Language of document : ECLI:EU:C:2024:33

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 11 de janeiro de 2024(1)

Processo C563/22

SN,

LN, representada por SN

contra

Zamestnikpredsedatel na Darzhavna agentsia za bezhantsite

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Asilo — Estatuto de refugiado ou estatuto de proteção subsidiária — Diretiva 2011/95/UE — Condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou apátridas que solicitem o estatuto de refugiado — Apátridas de origem palestiniana que recorreram à assistência da Agência das Nações Unidas de Socorro e Obras para os Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA) — Artigo 12.°, n.° 1, alínea a) — Exclusão do estatuto de refugiado — Cessação da proteção ou da assistência da UNRWA — Condições para ter direito ipso facto aos benefícios da Diretiva 2011/95 — Significado de “quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão” — Importância dos elementos relativos às condições gerais de vida existentes na Faixa de Gaza — Artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Condições de vida que constituem um “tratamento desumano e degradante” — Limiar — Diretiva 2013/32/UE — Artigo 40.° — Pedido subsequente de proteção internacional — Obrigação de reapreciar os elementos já examinados relativos a essa situação geral — Artigo 19.°, n.° 2, da Carta — Princípio da não repulsão»






I.      Introdução

1.        A Agência das Nações Unidas de Socorro e Obras para os Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA) foi criada na sequência do conflito israelo‑árabe de 1948, com o objetivo de realizar programas diretos de assistência e de obras a favor dos apátridas de origem palestiniana nesta agência (2). A sua área de operações foi definida no sentido de abranger a Jordânia, o Líbano, a Síria, a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e a Faixa de Gaza. O mandato da UNRWA tem sido sucessivamente renovado e está em vias de expirar em 30 de junho de 2026 (3).

2.        SN e LN, as recorrentes no processo principal, são apátridas de origem palestiniana, que viviam na Faixa de Gaza e que estão registadas na UNRWA. Pedem asilo pela segunda vez na Bulgária, depois de os seus primeiros pedidos de proteção internacional terem sido rejeitados pelas autoridades deste Estado‑Membro. Alegam que lhes deve ser concedido o estatuto de refugiado em aplicação da lex specialis contida no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 (4). Por força desta disposição, os apátridas de origem palestiniana que tenham beneficiado da proteção ou da assistência da UNRWA estão excluídos do referido estatuto. No entanto, esta exclusão deixa de se aplicar se essa proteção ou assistência tiver «cessado».

3.        O presente processo levanta uma questão de importância e sensibilidade evidentes, nomeadamente à luz dos acontecimentos ocorridos na Faixa de Gaza desde os ataques do Hamas em Israel em 7 de outubro de 2023: é possível considerar que a proteção ou a assistência da UNRWA tenha «cessado», considerando as condições de vida geralmente existentes nessa zona, sem que seja necessário que as pessoas em causa demonstrem que foram especificamente alvo ou afetados nessas condições por motivos particulares relacionados com as suas circunstâncias pessoais?

4.        O litígio no processo principal é anterior a estes factos. Com efeito, o pedido de SN e de LN, bem como os elementos que o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia, Bulgária) invoca no seu pedido de decisão prejudicial, dizem respeito à situação na Faixa de Gaza tal como era antes ou aquando da apresentação desse pedido, datado de 9 de agosto de 2022. No entanto, como explicarei nas presentes conclusões, qualquer apreciação que esse órgão jurisdicional ou as autoridades nacionais competentes tenham de efetuar deverá ter em conta a situação atualmente existente nesta zona, relativamente à qual vários órgãos e representantes das Nações Unidas manifestaram sérias preocupações (5).

II.    Quadro jurídico

A.      Direito internacional

1.      Convenção de Genebra (6)

5.        O artigo 1.°, ponto D, da Convenção de Genebra dispõe:

«Esta Convenção não será aplicável às pessoas que atualmente beneficiam de proteção ou assistência da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o Alto‑Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão, sem que a sorte dessas pessoas tenha sido definitivamente resolvida, em conformidade com as resoluções respetivas aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, essas pessoas beneficiarão de pleno direito do regime desta Convenção.»

6.        Tendo em conta a natureza das suas operações, a UNRWA deve ser considerada um «organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o Alto‑Comissário das Nações Unidas para os Refugiados», na aceção do artigo 1.°, ponto D, da Convenção de Genebra.

2.      Resoluções pertinentes da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança das Nações Unidas

a)      Resoluções adotadas antes de 7 de outubro de 2023

7.        Desde a criação da UNRWA, foram adotadas várias resoluções pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança relativamente a essa agência ou à situação na sua zona de operações. Em conformidade com a Resolução n.° 74/83 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de dezembro de 2019:

«A Assembleia Geral,

[...]

Consciente das necessidades crescentes dos refugiados palestinianos em todos os campos de ação, nomeadamente, na Jordânia, no Líbano, na República Árabe Síria e nos Territórios Palestinianos Ocupados,

Manifestando grande preocupação com a situação particularmente difícil dos refugiados palestinianos sob ocupação, nomeadamente no que diz respeito à sua segurança, bem‑estar e condições de vida socioeconómicas,

Manifestando grande preocupação, em particular, com a grave situação humanitária e as condições socioeconómicas dos refugiados palestinianos na Faixa de Gaza, e sublinhando a importância da assistência humanitária e de emergência e dos esforços urgentes de reconstrução,

[...]

3. Afirma a necessidade de prosseguir o trabalho da [UNRWA] e a importância da sua atuação sem entraves e da sua prestação de serviços, incluindo a assistência de emergência, para o bem‑estar, a proteção e o desenvolvimento humano dos refugiados palestinianos e para a estabilidade da região, enquanto se aguarda a resolução justa da questão dos refugiados palestinianos;

4. Apela a todos os doadores para que continuem a intensificar os seus esforços no sentido de satisfazer as necessidades previstas da [UNRWA], nomeadamente no que diz respeito ao aumento das despesas e das necessidades decorrentes dos conflitos e da instabilidade na região, bem como da grave situação socioeconómica e humana, em particular no Território Palestiniano Ocupado, assim como as necessidades mencionadas nos recentes apelos e planos de emergência, recuperação e reconstrução para a Faixa de Gaza [...].»

b)      (b) Resoluções adotadas depois de 7 de outubro de 2023

8.        Os acontecimentos ocorridos na Faixa de Gaza desde 7 de outubro de 2023 levaram a Assembleia Geral das Nações Unidas a adotar, em 27 de outubro de 2023, uma resolução intitulada «Proteção dos civis e cumprimento das obrigações jurídicas e humanitárias», na qual apelava a «uma trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada que conduza à cessação das hostilidades» na Faixa de Gaza. (7) Entre outras coisas, a Assembleia Geral referiu «a grave deterioração da situação», deplorou «as pesadas vítimas civis e a destruição generalizada» e manifestou grande preocupação «com a situação humana catastrófica na Faixa de Gaza e as suas vastas consequências para a população civil, em grande parte constituída por crianças».

9.        A esta resolução seguiu‑se, em 15 de novembro de 2023, a Resolução 2712 (2023) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que apelou, entre outras coisas, a uma pausa humanitária urgente e prolongada na Faixa de Gaza. (8)

10.      Em 12 de dezembro de 2023, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou uma resolução intitulada «Proteção dos civis e cumprimento das obrigações legais e humanitárias». (9) Nessa resolução, pediu um cessar‑fogo imediato e humanitário na Faixa de Gaza e que fosse assegurado acesso humanitário a essa zona. Insistiu que as partes que participam no conflito cumprissem o direito internacional, nomeadamente no que diz respeito à proteção de civis, e que todos os reféns fossem imediatamente libertados e sem exigências.

11.      Em 22 de dezembro de 2023, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a Resolução 2720 (2023), (10) recordando todas as suas resoluções relevantes, especialmente a Resolução 2712 (2023). Entre outras coisas, manifestou «profunda preocupação com a terrível situação humanitária que se deteriora rapidamente na Faixa de Gaza e o seu grave impacto na população civil», sublinhando «a necessidade urgente de um acesso humanitário completo, rápido, seguro e sem restrições por toda a Faixa de Gaza» e teve em conta os «relatórios preocupantes dos líderes das Nações Unidas e das organizações humanitárias a este respeito». Reafirmou também a sua «grande preocupação pelo efeito desproporcionado que o conflito está a ter nas vidas e no bem‑estar de crianças, mulheres e outros civis em situações vulneráveis».

B.      Direito da União

a)      Diretiva 2011/95

12.      O artigo 12.° da Diretiva 2011/95, intitulado «Exclusão», prevê:

«1.      O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se:

a)      Estiver abrangido pelo âmbito do ponto D do artigo 1.° da Convenção de Genebra, relativo à proteção ou assistência de órgãos ou agências das Nações Unidas, com exceção do Alto‑Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a situação da pessoa em causa tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas, essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva;

[…]».

b)      Diretiva 2013/32 (11)

13.      Nos termos do artigo 40.° da Diretiva 2013/32, sob a epígrafe «Pedidos subsequentes»:

«1. Quando uma pessoa que pediu proteção internacional num Estado‑Membro apresentar declarações suplementares ou um pedido subsequente no mesmo Estado‑Membro, este último deve analisar essas declarações suplementares ou os elementos do pedido subsequente no âmbito da apreciação do pedido anterior ou da análise da decisão objeto de revisão ou recurso, na medida em que as autoridades competentes possam ter em conta e analisar todos os elementos subjacentes às declarações suplementares ou ao pedido subsequente nesse âmbito.

[…]»

C.      Direito nacional

14.      A Diretiva 2011/95 e a Diretiva 2013/32 foram transpostas para o direito búlgaro pela Zakon za ubezhishteto i bezhantsite (Lei sobre o asilo e os refugiados, a seguir «ZUB»).

15.      Os artigos 8.° e 9.° da ZUB reproduzem, no essencial, as condições de concessão do estatuto de proteção internacional estabelecidas na Diretiva 2011/95. O artigo 12.°, n.° 1, da ZUB reflete o teor do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), desta diretiva.

16.      De acordo com o artigo 75.°, n.° 2, da ZUB:

«Durante o exame de um pedido de proteção internacional, devem ser tidos em conta todos os factos pertinentes [...] relativos à situação pessoal do requerente ou do seu país de origem [...]».

III. Matéria de facto, tramitação do processo nacional e questões prejudiciais

17.      SN, nascida em 1995, e a sua filha, LN, são apátridas de origem palestiniana. Deixaram a Faixa de Gaza em julho de 2018 e permaneceram no Egito durante 45 dias e na Turquia por sete meses. Depois de terem circulado ilegalmente pela Grécia, entraram no território búlgaro com KN, que é marido de SN e pai de LN.

18.      Em 22 de março de 2019, SN e LN apresentaram pedidos de proteção internacional junto da Darzhavna agentsia za bezhantsite (Agência Nacional para os Refugiados, Bulgária, a seguir «DAB»). Basearam o seu pedido em vários elementos, incluindo a falta de condições de vida dignas e a instabilidade na Faixa de Gaza, bem como a situação de conflito armado quase permanente provocada pela ação militar israelita e pelas tensões entre o Fatah e o Hamas. SN referiu igualmente que a vida de KN tinha sido ameaçada por numerosos atentados bombistas enquanto este estava a trabalhar e que a sua casa se situava perto de uma esquadra de polícia que era frequentemente alvo de mísseis.

19.      SN e LN não mencionaram nos seus pedidos que estavam registadas na UNRWA.

20.      Por Decisão de 5 de julho de 2019, o Predsedatel (presidente da DAB) indeferiu os pedidos de SN e de LN. O presidente da DAB declarou que SN e LN não tinham sido obrigadas a abandonar a Faixa de Gaza devido a um risco real de tortura, tratamento desumano ou degradante, pena de morte ou execução, ou outras ameaças graves. SN e LN tão‑pouco corriam o risco de sofrer tais ameaças caso regressassem à Faixa de Gaza uma vez que não tinham apresentado provas de que seriam especificamente visadas devido a quaisquer fatores relacionados com a sua situação pessoal. Além disso, embora o Tribunal de Justiça tenha reconhecido, no Acórdão Elgafaji (12), que, em certas situações, o grau de violência indiscriminada que caracteriza um conflito armado pode atingir um nível tão elevado que as pessoas que solicitam proteção internacional não são obrigadas a apresentar provas de que são visadas especificamente em razão de fatores específicos da sua situação pessoal, não se pode considerar que a situação na zona em causa corresponda, no momento dos factos, a um conflito armado semelhante ao que deu origem a esse acórdão. Por último, o presidente da DAB declarou que SN e LN podiam ter permanecido no Egito ou na Turquia e que tinham vindo para a Bulgária apenas para beneficiar de melhores condições económicas.

21.      Após o esgotamento das vias de recurso disponíveis, essa decisão tornou‑se definitiva.

22.      Em 21 de agosto de 2020, SN e LN apresentaram um novo pedido de proteção internacional. Juntaram provas do facto de que estavam registadas na UNRWA e alegaram que, por conseguinte, a lex specialis contida no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 lhes era aplicável. Sustentaram que, ao abrigo desta disposição, tinham direito ipso facto ao estatuto de refugiado uma vez que a proteção ou a assistência da UNRWA em relação a elas devia ser considerada como tendo «cessado».

23.      O Intervyuirasht organ na DAB (órgão da DAB que efetua os interrogatórios) declarou admissíveis os pedidos subsequentes de SN e LN.

24.      Em apoio do seu pedido de concessão do estatuto de refugiado, SN e LN apresentaram vários documentos que, segundo elas, demonstraram que as condições em que a UNRWA atuava na Faixa de Gaza no período de tempo relevante (em 2020) eram muito más.

25.      Em especial, SN alegou que a situação na Faixa de Gaza se tinha vindo a deteriorar nos últimos anos, especialmente desde a pandemia de Covid‑19, afirmando que o desemprego era particularmente elevado e que as pessoas que trabalhavam não estavam a ser remuneradas. Declarou ainda que tinha sido imposto um recolher obrigatório, que as escolas continuavam fechadas e que o Hamas impedia as pessoas de saírem de casa e lançava repetidos ataques contra Israel. Explicou que metade da casa em que a família vivia tinha sido destruída por mísseis, devido à sua proximidade de uma esquadra de polícia, e que, em 2014, a existência de danos no telhado os obrigou a viver noutro local durante dois anos.

26.      Por Decisão de 14 de maio de 2021, o Zamestnik‑predsedatel da DAB (vice‑presidente da DAB) indeferiu os pedidos subsequentes de SN e LN. O vice‑presidente da DAB explicou que, uma vez que estes pedidos eram «pedidos subsequentes», na aceção do artigo 2.°, alínea q), da Diretiva 2013/32, não era necessário examinar todos os elementos a eles subjacentes. Do mesmo modo, a apreciação sobre se se deve conceder ou não o estatuto de refugiado a SN e LN poderia limitar‑se, primeiro, à verificação da existência de «elementos novos»; segundo, à avaliação da pertinência desses elementos para a sua situação pessoal ou para a situação no seu país de origem; e, terceiro, à determinação da existência de provas suficientes para fundamentar esses elementos.

27.      O vice‑presidente da DAB declarou que o facto de SN e LN estarem registadas na UNRWA, embora introduzido como um «elemento novo», não era pertinente para a situação pessoal de ambas. Em primeiro lugar, SN e LN tinham efetivamente beneficiado, no passado, da proteção ou da assistência da UNRWA e isso só deixou de acontecer por terem abandonado voluntariamente a zona de operações desta agência. Em segundo lugar, não havia motivos para crer que SN e LN não voltariam a beneficiar da proteção ou da assistência da UNRWA se regressassem à Faixa de Gaza. Além disso, o vice‑presidente da DAB referiu que os argumentos de SN e LN em relação à situação geral na Faixa de Gaza não demonstravam que fossem pessoalmente alvo de perseguições ou outras ameaças graves. A ausência de tais ameaças significava que não podiam beneficiar de proteção internacional.

28.      SN e LN impugnaram essa decisão no Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia), o órgão jurisdicional de reenvio. Em especial, SN argumentou que o seu regresso à Faixa de Gaza (juntamente com LN) violaria o princípio da não repulsão, que exige que os Estados‑Membros se abstenham de enviar qualquer pessoa para um Estado onde exista um risco grave de ser sujeita a pena de morte, tortura ou outras penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.

29.      Aquele órgão jurisdicional deseja saber, em primeiro lugar, de que modo o artigo 40.°, n.° 1, da Diretiva 2013/32, que diz respeito aos pedidos subsequentes, deve ser interpretado numa situação como esta. Observa que, em apoio dos seus pedidos subsequentes, SN e LN fizeram prova do seu registo na UNRWA, um elemento que não tinham divulgado nos seus pedidos anteriores. No entanto, indica que nenhum dos elementos mencionados por SN e LN relativamente às razões que as levaram a abandonar a Faixa de Gaza pode ser considerado «novo», uma vez que todos esses elementos já foram examinados no âmbito do procedimento relativo aos seus pedidos anteriores.

30.      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se se deve considerar que a proteção ou a assistência da UNRWA tenha «cessado», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, em relação a SN e LN, tendo em conta a situação geral na Faixa de Gaza. A este respeito, constata que esta situação geral, que se agravou nos últimos anos, afetou inegavelmente a capacidade da UNRWA de assegurar uma proteção ou assistência efetiva aos apátridas de origem palestiniana na Faixa de Gaza. Além disso, a UNRWA tem sido subfinanciada e está a atravessar dificuldades financeiras.

31.      A este propósito, o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia) menciona a Resolução do Parlamento Europeu, de 19 de abril de 2018, sobre a situação na Faixa de Gaza (13), na qual se afirma que nesta zona existe uma «deterioração da crise humanitária sem precedentes». Além disso, remete para um documento intitulado «Posição do ACNUR sobre os regressos a Gaza», de março de 2022 (14), no qual o Alto‑Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) indicou que os civis que fogem da Faixa de Gaza não devem ser reenviados à força para essa zona, tendo em conta os indícios da existência de alegações graves de violações do direito internacional em matéria de direitos humanos e a instabilidade permanente.

32.      À luz destes elementos, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se deve considerar que SN e LN se encontrariam numa situação de «privação material extrema», na aceção do Acórdão Jawo (15), se fossem obrigadas a regressar à Faixa de Gaza. Segundo esse acórdão, SN e LN teriam de demonstrar que o seu regresso à Faixa de Gaza as colocaria numa situação que não lhes permitiria satisfazer as suas necessidades mais elementares, nomeadamente a alimentação, a higiene pessoal e o alojamento, e que isso prejudicaria a sua saúde física ou mental ou as colocaria num estado de degradação incompatível com a dignidade humana. Este órgão jurisdicional observa que, se LN (que é uma criança) fosse obrigada a regressar à Faixa de Gaza, o seu bem‑estar e a sua segurança estariam certamente em risco. Contudo, recorda igualmente que a razão pela qual SN e LN abandonaram a Faixa de Gaza não está ligada a qualquer ameaça grave à sua segurança pessoal, mas apenas à situação geral nessa zona.

33.      Nestas circunstâncias, o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Resulta do artigo 40.°, n.° 1, da Diretiva [2013/32] que, em caso de admissão para apreciação de um pedido de proteção internacional subsequente apresentado por um requerente apátrida de origem palestiniana, com base no seu registo junto da UNRWA, a obrigação das autoridades competentes, prevista nessa disposição, de terem em conta e analisarem todos os elementos subjacentes ao pedido subsequente também abrange, atendendo às circunstâncias do processo, a obrigação de análise dos motivos pelos quais a pessoa abandonou a zona de operações da UNRWA, além dos novos elementos ou circunstâncias que são objeto do pedido subsequente, quando essa obrigação é interpretada em conjugação com o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), segundo período, da Diretiva [2011/95]? O cumprimento da referida obrigação depende do facto de os motivos pelos quais a pessoa abandonou a zona de operações da UNRWA já terem sido analisados no âmbito do processo relativo ao primeiro pedido de proteção [internacional] que terminou com um despacho de indeferimento transitado em julgado, mas no qual o requerente nem invocou nem provou o seu registo junto da UNRWA?

2)      Resulta do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95 que a expressão “ [q]uando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão”, constante dessa disposição, é aplicável a um apátrida de origem palestiniana que se tenha registado junto da UNRWA e que tenha recebido da UNRWA, na cidade de Gaza, ajuda alimentar e ajuda em matéria de serviços de saúde e de educação, sem que houvesse indícios de ameaça pessoal àquela pessoa, que abandonou a cidade de Gaza voluntaria e legalmente, atendendo às seguintes informações existentes no processo:

— avaliação da situação geral na data da saída como uma crise humanitária inédita, devido à escassez de alimentos, de água potável, de serviços de saúde, de medicamentos e a problemas de abastecimento de água e de eletricidade, à destruição de edifícios e de infraestruturas, ao desemprego;

— dificuldades da UNRWA de continuar a garantir em Gaza a prestação de apoio e de serviços, também sob a forma de alimentos e serviços de saúde, devido a um défice considerável do orçamento da UNRWA e ao número crescente de pessoas que dependem do apoio da Agência das Nações Unidas de Assistência, [e o facto de] a situação geral em Gaza comprometer a atividade da UNRWA?

A resposta a esta questão será diferente pelo simples facto de o requerente ser uma pessoa vulnerável na aceção do artigo 20.°, n.° 3, desta diretiva, concretamente, um menor?

3)      Deve o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95 ser interpretado no sentido de que um requerente de proteção internacional que seja um refugiado palestiniano registado na UNRWA pode regressar à zona de operações da UNRWA por ele abandonada, mais concretamente à cidade de Gaza, se, na data da audiência de julgamento relativa ao seu recurso contra um despacho de indeferimento,

— não houver informações seguras de que esta pessoa pudesse beneficiar do apoio da UNRWA no que diz respeito a alimentação, serviços de saúde, medicamentos, cuidados de saúde e educação;

— as informações sobre a situação geral na cidade de Gaza e sobre a UNRWA, constantes da posição do ACNUR relativa ao regresso à Faixa de Gaza, de março de 2022, tiverem sido classificadas como motivos para a saída da zona de operações da UNRWA e para o não regresso,

[—] incluindo o facto de o requerente, em caso de regresso, aí poder viver em condições de vida dignas?

A situação pessoal de um requerente de proteção internacional, tendo em conta a situação na Faixa de Gaza na data referida e na medida em que a pessoa depende do apoio da UNRWA no que diz respeito a alimentação, serviços de saúde, medicamentos e cuidados de saúde, tendo em conta a aplicação e a garantia do princípio da não repulsão consagrado no artigo 21.°, n.° 1, da Diretiva 2011/95, em conjugação com o artigo 19.° da [Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a seguir “Carta”], no que diz respeito a este requerente, é abrangida pelo âmbito de aplicação da interpretação, constante do n.° 4 do dispositivo do Acórdão de 19 de março de 2019, Jawo (C‑163/17, EU:C:2019:218), do conceito de situação de privação material extrema, nos termos do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

Deve a questão relativa ao regresso à cidade de Gaza, com base nas informações sobre a situação geral nesta cidade e sobre a UNRWA, obter uma resposta diferente pelo simples facto de a pessoa que pede proteção ser um menor, tendo em conta a salvaguarda do superior interesse do menor e a garantia do seu bem‑estar e do seu desenvolvimento social, da sua proteção e segurança?

4)      Em função da resposta à terceira questão prejudicial:

Deve o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95, em especial a expressão nele constante “essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva”, ser, no presente caso, interpretado no sentido de que:

А) Em relação a uma pessoa que requeira proteção e que seja um apátrida palestiniano registado junto da UNRWA, o princípio da não repulsão consagrado no artigo 21.°, n.° 1, da Diretiva 2011/95, em conjugação com o artigo 19.° da Carta é aplicável porque a pessoa, em caso de regresso à cidade de Gaza, corre o risco de ser sujeita a tratamento desumano e degradante, uma vez que poderia ficar numa situação de privação material extrema e ser abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 15.°, [alínea b)], da Diretiva 2011/95, para efeitos de concessão de proteção subsidiária;

ou

B) pressupõe esta disposição, relativamente a uma pessoa que requer proteção e que é um palestiniano apátrida registado junto da UNRWA, o reconhecimento do estatuto de refugiado na aceção do artigo 2.°, alínea c), desta Diretiva pelo Estado‑Membro e a concessão ipso facto do estatuto de refugiado a esta pessoa, se a mesma não for abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea b), ou n.os 2 e 3, desta Diretiva, em conformidade com o n.° 2 do dispositivo do Acórdãode 19 de dezembro de 2012, El Kott e o. (C‑364/11, EU:C:2012:826), sem que as circunstâncias relevantes para a concessão de proteção subsidiária ao abrigo do artigo 15.°, [alínea b)], da Diretiva 2011/95 sejam tidas em conta em relação a esta pessoa?»

34.      O pedido de decisão prejudicial, datado de 9 de agosto de 2022, deu entrada em 22 de agosto de 2022. O Governo Búlgaro e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Não foi realizada audiência.

IV.    Análise

35.      A Diretiva 2011/95 estabelece as condições que os requerentes de asilo devem preencher para beneficiarem de proteção internacional na União Europeia. Deve ser interpretada à luz da sua sistemática geral e da sua finalidade, que consiste, nomeadamente, em assegurar que todos os Estados‑Membros aplicam critérios comuns de identificação das pessoas que tenham efetivamente necessidade de proteção internacional, e em conformidade com a Convenção de Genebra e os outros tratados relevantes referidos no artigo 78.°, n.° 1, TFUE. Conforme resulta do considerando 16 da Diretiva 2011/95, as disposições nela contidas devem igualmente ser interpretadas de forma compatível com os direitos reconhecidos pela Carta (16).

36.      O artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, que reflete o conteúdo do artigo 1.°, ponto D, da Convenção de Genebra, precisa o regime jurídico específico aplicável aos apátridas de origem palestiniana que recorreram à proteção ou à assistência da UNRWA. Conforme expliquei nas minhas Conclusões no processo SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano) (17), esta disposição contém tanto uma cláusula de exclusão como uma cláusula de inclusão.

37.      Efetivamente, por um lado, o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 estabelece que, se uma pessoa estiver abrangida pelo âmbito do ponto D do artigo 1.° da Convenção de Genebra, essa pessoa é excluída da concessão do estatuto de refugiado ao abrigo desta diretiva, do mesmo modo que está igualmente excluída da qualidade de refugiado ao abrigo dessa convenção. Apesar de nem o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 nem o artigo 1.°, ponto D, da Convenção de Genebra o referirem expressamente, a cláusula de exclusão que contêm só se aplica, na prática, aos apátridas de origem palestiniana e, mais especificamente, apenas os que fizeram uso da proteção ou assistência da UNRWA (18).

38.      Por outro lado, caso se possa considerar que tal proteção ou assistência «cessou», essa cláusula de exclusão deixa de se aplicar e essas pessoas «ter[ão] direito ipso facto a beneficiar do disposto» na Diretiva 2011/95 (da mesma forma que terão também direito ipso facto a beneficiar do disposto na Convenção de Genebra). Tais pessoas podem beneficiar «de pleno direito» do disposto na diretiva (19), sem necessidade de preencherem os requisitos aplicáveis aos outros requerentes de asilo. Todavia, o estatuto de refugiado não é concedido de forma automática nem incondicional, uma vez que, mesmo nessas circunstâncias, as autoridades nacionais competentes devem, por exemplo, verificar em cada caso concreto se as pessoas em causa não estão abrangidas por nenhum dos motivos de exclusão previstos no artigo 12.°, n.° 1, alínea b), e n.os 2 e 3, dessa diretiva (20), que são aplicáveis quando existam suspeitas graves de que tenham praticado certos crimes, ou instigado ou participado de outra forma na sua prática.

39.      Conforme afirmou a advogada‑geral E. Sharpston nas suas Conclusões no processo Bolbol (21), o artigo 1.°, ponto D, da Convenção de Genebra teve origem num contexto específico. Foi redigido pouco depois do conflito israelo‑árabe de 1948, com o objetivo, entre outros, de evitar um êxodo em massa da área geográfica que tinha sido a Palestina e, ao mesmo tempo, de assegurar que os apátridas de origem palestiniana — que tenham sido reconhecidos como refugiados pela comunidade internacional (22) — continuassem a receber proteção ou assistência efetiva até que a sua situação tivesse sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas (23).

40.      Assim, o Tribunal de Justiça explicou que o objetivo do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 assenta na ideia de que os apátridas de origem palestiniana devem poder receber proteção ou assistência efetiva da UNRWA, e não apenas a garantia da existência de um organismo ou agência cuja missão é prestar essa assistência ou proteção (24).

41.      Neste contexto, a primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio diz respeito a uma questão processual específica, ligada ao facto de, no processo principal, SN e LN pretenderem obter o estatuto de refugiado pela segunda vez. Convida o Tribunal de Justiça a determinar se, quando um apátrida de origem palestiniana apresenta um «pedido subsequente», na sequência do indeferimento do seu primeiro pedido, as autoridades nacionais competentes devem reanalisar os elementos de facto relativos às razões pelas quais a pessoa em causa abandonou a zona de operações da UNRWA, mesmo que esses elementos já tenham sido considerados pelas referidas autoridades no âmbito do processo relativo ao primeiro pedido. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, durante aquele processo, as autoridades nacionais competentes examinaram os referidos elementos para determinar se essa pessoa preenchia os critérios gerais de concessão do estatuto de refugiado, e não se a lex specialis contida no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 se lhe aplicava (porque o requerente não tinha declarado que estava registado na UNRWA) (A).

42.      A segunda e terceira questões, que analisarei conjuntamente, têm um caráter mais amplo e sensível. Conforme indiquei na introdução acima, estas questões pedem ao Tribunal de Justiça que esclareça, no essencial, se se pode considerar que a proteção ou a assistência da UNRWA «cessou», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, relativamente a requerentes que beneficiaram dessa proteção ou assistência e que residiam na Faixa de Gaza, tendo em conta as condições de vida geralmente existentes nessa zona, sem ter de se demonstrar que foram especificamente alvo ou afetados nessas condições devido a fatores particulares relacionados com as suas circunstâncias pessoais (B).

43.      A quarta questão diz respeito à relação — e potencial sobreposição — entre as condições que devem estar preenchidas para que uma pessoa tenha direito ipso facto ao estatuto de refugiado nos termos do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 e as que devem ser cumpridas para que seja concedida proteção subsidiária a essa pessoa (C).

A.      Primeira questão: necessidade de reapreciar os elementos de facto já examinados no âmbito de um procedimento anterior assente numa base jurídica diferente

44.      Conforme já referi, os pedidos de proteção internacional apresentados por SN e LN no processo principal são «pedidos subsequentes». Nos termos do artigo 2.°, alínea q), da Diretiva 2013/32, esses pedidos são definidos como «pedido[s] de proteção internacional apresentado[s] após ter sido proferida uma decisão definitiva sobre um pedido anterior».

45.      O órgão jurisdicional de reenvio não levantou a questão de saber se a Diretiva 2013/32, que contém as regras processuais que as autoridades nacionais competentes genericamente devem cumprir no tratamento dos pedidos de proteção internacional, se aplica aos apátridas de origem palestiniana que feito uso da proteção ou assistência da UNRWA. Uma vez que essas pessoas estão, em princípio, excluídas da qualidade de refugiado, por força do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, poder‑se‑ia perguntar se também estão excluídas das normas processuais da Diretiva 2013/32 (ou, pelo menos, de algumas disposições). A este respeito, observo, contudo, que esta diretiva não contém nenhuma disposição nesse sentido. Por outro lado, na minha opinião, é lógico que as regras processuais constantes desta diretiva se apliquem a essas pessoas. Com efeito, embora não tenham direito ao estatuto de refugiado nas mesmas condições materiais que os outros requerentes de asilo (em aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95), não vejo por que razão essas condições materiais diferentes  devem determinar que os seus pedidos sejam sujeitos a regras processuais diferentes  ao abrigo da Diretiva 2013/32.

46.      Nos seus primeiros pedidos de proteção internacional (que foram indeferidos pela DAB), SN e LN não mencionaram o facto de estarem registadas na UNRWA nem que o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 lhes era aplicável. As informações fornecidas nos autos perante o Tribunal de Justiça indicam que a DAB indeferiu os seus primeiros pedidos por não preencherem os critérios gerais necessários para obter o estatuto de refugiado, conforme estabelecido na referida diretiva e, em particular, nos seus artigos 5.°, n.° 1, e 6.° Logo, esse indeferimento não se baseou na lex specialis contida no referido artigo 12.°, n.° 1, alínea a).

47.      Os pedidos subsequentes de SN e LN diferem dos seus primeiros pedidos na medida em que, nesses pedidos subsequentes, invocam o seu registo perante a UNRWA e o seu direito a obter o estatuto de refugiado em aplicação desse artigo. Quanto a este aspeto, é importante notar que o facto de SN e LN estarem registadas na UNRWA constitui um «elemento novo», na aceção do artigo 33.°, n.° 2, e do artigo 40.°, n.os 2 e 3, da Diretiva 2013/32. Nos termos destas disposições, um elemento pode ser considerado «novo» quando surge após a adoção da decisão sobre o pedido anterior do requerente ou quando o requerente o apresenta pela primeira vez no âmbito do seu pedido subsequente (25). Como o Tribunal de Justiça tem repetidamente afirmado, um «elemento novo», deste modo, não tem de ser posterior à decisão final sobre os pedidos anteriores das pessoas em causa (26). Embora SN e LN já estivessem registadas na UNRWA quando apresentaram o primeiro pedido de proteção internacional, esse elemento não foi divulgado nem disponibilizado à DAB até à apresentação dos seus pedidos subsequentes. Este «elemento novo» desencadeia a aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 e, portanto, proporciona uma base jurídica diferente com fundamento na qual SN e LN poderiam invocar o seu direito ao estatuto de refugiado.

48.      Nestas circunstâncias, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a DAB estava obrigada a tomar em consideração, no âmbito da apreciação do mérito dos pedidos subsequentes de SN e LN, não só o facto de estarem inscritas na UNRWA (o «elemento novo») mas também os outros elementos de facto constantes do seu processo, nomeadamente os relativos às razões pelas quais tinham abandonado a Faixa de Gaza, que já tinham sido analisados no âmbito desse procedimento anterior. Estas razões respeitam às condições gerais de vida existentes na Faixa de Gaza antes da saída de LN e SN dessa zona.

49.      O órgão jurisdicional de reenvio invoca o artigo 40.°, n.° 1, da Diretiva 2013/32, que, no seu entender, impõe às autoridades nacionais competentes a obrigação de considerarem, em cada caso, todos os elementos subjacentes ao pedido subsequente.

50.      É verdade que esta disposição estabelece essa obrigação. No entanto, a meu ver, o artigo 40.°, n.° 1, abrange apenas duas situações específicas. A primeira ocorre quando, antes de ser tomada uma decisão definitiva sobre o seu primeiro pedido de proteção internacional, o requerente faz declarações suplementares ou apresenta um pedido subsequente no mesmo Estado‑Membro. Isto pode acontecer, por exemplo, enquanto está a decorrer um recurso contra a decisão tomada pelas autoridades nacionais competentes. A segunda situação surge quando já foi adotada uma decisão final, mas o direito nacional aplicável permite a reabertura do processo à luz de um «elemento novo» (27).

51.      Como a Comissão corretamente salientou, nenhuma destas situações parece abranger a que está em causa no processo principal, em que do pedido subsequente resulta a realização pelas autoridades nacionais competentes de um novo processo de asilo com uma base jurídica diferente [in casu, essa nova base jurídica é o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95]. Assim, não me convence o argumento de que uma obrigação geral de considerar todos os elementos subjacentes a um pedido subsequente possa ser deduzida desta disposição em particular.

52.      Dito isto, observo que o Governo Búlgaro convida o Tribunal de Justiça a centrar a sua análise no artigo 40.°, n.os 2 e 3, da Diretiva 2013/32 em vez do n.° 1 do seu artigo 40.° Alega que, ao contrário do n.º 1 do artigo 40.º, (28) os n.os 2 e 3 desta disposição aplicam‑se a situações, como a situação em apreço, em que é iniciado um novo procedimento de asilo. Esse Governo considera que, nos termos destas disposições, os elementos já apreciados no âmbito do anterior processo de asilo não devem ser reapreciados no âmbito deste novo procedimento. Na sua opinião, apenas o «elemento novo» deve ser analisado no âmbito do procedimento relativo ao segundo pedido.

53.      Embora concorde com o Governo Búlgaro quanto à relevância do artigo 40.º, n.os 2 e 3, da Diretiva 2013/32 relativamente à questão em causa no processo principal, não concordo com a interpretação proposta por esse Governo. No meu entender, as autoridades nacionais competentes não podem limitar‑se a apreciar apenas o «elemento novo».

54.      Relativamente a este aspeto, é verdade que o artigo 40.°, n.os 2 e 3, da Diretiva 2013/32, lido à luz do artigo 33.°, n.° 2, alínea d), da mesma diretiva (29), dispõe que só a existência de «novos elementos» pode impedir que pedidos subsequentes sejam declarados inadmissíveis. Portanto, em princípio (30), os «novos elementos» são os únicos elementos pertinentes na fase relativa à admissibilidade de tais pedidos. No entanto, o mesmo não acontece quando um pedido subsequente é apreciado quanto ao mérito (depois de ter sido considerado admissível). Estas duas fases devem ser claramente distinguidas.

55.      Com efeito, a partir do momento em que as autoridades nacionais competentes passam à apreciação de um pedido subsequente quanto ao mérito, o artigo 40.°, n.° 3, da Diretiva 2013/32 deixa bem claro que essas autoridades não podem dar um tratamento diferente a esse pedido pelo simples facto de não ter sido apresentado por um requerente inicial. Esta disposição estabelece que, na fase de «análise do mérito» do processo, os princípios e garantias fundamentais enumerados no capítulo II da referida diretiva são efetivamente aplicáveis. Este capítulo exige, designadamente, que a decisão sobre se uma pessoa beneficia do estatuto de refugiado seja tomada de forma individual, objetiva e imparcial e apenas «após apreciação adequada» (31).

56.      Posso admitir que alguns dos elementos factuais que as autoridades nacionais competentes já avaliaram durante um procedimento anterior de asilo possam ser idênticos aos que têm de considerar quando examinam os pedidos subsequentes das pessoas em causa, ainda que os dois processos assentem em bases jurídicas diferentes. Por exemplo, essas pessoas podem — como parece ser aqui o caso — invocar as mesmas razões para abandonar o seu país ou zona de origem. Contudo, a meu ver, isso não dispensa essas autoridades da obrigação de reavaliar a pertinência e a exatidão (32) desses elementos factuais. Esta obrigação deve ser cumprida nos casos em que, como acontece no processo principal, a base jurídica em que assenta a apreciação do pedido subsequente [artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95] não é a mesma em que assentou a realização do procedimento anterior. Em tal situação, os elementos relevantes — mesmo que já tenham sido examinados no âmbito do procedimento anterior — devem ser reavaliados sob o prisma dos critérios específicos previstos no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95.

57.      Conforme expliquei nos n.os 36 a 38, supra, esta disposição contém uma regra específica relativa ao direito ao estatuto de refugiado que é diferente dos critérios gerais enunciados, concretamente, no artigo 5.°, n.° 1, e no artigo 6.° da Diretiva 2011/95. Quando aplicam o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), desta diretiva, as autoridades nacionais competentes não são obrigadas a determinar se, à luz dos motivos que o ou a levaram a abandonar o seu local de origem, a pessoa em causa tem um «receio fundado de ser perseguid[a]», como teriam de fazer por força dos critérios gerais para a obtenção do estatuto de refugiado previstos, nomeadamente, no artigo 5.°, n.° 1, e no artigo 6.°, deste instrumento. Este requisito de «receio fundado de ser perseguido» não é pertinente para a apreciação que as autoridades nacionais competentes devem efetuar nos termos do artigo 12.º, n.º 1, alínea a), que se centra na questão de saber se a proteção ou a assistência da UNRWA «cessou». Qualquer motivo que tenha levado a pessoa a ter de abandonar o seu local de origem deve, neste contexto, ser apreciado unicamente à luz do referido requisito.

58.      Concebo facilmente que a prova de que uma pessoa vivia em condições materiais precárias na zona de operações da UNRWA e de que abandonou essa zona devido a tais condições precárias (como parece ser o caso de SN e LN no processo principal) pode pesar tanto na decisão que consiste em determinar se a proteção ou a assistência da UNRWA «cessou» em relação a essa pessoa, de modo a que esta tenha direito ipso facto ao estatuto de refugiado ao abrigo do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, como na questão de saber se este estatuto lhe deve ser concedido em aplicação dos critérios gerais que constam, nomeadamente, nos artigos 5.°, n.° 1, e 6.° desta diretiva. No entanto, é provável que essa prova não possa ser apreciada da mesma forma pelas autoridades nacionais competentes, dependendo de qual dessas duas bases jurídicas for pertinente. No decurso de um procedimento baseado nos critérios gerais de concessão do estatuto de refugiado estabelecidos na Diretiva 2011/95 [e não no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da referida diretiva], as autoridades nacionais competentes analisam a prova de que a pessoa em causa vivia em condições materiais precárias a partir de um ângulo diferente do previsto no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), uma vez que, entre outros aspetos, devem incidir na questão de saber se a deterioração das condições de vida a que essas pessoas estavam expostas pode ser considerada um «ato de perseguição» (33) e não na questão de saber se tal contribui para determinar a cessação da proteção ou da assistência da UNRWA.

59.      À luz destas considerações, entendo que, ao apreciar um pedido subsequente com base no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, as autoridades nacionais competentes devem reapreciar, em conformidade com os critérios jurídicos específicos desta disposição, os elementos de facto que já analisaram no âmbito de um processo anterior que não se baseava nesta disposição, mas nos critérios gerais que as pessoas não abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 devem cumprir para beneficiarem do estatuto de refugiado.

B.      Segunda e terceira questões: cessação da proteção ou da assistência da UNRWA, tendo em conta as condições gerais de vida existentes numa parte da sua zona de operações

60.      Com a segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio convida o Tribunal de Justiça a esclarecer, essencialmente, se se deve considerar que a proteção ou a assistência da UNRWA «cessou», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, em relação às pessoas que beneficiaram dessa proteção ou dessa assistência, tendo em conta as condições de vida geralmente existentes na Faixa de Gaza e sem que essas pessoas tenham de demonstrar que foram especificamente alvo ou afetadas nessas condições devido a fatores particulares relacionados com as suas circunstâncias pessoais. Esse órgão jurisdicional pergunta ainda se a resposta a esta questão poderá ser diferente quando esses requerentes sejam crianças.

61.      Recordo que, para que a cláusula de inclusão constante do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 seja aplicável, basta, como esta disposição indica expressamente, que a cessação da proteção ou da assistência de um órgão ou de uma agência como a UNRWA ocorra por «qualquer razão».

62.      Para precisar o sentido destes termos, o Tribunal de Justiça considerou que a cessação da proteção ou assistência da UNRWA ocorre não só quando esta agência deixa de existir mas também quando a pessoa em causa foi obrigada a abandonar a zona de operações da UNRWA por razões alheias à sua vontade (34). É o que acontece se o indivíduo em causa estiver numa situação de grave risco (primeiro requisito) (35) e se for impossível a essa agência garantir que as condições de vida dessa pessoa na sua zona de operações são conformes à missão de que está incumbida, que é a de assegurar condições de vida «dignas» (36) (segundo requisito).

63.      Para verificar se estes requisitos estão preenchidos e se as pessoas em causa têm, consequentemente, direito ipso facto ao estatuto de refugiado ao abrigo da Diretiva 2011/95, as autoridades nacionais competentes devem ter em conta não só as razões que levaram os requerentes a abandonar a zona de operações da UNRWA mas também se atualmente lhes é possível regressar a essa zona. O Tribunal de Justiça tornou esta exigência muito clara no seu Acórdão Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana) (37), no qual declarou que essas autoridades deviam verificar se era efetivamente possível regressar à zona de operações da UNRWA. Explicou que devem ser tidos em conta os elementos de facto, tal como existem não apenas no momento da saída dessa pessoa da zona de operações da UNRWA, mas também quando o seu pedido é analisado (38).

64.      Daqui decorre que, para as pessoas que vivem na Faixa de Gaza, onde o nível de insegurança e as condições de vida têm vindo a mudar rapidamente, especialmente desde os acontecimentos posteriores a 7 de outubro de 2023, devem ser tidas em conta informações precisas e atualizadas sobre a situação geral atualmente existente nessa zona, além das razões que, em primeiro lugar, levaram essas pessoas a abandoná‑la.

65.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que SN e LN não foram alvo de ameaças individuais à sua segurança antes de deixarem a Faixa de Gaza e que abandonaram essa zona voluntariamente. No entanto, o referido órgão jurisdicional explica que, em 2018, quando SN e LN deixaram a Faixa de Gaza, já estava a decorrer «uma crise humanitária inédita, devido à escassez de alimentos, de água potável, de serviços de saúde, de medicamentos e a problemas de abastecimento de água e de eletricidade, à destruição de edifícios e de infraestruturas, ao desemprego».

66.      No que respeita ao período posterior à saída de SN e LN dessa zona, o órgão jurisdicional de reenvio insiste nas dificuldades enfrentadas pela UNRWA para manter a prestação de serviços na Faixa de Gaza (incluindo sob a forma de serviços alimentares e de saúde). Esse órgão jurisdicional sugere igualmente que, mesmo antes dos acontecimentos ocorridos nesta zona desde 7 de outubro de 2023, não era certo que SN e LN pudessem, caso regressassem à Faixa de Gaza, obter da UNRWA os alimentos, os medicamentos e os serviços de saúde ou educação de que necessitam. À luz destes elementos, duvida que qualquer apátrida de origem palestiniana possa ser obrigado a regressar a essa zona.

67.      Concordo com a Comissão quando afirma que não compete ao Tribunal de Justiça efetuar a sua própria apreciação factual das condições gerais de vida existentes na Faixa de Gaza ou da situação pessoal dos recorrentes no processo principal. Importa, com efeito, recordar que o artigo 267.° TFUE não habilita o Tribunal de Justiça a aplicar as regras do direito da União a uma situação determinada, mas apenas a pronunciar‑se sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições da União. No caso em apreço, cabe assim ao órgão jurisdicional de reenvio (ou, se for o caso, às autoridades nacionais competentes) verificar, tendo em conta, nomeadamente, as condições gerais de vida atualmente existentes na Faixa de Gaza, se SN e LN têm direito ao estatuto de refugiado ao abrigo do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95. Todavia, o Tribunal de Justiça tem o direito de precisar os critérios jurídicos que o órgão jurisdicional de reenvio ou aquelas autoridades devem aplicar a este respeito e as circunstâncias pertinentes para tal apreciação.

68.      A questão‑chave a que importa responder nesta matéria é a de saber se, para demonstrar que a proteção ou assistência da UNRWA «cessou» relativamente a uma pessoa que beneficiou dessa proteção ou assistência na zona de operações desta agência ou numa parte da mesma zona, basta que essa pessoa invoque as condições de vida gerais aí existentes.

1.      A importância relativa dos elementos relacionados com as condições gerais de vida

69.      Importa salientar que, nos casos em que o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 não se aplica e em que, por conseguinte, as autoridades nacionais competentes se baseiam nos critérios gerais de concessão do estatuto de refugiado previstos nesta diretiva (que são indicados, nomeadamente, no artigo 5.°, n.° 1, e no artigo 6.° deste instrumento), o facto de uma pessoa correr sérios riscos de enfrentar uma ofensa grave ao encontrar condições de vida indignas, maus tratos, violência indiscriminada ou outras ofensas graves se tiver de regressar ao seu país ou à sua região de origem não lhe confere, por si só, o direito de facto ao estatuto de refugiado.

70.      De acordo com estes critérios gerais, o estatuto de refugiado só é concedido se o requerente de asilo tiver um «receio fundado de ser perseguido», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, e do artigo 6.° da Diretiva 2011/95. O «receio fundado de ser perseguido» só existe se os atos relevantes forem «atos de perseguição» (conforme definido no artigo 9.º desta diretiva), praticados por determinados agentes (enumerados no artigo 6.° da diretiva) e se estiverem associados a um motivo específico (conforme descrito no artigo 10.° da Diretiva 2011/95).

71.      No entanto, um risco de ofensa grave pode, ainda que não chegue a ser um «receio fundado de ser perseguido», conferir às pessoas em causa o direito à proteção subsidiária, que é uma forma diferente de proteção internacional (39) (cujas condições são descritas no artigo 15.° da referida diretiva). Pode igualmente criar, mais genericamente, a obrigação de os Estados‑Membros não reenviarem essas pessoas para o seu país ou zona de origem, em aplicação do princípio da não repulsão. Este princípio está consagrado, nomeadamente, no artigo 3.° da CEDH (40) e no artigo 19.°, n.° 2, da Carta. Em especial, esta última disposição exige que ninguém seja «afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes».

72.      É necessária uma análise diferente quando o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 é aplicável.

73.      Como já expliquei, esta disposição condiciona o direito ao estatuto de refugiado dos apátridas de origem palestiniana que tenham beneficiado da proteção ou da assistência da UNRWA à «cessação» dessa proteção ou assistência. Conforme indiquei no n.° 62, supra, a missão da UNRWA consiste em assegurar «condições de vida dignas» às pessoas colocadas sob a sua proteção ou assistência, satisfazendo as necessidades básicas dessas pessoas (no tocante à alimentação, higiene pessoal e alojamento). Dado que a proibição estabelecida no artigo 4.° da Carta (que prevê que «[n]inguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes» e é equivalente ao artigo 3.° da CEDH) está estreitamente relacionada com obrigações positivas de proteção da dignidade humana (41), é para mim claro – para dizer o mínimo – que se deve considerar que a missão da UNRWA «cessou» se existir um risco grave de que essas pessoas, caso regressem à zona de operações da UNRWA (ou a uma parte desta), sejam expostas a um tratamento incompatível com o artigo 4.° da Carta, devido à impossibilidade de atender às suas necessidades básicas (cuja satisfação a UNRWA é obrigada a garantir). Esse tratamento inclui condições de vida indignas, maus tratos, violência indiscriminada, bem como outras ofensas graves, que pressupõem a sujeição a dores ou sofrimentos físicos ou mentais de intensidade ou duração suficientes para atingir o limiar fixado por essa disposição (42), que é o mesmo que o previsto no artigo 19.°, n.° 2, da Carta (43). É importante notar que não é necessário demonstrar que a ofensa grave é cometida por determinados atores ou que está ligada a um motivo específico e, deste modo, equivale a «perseguição».

74.      Consequentemente, se uma pessoa que tenha beneficiado da proteção ou da assistência da UNRWA for exposta, devido à incapacidade da UNRWA de assegurar a satisfação das suas necessidades básicas (44), a maus tratos que atinjam aquele limiar, os dois requisitos que descrevi no n.° 62, supra, devem, antes de mais, considerar‑se preenchidos. Em termos concretos, deve considerar‑se que a pessoa em causa foi «obrigada a abandonar» a zona de operações da UNRWA e que, por esse motivo, tem direito ipso facto ao estatuto de refugiado ao abrigo do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95.

75.      Para ser claro, conforme acabo de explicar, o risco de exposição a um tratamento incompatível com o artigo 4.° da Carta não dá direito, por si só, ao estatuto de refugiado na União Europeia. No entanto, esta disposição desempenha um papel específico no tocante aos apátridas de origem palestiniana que tenham beneficiado da proteção ou da assistência da UNRWA e à questão de saber se têm direito ao estatuto de refugiado na União Europeia nos termos do artigo 12.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2011/95. A este respeito, recordo que, tal como expliquei no n.° 37, supra, os apátridas de origem palestiniana são já reconhecidos como refugiados pela comunidade internacional. A razão pela qual estão excluídos do estatuto de refugiado nos termos da Diretiva 2011/95 é a de que deviam receber proteção ou assistência efetiva da UNRWA, que devia satisfazer as suas necessidades básicas (no que respeita, nomeadamente, à alimentação, higiene pessoal e alojamento) e assegurar que usufruem de condições de vida dignas. Esta exclusão deixa de se justificar se o facto de a UNRWA não assegurar a satisfação dessas necessidades básicas tiver como consequência a exposição das pessoas a um tratamento incompatível com o artigo 4.° da Carta.

76.      Dito isto, entendo que a possibilidade de a prova de deterioração das condições gerais de vida existentes na zona de operações da UNRWA ou numa parte desta ser suficiente para demonstrar que a pessoa em causa será exposta a um tratamento incompatível com o artigo 4.° da Carta caso regresse a essa zona e, por conseguinte, que a proteção ou a assistência da UNRWA em relação a essa pessoa «cessou», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, depende precisamente do grau dessa deterioração.

77.      Por um lado, concordo que o simples facto de as condições gerais de vida na zona de operações da UNRWA ou numa parte desta serem inferiores às condições de que uma pessoa poderia beneficiar se lhe fosse concedido o estatuto de refugiado num Estado‑Membro não é suficiente para concluir que essa pessoa foi obrigada a abandonar essa zona (45). Por outro lado, parece‑me que não se pode excluir a possibilidade de, em certas situações, essas condições gerais de vida se tornarem tão intoleráveis que podem ser consideradas «indignas» para qualquer apátrida de origem palestiniana que aí viva (a). Entre estes dois extremos, a questão de saber se é possível considerar que a pessoa em causa, devido a essas mesmas condições gerais de vida (embora menos graves), foi «obrigada» a abandonar a zona de operações da UNRWA depende, como explicarei, do facto de pertencer ou não a um grupo particularmente vulnerável (b) ou de dever ser considerada especialmente vulnerável ou especialmente afetada devido à sua situação pessoal (c).

a)      Situações em que as condições gerais de vida são «indignas» para todos

78.      Recordo que designadamente no seu Acórdão Elgafaji o Tribunal de Justiça já decidiu, relativamente à questão de saber se pode ser concedida proteção subsidiária devido à violência indiscriminada provocada por um conflito armado interno ou internacional, que existem situações em que o grau de violência indiscriminada atinge um nível tão elevado que existem motivos substanciais para considerar que um civil, regressado ao país ou à zona em causa, enfrentaria, apenas devido à sua presença nesse território, um risco real de sofrer uma ameaça à sua vida (46).

79.      Além disso, no seu Acórdão Jawo, o Tribunal de Justiça já reconheceu [embora ainda não no âmbito da aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95] (47) que certas zonas geográficas podem, na prática, apresentar dificuldades operacionais (ou deficiências sistémicas) tão grandes que existe um risco substancial de que qualquer requerente de proteção internacional possa, quando transferido ou regressado a essas zonas, ser tratado de forma incompatível com o artigo 4.° da Carta. Nessas circunstâncias, as transferências ou o regresso de qualquer requerente de asilo para essas zonas geográficas estão, muito simplesmente, fora de questão (48), devido às condições gerais de vida ali existentes, sem que seja necessário que essas pessoas demonstrem que pertencem a um grupo particularmente vulnerável de requerentes de asilo (por exemplo, por serem crianças), ou que são particularmente vulneráveis devido às suas circunstâncias pessoais (por exemplo, devido a uma doença) ou particularmente suscetíveis de ser afetadas por essas condições gerais, também devido às suas circunstâncias pessoais (por exemplo, porque a sua casa está situada numa zona particularmente suscetível de ser alvo de atos violentos).

80.      Só uma situação particularmente grave pode conduzir a tal proibição generalizada. O Tribunal de Justiça considerou que esse limiar de gravidade particularmente elevado não será atingido em situações que se caracterizam apenas por uma grande insegurança ou uma forte degradação das condições de vida (49). O que é exigido é um risco sério de que as pessoas que regressam a essa zona se encontrem, devido a essas grandes dificuldades operacionais (ou deficiências sistémicas), numa situação de privação material extrema, que não lhes permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentação, higiene pessoal e alojamento, e que atentem contra a sua saúde física ou mental ou as coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (50).

81.      Considero que esta lógica pode ser importada para o contexto da aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95. Em primeiro lugar, o artigo 4.° da Carta é uma disposição de aplicação transversal, pelo que qualquer interpretação desta disposição pelo Tribunal de Justiça não está limitada a um instrumento específico de direito derivado. Por outro lado, não se pode excluir — para dizer o mínimo — que uma parte da zona de operações da UNRWA (no caso em apreço, a Faixa de Gaza) possa ser afetada por deficiências sistémicas de tal gravidade (por exemplo, devido a um conflito armado ou a um bloqueio militar ou, para utilizar os termos do órgão jurisdicional de reenvio, a uma «crise humanitária inédita») que exista um risco substancial de que qualquer pessoa reenviada para esse território se encontre — exclusivamente devido à sua presença nesse território — numa situação de privação material extrema que não lhe permita satisfazer as necessidades mais básicas, como, nomeadamente, a alimentação, a higiene pessoal e o alojamento, e que prejudique a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana e, por conseguinte, com o artigo 4.° da Carta.

82.      Nessas situações, considero que a prova de tais condições gerais de vida é suficiente, no sentido de que não se pode exigir aos requerentes que demonstrem que essas condições gerais são «indignas» para eles, de forma individualizada (por exemplo, devido à sua especial vulnerabilidade), ou que são especificamente afetados por essas condições devido a fatores específicos das suas circunstâncias pessoais (por exemplo, o facto de a sua casa se situar numa rua que é regularmente alvo de mísseis, como parece ser o caso de SN e LN) (51).

83.      No entanto, continua a ser necessário demonstrar que as condições gerais de vida podem, de facto, ser consideradas «indignas» e, portanto, incompatíveis com o artigo 4.° da Carta para praticamente todas as pessoas, no sentido de que devem revestir tal gravidade que sejam suscetíveis de afetar as pessoas independentemente da sua situação pessoal ou identidade. Se assim for, pode considerar‑se, primeiro, que a situação pessoal de qualquer requerente que fosse obrigado a regressar a essa zona seria de sério risco (o primeiro requisito a que me referi no n.° 62, supra) e, segundo, que a UNRWA não está em condições de garantir que as condições de vida dessa pessoa sejam conformes à missão de que está incumbida, que é a de assegurar condições de vida «dignas», garantindo a satisfação das suas necessidades básicas (segundo requisito). Por conseguinte, há que considerar que a proteção ou a assistência desta agência «cessou» em relação a esse requerente, na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95.

b)      Situações em que o requerente deve demonstrar que pertence a um grupo particularmente vulnerável

84.      Na minha opinião, é necessária uma abordagem mais flexível em situações que não atingem o nível de gravidade mencionado na parte anterior. Efetivamente, as situações que não são afetadas por deficiências sistémicas suficientemente graves para que as condições gerais de vida sejam consideradas «indignas» e, por conseguinte, incompatíveis com o artigo 4.° da Carta em relação a praticamente todas as pessoas, podem ainda assim gerar «condições de vida indignas» para certos grupos de pessoas particularmente vulneráveis (ou certas pessoas particularmente vulneráveis, como explicarei na secção seguinte), ao não lhes permitir satisfazer as suas necessidades mais básicas.

85.      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em particular, se o facto de a requerente ser uma criança afeta o grau de gravidade exigido para que as condições gerais de vida na Faixa de Gaza sejam consideradas «indignas».

86.      Saliento que o Tribunal de Justiça considerou que a apreciação da existência de um «risco real de tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta» depende efetivamente da particular vulnerabilidade do requerente de asilo em causa (52). Além disso, o TEDH reconheceu que a apreciação do nível mínimo de gravidade que os maus tratos devem atingir para serem abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 3.° da CEDH é, «por natureza, relativa» (53).

87.      No que diz respeito às crianças, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sublinhou reiteradamente, na sua jurisprudência relativa à interpretação do artigo 3.° da CEDH, que são um grupo particularmente vulnerável, com necessidades específicas que são diferentes, nomeadamente em termos de segurança e proteção, das dos adultos (54). Esta jurisprudência tem eco em vários instrumentos do direito de asilo da UE, na medida em que, por exemplo, os Estados‑Membros têm a obrigação de assegurar que as condições de vida proporcionadas às crianças depois de lhes ter sido concedido o estatuto de refugiado (55), bem como na pendência de qualquer decisão sobre se lhes deve ser concedida proteção internacional, sejam proporcionais às suas necessidades e reflitam a sua especial vulnerabilidade (56). Assim, parece ser geralmente aceite que as condições de vida que não podem ser consideradas «indignas» para os adultos podem, no entanto, ser consideradas como tal para as crianças, como um grupo (57).

88.      À luz destas considerações, parece‑me evidente que, em determinadas situações, é possível sustentar que as condições gerais de vida — embora não suficientemente deterioradas para criar um risco sério de ofensa grave para praticamente todas as pessoas — podem ainda assim expor qualquer criança a um risco sério de ofensa grave incompatível com o artigo 4.° da Carta, devido ao facto de as crianças constituírem um grupo particularmente vulnerável de «requerentes de asilo».

89.      Em tais situações, entendo que as pessoas pertencentes a esse grupo particularmente vulnerável (ou a qualquer outro grupo particularmente vulnerável) não têm de demonstrar que as condições gerais de vida são «indignas» e, portanto, incompatíveis com o artigo 4.° da Carta, de uma forma individual, desde que se possa estabelecer, primeiro, que essas condições gerais de vida são suficientemente graves para serem consideradas «indignas» para qualquer pessoa pertencente a esse grupo e, segundo, que as circunstâncias pessoais relevantes do requerente (por exemplo, a idade, o sexo ou a condição ou deficiência específica) lhe atribuem a qualidade de membro desse grupo.

c)      Situações em que a pessoa em causa deve demonstrar que apresenta uma especial vulnerabilidade ou é especificamente afetada pelas condições gerais de vida devido às suas circunstâncias pessoais

90.      Tal como referi no n.° 84, supra, a jurisprudência do Tribunal de Justiça indica claramente que existem também certas situações em que as condições gerais de vida não podem ser consideradas «indignas» e são, por conseguinte, incompatíveis com o artigo 4.° da Carta para praticamente todas as pessoas ou para um ou mais grupos de pessoas particularmente vulneráveis. No entanto, estas situações podem ainda criar «condições de vida indignas» para certas pessoas que devem ser consideradas particularmente vulneráveis devido à sua situação pessoal (58) ou que são especificamente afetadas pelas mesmas condições gerais devido a fatores específicos da sua situação pessoal (por exemplo, o facto de a sua casa se situar numa rua que é regularmente alvo de mísseis). Efetivamente, como explicou o advogado‑geral M. Wathelet, «seria manifestamente incompatível com o caráter absoluto [do artigo 4.° da Carta] que os Estados‑Membros pudessem ignorar um risco real e comprovado de tratos desumanos ou degradantes que afetassem um requerente de asilo sob pretexto de que esse risco não resultava de uma falha sistémica no Estado‑Membro responsável» (59).

91.      O Tribunal de Justiça já utilizou este raciocínio no âmbito da aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95. Com efeito, no seu Acórdão SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano), que dizia respeito a uma pessoa que sofria de uma doença particularmente grave, o Tribunal de Justiça concluiu que se deve considerar que a proteção ou a assistência da UNRWA «cessou» se esta agência não estiver em condições de assegurar que essa pessoa tenha acesso aos cuidados de saúde e aos tratamentos médicos específicos sem os quais corre um risco real de morte iminente ou um risco real de estar exposta a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde ou a uma redução significativa da sua esperança de vida (60).

92.      Em situações como a que conduziu ao Acórdão SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano), as condições gerais de vida existentes numa parte da zona de operações da UNRWA não eram, por si só, suficientemente graves para demonstrar a existência de um tratamento incompatível com o artigo 4.° da Carta para todas as pessoas ou mesmo para um grupo determinado de pessoas. No entanto, o requerente pôde invocar determinadas circunstâncias pessoais que lhe são próprias que o tornavam particularmente vulnerável e levavam a que essas condições gerais de vida lhe fossem insuportáveis e «indignas» (e, por conseguinte, incompatíveis com aquela disposição), de uma forma individualizada.

2.      Mas existe a necessidade de uma apreciação individual em todos os casos

93.      Como expliquei anteriormente, existem três cenários possíveis em que se pode considerar que a proteção ou a assistência da UNRWA «cessou» devido à incapacidade desta agência de assegurar condições de vida dignas aos apátridas de origem palestiniana que recorreram à sua proteção ou assistência através, em suma, da garantia da satisfação das suas necessidades básicas, como a alimentação, a higiene pessoal e o alojamento, entre outras.

94.      A meu ver, o peso que deve ser dado, respetivamente, às condições gerais de vida existentes na zona de operações da UNRWA ou numa parte desta, por um lado, e à situação pessoal das pessoas em causa, por outro, varia consoante qual desses três cenários é aplicável. Nos dois primeiros cenários, não é necessário demonstrar que essas condições gerais de vida são «indignas» para a pessoa em causa, de forma individualizada, uma vez que essas condições são tão graves que podem ser consideradas «indignas» e, por conseguinte, incompatíveis com o artigo 4.° da Carta para todas as pessoas em geral ou para um grupo particularmente vulnerável a que essa pessoa pertence, ao passo que, no terceiro cenário, todavia, o caráter «indigno» das condições gerais de vida deve ser demonstrado de forma individualizada, com base na vulnerabilidade específica ou em outras circunstâncias particulares da pessoa em causa.

95.      Acrescento ainda que, embora as condições gerais de vida existentes numa parte da zona de operações da UNRWA sejam sempre relevantes para determinar se a proteção ou a assistência desta agência «cessou», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, essas condições só podem ser tidas em conta no âmbito de uma apreciação individual. De facto, o Tribunal de Justiça já sublinhou este requisito no seu Acórdão Abed El Karem El Kott e o (61).. Efetivamente, declarou que, ao examinar se uma pessoa, por razões que escapam ao seu controlo e que são alheias à sua vontade, já não está em condições de beneficiar da proteção ou da assistência da UNRWA, as autoridades nacionais competentes devem proceder a uma avaliação individual de todos os fatores relevantes.

96.      À luz desta jurisprudência, concordo com a Comissão quando afirma que os elementos de caráter geral relacionados com as condições gerais de vida na zona em causa em que a UNRWA atua ou numa parte dessa zona (neste caso, a Faixa de Gaza) devem ser sempre integrados numa avaliação individual. Mesmo no primeiro cenário, o estatuto de refugiado não é concedido automaticamente a todas as pessoas. Como já referi no n.° 83, supra, as pessoas em causa continuam a ter de pedir esse estatuto, sendo necessária uma análise caso a caso para determinar não só se beneficiaram efetivamente da proteção ou da assistência da UNRWA na zona em causa (ou numa parte dessa zona) mas também se, no momento dessa análise, as condições gerais de vida nessa zona geográfica podem ser consideradas «indignas» para praticamente toda a gente, de tal maneira que existam motivos substanciais para crer que o requerente correria um risco real de sofrer uma ofensa incompatível com o artigo 4.° da Carta apenas devido à sua presença e sem ter de demonstrar que estaria especificamente exposto a essa ofensa, caso lá regressasse.

97.      É importante sublinhar a necessidade da referida apreciação individual. Se este requisito não existisse, o sistema instituído pelo artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 tornar‑se‑ia, em certa medida, equivalente ao introduzido pela Diretiva 2001/55/CE (62), que concede proteção temporária (uma forma diferente de proteção, distinta e menos extensa do que a proteção conferida pelo estatuto de refugiado ou pela proteção subsidiária) no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas, sem que essas pessoas tenham de apresentar pedidos individuais e, por conseguinte, de ser sujeitas a uma avaliação individual. Esta diretiva foi concebida para ser aplicada apenas em determinadas situações limitadas e apenas na sequência de uma decisão formal do Conselho da União Europeia (por exemplo, uma decisão deste tipo foi adotada recentemente para as pessoas deslocadas que tiveram de abandonar a Ucrânia a partir de 24 de fevereiro de 2022, na sequência da invasão militar das forças armadas russas) (63). Na minha opinião, o mecanismo implementado pelo artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 não pode substituir‑se ao mecanismo implementado pela Diretiva 2001/55.

98.      Além disso, recordo que, como já expliquei no n.° 38, supra, antes de conceder o estatuto de refugiado em aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, as autoridades nacionais competentes devem igualmente verificar, em cada caso, se as pessoas em causa não estão abrangidas por nenhum dos motivos de exclusão previstos no artigo 12.°, n.° 1, alínea b), e n.os 2 e 3, desta diretiva (64). Estas disposições preveem, essencialmente, que o estatuto de refugiado não será concedido a um apátrida de origem palestiniana (mesmo que este tenha beneficiado da proteção ou da assistência da UNRWA), se existirem razões sérias para considerar que este praticou, instigou ou de outra forma participou na prática de determinados crimes (crimes contra a paz, crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes graves de direito comum fora do país de refúgio ou outros atos contrários aos princípios das Nações Unidas). Isto incluiria, a meu ver, a prática de atos terroristas e qualquer forma de participação ou incitamento à prática de tais atos (como, para citar o exemplo mais recente, os atos perpetrados pelo Hamas contra Israel).

99.      Daqui resulta, como o Tribunal de Justiça já declarou, que o facto de os apátridas de origem palestiniana terem direito ipso facto a beneficiar do disposto na Diretiva 2011/95, na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), deste instrumento no caso de cessação da proteção ou assistência da UNRWA não implica um direito incondicional ao reconhecimento do estatuto de refugiado (65).

C.      Quarta questão: a relação entre o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 e as disposições relativas à proteção subsidiária

100. Se bem o entendo, a quarta questão — cujo objetivo e significado, tenho de admitir, é à primeira vista consideravelmente difícil de decifrar — refere‑se à relação entre o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 (que abre a possibilidade, em determinadas condições, de os apátridas de origem palestiniana poderem ter direito ipso facto a beneficiar do estatuto de refugiado) e as disposições deste instrumento que respeitam à «proteção subsidiária», que, como já referi no n.° 71, supra, é uma forma de proteção internacional diferente da conferida pelo estatuto de refugiado (e menos ampla) (66).

101. Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em primeiro lugar, se o princípio da não repulsão, que está consagrado, nomeadamente, no artigo 19.°, n.° 2, da Carta, se aplica a uma situação em que um apátrida de origem palestiniana, embora não tenha direito ao estatuto de refugiado ao abrigo do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, é elegível para proteção subsidiária nos termos do seu artigo 15.°, alínea b). O direito dessa pessoa à proteção subsidiária basear‑se‑ia no facto de que, se regressasse à zona de operações da UNRWA, se encontraria numa situação de «privação material extrema», semelhante à descrita no n.° 79, supra.

102. Em segundo lugar, o referido órgão jurisdicional pede ao Tribunal de Justiça que esclareça se, quando verifica se uma pessoa preenche as condições enumeradas no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 para obter o estatuto de refugiado, as autoridades nacionais competentes devem ter em conta não só o princípio da não repulsão, mas também os elementos pertinentes para determinar se essa pessoa pode beneficiar da proteção subsidiária, ao abrigo do artigo 15.°, alínea b), da mesma diretiva.

103. Conforme expliquei nas minhas Conclusões no processo SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano) (67), o regime único a que os apátridas de origem palestiniana estão sujeitos por força da Diretiva 2011/95 diz respeito apenas à possibilidade de lhes ser concedido o estatuto de refugiado, e não a proteção subsidiária (68).Assim, estas pessoas, tal como os outros requerentes de asilo, podem pedir o estatuto de proteção subsidiária, nos termos do artigo 18.° da referida diretiva, e não estão excluídas desse estatuto.

104. As condições que devem estar preenchidas para que uma pessoa se torne elegível para proteção subsidiária são especificadas nos capítulos II e V da Diretiva 2011/95. Essencialmente, deve ser demonstrado que a pessoa em causa enfrenta um risco real de ofensa grave. Entende‑se por «ofensa grave», na aceção do artigo 15.° desta diretiva, «[a] pena de morte ou a execução» [artigo 15.°, alínea a)], «[a] tortura ou a pena ou tratamento desumano ou degradante [...] no seu país de origem» [artigo 15.°, alínea b)] ou «[a] ameaça grave e individual contra a vida ou a integridade física [do requerente], resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno» [artigo 15.°, alínea c)].

105. À luz destes elementos, considero evidente que o nível de ofensas a que um apátrida de origem palestiniana estaria exposto, caso regressasse à zona em causa em que a UNRWA atua, pode muito bem atingir o limiar de «ofensas graves» enumeradas no artigo 15.° da Diretiva 2011/95, por exemplo, por constituir «tortura ou a pena ou tratamento desumano ou degradante» [artigo 15.°, alínea b)] e, ao mesmo tempo, por ser suficientemente grave para se concluir que a proteção ou a assistência da UNRWA em relação a essa pessoa «cessou», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), desta diretiva. Ambos os regimes [para a obtenção do estatuto de «refugiado» em aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), ou do estatuto de «proteção subsidiária» em aplicação do artigo 15.°, alínea b)] permitem, no essencial, a tomada em consideração de níveis de ofensas semelhantes, ou seja, em «tratamento desumano ou degradante» que é incompatível com o artigo 4.° da Carta.

106. Além disso, no que respeita ao artigo 15.°, alínea c), da Diretiva 2011/95, o Tribunal de Justiça esclareceu, no seu Acórdão Elgafaji (69), que, embora a existência de um risco ligado à situação geral de um país não seja, em princípio, suficiente para demonstrar que determinada pessoa preenche as condições estabelecidas para a obtenção da proteção subsidiária, existem algumas exceções. Com efeito, em certas situações, o grau de violência indiscriminada que caracteriza um conflito armado pode atingir um nível tão elevado que as pessoas que pedem proteção internacional não são obrigadas a apresentar provas de que são especificamente visadas devido a fatores específicos relativos à sua situação pessoal. A este respeito, o Tribunal de Justiça adotou, no essencial, a mesma lógica que expus na secção anterior. Quanto mais o requerente puder demonstrar que é especificamente afetado devido a fatores específicos relativos à sua situação pessoal, menor será o nível de violência indiscriminada necessário para que possa beneficiar de proteção subsidiária. Consequentemente, ambos os regimes [para a obtenção do estatuto de «refugiado» em aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, ou do estatuto de «proteção subsidiária» em aplicação do seu artigo 15.°, alínea b)] podem ser invocados para proteger os apátridas de origem palestiniana que enfrentam uma violência indiscriminada.

107. No entanto, não obstante essas semelhanças, os dois estatutos são mutuamente exclusivos. Não só não é possível que uma pessoa beneficie dos dois estatutos simultaneamente, como também estes estatutos devem ser sempre atribuídos independentemente um do outro. Daqui decorre que, para determinar se uma pessoa tem direito ipso facto ao estatuto de refugiado, nos termos do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, as autoridades nacionais competentes não têm de verificar se a pessoa em causa preenche as condições para beneficiar de uma «proteção subsidiária».

108. Em contrapartida, uma pessoa que não preencha as condições para que se considere que a proteção da UNRWA «cessou», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 (por exemplo, porque o risco real de tratamento desumano ou degradante a que estaria exposta caso regressasse à zona de operações da UNRWA não está ligado à missão desta agência (70)), pode, ainda assim, pedir e obter, se as condições estiverem preenchidas, o estatuto de «proteção subsidiária».

109. Além do mais, se uma pessoa elegível para proteção subsidiária fosse obrigada a regressar à zona de operações da UNRWA e a enfrentar «condições de vida indignas» ou uma «privação material extrema», então é evidente que o princípio da não repulsão consagrado no artigo 19.°, n.° 2, da Carta seria violado. Recordo que a aplicação deste princípio não está circunscrita às pessoas com direito ao estatuto de refugiado (71). Por conseguinte, o princípio da não repulsão aplica‑se — e deve ser respeitado — independentemente do estatuto específico (estatuto de refugiado ou estatuto de proteção subsidiária) de que a pessoa em causa possa beneficiar.

V.      Conclusão

110. À luz de todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais do Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia, Bulgária) do seguinte modo:

1)      O artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida, lido em conjugação com o artigo 40.°, n.° 3, da Diretiva 2013/32 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional

deve ser interpretado no sentido de que o facto de certos elementos invocados pelos apátridas de origem palestiniana que pretendem obter o estatuto de refugiado em aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 já terem sido analisados pelas autoridades nacionais competentes durante o processo relativo aos pedidos anteriores das pessoas em causa, com base noutras disposições da referida diretiva, não dispensa essas autoridades da obrigação de os examinar novamente, quando verificam se a proteção ou assistência «cessou» na aceção da referida disposição.

2)      O artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95

deve ser interpretado no sentido de que não se pode excluir a possibilidade de a zona de operações da UNRWA, ou parte dessa zona, ser afetada por deficiências sistémicas de tal gravidade que exista um risco substancial de que qualquer pessoa que seja enviada para essa zona se encontre numa situação de privação material extrema que não lhe permita satisfazer as suas necessidades mais básicas, tais como a alimentação, a higiene pessoal e o alojamento, entre outras, e isso prejudique a sua saúde física ou mental ou coloque essa pessoa num estado de degradação incompatível com a dignidade humana e, por conseguinte, com o artigo 4.° da Carta. Numa situação deste tipo, para determinar que a proteção ou assistência da UNRWA «cessou», na aceção da referida disposição, não é necessário que a pessoa em causa demonstre que as condições gerais de vida existentes nessa zona ou numa parte dessa zona são indignas para si de forma individualizada, uma vez que as condições gerais de vida podem ser consideradas «indignas» para praticamente todas as pessoas. No entanto, o direito ao estatuto de refugiado não é incondicional, mesmo em tal situação. A pessoa em causa deve requerer proteção internacional. Além disso, continua a ser necessária uma avaliação individual para verificar que nenhuma das exclusões previstas no artigo 12.°, n.° 1, alínea b), e n.os 2 e 3 é aplicável. A possibilidade de essa pessoa ter ou não direito à «proteção subsidiária», na aceção do artigo 2.°, alínea g), desta diretiva, é irrelevante para essa apreciação.


1      Língua original: inglês.


2      V. Resolução n.° 302 (IV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 8 de dezembro de 1949. Segundo as «Instruções consolidadas de elegibilidade e de registo (CERI)» da UNRWA (disponíveis em https://www.unrwa.org/sites/default/files/2010011995652.pdf), a proteção ou assistência da UNRWA está disponível para as pessoas que preenchem os critérios de «refugiado da Palestina» desta agência para serem considerados refugiados palestinianos (ou seja, qualquer pessoa cujo local de residência habitual fosse a Palestina durante o período compreendido entre 1 de junho de 1946 e 15 de maio de 1948 e que tenha perdido o seu lar e os seus meios de subsistência em consequência do conflito de 1948, bem como os descendentes dessas pessoas através da linha masculina, incluindo os filhos legalmente adotados), e ainda certas outras categorias de pessoas designadas por «outras pessoas registadas». Este documento refere que «todos os pedidos de registo na UNRWA são objeto de um exame aprofundado pelo pessoal da UNRWA responsável pela elegibilidade e pelo registo, e as decisões sobre a elegibilidade aos serviços UNRWA são tomadas caso a caso».


3      V. Resolução n.° 77/123 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 12 de dezembro de 2022.


4      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9).


5      Além do número alarmante de vidas perdidas entre a população civil desde o dia 7 de outubro de 2023, registou‑se um grande número de vítimas entre o pessoal da UNRWA que opera nessa zona. Em 27 de outubro de 2023, António Guterres, Secretário‑Geral das Nações Unidas, declarou que «o sistema humanitário em Gaza enfrenta um colapso total com consequências inimagináveis para mais de dois milhões de civis» (v. Declaração do Secretário‑Geral sobre a situação humanitária em Gaza, disponível no sítio Internet das Nações Unidas). Philippe Lazzarini, Comissário‑Geral da UNRWA, dirigiu‑se ao Conselho de Segurança das Nações Unidas em 30 de outubro de 2023, declarando que «o sistema vigente para permitir a entrada de ajuda em Gaza está votado ao fracasso, a menos que haja vontade política para tornar significativo o fluxo de fornecimentos, atendendo a necessidades humanitárias sem precedentes» (https://www.unrwa.org/newsroom/official‑statements/un‑security‑council‑emergency‑briefing‑situation‑middle‑east). Em 7 de dezembro de 2023, P. Lazzarini informou Dennis Francis, presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, de que a capacidade da UNRWA para executar o seu mandato da Assembleia Geral em Gaza [estava] gravemente limitada, com consequências imediatas e terríveis para a reposta humanitária da ONU e para as vidas dos civis em Gaza e que a situação humanitária naquela zona era «insustentável» (https://www.unrwa.org/resources/un-unrwa/letter-unrwa-commissioner-general-philippe-lazzarini-un-general-assembly). Em 29 de dezembro de 2023, acrescentou que «a entrega da ajuda tão necessária e urgente continua a ser limitada em quantidades e repleta de obstáculos logísticos» (https://www.unrwa.org/newsroom/official-statements/gaza-strip-unrwa-calls-unimpeded-and-safe-access-deliver-much-needed). Os acontecimentos ocorridos na Faixa de Gaza desde 7 de outubro de 2023 também levaram a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança das Nações Unidas a adotarem, cada um, resoluções. O conteúdo destas resoluções é descrito pormenorizadamente nos n.os 8 a 11, infra.


6      Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 (United Nations Treaty Series, Vol. 189, No 2545 (1954), p. 150), que entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi completada e alterada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque em 31 de janeiro de 1967, que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»).


7      A/RES/ES-10/21, disponível no endereço: https://digitallibrary.un.org/record/4025940?ln=en.


8      S/RES/2712 (2023), disponível no endereço: http://unscr.com/en/resolutions/doc/2712.


9      A/RES/ES-10/22, disponível no endereço: https://digitallibrary.un.org/record/4031196?ln=en.


10      S/RES/2720(2023), disponível no endereço: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N23/424/87/PDF/N2342487.pdf?OpenElement.


11      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60).


12      Acórdão de 17 de fevereiro de 2009 (C‑465/07, EU:C:2009:94).


13      JO 2019, C 390, p. 108.


14      Disponível no seguinte endereço: https://www.refworld.org/docid/6239805f4.html.


15      Acórdão de 19 de março de 2019 (C‑163/17, EU:C:2019:218, n.° 92).


16      V. Acórdão de 19 de novembro de 2020, Bundesamt für Migration und Flüchtlinge (Serviço militar e asilo) (C‑238/19, EU:C:2020:945, n.° 20 e jurisprudência referida).


17      C‑294/22, EU:C:2023:388, n.os 19 a 21. V. também Acórdão de 5 de outubro de 2023, SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano) (C‑294/22, EU:C:2023:733, n.os 30 e 31).


18      Por conseguinte, não abrange as pessoas que apenas são ou podiam ser elegíveis para beneficiar de proteção ou de assistência desta agência, mas que não recorreram efetivamente a essa proteção ou assistência (v. Acórdão de 17 de junho de 2010, Bolbol, C‑31/09, EU:C:2010:351, n.° 51).


19      V. Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o. (C‑364/11, EU:C:2012:826, n.° 71, a seguir «Acórdão Abed El Karem El Kott e o.»).


20      V., neste sentido, Acórdão de 25 de julho de 2018, Alheto (C‑585/16, EU:C:2018:584, n.° 86 e jurisprudência referida).


21      V. Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston (C‑31/09, EU:C:2010:119, n.os 41 e 43).


22      V. ACNUR, Diretrizes sobre Proteção Internacional, n.° 13, ponto 2. No meu entender, é precisamente porque os apátridas de origem palestiniana já são reconhecidos como refugiados pela comunidade internacional que podem, em determinadas circunstâncias, ter direito ipso facto ao estatuto de refugiado ao abrigo da Convenção de Genebra (e da Diretiva 2011/95), ou seja, tem terem de preencher os critérios gerais para lhes ser concedido esse estatuto.


23      V., neste sentido, Acórdão Abed El Karem El Kott e o., n.° 62. Até à data, não foi encontrada nenhuma solução nesta matéria.


24      V., neste sentido, Acórdão de 5 de outubro de 2023, SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano)  (C‑294/22, EU:C:2023:733, n.° 37 e jurisprudência referida).


25      Além disso, nos termos do artigo 40.°, n.° 4, desta diretiva, os Estados‑Membros podem prever que só se prossiga a apreciação do pedido se o requerente em causa, sem culpa da sua parte, tiver sido incapaz de invocar o «elemento novo» no procedimento anterior.


26      V. Acórdão de 10 de junho de 2021, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Novos elementos ou provas) (C‑921/19, EU:C:2021:478, n.° 50) e minhas Conclusões no processo Bundesrepublik Deutschland (Admissibilidade de um pedido subsequente) (C‑216/22, EU:C:2023:646, n.° 34).


27      Relativamente aos dois tipos de situações abrangidas pelo artigo 40.°, n.° 1, da Diretiva 2013/32, v. Acórdãos de 4 de outubro de 2018, Ahmedbekova (C‑652/16, EU:C:2018:801, n.° 98), e de 9 de setembro de 2021, Bundesamt für Fremdenwesen und Asyl (Pedido subsequente de proteção internacional) (C‑18/20, EU:C:2021:710, n.º 21).


28      Neste contexto, o Governo Búlgaro invoca o Acórdão de 10 de junho de 2021, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Novos elementos ou provas) (C‑921/19, EU:C:2021:478, n.° 50).


29      Em conformidade com esta disposição, os pedidos subsequentes só podem ser declarados inadmissíveis se não tiverem surgido ou sido apresentados pelo requerente novos elementos ou dados relacionados com a análise do cumprimento das condições para o requerente beneficiar da proteção internacional nos termos da Diretiva 2011/95. O artigo 40.°, n.° 3, da referida diretiva esclarece igualmente que o «elemento novo» deve «aument[ar] consideravelmente a probabilidade» de o requerente poder beneficiar de proteção internacional.


30      Provavelmente, a questão de saber se um «elemento novo» «aument[a] consideravelmente a probabilidade» de o requerente poder beneficiar de proteção internacional não pode ser analisada isoladamente de outros elementos do processo, o que significa que as autoridades podem, em todo o caso, ter igualmente em conta outros elementos na fase da admissibilidade.


31      V. artigo 10.°, n.° 3, alínea a), da Diretiva 2013/32.


32      Se um elemento factual tiver sido considerado irrelevante durante o processo de asilo anterior, as autoridades nacionais competentes poderiam tê‑lo ignorado sem verificar se era apoiado por provas suficientes. Por conseguinte, a exatidão desse elemento pode ter de ser reexaminada.


33      Os «atos de perseguição» são definidos no artigo 9.° da Diretiva 2011/95.


34      V. Acórdão de 5 de outubro de 2023, (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano) (C‑294/22, EU:C:2023:733, n.os 34 e 36 e jurisprudência referida). Conforme o Tribunal de Justiça explicou, a simples ausência da zona de operações da UNRWA, sem nenhuma indicação de que a pessoa em causa foi obrigada a abandonar essa zona, ou uma decisão voluntária de a abandonar não podem ser consideradas cessação da proteção ou assistência.


35      A este propósito, acrescento que, tal como expliquei nas minhas Conclusões no processo SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano) (C‑294/22, EU:C:2023:388, n.° 40), a expressão «grave risco» refere‑se à natureza real do risco de que as ameaças relevantes à segurança pessoal se venham efetivamente a materializar e que o estado pessoal de segurança venha a ser afetado caso a pessoa permaneça na zona de operações da UNRWA. Para se considerar que existe um «estado pessoal de insegurança», as ameaças devem ser suficientemente sérias (devem, por outras palavras, pressupor uma ofensa grave).


36      V. Acórdão de 3 de março de 2022, Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana)  (C‑349/20, EU:C:2022:151, n.° 82 e jurisprudência referida). V., igualmente, Acórdão de 13 de janeiro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana) (C‑507/19, EU:C:2021:3, n.os 44 e 54 e jurisprudência referida).


37      V. Acórdão de 3 de março de 2022 (C‑349/20, EU:C:2022:151, n.os 56 e 57). Este acórdão tem por objeto a interpretação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO 2004, L 304, p. 12), que foi revogada e substituída pela Diretiva 2011/95. No entanto, esta disposição é idêntica ao artigo 12.°, n.° 1, alínea a), desta diretiva.


38      Ibidem, n.° 58.


39      V. artigo 2.°, alíneas a), e) e g), da Diretiva 2011/95.


40      Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), assinada em Roma em 4 de novembro de 1950. Em conformidade com o artigo 52.°, n.° 3, da Carta, o significado e o alcance do artigo 4.° da Carta são, portanto, os mesmos que os do artigo 3.° da CEDH.


41      V., neste sentido, Acórdão de 19 de março de 2019, Ibrahim e o. (C‑297/17, C‑318/17, C‑319/17 e C‑438/17, EU:C:2019:219, n.° 87 e jurisprudência referida). Observo que o respeito pela dignidade humana é o objeto do artigo 1.° da Carta. Como explicou a advogada‑geral V. Trstenjak, «nos termos do artigo 1.° da Carta dos Direitos Fundamentais, a dignidade do ser humano deve ser não só “respeitada” mas também “protegida”. Essa função de proteção positiva é inerente também ao artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais» (v. Conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak nos processos apensos NS, C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:610, n.° 112).


42      De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, para que estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 3.° da CEDH (que é equivalente ao artigo 4.° da Carta), os maus tratos devem atingir um nível mínimo de gravidade [v., entre outros, TEDH, 1 de junho de 2010, Gäfgen c. Alemanha (CE:ECHR:2010:0601JUD002297805), § 88 e jurisprudência referida].


43      O artigo 19.°, n.° 2, da Carta baseia‑se no mesmo nível de ofensas que o seu artigo 4.° De resto, constato que, na terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio menciona o princípio da não repulsão com referência expressa não só ao artigo 19.°, n.° 2, da Carta mas também ao artigo 21.°, n.° 1, da Diretiva 2011/95. A Comissão sustenta que esta disposição não é aplicável quando as autoridades nacionais competentes verificam se as condições previstas no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da referida diretiva estão preenchidas, uma vez que faz parte do capítulo VII da Diretiva 2011/95 — e só se aplica às disposições deste capítulo — ao passo que o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), está incluído no capítulo III do referido instrumento. Porém, não tenho dúvida que o artigo 21.°, n.° 1, da Diretiva 2011/95 não é mais do que uma expressão concreta deste princípio geral, que deve ser respeitado pelos Estados‑Membros sempre que aplicam este instrumento.


44      Seja qual for a causa da incapacidade da UNRWA.


45      V., neste sentido, Acórdão de 5 de outubro de 2023, SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano) (C‑294/22, EU:C:2023:733, n.° 45).


46      V., a este respeito, Acórdão de 17 de fevereiro de 2009 (C‑465/07, EU:C:2009:94, n.° 43). V., igualmente, Acórdão de 10 de junho de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Conceito de «ameaça grave e individual») (C‑901/19, EU:C:2021:472, n.os 27 e 28) e, mais recentemente, Acórdão de 9 de novembro de 2023, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Conceito de ofensa grave) (C‑125/22, EU:C:2023:843, n.os 40 e 41).


47      V. Acórdão de 19 de março de 2019 (C‑163/17, EU:C:2019:218). Este acórdão tinha por objeto a questão de saber se o artigo 4.° da Carta podia obstar à transferência de um requerente para o Estado‑Membro responsável pelo tratamento do seu pedido de proteção internacional devido a alegadas deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento nesse Estado‑Membro. Relativamente à mesma questão, v. também Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N.S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 81 e 86 a 94).


48      Acórdão de 19 de março de 2019, Jawo  (C‑163/17, EU:C:2019:218, n.° 85).


49      Ibidem, n.° 91.


50      Ibidem, n.os 92 e 93.


51      V., por analogia, Acórdão de 9 de novembro de 2023, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Conceito de ofensa grave) (C‑125/22, EU:C:2023:843, n.° 41 e jurisprudência referida).


52      V., neste sentido, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.° 73).


53      V., designadamente, TEDH, 25 de abril de 1978, Tyrer c. Reino Unido (CE:ECHR:1978:0425JUD000585672, § 30).


54      V. TEDH, 4 de novembro de 2014, Tarakhel c. Suíça (CE:ECHR:2014:1104JUD00292171), § 99. A este respeito, o TEDH recordou que as crianças têm necessidades específicas que estão relacionadas, em especial, com a sua idade e falta de independência, mas também com o seu estatuto de requerente de asilo.


55      Ver artigo 20.°, n.° 3, da Diretiva 2011/95, que dispõe que as crianças são «pessoas vulneráveis» (juntamente com os deficientes, os idosos e as grávidas, entre outros). A Comissão considera que esta disposição não é aplicável numa situação como a do processo principal. Com efeito, sublinha que o artigo 20.°, n.° 3, faz parte do capítulo VII da Diretiva 2011/95. Este capítulo, intitulado «Conteúdo da proteção internacional» [e do qual o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), não faz parte] respeita às garantias que os Estados‑Membros devem pôr em prática depois de ter sido concedido o estatuto de refugiado a uma pessoa, e não antes. Contudo, no meu entender, isso não significa que essa disposição não possa ser invocada para ilustrar o facto de que os menores são geralmente reconhecidos como um grupo de requerentes de asilo particularmente vulnerável.


56      V., a este propósito, artigo 21.° da Diretiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 96).


57      Acrescento que o considerando 18 da Diretiva 2011/95 declara que «[o] “interesse superior da criança” deverá ser uma das principais preocupações a ter em consideração pelos Estados‑Membros na aplicação [dessa] diretiva» e que, «[a]o avaliarem o interesse superior da criança, os Estados‑Membros deverão ter devidamente em conta, em particular, o princípio da unidade familiar, o bem‑estar e o desenvolvimento social do menor, questões de segurança e as opiniões do menor em função da sua idade e grau de maturidade». Este considerando reflete o conteúdo do artigo 24.°, n.° 2, da Carta, que deve ser respeitado em todos os atos relativos às crianças.


58      O Tribunal de Justiça reconheceu, no essencial, que uma situação que não corresponde a uma privação material extrema para todos pode, no entanto, ser considerada como tal relativamente a um requerente capaz de demonstrar a existência de circunstâncias excecionais que lhe são próprias e que indicam que tem uma vulnerabilidade particular (v., a este respeito, Acórdão de 19 de março de 2019 Jawo, C‑163/17, EU:C:2019:218, n.° 95). V., igualmente, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.° 73, que dizia respeito a um requerente de asilo com uma doença psiquiátrica especialmente grave, a saber, depressão pós‑parto e tendências suicidas periódicas. A este propósito, recordo também que o TEDH considerou, relativamente ao artigo 3.° da CEDH, que o facto de os maus tratos que a pessoa sofreu ou que está em risco de sofrer atingirem o nível de gravidade exigido depende «de todas as circunstâncias do caso, tais como a duração do tratamento e os seus efeitos físicos ou mentais e, em alguns casos, o sexo, a idade e o estado de saúde da vítima» (v. TEDH, 4 de novembro de 2014, Tarakhel c. Suíça (CE:ECHR:2014:1104JUD002921712, § 118).


59      V. Conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Jawo (C‑163/17, EU:C:2018:613), n.° 86.


60      V. Acórdão de 5 de outubro de 2023, SW (Estatuto de refugiado de um apátrida palestiniano) (C‑294/22, EU:C:2023:733, n.os 46 e 48 e dispositivo).


61      V. n.° 64 desse acórdão.


62      Diretiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de julho de 2001, relativa a normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados‑Membros ao acolherem estas pessoas e suportarem as consequências decorrentes desse acolhimento (JO 2001, L 212, p. 12).


63      V. Decisão de Execução (UE) 2022/382 do Conselho, de 4 de março de 2022, que declara a existência de um afluxo maciço de pessoas deslocadas da Ucrânia na aceção do artigo 5.° da Diretiva 2001/55/CE, e que tem por efeito aplicar uma proteção temporária (JO 2022, L 71, p. 1).


64      V., neste sentido, Acórdão de 25 de julho de 2018, Alheto (C‑585/16, EU:C:2018:584, n.° 86 e jurisprudência referida).


65      V. Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.° 75.


66      Por exemplo, a autorização de residência pode ser mais curta (ver artigo 24.° da Diretiva 2011/95). Os Estados‑Membros podem igualmente limitar o acesso à assistência social (ver artigo 29.° da mesma diretiva).


67      C‑294/22, EU:C:2023:388, n.° 29.


68      V. Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.° 68.


69      V. Acórdão de 17 de fevereiro de 2009 (C‑465/07, EU:C:2009:94, n.os 36, 37 e 39).


70      Tal como expliquei no n.° 62, supra, o segundo requisito de aplicação da cláusula de inclusão do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 é que a UNRWA deve ser incapaz de garantir que as condições de vida da pessoa em causa na sua zona de operações são conformes à missão de que está incumbida. A missão da UNRWA consiste em assegurar condições de vida «dignas», através da satisfação das necessidades básicas das pessoas que se encontram sob a sua proteção. Para dar um exemplo simples, se a pessoa em causa fosse condenada à morte por ter cometido um crime à luz das leis em vigor na zona de operações da UNRWA, essa ofensa não estaria relacionada com a missão da UNRWA, mas, não obstante, poderia conferir à pessoa em causa o direito a uma «proteção subsidiária» nos termos do artigo 15.°, alínea a), desta diretiva.


71      Uma vez que estabelece que «[n]inguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes» (itálico meu).