamente se o componente de substituição não corresponder, do ponto de vista da sua cor ou das suas dimensões, ao componente original, ou se a aparência do produto complexo tiver sido alterada desde que foi colocado no mercado.

78      À luz das considerações que precedem, há que responder à primeira questão no processo C‑397/16 e à segunda questão no processo C‑435/16 que o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que a cláusula denominada «de reparação» que este comporta subordina a exclusão da proteção a título de desenho ou modelo comunitário relativamente a um desenho ou modelo que constitui um componente de um produto complexo que é utilizado para possibilitar a reparação deste produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original à condição de o componente de substituição ser visualmente idêntico ao componente que foi inicialmente incorporado no produto complexo quando este foi colocado no mercado.

 Quanto à terceira questão no processo C397/16 e quanto à terceira e quarta questões no processo C435/16

79      Com a terceira questão no processo C‑397/16 e com a terceira e quarta questões no processo C‑435/16, que há que analisar em conjunto e em terceiro lugar, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, em substância, se o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que, para poderem invocar a cláusula denominada «de reparação» que esta disposição comporta, o fabricante ou o vendedor de um componente de um produto complexo devem assegurar, e, em caso de resposta afirmativa, de que forma, que este componente só possa ser adquirido para efeitos de reparação.

80      A este respeito, a Audi considera que a aplicação da cláusula denominada «de reparação» é inconciliável com a venda direta de componentes réplicas aos consumidores finais, pelo que os fabricantes de componentes réplicas se devem limitar a distribuir os seus produtos junto de oficinas de reparação. A Porsche alega que o fabricante de componentes réplicas deve assegurar de forma objetiva que o seu produto só pode ser adquirido para efeitos de reparação e não também para outros fins, tais como a individualização do produto complexo. O Governo italiano e a Comissão consideram, em substância, que o fabricante de componentes réplicas tem de adotar medidas de controlo gerais destinadas a garantir a utilização legal destes componentes. Por seu lado, a Acacia sugere que uma informação prévia e por escrito aos clientes sobre o facto de o componente se destinar a possibilitar a reparação de um produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original constitui uma medida compatível com a exigência de justo equilíbrio dos interesses em jogo.

81      Conforme decorre da sua redação, o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 exclui uma proteção a título de desenho ou modelo comunitário para os desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original. Assim, a «utilização» em causa abrange, a este respeito, em especial, como foi recordado no n.o 68 do presente acórdão, o fabrico, a oferta, a colocação no mercado, a importação, exportação ou utilização de um produto em que esse desenho ou modelo esteja incorporado, ou em que tenha sido aplicado, bem como a armazenagem desse produto para os mesmos efeitos.

82      Deste modo, importa determinar se, quando essa utilização consiste, como é o caso nos processos principais, no fabrico e na venda dum produto deste tipo, o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 impõe ao fabricante e ao vendedor desse produto certas obrigações quanto ao respeito das referidas condições por parte dos utilizadores a jusante quando o fabricante ou o vendedor pretendam produzir e vender este produto para permitir que a sua utilização efetiva respeite os requisitos previstos na referida disposição.

83      A este respeito, há que salientar que a exceção que a cláusula denominada «de reparação» constitui face ao princípio da proteção a título de desenhos e modelos requer que o utilizador final do componente em causa o utilize com respeito pelos requisitos enunciados no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, a saber, que através deste componente proceda à reparação do produto complexo em causa no sentido de lhe restituir a sua aparência original.

84      Da mesma forma, importa sublinhar que a referida disposição estabelece, para os fins específicos recordados no n.o 51 do presente acórdão, uma derrogação ao regime de proteção dos desenhos e modelos, e que a necessidade de preservar a efetividade deste regime de proteção exige que aqueles que invocam a referida derrogação contribuam, tanto quanto possível, para assegurar o respeito estrito, nomeadamente pelo utilizador final, dos requisitos enunciados no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002.

85      Neste contexto, pese embora não se espere que o fabricante ou o vendedor de um componente de um produto complexo garantam, objetivamente e em todas as circunstâncias, que os componentes que fabricam ou que vendem para efeitos de uma utilização conforme com os requisitos definidos no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, sejam in fine efetivamente utilizados pelos utilizadores finais com respeito pelos referidos requisitos, não deixa de ser verdade que, para poderem beneficiar do regime derrogatório assim estabelecido por esta disposição, esse fabricante ou esse vendedor estão, como o advogado‑geral salientou nos n.os 131, 132 e 135 das suas conclusões, sujeitos a um dever de diligência quanto ao respeito, por parte dos utilizadores a jusante, destes requisitos.

86      Em particular, cabe‑lhes, desde logo, informar o utilizador a jusante, através de uma indicação clara e visível, no produto, na sua embalagem, nos catálogos ou ainda nos documentos de venda, por um lado, de que o componente em causa incorpora um desenho ou modelo de que não são titulares e, por outro, de que este componente se destina a ser exclusivamente utilizado para possibilitar a reparação do produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original.

87      Em seguida, cabe‑lhes assegurar, através dos meios adequados, nomeadamente contratuais, que o destino que os utilizadores a jusante conferem aos componentes em causa não seja incompatível com os requisitos prescritos no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002.

88      Por último, o referido fabricante ou o referido vendedor devem abster‑se de vender esse componente se souberem ou, atendendo às circunstâncias pertinentes, se tiverem motivos razoáveis para saber que a utilização desse componente não respeitará os requisitos enunciados no artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002.

89      Atendendo às considerações que precedem, há que responder à terceira questão no processo C‑397/16 e à terceira e quarta questões no processo C‑435/16 que o artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que, para poderem invocar a cláusula denominada «de reparação» que esta disposição comporta, o fabricante ou o vendedor de um componente de produtos complexos estão sujeitos a um dever de diligência quanto ao respeito, por parte dos utilizadores a jusante, dos requisitos prescritos na referida disposição.

 Quanto às despesas

90      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários, deve ser interpretado no sentido de que a cláusula denominada «de reparação» que este comporta não subordina a exclusão da proteção a título de desenho ou modelo comunitário relativamente a um desenho ou modelo que constitui um componente de um produto complexo que é utilizado para possibilitar a reparação deste produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original à condição de a aparência do produto complexo condicionar o desenho ou modelo protegido.

2)      O artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que a cláusula denominada «de reparação» que este comporta subordina a exclusão da proteção a título de desenho ou modelo comunitário relativamente a um desenho ou modelo que constitui um componente de um produto complexo que é utilizado para possibilitar a reparação deste produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original à condição de o componente de substituição ser visualmente idêntico ao componente que foi inicialmente incorporado no produto complexo quando este foi colocado no mercado.

3)      O artigo 110.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que, para poderem invocar a cláusula denominada «de reparação» que esta disposição comporta, o fabricante ou o vendedor de um componente de produtos complexos estão sujeitos a um dever de diligência quanto ao respeito, por parte dos utilizadores a jusante, dos requisitos prescritos na referida disposição.

Assinaturas


*      Línguas de processo: alemão e italiano.