Language of document : ECLI:EU:C:2024:17

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

11 de janeiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Marcas — Diretiva 2008/95/CE — Artigo 6.o, n.o 1, alínea c) — Limitação dos efeitos da marca — Utilização da marca para indicar o destino de um bem ou de um serviço — Diretiva (UE) 2015/2436 — Artigo 14.o, n.o 1, alínea c)»

No processo C‑361/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), por Decisão de 12 de maio de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de junho de 2022, no processo

Industria de Diseño Textil, S. A. (Inditex)

contra

Buongiorno Myalert, S. A.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, O. Spineanu‑Matei (relatora), J.‑C. Bonichot, S. Rodin e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de Industria de Diseño Textil, S. A. (Inditex), por F. Arroyo Álvarez de Toledo e R. Bercovitz Álvarez, abogados,

–        em representação de Buongiorno Myalert, S. A., por J. J. Marín López, abogado, e A. Vázquez Pastor, procuradora,

–        em representação do Governo Espanhol, por I. Herranz Elizalde, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por P. Němečková e J. Samnadda, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de setembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Industria de Diseño Textil, S. A. (Inditex) à Buongiorno Myalert, S. A. (a seguir «Buongiorno»), a respeito de uma pretensa violação de direitos conferidos por uma marca nacional de que a Inditex é titular, devido à pretensa utilização pela Buongiorno de um sinal idêntico ao dessa marca, sem o consentimento da Inditex.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Primeira Diretiva 89/104

3        O artigo 5.o da Primeira Diretiva 89/104, sob a epígrafe «Direitos conferidos pela marca», estabelecia, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)      De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

b)      De um sinal relativamente ao qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista, no espírito do público, um risco de confusão que compreenda o risco de associação entre o sinal e a marca.

2.      Qualquer Estado‑Membro poderá também estipular que o titular fique habilitado a proibir que terceiros façam uso, na vida comercial, sem o seu consentimento, de qualquer sinal idêntico ou semelhante à marca para produtos ou serviços que não sejam semelhantes àqueles para os quais a marca foi registada, sempre que esta goze de prestígio no Estado‑Membro e que o uso desse sinal, sem justo motivo, tire partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca ou os prejudique.»

4        O artigo 6.o da Primeira Diretiva 89/104, sob a epígrafe «Limitação dos efeitos da marca», dispunha, no seu n.o 1:

«O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a terceiros o uso, na vida comercial:

[…]

c)      Da marca, sempre que tal seja necessário para indicar o destino de um produto ou serviço, nomeadamente sob a forma de acessórios ou peças sobresselentes,

desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.»

5        A Primeira Diretiva 89/104 foi revogada e substituída pela Diretiva 2008/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO L 299, p. 25, e retificação no JO 2009, L 11, p. 86), que entrou em vigor em 28 de novembro de 2008.

 Diretiva 2008/95

6        O artigo 5.o da Diretiva 2008/95, sob a epígrafe «Direitos conferidos pela marca», previa, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)      De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

b)      De um sinal relativamente ao qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista um risco de confusão, no espírito do público; o risco de confusão compreende o risco de associação entre o sinal e a marca.

2.      Qualquer Estado‑Membro poderá também estipular que o titular fique habilitado a proibir que terceiros façam uso, na vida comercial, sem o seu consentimento, de qualquer sinal idêntico ou semelhante à marca para produtos ou serviços que não sejam semelhantes àqueles para os quais a marca foi registada, sempre que esta goze de prestígio no Estado‑Membro e que o uso desse sinal, sem justo motivo, tire partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca ou os prejudique.»

7        O artigo 6.o da Diretiva 2008/95, sob a epígrafe «Limitação dos efeitos da marca», dispunha, no seu n.o 1:

«O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a terceiros o uso, na vida comercial:

[…]

c)      Da marca, sempre que tal seja necessário para indicar o destino de um produto ou serviço, nomeadamente sob a forma de acessórios ou peças sobresselentes,

desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.»

8        A Diretiva 2008/95 foi revogada e substituída, com efeitos a partir de 15 de janeiro de 2019, pela Diretiva (UE) 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 2015, L 336, p. 1).

 Diretiva 2015/2436

9        O artigo 14.o da Diretiva 2015/2436, sob a epígrafe «Limitação dos efeitos da marca», estabelece, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a terceiros a utilização, no decurso de operações comerciais:

[…]

c)      da marca para efeitos de identificação ou referência a produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca, em especial nos casos em que a utilização da marca seja necessária para indicar o destino de um bem ou serviço, nomeadamente enquanto acessório ou peça sobresselente.

2.      O n.o 1 só é aplicável se o terceiro agir segundo práticas honestas em matéria industrial ou comercial.»

 Direito espanhol

10      O artigo 34.o da Ley 17/2001 de Marcas (Lei 17/2001 sobre as Marcas), de 7 de dezembro de 2001 (BOE n.o 294, de 8 de dezembro de 2001, p. 45579, a seguir «Lei das Marcas»), na sua versão que transpõe o artigo 5.o da Primeira Diretiva 89/104, dispunha:

«1.      O registo da marca confere ao seu titular o direito exclusivo de a utilizar na vida comercial.

2.      O titular da marca registada fica habilitado a proibir que terceiros façam uso, na vida comercial, sem o seu consentimento:

a)      de um sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

b)      de um sinal que, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços, gera um risco de confusão no espírito do público; o risco de confusão abrange o risco de associação entre o sinal e a marca;

c)      de um sinal idêntico ou semelhante para produtos ou serviços que não sejam semelhantes àqueles para os quais a marca foi registada, se a marca for notória ou gozar de prestígio em Espanha e se o uso do sinal sem motivo legítimo for suscetível de indiciar uma ligação entre esses produtos ou serviços e o titular da marca ou, de um modo geral, se esse uso tirar partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca registada ou os prejudicar.»

11      O artigo 37.o, n.o 1, alínea c), da Lei das Marcas, que transpôs para o direito espanhol o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104, dispunha, na sua versão inicial:

«O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a terceiros o uso na vida comercial dos elementos a seguir indicados, desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial:

[…]

c)      da marca, sempre que tal seja necessário para indicar o destino de um produto ou serviço, nomeadamente sob a forma de acessório ou peça sobresselente.»

12      O artigo 37.o da Lei das Marcas foi alterado pelo Real Decreto‑ley 23/2018 de transposición de orientações en materia de marcas, transporta Ferroviario y Viajes combinados y servicios de viaje Vinculados (Real Decreto‑Lei 23/2018, que transpõe Diretivas em Matéria de Marcas, Transporte Ferroviário e Viagens Organizadas e Serviços de Viagem Conexos), de 21 de dezembro de 2018 (BOE n.o 312, de 27 de dezembro de 2001, p. 127305), com o objetivo de transpor o artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436.

13      Na sua versão alterada, o artigo 37.o, n.os 1 e 2, da Lei das Marcas dispõe:

«1.      Uma marca não permitirá ao seu titular proibir a terceiros a utilização na vida comercial:

[…]

c)      da marca para efeitos de identificação ou referência a produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca, em especial nos casos em que a utilização da marca seja necessária para indicar o destino de um produto ou serviço, nomeadamente enquanto acessório ou peça sobresselente».

2.      O n.o 1 só é aplicável se o terceiro agir em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

14      A Buongiorno é uma prestadora de serviços de informação através da Internet e de redes de telemóvel. Durante o ano de 2010, esse prestador lançou uma campanha publicitária para a subscrição paga de um serviço de envio de conteúdos multimédia via SMS, comercializado sob a denominação «Club Blinko». A subscrição desse serviço permitia a participação num sorteio, sendo que um dos prémios oferecidos era um «cartão oferta ZARA» no valor de 1 000 euros. Após selecionar uma banda publicitária para aceder ao sorteio, o subscritor via surgir na janela seguinte, num retângulo, o sinal «ZARA», que lembrava o formato dos cartões oferta.

15      A Inditex intentou, no Juzgado de lo Mercantil n.o 2 de Madrid (Tribunal de Comércio n.o 2 de Madrid, Espanha), uma ação por contrafação contra a Buongiorno, por violação dos direitos de exclusividade conferidos por uma marca nacional que protege o sinal «ZARA» (a seguir «marca ZARA»). Em apoio desta ação, baseada no artigo 34.o, n.o 2, alíneas b) e c), da Lei das Marcas, a Inditex apresentou fundamentos relativos, respetivamente, à existência de um risco de confusão, assim como ao benefício retirado do prestígio da marca e ao prejuízo causado ao mesmo.

16      A Buongiorno contestou a existência de violação de direitos conferidos pela marca ZARA, alegando que a utilização pontual que fez deste sinal não foi enquanto marca, mas para indicar em que consistia um dos prémios oferecidos aos vencedores do sorteio. Segundo a Buongiorno, esta utilização, «a título de referência», enquadra‑se nos usos lícitos de sinais distintivos de terceiros, regulados pelo artigo 37.o da Lei das Marcas.

17      O tribunal de primeira instância julgou improcedentes os pedidos da Inditex. Após ter considerado que a utilização da marca ZARA pela Buongiorno não constituía uma utilização «a título de referência» abrangida pelo artigo 37.o da Lei das Marcas, na sua versão inicial, este órgão jurisdicional concluiu que não estavam preenchidos os requisitos previstos no artigo 34.o, n.o 2, alíneas b) e c), da Lei das Marcas.

18      A Inditex interpôs recurso desta decisão na Audiencia Provincial de Madrid (Audiência Provincial de Madrid, Espanha), alegando que a marca foi objeto de contrafação nos termos do artigo 34.o, n.o 2, alínea c), da Lei das Marcas. A Audiencia Provincial de Madrid (Audiência Provincial de Madrid) negou provimento a este recurso, por considerar que o uso da marca ZARA não prejudicava o prestígio da marca e não tirava partido indevido do mesmo.

19      A Inditex interpôs recurso de cassação no Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.

20      Esse órgão jurisdicional indica que o artigo 37.o, alínea c), da Lei das Marcas, na sua versão inicial, aplicável ratione temporis aos factos do litígio no processo principal, transpõe para o direito espanhol o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104, cuja redação não foi substancialmente alterada pela Diretiva 2008/95.

21      O referido órgão jurisdicional refere que a versão atual do artigo 37.o, n.o 1, alínea c), da Lei das Marcas transpõe o artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, tendo esta diretiva revogado e substituído a Diretiva 2008/95.

22      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que figura no artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436 a referência a um comportamento geral, a saber, «identificação ou referência a produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca», seguida da expressão «em especial», ela própria seguida da referência a um comportamento mais específico, a saber, «nos casos em que a utilização da marca seja necessária para indicar o destino de um bem ou serviço, nomeadamente, enquanto acessório ou peça sobresselente». Tendo em conta que apenas o comportamento mais específico figurava no artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104, esse órgão jurisdicional tem dúvidas quanto ao alcance da referência ao comportamento geral, introduzida no artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436. O referido órgão jurisdicional pretende saber se essa referência consiste num esclarecimento relativo a um elemento que figurava implicitamente no artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104, ou se o alcance das utilizações «a título de referências» foi alargado pela Diretiva 2015/2436.

23      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a sua dúvida é enfatizada pela interpretação do Tribunal de Justiça do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104 nos Acórdãos de 17 de março de 2005, Gillette Company e Gillette Group Finland (C‑228/03, EU:C:2005:177), e de 8 de julho de 2010, Portakabin (C‑558/08, EU:C:2010:416. n.os 63 e 64). Este órgão jurisdicional considera que o Tribunal de Justiça parece ter restringido o alcance da limitação dos efeitos da marca ao uso necessário para indicar o destino de um produto, tanto mais que explicou que o objetivo prosseguido pelo artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104 é «permitir aos fornecedores de produtos ou de serviços que são complementares de produtos ou serviços de um titular de uma marca de utilizar essa marca para informar o público sobre a relação utilitária entre os seus produtos ou serviços e os do referido titular da marca».

24      O órgão jurisdicional de reenvio indica que a resposta à questão prejudicial tem influência na resolução do litígio no processo principal. O referido órgão especifica que, no caso de julgar procedente o fundamento do recurso relativo à interpretação e à aplicação da disposição que confere proteção às marcas de prestígio, terá de analisar se o uso da marca ZARA feito pela Buongiorno está abrangido pela limitação prevista no artigo 37.o, n.o 1, alínea c), da Lei das Marcas, na sua versão inicial, aplicável ratione temporis ao litígio objeto do recurso, sendo esta limitação equivalente à prevista no artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a conduta da Buongiorno teria, no entanto, um enquadramento mais correto na atual redação do artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, do que na do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 89/104.

25      Nestas condições, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal), decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva [89/104] ser interpretado no sentido de que a conduta mais geral a que faz agora referência o artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva [2015/2436] está implicitamente incluída na limitação ao direito de marca: uso “(d)a marca para efeitos de identificação ou referência a produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca”?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

26      A Inditex entende que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível por duas razões.

27      No essencial, a Inditex salienta, em primeiro lugar, que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104 só é pertinente se for possível dar provimento ao recurso devido a uma violação do artigo 34.o, n.o 2, alínea c), da Lei das Marcas, ou seja, devido à violação de uma marca que goza de prestígio. Segundo a Inditex, o uso da marca de outrem não será, nesse caso, conforme com os «as práticas honestas em matéria industrial ou comercial», na aceção do artigo 37.o, n.o 1, alínea c), da Lei das Marcas, na sua versão inicial. Por conseguinte, tendo em consideração que a resposta à questão não é determinante para a decisão a proferir pelo órgão jurisdicional de reenvio, o pedido de decisão é inadmissível.

28      Importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio no processo principal e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência da questão que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que a questão submetida seja relativa à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 16 de março de 2023, Beobank, C‑351/21, EU:C:2023:215, n.o 43 e jurisprudência referida).

29      Daqui se conclui que as questões prejudiciais relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma tal questão se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão de 16 de março de 2023, Saatgut‑Treuhandverwaltung (KWS Meridian), C‑522/21, EU:C:2023:218, n.o 26 e jurisprudência referida].

30      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o litígio no processo principal tem por objeto a alegada utilização de uma marca nacional por um terceiro, sem a autorização do titular dessa marca e que as partes nesse litígio discordam, nomeadamente, quanto à aplicabilidade do artigo 37.o, n.o 1, alínea c), da Lei das Marcas, na sua versão inicial. Resulta igualmente da decisão de reenvio que o órgão jurisdicional nacional se interroga sobre o alcance do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104, que diz respeito à limitação dos efeitos de uma marca nacional e que foi transposto para o direito espanhol pelo referido artigo 37.o

31      Nestas circunstâncias, não se afigura manifesto que a interpretação solicitada do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104, não tenha relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou que o problema suscitado seja hipotético.

32      Por outro lado, uma vez que a Inditex alega que a questão prejudicial é hipotética pelo facto de as condições do uso lícito previstas no artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104 coincidirem com as condições do uso relativo a uma marca de prestígio a que o seu titular se pode opor, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 2, da mesma diretiva, o que significa que estas duas disposições se excluem mutuamente, há que salientar que esta argumentação visa a interpretação do último período do artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva. Por conseguinte, esta argumentação da Inditex visa suscitar uma questão de interpretação do artigo 6.o, n.o 1, diferente da que foi submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, não se podendo daí deduzir que a questão submetida apresenta um caráter manifestamente hipotético.

33      Em segundo lugar, a Inditex sustenta que o órgão jurisdicional de reenvio parece considerar que a redação do artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436 permite o uso da marca em causa no processo principal, pelo facto de se tratar de um uso «a título de referência», ao contrário do que resultaria de uma interpretação literal do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104. A Inditex observa que o uso de uma marca «para efeitos de identificação ou referência a produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca» não é, em si mesmo, lícito, devendo, além disso, ser conforme às «práticas honestas em matéria industrial ou comercial» e respeitar as regras do esgotamento do direito de marca, no caso de operações relativas a produtos de terceiros. Consequentemente, a resposta à questão prejudicial não é útil, já que é insuficiente para resolver a problemática jurídica subjacente ao processo principal.

34      Ora, a circunstância de o órgão jurisdicional de reenvio, para decidir este litígio, também poder ser obrigado a examinar ou a tomar em consideração outras disposições, além das referidas na sua questão, não pode levar a considerar que esta não tem relação com o objeto do litígio e, por conseguinte, é inadmissível.

35      Por conseguinte, os dois argumentos apresentados pela Inditex para contestar a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial devem ser rejeitados.

36      Nas suas observações, a Comissão Europeia, sem todavia sustentar de forma clara que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, observa que a questão da interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, aplicável ratione temporis ao litígio no processo principal, só se coloca se o uso da marca ZARA pela Buongiorno constituir um uso por terceiros, na vida comercial, proibido pelo artigo 5.o desta diretiva. Tendo em conta que o tribunal de primeira instância não parece ter cometido um erro de direito quando considerou que o uso da marca ZARA não estava abrangido por nenhum dos casos de uso da marca previstos no artigo 34.o da Lei das Marcas, que transpõe para o direito espanhol esse artigo 5.o, a Comissão alega que não é necessário examinar se estão preenchidos os requisitos do artigo 37.o dessa lei, que transpõe, na sua versão inicial, o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95.

37      A este respeito, há que salientar que a argumentação da Comissão implica que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a interpretação do artigo 5.o da Diretiva 2008/95. Como tal, deve ser afastada por motivos idênticos aos enunciados no n.o 34 do presente acórdão.

38      Por conseguinte, há que considerar que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto à questão prejudicial

39      Resulta da decisão de reenvio que os factos na origem do litígio no processo principal ocorreram em 2010. Uma vez que a Primeira Diretiva 89/104 foi revogada e substituída pela Diretiva 2008/95, que entrou em vigor em 28 de novembro de 2008, a disposição aplicável, ratione temporis, no momento em que ocorreram os factos do litígio no processo principal é o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, e não o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104, já que esta segunda disposição foi substituída pela primeira. Importa, no entanto, precisar que ambas as disposições têm idêntica redação.

40      Resulta igualmente do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio não tem dúvidas quanto ao facto de que, por força do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, o uso da marca deve visar a identificação ou referência a produtos ou serviços «como sendo os do titular dessa marca». Com efeito, importa precisar que, apesar de a redação do artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, ter passado a enunciar expressamente esta exigência, a existência da mesma já tinha sido estabelecida pela jurisprudência relativa à interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104 (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de março de 2005, Gillette Company e Gillette Group Finland, C‑228/03, EU:C:2005:177, n.o 33, e de 8 de julho de 2010, Portakabin, C‑558/08, EU:C:2010:416, n.o 64).

41      Assim, as dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio quanto à interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95 prendem‑se com a diferente redação da disposição que o substituiu, a saber, o artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, no que respeita ao alcance do uso da marca que um titular não pode proibir a um terceiro, uma vez que esse uso não visa unicamente a indicação do destino de um produto comercializado por esse terceiro ou de um serviço oferecido por este.

42      Por conseguinte, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que reformular a questão no sentido de que esse órgão jurisdicional pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95 deve ser interpretado no sentido de que abrange qualquer uso da marca na vida comercial por um terceiro para indicar ou referir, em conformidade com as práticas honestas em matéria industrial ou comercial, produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca, ou apenas o uso dessa marca que seja necessário para indicar o destino de um produto comercializado por esse terceiro, ou de um serviço oferecido por este.

43      Importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a interpretação de uma disposição do direito da União exige que se tenha em conta não apenas os seus termos, mas também o contexto em que se insere, bem como os objetivos e a finalidade que prossegue o ato de que faz parte. A génese de uma disposição do direito da União pode igualmente relevar elementos pertinentes para a sua interpretação (Acórdão de 16 de março de 2023, Towercast, C‑449/21, EU:C:2023:207, n.o 31 e jurisprudência referida).

44      Segundo a redação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, o direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a um terceiro o uso, na vida comercial, da marca sempre que tal seja necessário para indicar o destino de um produto ou serviço, nomeadamente sob a forma de acessórios ou peças sobresselentes.

45      Em contrapartida, o artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436 prevê, primeiro, que abrange o uso da marca para identificar ou referir produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca, reproduzindo, de seguida, o conteúdo normativo do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, precedido da expressão «em especial».

46      Resulta assim da comparação destas duas disposições do ponto de vista literal que o uso suscetível de limitar os efeitos da marca nos termos do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, passou a constituir uma das hipóteses do uso lícito a que o titular de uma marca não se pode opor, ao abrigo do artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436.

47      Daqui resulta que o alcance do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95 é mais limitado do que o do artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, na parte em que o referido artigo 6.o, n.o 1, alínea c) apenas abrange o uso da marca necessário para indicar o destino de um produto ou de um serviço no âmbito da vida comercial.

48      Esta interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95 é corroborada tanto pelos objetivos prosseguidos por esta diretiva e, sobretudo, pelo da própria disposição, conforme definido pela jurisprudência, como também pela análise da génese da disposição que a substituiu, a saber, o artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436.

49      Em primeiro lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, através de uma limitação dos efeitos dos direitos que para o titular de uma marca decorrem do artigo 5.o da Diretiva 2008/95, o artigo 6.o desta diretiva visa conciliar os interesses fundamentais da proteção dos direitos de marca com os da livre circulação de mercadorias e da livre prestação de serviços no mercado interno, para que o direito de marca possa desempenhar o seu papel de elemento essencial do sistema de concorrência não falseado que o Tratado pretende estabelecer e manter (v., neste sentido, Acórdão de 17 de março de 2005, Gillette Company e Gillette Group Finland, C‑228/03, EU:C:2005:177, n.o 29).

50      No que respeita mais especificamente ao artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, o Tribunal de Justiça indicou que a aplicação desta disposição não se limita às situações em que é necessário usar uma marca para indicar o destino de produtos «como acessórios ou peças sobresselentes» (v., neste sentido, Acórdão de 17 de março de 2005, Gillette Company e Gillette Group Finland, C‑228/03, EU:C:2005:177, n.o 32). As situações abrangidas pelo âmbito de aplicação deste artigo 6.o, n.o 1, alínea c), devem, todavia, cingir‑se às que correspondem ao objetivo desta disposição. (Acórdão de 8 de julho 2010, Portakabin, C‑558/08, EU:C:2010:416, n.o 64).

51      A este respeito, o Tribunal de Justiça especificou que o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95 tem por objetivo permitir que os fornecedores de produtos ou de serviços complementares de produtos ou serviços oferecidos pelo titular de uma marca utilizem essa marca para informar o público, de maneira compreensível e completa, sobre o destino do produto que comercializam ou do serviço que oferecem ou, por outras palavras, sobre a relação utilitária existente entre os seus produtos ou serviços e os do referido titular da marca (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de março de 2005, Gillette Company e Gillette Group Finland, C‑228/03, EU:C:2005:177, n.os 33 e 34, e de 8 de julho de 2010, Portakabin, C‑558/08, EU:C:2010:416, n.o 64).

52      Daqui decorre que, segundo jurisprudência constante, o âmbito de aplicação do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, abrange o uso da marca para indicar ou referir os produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca unicamente quando esse uso se limita à situação em que é necessário indicar o destino de um produto comercializado por esse terceiro ou de um serviço oferecido por este. Ora, no contexto do artigo14.°, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, tal situação apenas corresponde a uma das hipóteses em que o uso da marca não é suscetível de ser proibido pelo seu titular.

53      Em segundo lugar, uma vez que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre o alcance do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, à luz do conteúdo normativo da disposição que o substituiu, a génese desta última disposição pode revelar elementos pertinentes para a interpretação deste artigo 6.o, n.o 1, alínea c).

54      A este respeito, resulta da proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas [COM(2013) 162 final] que «se afigura adequado estabelecer […] uma limitação explícita que abranja a utilização a título de referência em geral». Assim, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 78 das suas conclusões, a expressão «adequado estabelecer» indica a vontade da Comissão de propor a introdução de uma limitação dos efeitos da marca que abrangesse a utilização a título de referência em geral e de alargar o alcance da limitação, atualmente prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, e não propor uma simples clarificação ou precisão dos contornos do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Primeira Diretiva 89/104.

55      Além disso, como o advogado‑geral também salientou no n.o 79 das suas conclusões, a intenção da Comissão de alargar o alcance da limitação anteriormente consagrada no artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, resulta da formulação do considerando 25 da proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas [COM(2013) 162 final], que indica que «o titular não deve poder impedir a utilização geral lícita e honesta da marca para identificar ou referir os produtos ou serviços como sendo desse titular».

56      Por conseguinte, a génese do artigo 14.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2015/2436, corrobora a interpretação segundo a qual o alcance do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95 é mais limitado do que o deste artigo 14.o, n.o 1, alínea c).

57      No caso em apreço, compete ao juiz nacional determinar, tendo em conta, nomeadamente, todas as circunstâncias do processo principal, se a Buongiorno, através da sua campanha publicitária lançada para a subscrição de um dos seus serviços, no âmbito da qual oferecia a participação num sorteio em que um dos prémios era um «cartão oferta ZARA», sendo que o subscritor via no ecrã o sinal «ZARA» enquadrado num retângulo, evocando o formato dos cartões oferta, usou a marca ZARA na aceção do artigo 5.o da Diretiva 2008/95 e, se for esse o caso, apreciar, à luz do artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva, se esse uso era necessário para indicar o destino de um serviço que a Buongiorno oferecia, bem como, sendo caso disso, se esse uso foi feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.

58      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95, deve ser interpretado no sentido de que abrange um uso da marca na vida comercial por um terceiro para indicar ou referir, em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial, produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca unicamente quando esse uso da marca seja necessário para indicar o destino de um produto comercializado por esse terceiro ou de um serviço oferecido por este.

 Quanto às despesas

59      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 6.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos EstadosMembros em matéria de marcas

deve ser interpretado no sentido de que:

abrange um uso da marca na vida comercial por um terceiro para indicar ou referir, em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial, produtos ou serviços como sendo os do titular dessa marca unicamente quando esse uso da marca seja necessário para indicar o destino de um produto comercializado por esse terceiro ou de um serviço oferecido por este.

Assinaturas


*      Língua do processo: espanhol.