Language of document : ECLI:EU:C:2023:671

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

14 de setembro de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 593/2008 — Lei aplicável às obrigações contratuais — Âmbito de aplicação — Contratos de utilização periódica de bens imóveis — Ação judicial destinada a que esses contratos sejam declarados nulos — Partes nacionais do Reino Unido — Escolha da lei aplicável — Artigo 3.o — Liberdade de escolha — Artigo 4.o, n.o 1, alíneas b) e c) — Lei aplicável na falta de escolha — Artigo 6.o — Contratos de consumo — Limites»

No processo C‑632/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.o 2 de Granadilla de Abona (Tribunal de Primeira Instância e de Instrução n.o 2 de Granadilla de Abona, Espanha), por Decisão de 13 de outubro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de outubro de 2021, no processo

JF,

NS,

contra

Diamond Resorts Europe Limited (Sucursal en España),

Diamond Resorts Spanish Sales S. L.,

Sunterra Tenerife Sales S. L.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: M. L. Arastey Sahún, presidente de secção, F. Biltgen (relator) e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de JF e NS, por A. García Cami, procurador, e L. Mancera Molero, abogada,

–        em representação da Diamond Resorts Europe Limited (Sucursal en España), Diamond Resorts Spanish Sales S. L. e Sunterra Tenerife Sales S. L., por M.‑D. Gómez Dabic e J. M. Macías Castaño, abogados,

–        em representação do Governo Espanhol, por A. Ballesteros Panizo, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo Checo, por L. Halajová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por I. Galindo Martín e W. Wils, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.o 3, e do artigo 5.o da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta a assinatura em Roma em 19 de junho de 1980 (JO 1980, L 266, p. 1; EE 01/03, p. 36; a seguir «Convenção de Roma»), bem como do artigo 4.o, n.o 1, alíneas b) e c), do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 24.o do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008, L 177, p. 6, a seguir «Regulamento Roma I»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe JF e NS à Diamond Resorts Europe Limited (Sucursal en España) (a seguir «Diamond Resorts Europe»), à Diamond Resorts Spanish Sales S. L. e à Sunterra Tenerife Sales S. L. a propósito de um pedido destinado a que esses contratos de utilização periódica de bens imóveis, celebrados entre os recorrentes no processo principal e a Diamond Resorts Europe, sejam declarados nulos.

 Quadro jurídico

 Primeiro Protocolo

3        O artigo 1.o do Primeiro Protocolo relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta a assinatura em Roma a 19 de junho de 1980 (JO 1989, L 48, p. 1, a seguir «Primeiro Protocolo»), que entrou em vigor em 1 de agosto de 2004, dispõe:

«O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias é competente para decidir sobre a interpretação:

a)      Da [Convenção de Roma];

[…]»

4        O artigo 2.o do Primeiro Protocolo prevê:

«Qualquer órgão jurisdicional abaixo referido pode solicitar ao Tribunal de Justiça que decida a título prejudicial sobre uma questão suscitada em processo pendente e que incida sobre a interpretação das disposições contidas nos instrumentos referidos no artigo 1.o, sempre que esse órgão jurisdicional considere que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa:

a)      […]

–        em Espanha:

el Tribunal Supremo,

[…]

b)      Os órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes sempre que decidam em recurso.»

 Direito da União

 Regulamento Roma I

5        Os considerandos 6, 7, 23 e 27 do Regulamento Roma I enunciam:

«(6)      O bom funcionamento do mercado interno exige que, para favorecer a previsibilidade do resultado dos litígios, a certeza quanto à lei aplicável e a livre circulação das decisões judiciais, as normas de conflitos de leis em vigor nos Estados‑Membros designem a mesma lei nacional, independentemente do país em que se situe o tribunal no qual é proposta a ação.

(7)      O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [(JO 2001, L 12, p. 1)] (Bruxelas I) e com o Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») [(JO 2007, L 199, p. 40)].

[…]

(23)      No caso dos contratos celebrados com partes consideradas vulneráveis, é oportuno protegê‑las através de normas de conflitos de leis que sejam mais favoráveis aos seus interesses do que as normas gerais.

[…]

(27)      Deverão ser abertas várias exceções à norma geral de conflitos de leis para os contratos celebrados por consumidores. Ao abrigo de uma dessas exceções, a regra geral não deverá ser aplicável aos contratos que têm por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de tais bens, salvo se o contrato tem por objeto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na aceção da Diretiva 94/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 1994, relativa à proteção dos adquirentes quanto a certos aspetos dos contratos de aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de bens imóveis [(JO 1994, L 280, p. 83].»

6        O artigo 1.o deste regulamento, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação material», dispõe, no seu n.o 1:

«O presente regulamento é aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis.

Não se aplica, em especial, às matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.»

7        O artigo 3.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Liberdade de escolha», prevê:

«1.      O contrato rege‑se pela lei escolhida pelas partes. A escolha deve ser expressa ou resultar de forma clara das disposições do contrato, ou das circunstâncias do caso. Mediante a sua escolha, as partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a parte do contrato.

2.      Em qualquer momento, as partes podem acordar em subordinar o contrato a uma lei diferente da que precedentemente o regulava, quer por força de uma escolha anterior nos termos do presente artigo, quer por força de outras disposições do presente regulamento. Qualquer modificação quanto à determinação da lei aplicável, ocorrida posteriormente à celebração do contrato, não afeta a validade formal do contrato, nos termos do artigo 11.o, nem prejudica os direitos de terceiros.

3.      Caso todos os outros elementos relevantes da situação se situem, no momento da escolha, num país que não seja o país da lei escolhida, a escolha das partes não prejudica a aplicação das disposições da lei desse outro país não derrogáveis por acordo.

4.      Caso todos os outros elementos relevantes da situação se situem, no momento da escolha, num ou em vários Estados‑Membros, a escolha pelas partes de uma lei aplicável que não seja a de um Estado‑Membro não prejudica a aplicação, se for caso disso, das disposições de direito comunitário não derrogáveis por acordo, tal como aplicadas pelo Estado‑Membro do foro.

5.      A existência e a validade do consentimento das partes quanto à escolha da lei aplicável são determinadas nos termos dos artigos 10.o, 11.o e 13.o»

8        Nos termos do artigo 4.o deste regulamento, sob a epígrafe «Lei aplicável na falta de escolha»:

«1.      Na falta de escolha nos termos do artigo 3.o e sem prejuízo dos artigos 5.o a 8.o, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo:

[…]

b)      O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual;

c)      O contrato que tem por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel é regulado pela lei do país onde o imóvel se situa;

d)      Sem prejuízo da alínea c), o arrendamento de um bem imóvel celebrado para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos é regulado pela lei do país em que o proprietário tem a sua residência habitual, desde que o locatário seja uma pessoa singular e tenha a sua residência habitual nesse mesmo país;

[…]»

9        O artigo 6.o do Regulamento Roma I, sob a epígrafe «Contratos celebrados por consumidores», prevê:

«1.      Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar‑se estranha à sua atividade comercial ou profissional (“o consumidor”), com outra pessoa que aja no quadro das suas atividades comerciais ou profissionais (“o profissional”), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profissional:

a)      Exerça as suas atividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou

b)      Por qualquer meio, dirija essas atividades para este ou vários países, incluindo aquele país,

e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas atividades.

2.      Sem prejuízo do n.o 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.o 1, nos termos do artigo 3.o Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.o 1.

3.      Caso não sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nas alíneas a) ou b) do n.o 1, a lei aplicável ao contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é determinada de acordo com os artigos 3.o e 4.o

4.      Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes:

a)      Contratos de prestação de serviços quando os serviços devam ser prestados ao consumidor exclusivamente num país diferente daquele em que este tem a sua residência habitual;

[…]

c)      Contratos que tenham por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objeto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na aceção da Diretiva [94/47];

[…]»

10      O artigo 9.o deste regulamento, sob a epígrafe «Normas de aplicação imediata», tem a seguinte redação:

«1.      As normas de aplicação imediata são disposições cujo respeito é considerado fundamental por um país para a salvaguarda do interesse público, designadamente a sua organização política, social ou económica, ao ponto de exigir a sua aplicação em qualquer situação abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei que de outro modo seria aplicável ao contrato, por força do presente regulamento.

2.      As disposições do presente regulamento não podem limitar a aplicação das normas de aplicação imediata do país do foro.

3.      Pode ser dada prevalência às normas de aplicação imediata da lei do país em que as obrigações decorrentes do contrato devam ser ou tenham sido executadas, na medida em que, segundo essas normas de aplicação imediata, a execução do contrato seja ilegal. Para decidir se deve ser dada prevalência a essas normas, devem ser tidos em conta a sua natureza e o seu objeto, bem como as consequências da sua aplicação ou não aplicação.»

11      O artigo 24.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Relação com a Convenção de Roma», prevê:

«1.      O presente regulamento substitui, entre os Estados‑Membros, a Convenção de Roma, com exceção dos territórios dos Estados‑Membros que são abrangidos pelo âmbito de aplicação territorial da Convenção e que ficam excluídos do presente regulamento por força do artigo 299.o do Tratado.

2.      Na medida em que o presente regulamento substitui as disposições da Convenção de Roma, as referências feitas à referida Convenção entendem‑se como sendo feitas ao presente regulamento.»

12      O artigo 28.o deste regulamento, sob a epígrafe «Aplicação no tempo», dispõe:

«O presente regulamento é aplicável aos contratos celebrados a contar de 17 de dezembro de 2009.»

 Diretiva 94/47

13      A Diretiva 94/47 tem por objeto a aproximação das disposições legislativas, regulamentares a administrativas dos Estados‑Membros relativas à proteção dos adquirentes relativamente a certos aspetos dos contratos direta ou indiretamente referentes à aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de um ou mais bens imóveis.

 Diretiva 2008/122/CE

14      A Diretiva 2008/122/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de janeiro de 2009, sobre a proteção do consumidor relativamente a determinados aspetos dos contratos de utilização periódica de bens, de aquisição de produtos de férias de longa duração, de revenda e de troca (JO 2009, L 33, p. 10), revogou e substituiu a Diretiva 94/47.

 Regulamento Bruxelas IA

15      O Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1, a seguir «Regulamento Bruxelas I‑A»), revogou e substituiu o Regulamento n.o 44/2001, que tinha substituído a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32).

16      O artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A prevê:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

1)      a)      Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b)      Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

[…]

–        no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados […]»

17      O artigo 24.o, n.o 1, deste regulamento dispõe:

«Têm competência exclusiva os seguintes tribunais de um Estado‑Membro, independentemente do domicílio das partes:

1)      Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel.

Todavia, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado‑Membro onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado‑Membro.»

 Acordo sobre a saída do Reino Unido

18      O Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 7), assinado em Bruxelas e em Londres a 24 de janeiro de 2020, entrou em vigor em 1 de fevereiro de 2020 (a seguir «Acordo de Saída»).

19      O artigo 66.o deste acordo, sob a epígrafe «Direito aplicável em matéria contratual e extracontratual», dispõe:

«No Reino Unido, os seguintes atos são aplicáveis do seguinte modo:

a)      O Regulamento [Roma I] é aplicável aos contratos celebrados antes do termo do período de transição;

[…]»

20      O artigo 126.o do referido acordo, sob a epígrafe «Período de transição», prevê:

«É estabelecido um período de transição ou de execução, com início na data de entrada em vigor do presente Acordo e termo em 31 de dezembro de 2020.»

 Direito espanhol

21      Em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, da Ley 42/1998, sobre derechos de aprovechamiento por turno de bienes inmuebles de uso turístico y normas tributarias (Lei 42/1998, relativa a Direitos de Utilização Periódica de Bens Imóveis de Uso Turístico e Normas Tributárias), de 15 de dezembro de 1998 (BOE n.o 300, de 16 de dezembro de 1998, p. 42076), esta regula a constituição, o exercício, a transferência e a extinção do direito de utilização periódica de bens imóveis, que confere ao seu titular a faculdade de usufruir, a título exclusivo, durante um período específico em cada ano, de um alojamento que pode ser utilizado de forma independente, devido à presença de uma saída própria para a via pública ou para uma parte comum do edifício de que faz parte, e dotado, de modo permanente, de mobiliário adequado para o efeito, bem como do direito à prestação de serviços complementares. A faculdade de usufruto não inclui as alterações do alojamento ou do seu mobiliário. O direito de utilização periódica pode ser constituído como um direito real.

22      Nos termos da segunda disposição adicional desta lei, «todos os contratos que tenham por objeto direitos relativos à utilização de um ou mais bens imóveis situados em Espanha durante um período determinado ou determinável do ano estão submetidos às disposições da presente lei, independentemente do lugar e da data da sua celebração».

23      Por força do artigo 1.o, n.o 1, da Ley 4/2012, de contratos de aprovechamiento por turno de bienes de uso turístico, de adquisición de productos vacacionales de larga duración, de reventa y de intercambio y normas tributarias (Lei 4/2012, relativa a Contratos de Utilização Periódica de Bens de Uso Turístico, de Aquisição de Produtos de Férias de Longa Duração, de Revenda e de Troca, e Normas Tributárias), de 6 de julho de 2012 (BOE n.o 162, de 7 de julho de 2012, p. 49192), os contratos de comercialização, de venda e revenda de direitos de utilização periódica e de produtos de férias de longa duração, bem como os contratos de troca, são regulados pelas disposições desta lei quando sejam celebrados entre um comerciante e um consumidor.

24      Nos termos do artigo 2.o da Lei 4/2012, entende‑se por contrato de utilização periódica de bens o contrato de duração superior a um ano por força do qual o consumidor adquire, a título oneroso, o direito de utilizar um ou mais alojamentos de pernoita por mais do que um período de ocupação.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

25      Os recorrentes no processo principal são consumidores britânicos que residem no Reino Unido e que celebraram, em 14 de abril de 2008 e em 28 de junho de 2010 respetivamente, dois contratos com a Diamond Resorts Europe, sociedade inglesa do grupo Diamond Resorts exercendo funções de sucursal em Espanha.

26      Cada um desses contratos previa a concessão de um certo número de pontos que permitia aos recorrentes no processo principal beneficiarem, durante um determinado período, de um conjunto de alojamentos em diferentes países da Europa, nomeadamente em Espanha. Ao abrigo dos referidos contratos, eram atribuídos aos recorrentes no processo principal, não alojamentos específicos nem um período específico de cada ano, mas um catálogo de alojamentos, em relação aos quais deviam pedir a disponibilidade antecipadamente para poder beneficiar dos mesmos no momento pretendido.

27      Os recorrentes no processo principal pedem que os referidos contratos sejam declarados nulos, pelo facto de não preencherem os requisitos previstos nas Leis 42/1998 e 4/2012, que exigem, designadamente, a inscrição do direito de utilização periódica de bens imóveis no Registo Predial espanhol, a determinação precisa dos alojamentos que são atribuídos aos consumidores e a duração específica dos contratos. Neste contexto, os recorrentes no processo principal consideram que os direitos adquiridos ao abrigo dos contratos em causa devem ser qualificados de «direitos reais de utilização periódica de bens imóveis».

28      Os recorrentes no processo principal também instauraram processos contra outras sociedades pertencentes ao mesmo grupo que a Diamond Resorts Europe, mas alheias aos contratos em causa no processo principal.

29      A Diamond Resorts Europe alega que esses contratos dizem respeito não a direitos reais, mas a direitos pessoais. Considera que os referidos contratos devem ser regulados pela lei inglesa uma vez que os recorrentes no processo principal são nacionais do Reino Unido, aí têm a sua residência habitual e a sede social do grupo de sociedades também se situa no Reino Unido.

30      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a determinação da lei aplicável aos contratos em causa depende da resposta à questão de saber quais as disposições da Convenção de Roma e do Regulamento Roma I que são aplicáveis e que esta resposta tem consequências sobre a validade desses contratos. A este respeito, a regulamentação espanhola aplicável aquando da assinatura destes últimos, a saber, a Lei 42/1998, considerava estes constitutivos de direitos reais sobre bens imóveis e subordinava a sua validade a um conjunto de requisitos formais não exigidos pela lei inglesa. No entanto, a regulamentação espanhola em vigor, a saber, a Lei 4/2012, inclui um título II que foi interpretado no sentido de que tais contratos eram considerados de natureza associativa e que, por conseguinte, estavam submetidos às disposições do referido título. Na medida em que os requisitos formais previstos nesta última lei eram menores, esses contratos seriam válidos à luz desta.

31      Segundo esse órgão jurisdicional, no que se refere à determinação da lei aplicável, existem diferentes interpretações possíveis. Por um lado, quando se trate de uma relação entre um consumidor e um comerciante que disponha de uma sucursal em Espanha, o respetivo contrato tenha sido assinado em Espanha e as obrigações das partes sejam relativas a um bem imóvel situado nesse mesmo país, há que aplicar a lei espanhola.

32      Por outro lado, é possível analisar esta situação sob o prisma da liberdade de escolha, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento Roma I, entendendo‑se que uma cláusula previamente redigida que prevê que o contrato em causa é regulado pela lei inglesa deve ser considerada não um acordo livremente consentido relativamente à aplicação dessa lei, mas um elemento imposto pela parte que inseriu essa cláusula no referido contrato a fim de escapar à aplicação da regulamentação espanhola, ou seja, a Lei 42/1998.

33      Ora, segundo a Diamond Resorts Europe, nos termos do artigo 5.o da Convenção de Roma e do artigo 6.o do Regulamento Roma I, no que se refere a relações que envolvem consumidores, deve prevalecer o princípio geral da aplicação da lei do país em que o respetivo consumidor tem a sua residência habitual. Assim, a lei inglesa é aplicável.

34      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio começa por perguntar se o Regulamento Roma I, que substituiu a Convenção de Roma por disposições mais pormenorizadas, pode ser aplicado a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor ou se a regulamentação anterior continua a ser aplicável.

35      Em seguida, atendendo à saída do Reino Unido da União Europeia, esse órgão jurisdicional considera que há que determinar se as disposições do direito da União continuam a ser aplicáveis a nacionais desse Estado.

36      Por último, o referido órgão jurisdicional levanta a questão da determinação da natureza da relação contratual que vincula as partes, ou seja, de saber se os direitos em causa são direitos reais ou direitos pessoais de natureza associativa. Seria mesmo possível qualificá‑los de direitos de arrendamento de bens imóveis, situação em que o artigo 4.o do Regulamento Roma I apresenta duas possibilidades, ou seja, a de aplicação da lei do país em que o respetivo bem imóvel está situado ou de aplicação da lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual, consoante a duração do arrendamento seja superior ou inferior a seis meses, respetivamente.

37      Nestas circunstâncias, o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción no 2 de Granadilla de Abona (Tribunal de Primeira Instância e de Instrução n.o 2 de Granadilla de Abona, Espanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem [a Convenção de Roma e o Regulamento Roma I] ser interpretados no sentido de que são aplicáveis a contratos nos quais ambas as partes são nacionais do Reino Unido?

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

2)      Deve o [Regulamento Roma I] ser interpretado no sentido de que é aplicável a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, em conformidade com o artigo 24.o do mesmo regulamento? Em caso de resposta negativa, deve considerar‑se que um contrato de utilização periódica de bens imóveis, na modalidade de subscrição de pontos de clube, se enquadra no âmbito de aplicação dos artigos 4.o, n.o 3[,] ou 5.o da [Convenção de Roma], mesmo no caso de ser o consumidor a escolher como lei aplicável a lei de um Estado diferente do Estado da sua residência habitual? E, no caso de a resposta ser que o contrato poderia ser abrangido por ambos, qual dos regimes teria preferência?

3)      Independentemente das respostas à segunda questão, deve um contrato de utilização periódica de bens imóveis, na modalidade de subscrição de pontos de clube, ser considerado um contrato através do qual são adquiridos direitos reais sobre bens imóveis, ou direitos pessoais de natureza associativa?

—      No caso de se considerar que se adquirem direitos reais, para efeitos da determinação da lei aplicável, qual dos artigos, 4.o, [n.o 1], alínea c) ou 6.o, n.o 1 do [Regulamento Roma I], deve ser preferencialmente aplicado, mesmo no caso de ser o consumidor a escolher como lei aplicável a lei de um Estado diferente do Estado da sua residência habitual?

—      No caso de se considerar que se adquirem direitos pessoais, devem considerar‑se direitos de arrendamento de bens imóveis, para efeitos do artigo 4.o, [n.o 1], alínea c), [deste regulamento] ou de prestação de serviços, para efeitos do [seu] artigo 4.o, [n.o 1], alínea b)? E, em qualquer caso, deve ser preferencialmente aplicado o artigo 6.o, n.o 1, por se tratar de uma relação com consumidores e/ou utilizadores, mesmo no caso de ser o consumidor a escolher como lei aplicável a lei de um Estado diferente do Estado da sua residência habitual?

4)      Em qualquer dos casos acima referidos, devem as disposições sobre a lei aplicável da [Convenção de Roma] e do [Regulamento Roma I] ser interpretadas no sentido de que estão em conformidade com uma regulamentação nacional que prevê que “[t]odos os contratos relativos aos direitos de utilização de um ou mais bens imóveis situados em Espanha, durante um período determinado ou determinável do ano, estão sujeitos às disposições da presente lei, independentemente do local e da data da sua celebração”?»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

38      A título preliminar, há que recordar que, em conformidade com o artigo 1.o do Primeiro Protocolo, o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre a interpretação da Convenção de Roma.

39      O artigo 2.o, alínea a), deste primeiro protocolo estabelece uma lista exaustiva dos órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes que têm a faculdade de pedir ao Tribunal de Justiça que decida a título prejudicial sobre, designadamente, a interpretação das disposições dessa Convenção, sempre que esses órgãos considerem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa. Ao abrigo deste artigo 2.o, alínea b), essa faculdade é também reconhecida aos órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes sempre que decidam em recurso.

40      Ora, por um lado, há que constatar que o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción no 2 de Granadilla de Abona (Tribunal de Primeira Instância e de Instrução n.o 2 de Granadilla de Abona) não figura nesta lista, que, no que se refere ao Reino de Espanha, visa apenas o «Tribunal Supremo» (Supremo Tribunal). Por outro lado, enquanto órgão jurisdicional de primeira instância, o órgão jurisdicional de reenvio também não é chamado a decidir em sede de recurso, na aceção do referido artigo 2.o, alínea b), no âmbito do litígio no processo principal.

41      Daqui decorre que as condições previstas no artigo 2.o do Primeiro Protocolo não estão preenchidas e que o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre as questões prejudiciais, uma vez que estas têm por objeto a interpretação da Convenção de Roma.

42      No entanto, o Tribunal de Justiça continua a ser competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação das disposições do Regulamento Roma I visadas por essas questões, em relação ao qual não existe limitação relativamente aos órgãos jurisdicionais autorizados a recorrer ao Tribunal de Justiça.

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

43      Embora não tenha tomado posição sobre cada uma das questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Governo Espanhol alega, a título preliminar, que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível na sua totalidade, pelo facto de não cumprir os requisitos previstos no artigo 267.o TFUE e no artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, um vez que esse órgão jurisdicional não indicou os termos dos contratos em causa no processo principal.

44      Há que recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída no artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas tenham por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 13 de janeiro de 2022, Regione Puglia, C‑110/20, EU:C:2022:5, n.o 23 e jurisprudência referida).

45      O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 13 de janeiro de 2022, Regione Puglia, C‑110/20, EU:C:2022:5, n.o 24 e jurisprudência referida).

46      No caso em apreço, ainda que o pedido de decisão prejudicial não inclua os termos específicos dos contratos em causa no processo principal e não forneça uma qualificação jurídica exata das obrigações em causa, não é menos verdade que o órgão jurisdicional de reenvio, por um lado, tenha indicado de forma precisa a relação existente entre as disposições do direito da União cuja interpretação solicita e o litígio que lhe foi submetido, bem como, por outro, explicado em que medida a solução desse litígio depende das respostas do Tribunal de Justiça às questões submetidas.

47      Além disso, em conformidade com o artigo 94.o do Regulamento de Processo, o reenvio prejudicial contém elementos de facto e de direito suficientes para permitir não só às partes interessadas apresentarem observações ao abrigo do artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, mas também ao Tribunal de Justiça responder de forma útil às questões submetidas.

48      Por conseguinte, há que julgar improcedente a exceção de inadmissibilidade invocada pelo Governo Espanhol, uma vez que visa o pedido de decisão prejudicial na sua totalidade e declarar o presente pedido admissível.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

49      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as disposições do Regulamento Roma I são aplicáveis a contratos em que ambas as partes são nacionais do mesmo Estado, no presente processo, o Reino Unido.

50      A este respeito, resulta da redação do artigo 1.o do Regulamento Roma I que este é aplicável, em situações em que exista um conflito de leis, às obrigações contratuais em matéria civil e comercial.

51      Assim, as disposições deste regulamento são aplicáveis a qualquer relação contratual que inclua um elemento de estraneidade, sem que o artigo 1.o do referido regulamento contenha uma precisão ou um requisito respeitante a uma possível ligação entre esse elemento de estraneidade e a nacionalidade ou o lugar do domicílio das partes contratantes em causa.

52      Daqui decorre que, apesar das duas partes que celebraram os contratos em causa no processo principal terem a mesma nacionalidade, esses contratos podem ser abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento Roma I, desde que apresentem um ou vários outros elementos de estraneidade.

53      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que os referidos contratos, que foram celebrados entre dois nacionais do Reino Unido e uma sociedade abrangida pelo direito de Inglaterra e do País de Gales, deviam ser executados em diferentes países europeus, entre os quais, nomeadamente, Espanha.

54      Por outro lado, há que salientar que a saída do Reino Unido da União não tem incidência na aplicação das disposições do Regulamento Roma I ao litígio no processo principal.

55      No que respeita às regras aplicáveis durante o período de transição, previstas no artigo 66.o, alínea a), e no artigo 126.o do Acordo de Saída, estas foram elaboradas em relação a processos pendentes nos órgãos jurisdicionais e nas instituições do Reino Unido, de modo que não afetam a situação do órgão jurisdicional espanhol ao qual o litígio no processo principal foi submetido.

56      Resulta das considerações precedentes que as disposições do Regulamento Roma I são aplicáveis, no âmbito de um litígio pendente perante um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, a contratos nos quais as duas partes sejam nacionais do Reino Unido, desde que esses contratos incluam um elemento de estraneidade.

 Quanto à segunda e terceira questões

57      Com a segunda e terceira questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, qual a disposição do Regulamento Roma I que deve ser aplicada para efeitos de determinar a lei aplicável a um contrato de utilização periódica de bens imóveis na modalidade de subscrição de pontos de clube.

58      Mais especificamente, esse órgão jurisdicional pretende saber se se deve considerar que esse contrato tem por objeto a aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, o que conduz à aplicação do artigo 4.o, n.o 1, alínea c), deste regulamento, ou direitos pessoais, situação em que tanto o seu artigo 4.o, n.o 1, alínea c), como o seu artigo 4.o, n.o 1, alínea b), são aplicáveis, uma vez que esse contrato deve ser qualificado no sentido de ter como objeto, respetivamente, o arrendamento de um bem imóvel ou uma prestação de serviços.

59      Em todo o caso, o referido órgão jurisdicional pergunta se, no que se refere a um contrato de consumo, não há que aplicar, com prioridade, as disposições do artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Roma I, e interroga‑se quanto ao impacto da livre escolha, por parte do consumidor em causa, de uma lei aplicável diferente da lei do país em que tem a sua residência habitual.

60      Antes de responder a essas questões, importa fornecer uma precisão quanto ao âmbito de aplicação ratione temporis do Regulamento Roma I.

61      A este respeito, importa referir que, por força do artigo 28.o deste regulamento, as disposições deste último destinam‑se unicamente a ser aplicadas às relações contratuais resultantes do consentimento mútuo dos contratantes, manifestado a contar de 17 de dezembro de 2009. Com efeito, o legislador da União excluiu que o Regulamento Roma I tenha uma aplicação imediata, a qual teria feito incluir no seu âmbito de aplicação os efeitos futuros de contratos celebrados antes da referida data (v., neste sentido, Acórdão de 18 de outubro de 2016, Nikiforidis, C‑135/15, EU:C:2016:774, n.os 31 e 33).

62      Resulta da jurisprudência que a aplicação do Regulamento Roma I depende da data da celebração do respetivo contrato (v., neste sentido, Acórdão de 25 de março de 2021, Obala i lučice, C‑307/19, EU:C:2021:236, n.o 56 e jurisprudência referida).

63      Assim, as disposições do Regulamento Roma I aplicam‑se exclusivamente aos contratos celebrados a contar de 17 de dezembro de 2009 e não aos efeitos futuros de contratos celebrados antes desta data.

64      O primeiro contrato em causa no processo principal, que foi assinado em 14 de abril de 2008, não é, deste modo, abrangido pelo âmbito de aplicação temporal do Regulamento Roma I.

65      Consequentemente, a interpretação das disposições do Regulamento Roma I que o Tribunal de Justiça irá fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio em resposta às questões submetidas por este último dirá apenas respeito ao segundo contrato em causa no processo principal, assinado em 28 de junho de 2010 (a seguir «contrato controvertido»).

66      No que se refere à questão da determinação da lei aplicável a um contrato de utilização periódica de bens imóveis na modalidade de subscrição de pontos de clube, importa recordar que decorre do considerando 6 do Regulamento Roma I que este pretende estabelecer normas de conflitos de leis que designem a mesma lei nacional, independentemente do país em que ação seja intentada, a fim de favorecer a previsibilidade do resultado dos litígios, a certeza quanto à lei aplicável e a livre circulação das decisões judiciais.

67      Assim, o Regulamento Roma I prevê, no seu capítulo II, regras uniformes que consagram o princípio segundo o qual é dada prioridade à vontade das partes, às quais é reconhecida, no artigo 3.o deste regulamento, a liberdade de escolher a lei aplicável ao contrato.

68      A este respeito, o referido artigo 3.o, n.o 1, exige que a escolha da lei aplicável seja expressa ou resulte de forma clara das disposições do contrato ou das circunstâncias do caso.

69      No caso de as partes não terem escolhido a lei aplicável, o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento Roma I prevê critérios de conexão em função de diferentes tipos de contrato, entre os quais figuram os referidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, ou seja, os contratos que têm por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou um arrendamento de bem imóvel e os contratos de prestação de serviços.

70      Ora, no presente processo, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que o contrato controvertido designa a lei inglesa como a lei aplicável a esse contrato e que este último foi celebrado com um consumidor.

71      Em conformidade com o artigo 6.o, n.o 2, do Regulamento Roma I, as partes num contrato celebrado por um consumidor com um profissional, podem escolher a lei aplicável a esse contrato, não podendo essa escolha, porém, ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no artigo 6.o, n.o 1, deste regulamento, que prevê que esse contrato é regulado pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual (v., neste sentido, Acórdão de 10 de fevereiro de 2022, ShareWood Switzerland, C‑595/20, EU:C:2022:86, n.os 15 e 16).

72      É ainda necessário que o contrato em causa cumpra os requisitos estabelecidos neste artigo 6.o, n.o 1, ou seja, que esse contrato tenha sido celebrado pelo consumidor para uma utilização que possa ser considerada alheia à sua atividade profissional, que o profissional exerça a sua atividade profissional no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou que, por qualquer meio, dirija essas atividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas atividades.

73      No caso em apreço, na hipótese de o contrato controvertido preencher os requisitos estabelecidos no artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Roma I, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, a escolha da lei aplicável pelas partes não pode, em conformidade com este artigo 6.o, n.o 2, ter como consequência privar o consumidor em causa da proteção que lhe proporcionam as disposições imperativas da lei do país em que tem a sua residência habitual.

74      Ora, tal não pode ser o caso na situação em causa no processo principal, uma vez que a lei aplicável escolhida é a do país em que os respetivos consumidores têm a sua residência habitual, ou seja, a lei inglesa.

75      Uma interpretação segundo a qual seria possível derrogar as normas de conflitos de leis previstas pelo Regulamento Roma I para determinar a lei aplicável aos contratos de consumo, pelo facto de outra lei ser mais favorável ao consumidor, provocaria necessariamente um prejuízo considerável ao requisito geral de previsibilidade da lei e, deste modo, ao princípio da segurança jurídica nas relações contratuais que envolvem os consumidores (v., por analogia, Acórdão de 12 de setembro de 2013, Schlecker, C‑64/12, EU:C:2013:551, n.o 35).

76      Além disso, porque o artigo 6.o do Regulamento Roma I reveste um caráter não só específico, mas também exaustivo, as normas de conflitos de leis previstas neste artigo não podem ser alteradas nem completadas por outras normas de conflitos de leis enunciadas neste regulamento, a menos que uma disposição especial que figure no referido artigo remeta expressamente para estas últimas (v., por analogia, Acórdão de 20 de outubro de 2022, ROI Land Investments, C‑604/20, EU:C:2022:807, n.os 40 e 41).

77      Face ao exposto, há que responder às questões segunda e terceira da seguinte forma:

–        o artigo 6.o, n.o 2, do Regulamento Roma I deve ser interpretado no sentido de que, quando um contrato de consumo cumpre os requisitos estabelecidos neste artigo 6.o, n.o 1, as partes nesse contrato podem, em conformidade com o artigo 3.o deste regulamento, escolher a lei aplicável ao referido contrato, sob reserva porém de essa escolha não poder ter como consequência privar o consumidor em causa da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no referido artigo 6.o, n.o 1, que prevê que esse contrato é regulado pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual;

–        atendendo ao caráter imperativo e exaustivo do mesmo artigo 6.o, n.o 2, esta disposição não pode ser derrogada a favor de uma legislação pretensamente mais favorável ao consumidor.

 Quanto à quarta questão

78      Com a quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional segundo a qual todos os contratos relativos à utilização periódica de bens imóveis são submetidos às disposições dessa legislação, independentemente da escolha efetuada pelas partes quanto à lei aplicável ao respetivo contrato.

79      Como a maioria das partes que apresentaram observações escritas no litígio no processo principal, importa recordar que, por força do artigo 9.o do Regulamento Roma I, as disposições deste último não podem limitar a aplicação das normas de aplicação imediata do país do juiz a que foi submetido o litígio, que constituem disposições imperativas cujo respeito é declarado crucial por um país para a salvaguarda dos seus interesses públicos — como a sua organização política, social ou económica —, a ponto de exigir a sua aplicação a qualquer situação que seja abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei aplicável ao contrato nos termos deste regulamento (v., neste sentido, Acórdão 17 de outubro de 2013, Unamar, C‑184/12, EU:C:2013:663, n.o 48).

80      Contudo, e mesmo sem invocar este artigo 9.o, o órgão jurisdicional de reenvio limita‑se a citar, no âmbito da sua quarta questão, um extrato da segunda disposição adicional da Lei 42/1998, por força da qual todos os contratos que tenham por objeto direitos relativos à utilização periódica de um bem imóvel situado em Espanha são submetidos às disposições dessa lei, sem se referir todavia ao conteúdo da Lei 4/2012, que parece prever disposições menos restritivas relativamente a tal utilização, e a qual esse órgão jurisdicional não exclui, como resulta da decisão de reenvio, que seja igualmente aplicável.

81      Uma vez que essa decisão não contém nem o teor preciso das disposições relevantes da legislação nacional em causa nem mesmo um início de explicação quanto aos aspetos processuais das obrigações impostas por essa legislação ou sobre as circunstâncias excecionais que justifiquem ter em conta as considerações de interesse público que essas disposições visam salvaguardar, o Tribunal de Justiça não está em condições de conhecer as razões que levaram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a compatibilidade da referida legislação com o direito da União.

82      Nestas circunstâncias, e à luz do facto de que a quarta questão não cumpre os requisitos do artigo 94.o do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça está na impossibilidade de dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil a esta questão. Por conseguinte, há que declarar a referida questão inadmissível.

 Quanto às despesas

83      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

1)      As disposições do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), são aplicáveis, no âmbito de um litígio pendente perante um órgão jurisdicional de um EstadoMembro, a contratos nos quais as duas partes sejam nacionais do Reino Unido, desde que esses contratos incluam um elemento de estraneidade.

2)      O artigo 6.o, n.o 2, do Regulamento n.o 593/2008

deve ser interpretado no sentido de que:

–        quando um contrato de consumo cumpre os requisitos estabelecidos neste artigo 6.o, n.o 1, as partes nesse contrato podem, em conformidade com o artigo 3.o deste regulamento, escolher a lei aplicável ao referido contrato, sob reserva porém de essa escolha não poder ter como consequência privar o consumidor em causa da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no referido artigo 6.o, n.o 1, que prevê que esse contrato é regulado pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual;

–        atendendo ao caráter imperativo e exaustivo do mesmo artigo 6.o, n.o 2, esta disposição não pode ser derrogada a favor de uma legislação pretensamente mais favorável ao consumidor.


Assinaturas


*      Língua do processo: espanhol.