Language of document : ECLI:EU:C:2006:460

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

13 de Julho de 2006 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Concorrência – Artigo 81.°, n.° 1, CE – Distribuição de veículos automóveis – Conceito de ‘acordos entre empresas’ – Prova da existência de um acordo»

No processo C‑74/04 P,

que tem por objecto um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância nos termos do artigo 56.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, interposto em 16 de Fevereiro de 2004,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por W. Mölls, na qualidade de agente, assistido por H.‑J. Freund, Rechtsanwalt, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

Volkswagen AG, com sede em Wolfsburg (Alemanha), representada por R. Bechtold e S. Hirsbrunner, Rechtsanwälte, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, J. Malenovský, J.‑P. Puissochet, S. von Bahr (relator) e U. Lõhmus, juízes,

advogado‑geral: A. Tizzano,

secretário: K. Sztranc, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 29 de Setembro de 2005,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 17 de Novembro de 2005,

profere o presente

Acórdão

1        Com o presente recurso, a Comissão das Comunidades Europeias pede a anulação do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias de 3 de Dezembro de 2003, Volkswagen/Comissão (T‑208/01, Colect., p. II‑5141, a seguir «acórdão recorrido»), que anulou a Decisão 2001/711/CE da Comissão, de 29 de Junho de 2001, relativa a um procedimento de aplicação do artigo 81.° do Tratado CE (Processo COMP/F‑2/36.693 – Volkswagen) (JO L 262, p. 14, a seguir «decisão impugnada»).

 Factos na origem do litígio e quadro jurídico

2        Os factos na origem do litígio e o quadro jurídico deste, como decorrem do acórdão recorrido, podem ser resumidos do seguinte modo.

3        A Volkswagen AG (a seguir «Volkswagen») é a sociedade holding e a maior empresa do grupo Volkswagen, activa no sector da construção automóvel. Os veículos automóveis produzidos pela Volkswagen são vendidos na Comunidade Europeia, no âmbito de um sistema de distribuição selectiva e exclusiva, por concessionários com os quais essa empresa celebrou um contrato‑tipo de concessão (a seguir «contrato de concessão»).

4        Em conformidade com o artigo 4.°, n.° 1, do contrato de concessão, nas versões dos meses de Setembro de 1995 e de Janeiro de 1998, a Volkswagen atribui ao concessionário um território contratual, para que este execute o programa de entregas e o serviço pós‑venda. Em contrapartida, o concessionário compromete‑se a promover intensivamente a venda e o serviço pós‑venda no território que lhe foi atribuído e a explorar ao máximo o potencial do mercado. Nos termos do artigo 2.°, n.° 6 (versão do mês de Janeiro de 1989), ou n.° 1 (versões dos meses de Setembro de 1995 e de Janeiro de 1998), do contrato de concessão, o concessionário compromete‑se «a defender os interesses da [Volkswagen], da organização de distribuição Volkswagen e da marca Volkswagen, que devem promover por todos os meios». Está também estipulado que, para esse efeito, «os concessionários têm de se conformar com todas as instruções relacionadas com a execução do contrato nos domínios da distribuição de novos veículos Volkswagen, fornecimento de peças sobresselentes, serviço [pós venda], promoção comercial, publicidade e formação e têm a obrigação de assegurar o nível técnico […] dos diversos sectores [das operações da] Volkswagen». Finalmente, nos termos do artigo 8.°, n.° 1, do contrato de concessão, «[a Volkswagen] comunica valores recomendados para os preços de venda [não vinculativos] ao consumidor final e os descontos a conceder».

5        Em 17 de Julho de 1997 e 8 de Outubro de 1998, na sequência de uma denúncia de um comprador, a Comissão dirigiu à Volkswagen, nos termos do artigo 11.° do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), pedidos de informação relativos à política tarifária dessa sociedade, mais concretamente no que respeita à fixação do preço de venda do modelo Volkswagen Passat na Alemanha. A Volkswagen respondeu a estes pedidos, respectivamente, em 22 de Agosto de 1997 e 9 de Novembro de 1998.

6        Em 22 de Junho de 1999, com base nas informações recebidas, a Comissão enviou à Volkswagen uma comunicação de acusações, na qual acusava a empresa de ter violado o artigo 81.°, n.° 1, CE por ter acordado com os concessionários alemães da sua rede de distribuição uma disciplina tarifária rigorosa para as vendas do modelo Volkswagen Passat.

7        Nessa comunicação de acusações, a Comissão evocava, em especial, três circulares dirigidas pela Volkswagen aos seus concessionários alemães, em 26 de Setembro de 1996, 17 de Abril e 26 de Junho de 1997, e cinco cartas enviadas a alguns deles, em 24 de Setembro, 2 e 16 de Outubro de 1996, 18 de Abril de 1997 e 13 de Outubro de 1998 (a seguir, referidas em conjunto, «instruções em litígio»).

8        Por carta de 10 de Setembro de 1999, a Volkswagen respondeu à comunicação de acusações e referiu que os factos nela descritos eram, no essencial, exactos. Não pediu para ser ouvida.

9        Em 15 de Janeiro e 7 de Fevereiro de 2001, a Comissão dirigiu à Volkswagen dois novos pedidos de informações, aos quais esta respondeu em 30 de Janeiro e 21 de Fevereiro de 2001, respectivamente.

10      Em 6 de Julho de 2001, a Comissão notificou à Volkswagen a decisão impugnada. O dispositivo da decisão tem a seguinte redacção:

«Artigo 1.°

A Volkswagen cometeu uma infracção ao disposto no n.° 1 do artigo 81.° do Tratado CE, ao fixar os preços de venda do modelo Volkswagen Passat exigindo aos seus concessionários alemães sob contrato que não concedessem descontos aos clientes ou que só lhes concedessem descontos diminutos na venda desse modelo.

Artigo 2.°

Devido à infracção referida no artigo 1.°, é imposta à Volkswagen AG uma coima no montante de 30,96 milhões de euros.

[...]

Artigo 4.°

É destinatária da presente decisão a sociedade Volkswagen AG, D‑38436 Wolfsburg.

[…]»

 Acórdão recorrido

11      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 10 de Setembro de 2001, a Volkswagen interpôs um recurso tendo por objecto, a título principal, a anulação da decisão impugnada e, a título subsidiário, a redução do montante da coima que lhe foi aplicada por essa decisão.

12      No n.° 32 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância declarou, referindo‑se ao n.° 69 do seu acórdão de 26 de Outubro de 2000, Bayer/Comissão (T‑41/96, Colect., p. II‑3383), que o conceito de acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE, como interpretado pela jurisprudência, se baseia na existência de uma concordância de vontades entre duas partes pelo menos, cuja forma de manifestação não é importante desde que constitua a expressão fiel das mesmas.

13      O Tribunal de Primeira Instância observou, no n.° 33 do acórdão recorrido, que resulta igualmente da jurisprudência que, quando uma decisão de um fabricante constitui um comportamento unilateral da empresa, esta decisão escapa à proibição do artigo 81.°, n.° 1, CE (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 1983, AEG/Comissão, 107/82, Recueil, p. 3151, n.° 38, e de 17 de Setembro de 1985, Ford/Comissão, 25/84 e 26/84, Recueil, p. 2725, n.° 21, bem como o acórdão Bayer/Comissão, já referido, n.° 66).

14      O Tribunal de Primeira Instância precisou, no n.° 35 do acórdão recorrido, que há que distinguir as situações em que uma empresa adoptou uma medida verdadeiramente unilateral e, portanto, sem a participação expressa ou tácita de outra empresa, daquelas em que o carácter unilateral é unicamente aparente. Se as primeiras não são abrangidas pelo artigo 81.°, n.° 1, CE, deve considerar‑se que as segundas revelam a existência de um acordo entre empresas, podendo cair, deste modo, sob a alçada desse artigo. É o que acontece, nomeadamente, com as práticas e medidas restritivas da concorrência que, adoptadas aparentemente de modo unilateral pelo fabricante no quadro das suas relações contratuais com os seus revendedores, recebem todavia o acordo, pelo menos tácito, destes últimos (acórdão Bayer/Comissão, já referido, n.° 71).

15      No n.° 38 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância declarou que não tinha sido provado que as instruções em litígio tenham sido efectivamente postas em prática.

16      O Tribunal de Primeira Instância observou, no n.° 39 do acórdão recorrido, que, para declarar a existência de um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE, a Comissão baseou‑se principalmente no argumento segundo o qual a política de distribuição da Volkswagen foi aceite tacitamente pelos concessionários no momento da assinatura do contrato de concessão.

17      No n.° 43 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância afirmou que a tese da Comissão equivale a sustentar que se presume que um concessionário que tenha assinado um contrato de concessão em conformidade com o direito da concorrência aceitou antecipadamente, no momento dessa assinatura e através dela, uma evolução posterior ilegal desse contrato, quando, precisamente, devido à sua conformidade com o direito da concorrência, o referido contrato não podia permitir ao concessionário prever essa evolução.

18      O Tribunal de Primeira Instância entendeu, no n.° 45 do acórdão recorrido, que se pode considerar que uma evolução contratual foi aceite antecipadamente, no momento da assinatura de um contrato de concessão legal e em razão dessa assinatura, quando se trata de uma evolução contratual legal que é perspectivada pelo contrato ou que o concessionário não pode recusar, face aos usos comerciais ou à regulamentação. Em contrapartida, segundo o Tribunal de Primeira Instância, não se pode admitir que uma evolução contratual ilegal possa ser considerada antecipadamente aceite no momento da assinatura de um contrato de distribuição legal e em razão dessa assinatura.

19      No n.° 46 de acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância concluiu que foi injustificadamente que a Comissão afirmou que a assinatura, pelos concessionários da Volkswagen, do contrato de concessão tinha sido aceite pelos concessionários das instruções em litígio.

20      No n.° 47 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância considerou que a Comissão fez uma interpretação errada da jurisprudência que invoca em apoio da sua tese, quando sustenta que, segundo os acórdãos do Tribunal de Justiça, AEG/Comissão e Ford/Comissão, já referidos, e de 24 de Outubro de 1995, Bayerische Motorenwerke (C‑70/93, Colect., p. I‑3439), bem como segundo o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 6 de Julho de 2000, Volkswagen/Comissão (T‑62/98, Colect., p. II‑2707), não é necessário, pelo menos no caso de sistemas de distribuição selectiva como o que está em causa, determinar se o comportamento que o concessionário adopta em relação às instruções do fabricante implica a sua aceitação dessas instruções, por exemplo, após as ter recebido, e que se deve considerar que essa aceitação se verifica, em princípio, pelo simples facto de o concessionário ter entrado na rede de distribuição.

21      No n.° 56 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância precisou que a tese sustentada pela Comissão é claramente infirmada pelos acórdãos do Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 1979, BMW Belgium e o./Comissão (32/78, 36/78 a 82/78, Recueil, p. 2435), e de 11 de Janeiro de 1990, Sandoz prodotti farmaceutici/Comissão (C‑277/87, Colect., p. I‑45), bem como pelo acórdão do Tribunal de Primeira Instância, Bayer/Comissão, já referido, invocados pela Volkswagen em apoio do seu recurso. Com efeito, todos estes acórdãos confirmam a necessidade, para se poder declarar a existência de um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE, de ser feita a prova de um concurso de vontades. Além disso, este deve ter por objecto um comportamento determinado, que deve, por conseguinte, ser conhecido das partes quando estas o aceitam.

22      No n.° 61 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância refere o argumento invocado pela Comissão a título subsidiário, segundo o qual, mesmo que se entenda que é necessária uma cláusula de reserva no contrato de concessão para se poder concluir que as instruções em litígio fazem parte desse contrato, há que considerar que o artigo 2.°, n.os 1 ou 6, do referido contrato constitui uma cláusula deste tipo.

23      O Tribunal de Primeira Instância rejeitou este argumento subsidiário, afirmando, no n.° 63 do acórdão recorrido, que o artigo 2.°, n.os 1 ou 6, do contrato de concessão só pode ser interpretado no sentido de que visa apenas os meios conformes com a lei. Sustentar o contrário significaria, segundo aquele Tribunal, deduzir de tal cláusula contratual, redigida em termos neutros, que os concessionários se tinham vinculado através de um pacto ilegal. O Tribunal de Primeira Instância acrescentou, no n.° 64 do acórdão recorrido, que o artigo 8.°, n.° 1, do contrato de concessão está igualmente redigido em termos neutros, ou mesmo em termos que proíbem a Volkswagen de emitir recomendações de preços vinculativas.

24      Nestas circunstâncias, o Tribunal de Primeira Instância anulou a decisão impugnada.

 Pedidos das partes e fundamento invocado em apoio do presente recurso

25      A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que anule o acórdão recorrido, que remeta o processo ao Tribunal de Primeira Instância e que condene a Volkswagen nas despesas.

26      Em apoio do seu recurso, invoca um único fundamento, relativo à violação pelo Tribunal de Primeira Instância do artigo 81.°, n.° 1, CE.

27      A Volkswagen pede ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao presente recurso e que condene a Comissão nas despesas.

 Quanto ao presente recurso

 Argumentos das partes

28      Com o seu fundamento, a Comissão alega que o Tribunal de Primeira Instância violou o artigo 81.°, n.° 1, CE, ao considerar que as instruções em litígio não constituíam acordos entre empresas na acepção da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça.

29      A Comissão refere que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a admissão de um concessionário numa rede de distribuição selectiva implica a sua aceitação expressa ou tácita da política de distribuição do construtor (acórdãos, já referidos, AEG/Comissão, n.° 38, e Ford/Comissão, n.° 21, bem como acórdão de 6 de Janeiro de 2004, BAI e Comissão/Bayer, C‑2/01 P e C‑3/01 P, Colect., p. I‑23, n.° 144).

30      A Comissão acrescenta que, segundo jurisprudência igualmente constante, uma instrução dada por um construtor de automóveis aos seus distribuidores sob contrato não constitui um acto unilateral, que escaparia ao âmbito de aplicação do artigo 85.°, n.° 1, CE, mas um acordo, na acepção desta disposição, quando se insere num conjunto de relações comerciais continuadas regidas por um acordo geral preestabelecido (v. acórdãos, já referidos, Ford/Comissão, n.° 21, e Bayerische Motorenwerke, n.os 15 e 16, bem como acórdão de 18 de Setembro de 2003, Volkswagen/Comissão, C‑338/00 P, Colect., p. I‑9189, n.° 60).

31      A Comissão alega que o acórdão recorrido foi proferido em violação dessa jurisprudência e é incompatível com a natureza dos sistemas de distribuição selectiva.

32      Segundo a Comissão, o concessionário, ao assinar o contrato de concessão, aceitou medidas futuras susceptíveis de se integrarem no quadro traçado por esse contrato. Sustenta que, contrariamente ao decidido pelo Tribunal de Primeira Instância nos n.os 45 e 56 do acórdão recorrido, essas medidas não devem necessariamente ser previstas pelo contrato de concessão ou estar em conformidade com a lei, para serem consideradas um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE.

33      A Volkswagen alega que a interpretação do conceito de acordo pelo Tribunal de Primeira Instância está em perfeita conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça e com a referida disposição do Tratado CE.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

34      A Comissão alega, no essencial, que o Tribunal de Primeira Instância não podia, sem cometer um erro de direito, ignorar que, ao assinar um contrato de concessão, o concessionário dá a priori o seu consentimento a todas as medidas adoptadas pelo construtor de automóveis no quadro dessa relação contratual.

35      Em apoio da sua tese, a Comissão recordou a jurisprudência constante segundo a qual uma instrução dada por um construtor de automóveis aos seus distribuidores sob contrato não constitui um acto unilateral, mas um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE, quando se insere num conjunto de relações comerciais continuadas regidas por um acordo geral preestabelecido.

36      Ora, a jurisprudência a que a Comissão faz referência não implica que qualquer instrução dada por um construtor de automóveis a concessionários constitua um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE e não dispensa a Comissão de demonstrar a existência de um concurso de vontades das partes no contrato de concessão em cada caso específico.

37      Há que assinalar que o Tribunal de Primeira Instância afirmou acertadamente, nos n.os 30 a 34 do acórdão recorrido, que, para constituir um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE, basta que um acto ou um comportamento aparentemente unilaterais sejam a expressão da vontade concordante de pelo menos duas partes, não sendo a forma como se manifesta essa concordância, por si só, determinante.

38      Como precisa a Volkswagen no n.° 29 da sua contestação ao presente recurso, a solução contrária teria por consequência inverter o ónus da prova da existência de uma infracção às regras da concorrência e violaria o princípio da presunção da inocência.

39      A vontade das partes pode resultar quer das cláusulas do contrato de concessão em questão quer do comportamento das partes, nomeadamente da eventual existência de uma aceitação tácita, por parte dos concessionários, da instrução do construtor (v., neste sentido, acórdão de 18 de Setembro de 2003, Volkswagen/Comissão, já referido, n.os 61 a 68).

40      No caso em apreço, quanto à primeira situação, a Comissão deduz a existência de uma vontade concordante entre as partes apenas das cláusulas do contrato de concessão em questão. O Tribunal de Primeira Instância devia, em consequência, como fez, examinar se as instruções em litígio estão expressamente contidas no contrato de concessão ou, pelo menos, se as cláusulas do contrato autorizam o construtor de automóveis a fazer uso dessas instruções.

41      A este respeito, há que recordar que, no n.° 20 do acórdão Ford/Comissão, já referido, o Tribunal de Justiça rejeitou um argumento relativo à natureza pretensamente unilateral de certas medidas de distribuição selectiva de veículos automóveis, referindo que os acordos de concessão devem necessariamente deixar certos aspectos para decisões posteriores do fabricante e que essas decisões estavam precisamente previstas no anexo 1 do contrato de concessão em questão.

42      Do mesmo modo, no n.° 64 do acórdão de 18 de Setembro de 2003, Volkswagen/Comissão, já referido, o Tribunal de Justiça considerou que o Tribunal de Primeira Instância tinha acertadamente julgado que as medidas tomadas pela Volkswagen para limitar as entregas de veículos automóveis aos concessionários italianos, aplicadas com o objectivo expresso de entravar as reexportações a partir de Itália, se inseriam nas relações comerciais continuadas das partes no contrato de concessão, tendo‑se o Tribunal de Primeira Instância baseado, nomeadamente, no facto de o contrato de concessão em questão prever a possibilidade de limitar essas entregas.

43      Neste contexto, há que observar que não resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a conformidade ou não das cláusulas do contrato em questão com as regras da concorrência seja necessariamente determinante no âmbito dessa apreciação. Donde se conclui que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito no seu acórdão, ao decidir, nos n.os 45 e 46 do acórdão recorrido, que não se pode considerar que cláusulas conformes com as regras da concorrência autorizem instruções contrárias a essas regras.

44      Com efeito, não se pode à partida excluir que uma instrução, que seria contrária às regras da concorrência, possa ser considerada autorizada pelas cláusulas aparentemente neutras de um contrato de concessão.

45      Por conseguinte, o Tribunal de Primeira Instância não podia, sem cometer um erro de direito, abster‑se de apreciar, caso a caso, as cláusulas do contrato de concessão, tendo em conta, eventualmente, todos os outros factores importantes, como os objectivos prosseguidos por esse contrato à luz do contexto económico e jurídico em que foi celebrado.

46      Quanto à segunda situação, ou seja, não havendo disposições contratuais pertinentes, a existência de um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE pressupõe a aceitação, expressa ou tácita, por parte dos concessionários, da medida adoptada pelo construtor de automóveis (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão BMW Belgium e o./Comissão, já referido, n.os 28 a 30).

47      No caso em apreço, não tendo a Comissão invocado a existência de aceitação expressa ou tácita por parte dos concessionários, essa segunda situação não tem interesse no âmbito do presente litígio.

48      Decorre das considerações precedentes que, para determinar se as instruções em litígio fazem parte do conjunto das relações comerciais da Volkswagen com os seus concessionários, o Tribunal de Primeira Instância deveria ter examinado se estavam previstas ou autorizadas pelas cláusulas do contrato de concessão, tendo em consideração os objectivos prosseguidos por esse contrato enquanto tal, à luz do contexto económico e jurídico em que foi celebrado.

49      Quanto à interpretação feita pelo Tribunal de Primeira Instância das cláusulas do contrato de concessão, há que recordar que decorre dos artigos 225.° CE e 58.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça que o Tribunal de Primeira Instância tem competência exclusiva para, por um lado, apurar a matéria de facto, excepto nos casos em que a inexactidão material desses factos resulte dos documentos constantes dos autos que lhe foram submetidos, e, por outro, para apreciar esses factos. A partir do momento em que o Tribunal de Primeira Instância verificou ou apreciou os factos, o Tribunal de Justiça é competente para exercer, ao abrigo do referido artigo 225.° CE, um controlo da qualificação jurídica desses factos e das consequências jurídicas daí retiradas pelo Tribunal de Primeira Instância (v., nomeadamente, acórdão de 17 de Dezembro de 1998, Baustahlgewebe/Comissão, C‑185/95 P, Colect., p. I‑8417, n.° 23).

50      No que diz respeito às cláusulas do contrato de concessão, o Tribunal de Primeira Instância declarou de forma soberana, no n.° 2 do acórdão recorrido, que, nos termos do artigo 2.°, n.os 1 ou 6, desse contrato, o concessionário se compromete, nomeadamente, a defender os interesses da organização de distribuição Volkswagen e da marca Volkswagen e a respeitar, para esse efeito, todas as exigências adequadas à execução do contrato quanto à distribuição de automóveis novos e à promoção das vendas.

51      Decorre igualmente do n.° 2 do acórdão recorrido que, nos termos do artigo 8.°, n.° 1, do contrato de concessão, a Volkswagen faz recomendações de preços não vinculativas relativas ao preço final e aos descontos.

52      Nos n.os 62 a 68 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância, no âmbito da apreciação concreta do contrato de concessão, declarou que esses artigos do contrato não podem ser entendidos no sentido de que autorizavam a Volkswagen a dirigir recomendações vinculativas aos concessionários, no que diz respeito ao preço dos veículos novos, e que as instruções em litígio não constituíam um acordo na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE.

53      Foi justificadamente que o Tribunal de Primeira Instância se apoiou na formulação das cláusulas do contrato de concessão para apreciar o seu conteúdo. No entanto, o Tribunal de Justiça, em princípio, não tem competência para fiscalizar, no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, a apreciação deste último, segundo a qual essas cláusulas foram redigidas em termos neutros, ou mesmo em termos que proibiam a Volkswagen de emitir recomendações de preços vinculativas. Todavia, há que observar que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito na medida em que julgou que não se pode considerar que cláusulas conformes com as regras da concorrência autorizem instruções contrárias a essas regras.

54      Todavia, esse erro não tem consequências na justeza da conclusão a que o Tribunal de Primeira Instância chegou, segundo a qual as instruções em litígio não podem, no caso em apreço, ser qualificadas de «acordo» na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE.

55      Tendo em conta as considerações precedentes, há que declarar que o Tribunal de Primeira Instância concluiu acertadamente, no n.° 68 do acórdão recorrido, que a decisão impugnada devia ser anulada.

56      Conclui‑se que deve ser negado provimento ao recurso.

 Quanto às despesas

57      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, aplicável aos recursos de decisões do Tribunal de Primeira Instância por força do artigo 118.° do mesmo regulamento, a parte vencida deve ser condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Volkswagen requerido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Comissão das Comunidades Europeias é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.