Language of document : ECLI:EU:C:2023:668

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

14 de setembro de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Acordo sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia, por um lado, e a República da Islândia e o Reino da Noruega, por outro — Artigo 1.o, n.o 3 — Direitos fundamentais — Recusa de execução por um Estado‑Membro de um mandado de detenção emitido pelo Reino da Noruega — Emissão de um novo mandado de detenção pelo Reino da Noruega contra a mesma pessoa pelos mesmos factos — Apreciação por outro Estado‑Membro — Tomada em consideração da recusa de execução do primeiro mandado de detenção»

No processo C‑71/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária), por Decisão de 4 de fevereiro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de fevereiro de 2021, no processo relativo à execução de um mandado de detenção emitido contra

KT,

sendo interveniente:

Sofyiska gradska procuratura,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

composto por: P. G. Xuereb, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, e T. von Danwitz, juiz,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação da Irlanda, por M. Browne, A. Joyce e J. Quaney, na qualidade de agentes, assistidos por M. Gráinne, BL,

—        em representação do Governo Húngaro, por M. Z. Fehér e R. Kissné Berta, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo Austríaco, por J. Schmoll, C. Leeb e A. Posch, na qualidade de agentes,

—        em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o TUE, dos artigos 21.o, n.o 1, e 67.o, n.o 1, TFUE, do artigo 6.o e do artigo 45.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), do artigo 1.o, n.os 2 e 3, do Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega (JO 2006, L 292, p. 2), aprovado, em nome da União Europeia, pela Decisão 2014/835/UE do Conselho, de 27 de novembro de 2014, relativa à celebração do Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega (JO 2014, L 343, p. 1), e que entrou em vigor em 1 de novembro de 2019 (a seguir «Acordo sobre os processos de entrega»), bem como do artigo 8.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo à execução, na Bulgária, de um mandado de detenção emitido pela Procuradoria Regional de Hordaland (Noruega) contra KT.

 Quadro jurídico

 Acordo sobre os processos de entrega

3        O preâmbulo do Acordo sobre os processos de entrega dispõe:

«A União Europeia,

por um lado, e

a República da Islândia

e

o Reino da Noruega,

por outro,

a seguir designados “as partes contratantes”,

Desejando melhorar a cooperação judiciária em matéria penal entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega, sem prejuízo das regras que protegem as liberdades individuais,

Considerando que as atuais relações entre as partes contratantes requerem uma estreita cooperação na luta contra a criminalidade,

Expressando a sua confiança mútua na estrutura e no funcionamento dos respetivos sistemas jurídicos e na capacidade de todas as partes contratantes garantirem a equidade dos processos judiciais,

Considerando que [a República da] Islândia e [o Reino da] Noruega têm exprimido o desejo de firmar com os Estados‑Membros da União Europeia um acordo que lhes permita tornar mais expeditos os mecanismos de transferência de suspeitos e condenados e aplicar um processo de entrega em conjunto com os Estados‑Membros;

[…]»

4        O artigo 1.o, n.os 1 e 3, desta lei tem a seguinte redação:

«1.      As partes contratantes comprometem‑se a, nos termos do disposto no presente acordo, melhorar o processo de entrega para fins de ação penal ou execução de sentença entre os Estados‑Membros, por um lado, e o Reino da Noruega e a República da Islândia, por outro, utilizando, como normas mínimas, os termos da Convenção de 27 de setembro de 1996 relativa à Extradição entre os Estados‑Membros da União Europeia.

2.      As partes contratantes comprometem‑se a, nos termos do disposto no presente acordo, assegurar que o regime de extradição entre os Estados‑Membros, por um lado, e o Reino da Noruega e a República da Islândia, por outro, se baseie num mecanismo de entrega por força de um mandado de detenção nos termos do presente acordo.

3.      O presente acordo não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados na [CEDH] ou, em caso de execução pela autoridade judiciária de um Estado‑Membro, dos princípios a que se refere o artigo 6.o [UE].»

5        Nos termos do artigo 2.o, n.o 5, do referido acordo:

«Por “mandado de detenção”, entende‑se uma decisão judicial emitida por um Estado com vista à detenção e entrega por outro Estado de uma pessoa procurada, para efeitos de ação penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.»

6        Os artigos 4.o a 8.o do mesmo acordo preveem os motivos de não execução do mandado de detenção, bem como as condições a que a execução de um mandado de detenção pode estar sujeita.

7        O artigo 4.o, ponto 2, do Acordo sobre os processos de entrega dispõe:

«Os Estados devem estabelecer a obrigação, para a autoridade judiciária de execução, de recusar a execução de um mandado de detenção nos seguintes casos:

[…]

2.      Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução se concluir que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado, na condição de, em caso de condenação, a pena ter sido cumprida ou estar atualmente em cumprimento ou não poder já ser cumprida segundo as leis do Estado de condenação;

[…]»

8        O artigo 34.o, n.o 1, do mesmo acordo tem a seguinte redação:

«Sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre Estados e Estados terceiros, as disposições constantes do presente acordo substituem, a partir da sua entrada em vigor, as disposições correspondentes das convenções que se seguem, aplicáveis em matéria de extradição nas relações entre a Noruega e a Islândia, por um lado, e os Estados‑Membros, por outro:

a)      A Convenção Europeia de Extradição, de 13 de dezembro de 1957, o seu Protocolo Adicional de 15 de outubro de 1975, o seu Segundo Protocolo Adicional, de 17 de março de 1978, e a Convenção Europeia para a Repressão do Terrorismo, de 27 de janeiro de 1977, no que diz respeito à extradição, com a redação que lhe foi dada pelo Protocolo de 2003, uma vez entrado em vigor;

[…]»

 DecisãoQuadro 2002/584/JAI

9        O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»), tem a seguinte redação:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [UE].»

10      Os artigos 3.o a 5.o da Decisão‑Quadro 2002/584 enunciam os motivos de não execução do mandado de detenção europeu, bem como as condições a que a execução de um mandado de detenção europeu pode estar sujeita.

11      O artigo 3.o, ponto 2, da referida decisão‑quadro dispõe:

«A autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução (a seguir designada “autoridade judiciária de execução”) recusa a execução de um mandado de detenção europeu nos seguintes casos:

[…]

2.      Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado‑Membro, na condição de que, em caso de condenação, a pena tenha sido cumprida ou esteja atualmente em cumprimento ou não possa já ser cumprida segundo as leis do Estado‑Membro de condenação;

[…]»

12      O artigo 31.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro enuncia:

«Sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre Estados‑Membros e Estados terceiros, as disposições constantes da presente decisão‑quadro substituem, a partir de 1 de janeiro de 2004, as disposições correspondentes das convenções que se seguem, aplicáveis em matéria de extradição nas relações entre os Estados‑Membros:

a)      A Convenção europeia de extradição de 13 de dezembro de 1957, o seu protocolo adicional de 15 de outubro de 1975, o seu segundo protocolo adicional de 17 de março de 1978 e a Convenção europeia para a repressão do terrorismo de 27 de janeiro de 1977, no que diz respeito à extradição;

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      KT, que reside com os filhos na Bulgária, é objeto de uma ação penal na Noruega por atos cometidos no seu território, qualificados, pelas autoridades que conduzem essa ação, de fraude que causou prejuízo ao sistema norueguês de segurança social.

14      No âmbito dessas ações penais, a autoridade norueguesa competente emitiu, em 26 de julho de 2018, um mandado de detenção contra KT, que foi difundido através do Sistema de Informação de Schengen (SIS).

15      Em 25 de novembro de 2019, KT foi detido, aquando da sua entrada na Polónia, com base no alerta SIS de que era objeto para efeitos de detenção.

16      Em 27 de novembro de 2019, a autoridade norueguesa competente emitiu um mandado de detenção com base no Acordo sobre os processos de entrega.

17      Em 15 de janeiro de 2020, o Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia) recusou a execução desse mandado de detenção com fundamento no artigo 1.o, n.o 3, do referido acordo, por considerar que a entrega de KT às autoridades norueguesas implicaria uma violação do artigo 8.o da CEDH. Segundo este órgão jurisdicional, tal entrega teria como consequência a colocação dos filhos de KT numa família de acolhimento e a rutura definitiva da ligação destes com o pai. O referido órgão jurisdicional considerou também que as autoridades norueguesas podiam recorrer a outras formas de cooperação judiciária em matéria penal com a República da Bulgária no âmbito do processo penal em causa.

18      O recurso interposto desta decisão pelo Ministério Público competente foi arquivado, em 24 de fevereiro de 2020, pelo Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Polónia).

19      Em 10 de março de 2020, KT foi detido, aquando da sua entrada no território búlgaro, com base no alerta SIS para efeitos da sua detenção de que continuava a ser objeto.

20      Em 12 de março de 2020, o Ministério Público Regional de Hordaland, Sogn og Fjordane (Noruega) emitiu um novo mandado de detenção contra KT, no âmbito da mesma ação penal e com os mesmos fundamentos que serviram de base à emissão do mandado de detenção de 27 de novembro de 2019.

21      Em 16 de março de 2020, o Sofiyska gradska prokuratura (Ministério Público da cidade de Sófia, Bulgária) apresentou no Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária), órgão jurisdicional de reenvio, um pedido de execução do mandado de detenção emitido em 12 de março de 2020.

22      Neste contexto, por um lado, o referido órgão jurisdicional suscita a questão de saber se é possível emitir vários mandados de detenção contra a mesma pessoa no âmbito de um mesmo processo penal.

23      Refere, a esse respeito, que, tendo em conta as semelhanças que podem observar‑se entre as disposições do Acordo sobre os processos de entrega e as disposições correspondentes da Decisão‑Quadro 2002/584, é possível aplicar, por analogia, o Acórdão de 25 de julho de 2018, AY (Mandado de detenção — Testemunha) (C‑268/17, EU:C:2018:602), no qual o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente a essa questão. Salienta, no entanto, que, diversamente do processo que deu origem a esse acórdão, os dois mandados de detenção em causa no processo principal foram emitidos no âmbito da mesma fase do processo penal em causa. Além disso, este acordo não contém uma disposição equivalente ao artigo 1.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, relativo à obrigação de execução dos mandados de detenção europeus.

24      O referido órgão jurisdicional interroga‑se, por outro lado, sobre a eventual incidência de uma recusa anteriormente oposta por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro à execução de um mandado de detenção emitido pelo Reino da Noruega contra uma mesma pessoa procurada no âmbito de um mesmo processo penal.

25      O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que o estado de saúde de KT é frágil e que teve de ser hospitalizado diversas vezes.

26      Nestas circunstâncias, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      As disposições do artigo 1.o, n.os 2 e 3, do [Acordo sobre os processos de entrega] permitem a emissão de um novo mandado de [detenção] para o exercício da ação penal [contra] uma pessoa cuja entrega tenha sido recusada por um Estado‑Membro da União Europeia com base no artigo 1.o, n.o 3, do Acordo, em conjugação com o artigo 6.o [TUE] e o artigo 8.o da [CEDH]?

2.      As disposições do artigo 1.o, n.o 3, do [Acordo sobre os processos de entrega], bem como dos artigos 21.o, n.o 1, e 67.o, n.o 1, [TFUE] e dos artigos 6.o e 45.o, n.o 1, da [Carta], permitem que um Estado‑Membro destinatário de um mandado de detenção possa decidir novamente no caso de outro Estado‑Membro se ter recusado a entregar a mesma pessoa para ser julgada pelo mesmo delito, depois de a pessoa procurada ter exercido o seu direito à liberdade de circulação e se ter deslocado do Estado onde a entrega foi recusada para o Estado destinatário do novo mandado de detenção?»

 Quanto à tramitação do processo no Tribunal de Justiça

27      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente pedido de decisão prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

28      Por decisão de 22 de fevereiro de 2021, o Tribunal de Justiça, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, decidiu não deferir esse pedido, uma vez que não estavam reunidas as condições previstas pelo artigo 107.o do Regulamento de Processo.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

29      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 3, do Acordo sobre os processos de entrega deve ser interpretado no sentido de que se opõe à emissão de vários mandados de detenção sucessivos contra uma pessoa procurada com vista a obter a sua entrega por um Estado parte do referido acordo depois de a execução de um primeiro mandado de detenção contra essa pessoa ter sido recusada por outro Estado parte do referido acordo.

30      A título preliminar, há que recordar que as disposições do Acordo sobre os processos de entrega são muito semelhantes às disposições correspondentes da Decisão‑Quadro 2002/584 (Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija, C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 74).

31      Neste contexto, importa salientar que nenhuma disposição do referido acordo exclui a emissão de vários mandados de detenção sucessivos contra uma pessoa, incluindo quando a execução de um primeiro mandado de detenção contra essa pessoa tenha sido recusada.

32      Além disso, resulta do artigo 1.o, n.os 1 e 2, do referido acordo, lido à luz do seu preâmbulo, que este visa melhorar e acelerar a cooperação judiciária em matéria penal entre os Estados‑Membros, por um lado, e o Reino da Noruega e a República da Islândia, por outro, através de um mecanismo de entrega baseado numa cooperação estreita entre estes Estados e na confiança mútua manifestada pelos referidos Estados na estrutura e no funcionamento dos respetivos sistemas jurídicos, bem como na sua capacidade de garantir um processo equitativo.

33      Para lá disso, o artigo 34.o, n.o 1, do Acordo sobre os processos de entrega indica, à semelhança do artigo 31.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, que este acordo substitui as disposições correspondentes das Convenções que enumera, entre as quais figura, nomeadamente, a Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris, em 13 de dezembro de 1957, nas relações entre os Estados‑Membros, por um lado, e o Reino da Noruega e a República da Islândia, por outro.

34      O sistema de entrega previsto no referido acordo visa assim, à semelhança desta decisão‑quadro, através da instauração de um sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, facilitar e acelerar a cooperação judiciária entre os Estados partes do mesmo acordo e lutar contra a impunidade de uma pessoa procurada que se encontra num território diferente daquele em que alegadamente cometeu uma infração.

35      Ora, uma proibição sistemática, para a autoridade de emissão de um Estado parte do Acordo sobre os processos de entrega, de emitir um novo mandado de detenção em caso de recusa de execução de um primeiro mandado de detenção por outro Estado parte nesse acordo prejudicaria a eficácia do sistema de entrega instituído pelo referido acordo e implicaria um risco de impunidade de pessoas que tentam fugir à justiça.

36      Assim, essa emissão pode revelar‑se necessária, especialmente após os elementos que impediram a execução de um primeiro mandado de detenção terem sido afastados ou, quando a decisão de recusa de execução desse mandado de detenção não estiver em conformidade com o direito da União, com vista a conduzir o processo de entrega de uma pessoa procurada ao seu termo e, assim, favorecer a realização do objetivo de luta contra a impunidade prosseguido por este acordo (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 141).

37      Em contrapartida, importa salientar, em primeiro lugar, que o artigo 1.o, n.o 3, do referido acordo prevê que este não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados na CEDH ou, em caso de execução pela autoridade judiciária de um Estado‑Membro, dos princípios a que se refere o artigo 6.o TUE, o qual concerne, designadamente, aos direitos fundamentais consagrados pela Carta.

38      Daqui resulta que a existência de um risco de violação dos direitos fundamentais enunciados na Carta é suscetível de permitir à autoridade judiciária de execução que se abstenha, a título excecional e na sequência de um exame adequado, de dar seguimento a um mandado de detenção, com base no artigo 1.o, n.o 3, do Acordo sobre os processos de entrega (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 72).

39      Assim, a emissão de um mandado de detenção cuja execução conduzisse a uma violação da Carta e devesse, nas condições expostas no número anterior, ser recusada pela autoridade judiciária de execução não é compatível com os princípios da confiança mútua e da cooperação estreita no combate à criminalidade recordados no n.o 32 do presente acórdão (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 142).

40      Por conseguinte, uma autoridade judiciária de emissão não pode, quando não haja uma alteração das circunstâncias, emitir um novo mandado de detenção contra uma pessoa depois de uma autoridade judiciária de execução ter recusado dar seguimento a um anterior mandado de detenção emitido contra essa pessoa, em conformidade com o que lhe impunha o artigo 1.o, n.o 3, do Acordo sobre os processos de entrega (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 143).

41      Em segundo lugar, uma vez que a emissão de um mandado de detenção pode ter por consequência a detenção da pessoa que é objeto desse mandado e, por conseguinte, é suscetível de comprometer a liberdade individual desta última, cabe à autoridade judiciária que tenciona emitir um mandado de detenção examinar se, à luz das especificidades do caso concreto, essa emissão reveste um caráter proporcionado (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 144).

42      No âmbito desse exame, incumbe nomeadamente a essa autoridade judiciária ter em conta a natureza e a gravidade da infração pela qual a pessoa procurada é acusada, as consequências para essa pessoa do ou dos mandados de detenção anteriormente emitidos contra a mesma ou ainda as perspetivas de execução de um eventual novo mandado de detenção (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 145).

43      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 1.o, n.o 3, do Acordo sobre os processos de entrega deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à emissão de vários mandados de detenção sucessivos contra uma pessoa procurada com vista a obter a sua entrega por um Estado parte desse acordo depois de a execução de um primeiro mandado de detenção contra essa pessoa ter sido recusada por outro Estado parte do referido acordo, desde que a execução do novo mandado de detenção não dê lugar a uma violação da referida disposição e que a emissão desse último mandado de detenção revista um caráter proporcionado.

 Quanto à segunda questão

44      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Acordo sobre os processos de entrega, os artigos 21.o, n.o 1, e 67.o, n.o 1, TFUE, bem como os artigos 6.o e 45.o, n.o 1, da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a execução de um mandado de detenção por um Estado‑Membro seja recusada tendo como único motivo a recusa, por outro Estado‑Membro, de execução de um primeiro mandado de detenção emitido pela República da Islândia ou pelo Reino da Noruega contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos.

45      A este respeito, importa salientar que é certo que o Acordo sobre os processos de entrega não contém uma disposição equivalente ao artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584, relativo à obrigação de execução dos mandados de detenção europeus.

46      Assim sendo, conforme salientado nos n.os 32 a 34 do presente acórdão, o sistema de entrega previsto por este acordo visa, à semelhança desta decisão‑quadro, através da instauração de um sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, facilitar e acelerar a cooperação judiciária entre, por um lado, os Estados‑Membros e, por outro, a República da Islândia e o Reino da Noruega, bem como lutar contra a impunidade de uma pessoa procurada que se encontra num território diferente daquele em que alegadamente cometeu uma infração.

47      Além disso, o referido acordo está estruturado da mesma maneira que a referida decisão‑quadro e enumera, nos artigos 4.o a 8.o, os motivos de não execução de um mandado de detenção e as condições a que a execução de um mandado de detenção pode ser sujeita, à semelhança do que preveem os artigos 3.o a 5.o da mesma decisão‑quadro.

48      Daqui resulta que, não obstante não existir uma disposição expressa nesse sentido no Acordo sobre os processos de entrega, os Estados partes nesse acordo estão, em princípio, obrigados a dar seguimento a um mandado de detenção emitido por outro Estado parte no referido acordo e só podem recusar executar esse mandado por motivos resultantes do mesmo acordo.

49      Em especial, conforme recordado no n.o 38 do presente acórdão, a existência de um risco de violação dos direitos fundamentais enunciados na Carta é suscetível de permitir à autoridade judiciária de execução abster‑se, a título excecional e na sequência de um exame adequado, de dar seguimento a um mandado de detenção, com base no artigo 1.o, n.o 3, do Acordo sobre os processos de entrega.

50      A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, numa situação em que existam motivos sérios e comprovados para crer que, em caso de entrega ao Estado de emissão, a pessoa procurada correrá um risco de redução significativa da sua esperança de vida ou de deterioração rápida, significativa e irremediável do seu estado de saúde, importa igualmente ter em conta esta disposição [v., por analogia, Acórdão de 18 de abril de 2023, E. D. L. (Motivo de recusa fundado em doença), C‑699/21, EU:C:2023:295, n.os 42, 50 e 52].

51      Em contrapartida, nenhuma disposição do Acordo sobre os processos de entrega prevê a possibilidade de recusar a execução de um mandado de detenção quando a execução de um primeiro mandado de detenção que tenha por objeto a mesma pessoa e os mesmos factos tenha sido recusada por um Estado parte nesse acordo.

52      Assim, há que observar que a decisão de uma autoridade de execução de recusar a execução de um mandado de detenção não pode ser equiparada ao facto de a pessoa procurada ter sido «definitivamente julgada», na aceção do artigo 4.o, ponto 2, do referido acordo, única circunstância suscetível de obstar à ação penal, pelos mesmos factos, contra essa pessoa, no Estado de emissão ou em qualquer outro Estado.

53      Importa recordar, a este respeito, que uma pessoa procurada é considerada definitivamente julgada pelos mesmos factos na aceção do artigo 3.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584, o qual corresponde, em substância, ao artigo 4.o, ponto 2, do mesmo acordo, quando, na sequência de um processo penal, a ação pública fica definitivamente extinta ou ainda quando as autoridades judiciárias de um Estado‑Membro tiverem proferido uma decisão que absolva definitivamente o arguido dos factos de que foi acusado (v., neste sentido, Acórdão de 16 de novembro de 2010, Mantello, C‑261/09, EU:C:2010:683, n.o 45).

54      Ora, o exame de um pedido de entrega não implica a instauração de uma ação penal pelo Estado de execução contra a pessoa cuja entrega é requerida e não implica uma apreciação quanto ao mérito do processo.

55      Nestas condições, embora seja certo que a existência de uma decisão da autoridade de execução de um Estado‑Membro de recusar a execução de um mandado de detenção emitido pela República da Islândia ou pelo Reino da Noruega com base no artigo 1.o, n.o 3, do Acordo sobre os processos de entrega deva incitar à vigilância da autoridade de execução de outro Estado‑Membro à qual foi submetido um novo mandado de detenção emitido por esse Estado contra a mesma pessoa pelos mesmos factos, esta circunstância não é suscetível de dispensar a autoridade de execução do segundo Estado‑Membro da sua obrigação de analisar o pedido de entrega e de adotar uma decisão sobre a execução do mandado de detenção.

56      Não é possível retirar uma conclusão diferente dos artigos 21.o, n.o 1, TFUE ou 67.o, n.o 1, TFUE, nem dos artigos 6.o ou 45.o, n.o 1, da Carta.

57      Com efeito, decorre do artigo 2.o, n.o 5, do Acordo sobre os processos de entrega que o conceito de «mandado de detenção», na aceção deste acordo, é definido como uma decisão judicial emitida por um Estado parte no referido acordo com vista à detenção e entrega por outro Estado parte do mesmo acordo de uma pessoa procurada para efeitos de ação penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

58      Daqui resulta que o objeto do mecanismo de entrega previsto no Acordo sobre os processos de entrega é permitir a detenção e a entrega de uma pessoa procurada para que a infração cometida não fique impune e essa pessoa seja julgada ou cumpra a pena privativa de liberdade contra si proferida [v., por analogia, Acórdão de 30 de junho de 2022, Spetsializirana prokuratura (Informações sobre a decisão nacional de detenção), C‑105/21, EU:C:2022:511, n.o 74].

59      A detenção da pessoa cuja entrega é pedida através da emissão de um mandado de detenção faz, por conseguinte, parte integrante do sistema de entrega previsto pelo referido acordo.

60      Ora, embora essa detenção provisória constitua uma restrição do direito da pessoa procurada à livre circulação, bem como do seu direito à liberdade e à segurança, deve, no entanto, em princípio, ser considerada justificada pelo objetivo legítimo de evitar a impunidade dessa pessoa, objetivo que se insere no contexto do espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação das pessoas, previsto no artigo 3.o, n.o 2, TUE [v., por analogia, Acórdão de 12 de maio de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Alerta vermelho da Interpol) (C‑505/19, EU:C:2021:376, n.o 86)].

61      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o Acordo sobre os processos de entrega deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que a execução de um mandado de detenção por um Estado‑Membro seja recusada apenas pelo facto de outro Estado‑Membro ter recusado a execução de um primeiro mandado de detenção emitido pela República da Islândia ou pelo Reino da Noruega contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos.

 Quanto às despesas

62      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

1)      O artigo 1.o, n.o 3, do Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os EstadosMembros da União Europeia e a Islândia e a Noruega, aprovado, em nome da União Europeia, pela Decisão 2014/835/UE do Conselho, de 27 de novembro de 2014, relativa à celebração do Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os EstadosMembros da União Europeia e a Islândia e a Noruega,

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe à emissão de vários mandados de detenção sucessivos contra uma pessoa procurada com vista a obter a sua entrega por um Estado parte desse acordo depois de a execução de um primeiro mandado de detenção contra essa pessoa ter sido recusada por outro Estado parte do referido acordo, desde que a execução do novo mandado de detenção não dê lugar a uma violação da referida disposição e que a emissão desse último mandado de detenção revista um caráter proporcionado.

2)      O Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os EstadosMembros da União Europeia e a Islândia e a Noruega, aprovado, em nome da União Europeia, pela Decisão 2014/835,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a que a execução de um mandado de detenção por um EstadoMembro seja recusada apenas pelo facto de outro EstadoMembro ter recusado a execução de um primeiro mandado de detenção emitido pela República da Islândia ou pelo Reino da Noruega contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos.

Assinaturas


*      Língua do processo: búlgaro.