Language of document : ECLI:EU:C:2003:402

Conclusions

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
JEAN MISCHO
apresentadas em 10 de Julho de 2003 (1)



Processos apensos C-199/01 P e C-200/01 P



IPK-München GmbH

contra

Comissão das Comunidades Europeias


«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Decisão da Comissão que recusou o pagamento do saldo de um apoio financeiro – Desrespeito do objecto do litígio – Violação do dever de fundamentação – Violação do efeito vinculativo do acórdão do Tribunal de Justiça – Irregularidades processuais»






1.       Por petições apresentadas na Secretaria do Tribunal de Justiça em 14 de Maio de 2001, a IPK‑München GmbH (a seguir «IPK»), no processo C‑199/01 P, e a Comissão das Comunidades Europeias, no processo C‑200/01 P, interpuseram separadamente, nos termos do artigo 49.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça, recurso do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias (Terceira Secção) de 6 de Março de 2001, IPK‑München/Comissão (T‑331/94 RV, Colect., p. II‑779, a seguir «acórdão recorrido»). Através do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância anulou a decisão da Comissão de 3 de Agosto de 1994 que considerou não dever ser pago o saldo de um apoio financeiro concedido à IPK no âmbito de um projecto para criação de um banco de dados relativos ao turismo ecológico na Europa (a seguir «decisão»).

2.       Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 15 de Outubro de 2001, os dois processos foram apensos para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão.

I – Factos na origem do litígio

3.       O quadro jurídico e os factos na origem dos recursos constam do acórdão impugnado nos seguintes termos:

«Matéria de facto

1
Em 26 de Fevereiro de 1992, a Comissão publicou no Jornal Oficial das Comunidades Europeias um convite para apresentação de propostas, tendo em vista apoiar projectos no domínio do turismo e ambiente (JO C 51, p. 15). A Comissão referiu que pretendia atribuir, no total, 2 milhões de ecus, e seleccionar cerca de 25 projectos. O convite exigia ainda que os projectos seleccionados fossem concluídos no prazo de um ano a contar da data da assinatura do contrato.

2
Em 22 de Abril de 1992, a recorrente, uma empresa sediada na Alemanha e que exerce a sua actividade no domínio do turismo, apresentou à Comissão um projecto para criação de um banco de dados sobre o turismo ecológico na Europa. Este banco de dados seria designado ‘Ecodata’. Na proposta esclarecia‑se que a coordenação do projecto seria assumida pela recorrente e que, para a realização dos trabalhos, a recorrente seria assistida por três parceiros, ou seja, a empresa francesa Innovence, a empresa italiana Tourconsult e a empresa grega 01‑Pliroforiki. A proposta não continha qualquer esclarecimento quanto à repartição das tarefas entre estas empresas, limitando‑se a referir que todas eram ‘consultoras especializadas em turismo, bem como em projectos relativos à informação e ao turismo’.

3
A proposta da recorrente identificava sete etapas na execução do projecto, cuja duração total era prevista em quinze meses.

4
Por carta de 4 de Agosto de 1992, a Comissão informou a recorrente da sua decisão de conceder ao projecto Ecodata um apoio de 530 000 ecus, que representava 53% das despesas previstas para o projecto, e convidou‑a a assinar e a remeter a ‘declaração do beneficiário do apoio’ (a seguir ‘declaração’) anexa à carta, e da qual constavam as condições para recepção do apoio.

5
A declaração determinava que 60% do montante do apoio seria pago após recepção pela Comissão da declaração devidamente assinada pela recorrente, sendo o resto do montante pago após a recepção e aceitação pela Comissão dos relatórios sobre a execução do projecto, ou seja, um relatório intercalar a apresentar no prazo de três meses a contar do início da execução do projecto, e um relatório final, acompanhado de documentação contabilística, a apresentar no prazo de três meses a contar da finalização do projecto e o mais tardar até 31 de Outubro de 1993.

6
A declaração foi assinada pela recorrente em 23 de Setembro de 1992 e deu entrada na Direcção‑Geral ‘Política Empresarial, Comércio, Turismo e Economia Social’ (DG XXIII) da Comissão em 29 de Setembro de 1992.

7
Por carta de 23 de Outubro de 1992, a Comissão comunicou à recorrente que aguardava o seu primeiro relatório até 15 de Janeiro de 1993. Na mesma carta, a Comissão solicitou igualmente à recorrente que apresentasse ainda dois outros relatórios intercalares, um até 15 de Abril de 1993 e o outro até 15 de Julho de 1993. Por último, lembrou que o relatório final deveria ser apresentado o mais tardar até 31 de Outubro de 1993.

8
A Comissão propôs à recorrente a participação no projecto de uma empresa alemã, a Studienkreis für Tourismus (a seguir ‘Studienkreis’). A Comissão já tinha concedido um apoio à Studienkreis em 1991, sob a forma de uma subvenção de 60 000 ecus, para execução de um projecto de turismo ecológico denominado ‘Ecotrans’.

9
Em 18 de Novembro de 1992, H. von Moltke, director‑geral da DG XXIII, julgando que a recorrente não tinha ainda enviado a declaração, remeteu‑lhe um novo exemplar, convidando‑a a assiná‑lo e devolver‑lho.

10
Em 24 de Novembro de 1992, G. Tzoanos, na altura chefe de divisão na DG XXIII, convocou a recorrente e a 01‑Pliroforiki para uma reunião que teve lugar sem a presença da Innovence e da Tourconsult. G. Tzoanos exigiu, na referida reunião, que a maior parte do trabalho e dos fundos fosse atribuída à 01‑Pliroforiki. A recorrente opôs‑se a esta exigência.

11
A primeira parte do apoio, ou seja, 318 000 ecus (60% da subvenção total de 530 000 ecus), foi paga em Janeiro de 1993.

12
A participação da Studienkreis no projecto foi debatida numa reunião realizada na Comissão em 19 de Fevereiro de 1993. A acta da reunião refere:

‘Representantes [da recorrente], os três parceiros e a Ecotrans [Studienkreis] vão encontrar‑se em Roma no sábado, 13 de Março, a fim de chegar a acordo [...] quanto a um plano de execução que envolva as cinco organizações. [A recorrente] transmitirá à Comissão o resultado desta reunião na segunda‑feira, 15 de Março.’

13
Alguns dias após a reunião de 19 de Fevereiro de 1993, o processo do projecto Ecodata foi retirado a G. Tzoanos. Em seguida, foi‑lhe instaurado um processo disciplinar que conduziu à sua demissão.

14
A Studienkreis acabou por não ser associada à execução do projecto Ecodata. Em 29 de Março de 1993, a recorrente, a Innovence, a Tourconsult e a 01‑Pliroforiki celebraram um acordo formal sobre a repartição das tarefas e dos fundos no âmbito do projecto Ecodata. Esta repartição foi explicitada no relatório inicial da recorrente entregue em Abril de 1993 (a seguir ‘relatório inicial’).

15
A recorrente apresentou um segundo relatório em Julho de 1993 e um relatório final em Outubro de 1993. Convidou também a Comissão para a apresentação dos trabalhos realizados. Essa apresentação teve lugar em 15 de Novembro de 1993.

16
Por carta de 30 de Novembro de 1993, a Comissão informou a recorrente do seguinte:

‘[...] a Comissão considera que o relatório apresentado sobre o projecto [Ecodata] revela que o trabalho realizado até 31 de Outubro de 1993 não corresponde de modo satisfatório ao previsto na proposta de 22 de Abril de 1992. Por essa razão, a Comissão considera não dever pagar os 40% ainda não pagos da contribuição de 530 000 ecus que tinha programado para o mesmo projecto.

Os motivos que levaram a Comissão a adoptar esta decisão são, designadamente, os seguintes:

1.
O projecto está longe de estar acabado. De facto, a proposta inicial previa que a quinta etapa do projecto seria uma fase‑piloto. As etapas seis e sete teriam, respectivamente, por objecto a avaliação do sistema e a sua expansão (aos doze Estados‑Membros), e o calendário que consta da página 17 da proposta mostra claramente que estas etapas deveriam ser cumpridas enquanto parte do projecto co‑financiado pela Comissão.

2.
O questionário‑piloto era manifestamente muito detalhado para o projecto em causa, tendo em conta, em especial, os recursos disponíveis e a natureza do projecto. Devia ter sido baseado numa avaliação mais realista das informações essenciais necessárias às pessoas que se ocupam dos problemas do turismo e do ambiente [...]

3.
A interconexão de determinado número de dados com vista a criar um sistema de bases de dados repartidos não foi realizada até 31 de Outubro de 1993.

4.
A natureza e a qualidade dos dados obtidos das regiões‑teste desiludem, em especial pelo facto de o inquérito abranger apenas quatro Estados‑Membros e três regiões em cada um destes Estados. Numerosos dados contidos no sistema são de interesse secundário ou não têm importância para as questões ligadas aos aspectos ambientais do turismo, designadamente a nível regional.

5.
Estas razões, e outras que são igualmente manifestas, demonstram de modo bastante que a recorrente conduziu e coordenou o projecto de forma medíocre, e que o não executou em conformidade com as suas obrigações.

Por outro lado, a Comissão deve assegurar‑se de que os 60% da subvenção que já foram pagos (ou seja 318 000 ecus) foram utilizados, em conformidade com a declaração assinada quando da aprovação da proposta de 22 de Abril de 1992, apenas para execução do projecto descrito nessa proposta. A Comissão formula as seguintes observações quanto ao vosso relatório sobre a utilização dos fundos:

[n.os 6 a 12 da carta]

Se [a recorrente] tiver observações a fazer quanto à nossa apreciação da situação relativamente aos custos, solicitamos que o faça logo que possível. Só nessa fase a Comissão estará em condições de formar uma opinião definitiva quanto à questão de saber se os 60% já pagos foram utilizados em conformidade com a declaração e de decidir se [a recorrente] pode legitimamente conservar esse montante.

[...]’

17
A recorrente manifestou o seu desacordo com o conteúdo da carta referida, designadamente por carta enviada à Comissão em 28 de Dezembro de 1993. Entretanto, continuou a desenvolver o projecto, dele fazendo algumas apresentações públicas. Em 29 de Abril de 1994, teve lugar uma reunião entre a recorrente e os representantes da Comissão para debater o conflito entre ambas.

18
Por carta de 3 de Agosto de 1994, J. Jordan, director na DG XXIII, informou a recorrente do seguinte:

‘Não me foi possível responder‑lhe directamente mais cedo após a nossa troca de correspondência e da reunião [de 29 de Abril de 1994].

[...] não há nada na vossa resposta de 28 de Dezembro que nos possa fazer mudar de opinião. Contudo, foi suscitado um determinado número de questões adicionais a respeito das quais gostaríamos de apresentar observações [...]

Devo agora informá‑los de que, após ter analisado exaustivamente a questão [...] penso que não servirá de grande coisa uma nova reunião. Por esse motivo confirmo que, pelas razões expostas na carta de 30 de Novembro e acima referidas, não efectuaremos qualquer outro pagamento relativo a este projecto. Continuaremos a analisar com os demais serviços a questão de saber se exigiremos ou não o reembolso de parte dos 60% já pagos. No caso de ser decidido exigir esse reembolso, disso vos darei conhecimento’.»

II – Tramitação processual

4.       Foi nestas condições que, por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 13 de Outubro de 1994, a IPK interpôs recurso de anulação da decisão.

5.       Por acórdão de 15 de Outubro de 1997, IPK/Comissão (T‑331/94, Colect., p. II‑1665), o Tribunal de Primeira Instância negou provimento a este recurso.

6.       No n.° 47 deste acórdão, o Tribunal de Primeira Instância decidiu:

«[...] a recorrente não pode acusar a Comissão de ter causado os atrasos na execução do projecto. A este respeito, verifica‑se que a recorrente esperou até Março de 1993 para iniciar negociações com os seus parceiros quanto à repartição de tarefas para a execução do projecto, apesar de ser a empresa coordenadora. Assim, a recorrente deixou passar metade do tempo previsto para a execução do projecto sem ter podido razoavelmente iniciar trabalhos eficazes. Mesmo se a recorrente apresentou indícios de que um ou vários funcionários da Comissão interferiram de modo a perturbar o projecto no período entre Novembro de 1992 e Fevereiro de 1993, de modo algum demonstrou que essas interferências a privaram da possibilidade de iniciar uma cooperação efectiva com os seus parceiros antes de Março de 1993».

7.       Por petição apresentada na secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de Dezembro de 1997, a IPK interpôs recurso do acórdão já referido do Tribunal de Primeira Instância, IPK/Comissão nos termos do artigo 49.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça.

8.       No acórdão de 5 de Outubro de 1999, IPK/Comissão (C‑433/97 P, Colect., p. I‑6795), o Tribunal de Justiça decidiu:

«15
[...] há que considerar que, como resulta do n.° 47 do acórdão recorrido, a recorrente apresentou indícios referentes a ingerências na gestão do projecto, ingerências feitas por funcionários da Comissão e precisadas nos n.os 9 e 10 do acórdão recorrido, que são susceptíveis de ter tido incidência no bom desenrolar do projecto.

16
Nestas circunstâncias, era à Comissão que incumbia demonstrar que, apesar das actuações em causa, a recorrente continuava a estar em condições de gerir o projecto de forma satisfatória.

17
Donde resulta que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao exigir que a recorrente fizesse prova de que as actuações dos funcionários da Comissão a privaram da possibilidade de iniciar uma cooperação efectiva com os parceiros do projecto.»

9.       Consequentemente, o Tribunal de Justiça anulou o acórdão do Tribunal de Primeira Instância, IPK/Comissão, já referido, e, nos termos do artigo 54.°, n.° 1, do Estatuto CE do Tribunal de Justiça, remeteu o processo ao Tribunal de Primeira Instância. Relegou para final a decisão quanto às despesas.

10.     Na sequência desta remessa, o Tribunal de Primeira Instância, pelo acórdão recorrido, anulou a decisão e condenou a Comissão a suportar as suas próprias despesas bem como as efectuadas pela IPK no Tribunal de Primeira Instância e no Tribunal de Justiça pelo facto de a Comissão, ao recusar o pagamento da segunda parcela da subvenção em virtude de o projecto não estar concluído em 31 de Outubro de 1993, ter violado o princípio de boa fé.

III – Pedidos das partes

11.     A IPK conclui pedindo que o Tribunal se digne:

anular o acórdão recorrido na medida em que, nos n.os 34 e seguintes, se considera que os n.os 6 a 12 da carta da Comissão de 30 de Novembro de 1993 não fazem parte da fundamentação da decisão;

condenar a Comissão nas despesas.

12.     A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

anular o acórdão recorrido e negar provimento ao recurso da decisão interposto pela IPK;

a título subsidiário, anular o acórdão recorrido e remeter o processo ao Tribunal de Primeira Instância;

condenar a IPK nas despesas.

IV – Fundamentos e argumentos das partes

13.     A IPK invoca três fundamentos em apoio do seu recurso, assentes:

o primeiro, no alegado desrespeito do objecto do litígio,

o segundo, na alegada violação do dever de fundamentação,

o terceiro, na pretensa violação do efeito vinculativo do acórdão do Tribunal de Justiça IPK/Comissão, já referido.

14.     Por seu lado, a Comissão invoca no seu recurso cinco irregularidades processuais que ofenderam os seus interesses:

em primeiro lugar, a incompleta apreciação dos fundamentos da decisão e a violação da proibição do enriquecimento sem causa,

em segundo lugar, a alegada apreciação incorrecta da colusão ilícita entre G. Tzoanos, a empresa grega 01‑Pliroforiki e a IPK,

em terceiro lugar, a apreciação alegadamente errada da proposta da Comissão de incluir no projecto a Studienkreis,

em quarto lugar, a não apreciação das consequências da violação do princípio da boa fé, em quinto lugar, não consideração dos princípios dolo agit, qui petit, quod statim redditturus est efraus omnia corrumpit.

V – Quanto à admissibilidade dos recursos

15.     A Comissão qualifica os seus fundamentos como assentes em «irregularidades processuais». A leitura da enumeração supra revela que na realidade se trata, como afirma com razão a IPK, de fundamentos relativos ao mérito. De facto, não dizem respeito a qualquer irregularidade na tramitação, mas pelo contrário, convidam o Tribunal de Justiça a fazer uma apreciação quanto ao mérito de vários aspectos da fundamentação do Tribunal de Primeira Instância.

16.     Dito isto, este erro de qualificação é desprovido de consequências. De facto, não torna obscuro o conteúdo dos referidos fundamentos e não dispensa, portanto, o Tribunal de Justiça de proceder à sua apreciação.

17.     Há, assim, que rejeitar a tese da IPK segundo a qual a errada qualificação dos seus fundamentos pela Comissão deve conduzir à inadmissibilidade do recurso interposto por esta.

18.     Se a admissibilidade do recurso da Comissão, cuja decisão foi anulada pelo Tribunal de Primeira Instância e que agiu dentro do prazo, não apresenta, pois, qualquer dúvida, convém sublinhar desde logo que o mesmo não sucede no caso da IPK.

19.     A este respeito, a Comissão observa que a IPK já não existe com esta denominação e que, se esta informação é exacta, é conveniente levantar a questão da sua legitimidade activa. A IPK defende, contudo, que se verificou uma simples alteração de nome e que sempre esteve inscrita no registo comercial da cidade de Munique com o mesmo número. Isto deveria ser suficiente para dissipar as dúvidas da Comissão.

20.     Contudo, o verdadeiro problema não reside aí e surge no teor dos pedidos da IPK supra referidos. Recordemos que a IPK solicita ao Tribunal de Justiça que anule o acórdão do Tribunal de Primeira Instância «na medida em que, nos n.os 34 e seguintes, se considera que os n.os 6 a 12 da carta da Comissão de 30 de Novembro de 1993 não fazem parte da fundamentação da decisão impugnada».

21.     Verifica‑se desde logo que estes pedidos não têm em vista a alteração da parte dispositiva do acórdão recorrido, nos termos do qual a decisão da Comissão é anulada. Pelo contrário, dizem explicitamente respeito a uma parte da fundamentação da decisão do Tribunal de Primeira Instância que a IPK pretende que seja alterada.

22.     Daqui decorre que o presente recurso não reúne as condições exigidas pelo Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, cujo artigo 113.°, n.° 1, dispõe que as conclusões do recurso devem ter por objecto a anulação total ou parcial da decisão do Tribunal de Primeira Instância, o que implica necessariamente que uma das partes deve pedir a alteração da parte dispositiva do acórdão recorrido.

23.     Além disso, tal recurso não está de acordo com os termos do artigo 56.°, segundo parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça, o qual limita o direito de interpor recurso às partes vencidas total ou parcialmente na primeira instância. Não é esse o caso da IPK, a qual requereu, em primeira instância, a anulação da decisão da Comissão e obteve essa anulação.

24.     Resulta igualmente da jurisprudência que um recurso deste tipo não é admissível. Assim, o Tribunal de Justiça julgou inadmissível um recurso no âmbito do qual a recorrente, que obteve em primeira instância a medida que pretendia, pedia no recurso que a mesma fosse baseada num fundamento jurídico diferente do que foi tido em conta na primeira instância  (2) .

25.     Afigura‑se, é certo, que a IPK critica o Tribunal de Primeira Instância por só ter anulado parcialmente a decisão, na medida em que não anulou certos fundamentos. Esta tese não resiste a uma análise. Efectivamente, da simples leitura da parte dispositiva do acórdão recorrido, resulta que a decisão da Comissão é anulada sem qualquer restrição. Daqui decorre necessariamente que esta anulação é total.

26.     Acrescente‑se, a este respeito, que, de qualquer forma, não compete ao Tribunal de Primeira Instância anular os fundamentos de uma decisão. Com efeito, por definição, um fundamento não pode constituir um acto susceptível de causar prejuízo e, por isso, passível de ser anulado. Apenas a parte dispositiva da decisão é susceptível de causar prejuízo e, portanto, de ser objecto de anulação. Ora, a parte dispositiva da decisão, ou seja, a recusa do pagamento do saldo do apoio comunitário, é, nos termos da parte dispositiva do acórdão recorrido, incontestavelmente anulada na sua totalidade.

27.     Neste contexto, afigura‑se que a recorrente faz confusão entre a anulação do fundamento de uma decisão, que é de excluir porque um fundamento não constitui um acto susceptível de causar prejuízo, e o dever da instituição autora do acto anulado de extrair as consequências do acórdão de anulação. Na verdade, a conduta a adoptar pela referida instituição depende do conteúdo do acórdão de anulação. Do mesmo pode resultar que a fundamentação do acto impugnado era deficiente e que a instituição deve, consequentemente, sanar este vício. O que não impede que, de qualquer forma, é a decisão que é anulada, enquanto acto susceptível de causar prejuízo, e não os fundamentos que a justificam.

28.     Aliás, a argumentação da IPK afigura‑se‑nos reveladora desta confusão. Com efeito, afirma que o Tribunal de Primeira Instância devia ter anulado os n.os 6 a 12 da carta de 30 de Novembro de 1993, à qual se referia a decisão, pelo facto de a Comissão se poder apoiar no seu conteúdo para justificar uma eventual decisão ulterior exigindo o reembolso do apoio já pago.

29.     Ora, o facto de os referidos números serem eventualmente susceptíveis de utilização ulterior pela Comissão não pode em qualquer caso conferir‑lhes a qualidade de acto susceptível de causar prejuízo e, portanto, passível de anulação. Apenas a decisão ulterior será susceptível de revestir esta qualidade.

30.     Do que precede, resulta que o recurso da IPK deve ser considerado inadmissível. Assim, não é necessário apreciar quanto ao mérito os argumentos invocados pela IPK.

VI – Quanto ao mérito da causa: fundamentos da Comissão

A – Primeiro fundamento: apreciação alegadamente incompleta dos fundamentos da decisão e violação da proibição do enriquecimento sem causa

1.     Quanto à incompleta apreciação dos fundamentos da decisão

31.     A crítica da Comissão respeita à conclusão do Tribunal de Primeira Instância constante do n.° 86 do acórdão recorrido, que tem a seguinte redacção:

32.     «Assim, tendo em conta, por um lado, que pelo menos desde o Verão de 1992 até 15 de Março de 1993, a Comissão insistiu com a recorrente para que a Studienkreis fosse associada ao projecto Ecodata – mesmo não prevendo a proposta da recorrente, nem a decisão da concessão do apoio, a participação desta empresa no projecto –, o que necessariamente atrasou a execução do projecto e, por outro, que a Comissão não fez prova de que, apesar desta ingerência, a recorrente continuava a estar em condições de gerir o projecto de forma satisfatória, há que concluir que a Comissão violou o princípio da boa fé ao recusar o pagamento da segunda parcela da subvenção pelo facto de o projecto não estar concluído em 31 de Outubro de 1993.»

33.     De acordo com a Comissão, o acórdão recorrido não teve em conta que a decisão se baseia em dois motivos totalmente diferentes, ou seja, por um lado, que o projecto não estava concluído em 31 de Outubro de 1993, visto que faltavam as sexta e sétima etapas (v. n.os 1 e 3 da decisão) e, por outro, que o trabalho já efectuado pela IPK nas primeira e quinta etapas e facturado a um preço excessivo, não era utilizável (v. n.os 2 e 4 da decisão).

34.     O Tribunal de Primeira Instância não refere de modo algum este segundo motivo, ainda que o mesmo seja objecto de uma fundamentação detalhada, constante dos n.os 2 e 4 da carta de 30 de Novembro de 1993. Efectivamente, estes números não dizem respeito às sexta e sétima etapas, mas às fases preliminares do projecto no decurso das quais a IPK efectuou trabalhos quantitativamente importantes, mas desprovidos de sentido, para os quais também dispunha manifestamente de tempo suficiente. A Comissão, na contestação de 12 de Janeiro de 1995 (v. n.os 147 a 150) e na réplica de 29 de Junho de 1995 (v. n.os 122 a 124), pronunciou‑se amplamente a este propósito, o que o Tribunal de Primeira Instância não teve em conta.

35.     Referindo‑se apenas ao n.° 1 da carta de 30 de Novembro de 1993, o Tribunal de Primeira Instância reportou‑se exclusivamente à não execução das sexta e sétima etapas do projecto e, portanto, não apreciou o segundo motivo que justifica a decisão de recusa do pagamento, que anulou na sua totalidade.

36.     Consequentemente, para a Comissão, o acórdão recorrido está insuficientemente fundamentado e enferma de um erro de direito.

37.     Em resposta, a IPK alega, a título liminar, que este fundamento, baseado numa prestação alegadamente não conforme por parte da IPK, é um fundamento meramente de facto que escapa, portanto, à fiscalização do Tribunal de Justiça no âmbito do recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância. O recurso da Comissão tem em vista, na realidade, uma nova apreciação dos argumentos já invocados no Tribunal de Primeira Instância, o que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, não se inclui no âmbito de um recurso (v. despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 16 de Julho de 1998, N/Comissão, C‑252/97 P, Colect., p. I‑4871, n.° 15).

38.     Além disso, a IPK sustenta que, contrariamente ao que pretende a Comissão, do n.° 35 do acórdão recorrido resulta que o Tribunal de Primeira Instância apreciou correctamente os n.os 2 a 4 da carta de 30 de Novembro de 1993.

39.     A IPK acrescenta que o Tribunal de Primeira Instância estava vinculado pelo acórdão que ordenou a remessa do processo. Ao ter concluído que a Comissão não tinha provado, como exigia o Tribunal de Justiça, que a sua actuação não tinha impedido a IPK de gerir convenientemente o projecto, o Tribunal de Primeira Instância tinha a obrigação de anular a decisão na sua totalidade. Não havia qualquer possibilidade de limitar o alcance da nulidade a uma parte da decisão.

40.     Que pensar destes argumentos?

41.     Contrariamente ao que afirma a IPK, o primeiro fundamento invocado pela Comissão não é um fundamento de facto. Na verdade, a Comissão não procura suscitar o problema da realidade ou da amplitude das insuficiências da prestação da IPK, o que seria efectivamente uma questão de facto.

42.     O que a Comissão critica ao Tribunal de Primeira Instância é o facto de este ter considerado a decisão insuficientemente fundamentada baseando‑se apenas no n.° 1 da carta de 30 de Novembro de 1993, sem ter em conta as razões decorrentes dos n.os 2 e 4 da referida carta.

43.     A tese da Comissão equivale, pois, a afirmar que a decisão está devidamente fundamentada com a simples referência às insuficiências da prestação da IPK constantes dos n.os 2 a 4 da carta de 30 de Novembro de 1993.

44.     Ora, é forçoso concluir que os documentos apresentados pela Comissão no âmbito do processo no Tribunal de Primeira Instância não contêm em si qualquer indício desta tese. É certamente verdade que, na sua contestação, a Comissão invocou as insuficiências da prestação da IPK. Assim, por exemplo, as passagens dos seus articulados a que se refere no âmbito do presente fundamento contêm efectivamente considerações relativas aos questionários elaborados pela IPK.

45.     No entanto, não se lê em parte alguma que a Comissão defenda que, só por si, as considerações enunciadas nos n.os 2 a 4 da carta de 30 de Novembro de 1993 são suficientes para fundamentar a decisão e subtraí‑la à nulidade que, segundo o Tribunal de Primeira Instância, resulta da violação do princípio da boa fé.

46.     Acresce que a Comissão invoca, no âmbito do recurso, um fundamento novo. Constitui jurisprudência constante que tal fundamento é inadmissível  (3) . Portanto, deve ser rejeitado por esta razão.

2.     Quanto à violação da proibição do enriquecimento sem causa

47.     A Comissão crítica o Tribunal de Primeira Instância por ter provocado um enriquecimento sem causa da IPK na medida em que obriga a Comunidade a remunerar trabalhos inúteis que vão contra o projecto, sem ter procedido a uma apreciação jurídica adequada.

48.     Em resposta, a IPK sublinha, em primeiro lugar, o carácter meramente factual do fundamento invocado. Em segundo lugar, a alegada proibição do enriquecimento sem causa não é, segundo a IPK, nem um princípio jurídico de direito comunitário nem um princípio do direito belga ou alemão. Em terceiro lugar, explica que o pagamento da segunda parcela do apoio comunitário tem um fundamento jurídico, ou seja, o acordo celebrado entre a Comissão e a IPK. Ora, o enriquecimento sem causa pressupõe uma prestação sem fundamento jurídico.

49.     Há que observar que o enriquecimento da IPK, resultante do pagamento do saldo do apoio comunitário, só seria destituído de causa legítima se a IPK não tivesse direito ao referido pagamento, o que compete exactamente à Comissão demonstrar.

50.     Daqui resulta que a Comissão não pode invocar o fundamento baseado na violação da proibição do enriquecimento sem causa, pelo que o mesmo deve ser rejeitado.

51.     Improcede, portanto, na íntegra, o primeiro fundamento invocado pela Comissão.

B – Segundo fundamento: apreciação alegadamente errada da colusão ilícita entre G. Tzoanos, a empresa grega 01‑Pliroforiki e a IPK

52.     Nos n.os 88 e 89 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância descreveu o argumento da Comissão baseado numa colusão ilícita entre G. Tzoanos, a firma 01‑Pliroforiki e a IPK. Seguidamente, julgou‑o improcedente nos termos seguintes:

«90
O Tribunal verifica que nem na decisão impugnada nem na carta de 30 de Novembro de 1993, para a qual remete a decisão impugnada, se faz referência à existência de um comportamento colusório de G. Tzoanos, da 01‑Pliroforiki e da recorrente que obste ao pagamento a esta da segunda parcela do apoio. A decisão impugnada e a carta de 30 de Novembro de 1993 não contêm, além disso, qualquer indicação de que a Comissão considerava que a subvenção tinha sido concedida irregularmente à recorrente. Nestas circunstâncias, a explicação dada pela Comissão relativamente à alegada existência de uma colusão ilícita entre as partes em causa não pode ser considerada como uma clarificação efectuada no decurso do processo de fundamentos constantes da decisão impugnada (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 1981, Michel/Parlamento, 195/80, Recueil, p. 2861, n.° 22; acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 12 de Dezembro de 1996, Rendo e o./Comissão, T‑16/91 RV, Colect., p. II‑1827, n.° 45, e de 25 de Maio de 2000, Ufex e o./Comissão, T‑77/95 RV, Colect., p. II‑2167, n.° 54).

91
Tendo em conta que, nos termos do artigo 173.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 230.° CE), o Tribunal se deve limitar à fiscalização da legalidade da decisão impugnada com base nos fundamentos constantes do mesmo acto, não pode ser aceite a argumentação da Comissão relativa ao princípio fraus omnia corrumpit.

92
Deve acrescentar‑se que, se a Comissão, após ter adoptado a decisão impugnada, tivesse considerado que os indícios referidos no n.° 89 supra eram bastantes para concluir pela existência de colusão ilícita entre G. Tzoanos, a 01‑Pliroforiki e a recorrente, de forma a viciar o procedimento de atribuição de apoio ao projecto Ecodata, teria podido, em vez de invocar no decurso do presente processo um fundamento não constante da referida decisão, revogá‑la e adoptar uma nova decisão que não apenas recusasse o pagamento da segunda parcela da subvenção, mas que ordenasse também o reembolso da parcela já paga.

93
Resulta de tudo o que antecede que a decisão impugnada deve ser anulada, sem que seja necessário analisar o outro fundamento invocado pela recorrente.»

53.     A Comissão critica o Tribunal de Primeira Instância por ter ignorado as considerações constantes dos n.os 15 e 16 do acórdão do Tribunal de Justiça IPK/Comissão, já referido. Efectivamente, se incumbia à Comissão «demonstrar que, apesar das actuações em causa, a recorrente continuava a estar em condições de gerir o projecto de forma satisfatória», o Tribunal de Primeira Instância não podia ignorar o argumento da Comissão relativo a uma colusão ilícita como se estivesse fora de propósito. A Comissão explicou que esta colusão atrasou a execução do projecto pelo menos até Fevereiro de 1993, visto que, por um lado, os parceiros do projecto não se entendiam sobre a atribuição dos fundos exigida a favor do parceiro grego por G. Tzoanos, o que conduziu à suspensão do projecto e, por outro, a IPK dava expressamente cobertura à actuação de G. Tzoanos perante H. von Moltke.

54.     Segundo a Comissão, ao não ter em conta toda exposição feita por esta dos factos relativos à colusão, o Tribunal de Primeira Instância retirou‑lhe desde logo a possibilidade de provar que, de facto, o atraso do projecto não foi devido à sua proposta de 27 de Julho de 1992 de fazer participar no projecto a Studienkreis, mas sim à colusão ilícita. Em consequência, quando o Tribunal de Primeira Instância, no n.° 85 do acórdão recorrido, afirma que «na ausência de outros argumentos» a Comissão não fez prova de que a IPK, apesar das suas ingerências, «continuava a estar em condições de gerir o projecto de forma satisfatória», extrai uma conclusão errada, visto que não apreciou todos os argumentos relativos ao atraso dos trabalhos que resultava da colusão nem tomou em consideração a prova oferecida a este respeito.

55.     Em contrapartida, a IPK sublinha que não houve qualquer colusão ilícita entre G. Tzoanos, a 01‑Pliroforiki e ela própria. A legalidade da decisão deve ser apreciada unicamente à luz da fundamentação que conduziu à sua adopção. Como concluiu o Tribunal de Primeira Instância, a decisão não contém qualquer declaração quanto a uma alegada colusão ilícita da IPK e da 01‑Pliroforiki.

56.     Além disso, segundo a IPK, o Tribunal de Justiça, no n.° 16 do seu acórdão IPK/Comissão, já referido, impôs à Comissão uma obrigação de prova positiva. Devia demonstrar que o atraso na realização do projecto não era devido às intervenções dos funcionários da Comissão e que a IPK, apesar disso, estava em condições de concluir o projecto a tempo. Esta obrigação não foi satisfeita pela Comissão que, pelo contrário, procura contorná‑la através de uma prova negativa. A Comissão tenta demonstrar que a IPK não pôde concluir o projecto dentro do prazo por causa da alegada colusão. Além disso, a IPK acrescenta que a própria Comissão deve admitir que se baseia em meros indícios de suspeição que foram arquitectados para evitar o cumprimento das obrigações contratuais.

57.     Que pensar destes argumentos?

58.     A Comissão critica o acórdão recorrido na medida em que este ignora os elementos de prova apresentados em apoio da legalidade da sua decisão e tendo em vista demonstrar que a existência de uma colusão entre a IPK, a 01‑Pliroforiki e G. Tzoanos contribuiu para o atraso na execução do projecto.

59.     Este fundamento baseia‑se numa apreciação errada do acórdão do Tribunal de Justiça. Com efeito, este anulou o acórdão do Tribunal de Primeira Instância pelo facto de o mesmo impor à IPK que provasse que as ingerências da Comissão tinham tornado impossível a boa execução das suas obrigações, enquanto a IPK tinha apresentado diversos elementos constitutivos de um começo de prova, que tinha como efeito inverter o ónus da prova, impondo portanto, que a Comissão provasse que a boa execução do projecto era possível apesar da actuação dos seus agentes.

60.     No entanto, o raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça não tem como consequência, como parece pensar a Comissão, que daqui em diante, lhe é suficiente provar, por qualquer meio, que o atraso na execução do projecto tinha outra causa que não as interferências dos seus agentes.

61.     Efectivamente, tal interpretação equivaleria a permitir à Comissão apresentar, a posteriori, uma fundamentação que não constava do acto impugnado. Ora, resulta de jurisprudência constante que a fundamentação deve, em princípio, ser comunicada ao interessado ao mesmo tempo que a decisão que lhe causa prejuízo e que a falta de fundamentação não pode ser regularizada pelo facto de o interessado tomar conhecimento dos fundamentos da decisão no decurso do processo no Tribunal de Justiça  (4) . Na verdade, a função da fundamentação é, nomeadamente, permitir ao destinatário da decisão apreciar a validade desta, em particular para avaliar as possibilidades de um eventual recurso. Ora, esta função não poderá ser desempenhada se se aceitar que os fundamentos de uma decisão não constem desta mas sejam expostos ao juiz pela instituição autora do acto.

62.     Não existe qualquer razão para admitir que o Tribunal de Justiça se quis afastar desta jurisprudência constante, ditada pelas exigências incontornáveis da segurança jurídica, para permitir à Comissão justificar ex post a sua decisão considerando‑a fundamentada por uma colusão da qual não se encontra qualquer menção no próprio texto da decisão.

63.     Daqui resulta que o Tribunal de Primeira Instância considerou, com razão, determinante o facto, incontestável, de a colusão alegada pela Comissão não constar entre os fundamentos da decisão e, com base nisto, rejeitou o argumento desta. Não havia, neste contexto, qualquer obrigação de se pronunciar sobre a validade de facto da alegação da Comissão segundo a qual o atraso na execução do projecto se deveu mais à colusão ilícita do que às interferências dos seus agentes.

64.     Na verdade, resulta da jurisprudência constante que acabamos de evocar que, mesmo que fossem verdadeiras as alegações da Comissão, tal não dispensaria a respectiva referência no texto da decisão.

65.     Assim, há que considerar improcedente o fundamento da Comissão baseado na pretensa apreciação errada da colusão ilícita entre a IPK, a 01‑Pliroforiki e G. Tzoanos.

C – Terceiro fundamento: quanto à apreciação alegadamente errada da proposta da Comissão de fazer participar a Studienkreis no projecto

66.     Da leitura dos articulados da Comissão resulta que este fundamento se compõe de vários aspectos.

67.     Em primeiro lugar, segundo a Comissão, a análise do Tribunal de Primeira Instância é contraditória e errada. Na verdade, o próprio Tribunal concluiu que a proposta da Comissão de fazer participar a Studienkreis no projecto era uma proposta formulada no interesse do projecto e não implicava qualquer constrangimento para a IPK. Sublinha, a este respeito, que, no n.° 8 do acórdão, o Tribunal de Primeira Instância observa que a Comissão propôs à IPK a participação da Studienkreis e que, no n.° 69 do mesmo acórdão, o Tribunal de Primeira Instância observa que apenas tinha pedido à IPK para «analisar as possibilidades» de colaboração.

68.     A Comissão acrescenta que o Tribunal de Primeira Instância concluiu que a Comissão não tinha feito depender a concessão do apoio da aceitação da participação da Studienkreis. Além disso, não formulou qualquer conclusão relativa aos eventuais inconvenientes para a recorrente pelo facto de recusar ou de não tomar em consideração esta proposta.

69.     Acresce que, no n.° 78 da fundamentação, o Tribunal de Primeira Instância aderiu, em princípio à argumentação da Comissão referindo que «[e]mbora esteja demonstrado que as intervenções da Comissão com o objectivo de associar a Studienkreis à execução do projecto Ecodata tiveram lugar pela primeira vez em Fevereiro de 1993 com o propósito de salvar o referido projecto, que, na época, não tinha ainda sido iniciado, poder‑se‑ia admitir que a ingerência em causa não teria impedido a recorrente de executar o projecto, de um modo satisfatório mas, pelo contrário, teria em vista permitir que esta honrasse os seus compromissos dentro do prazo e nas condições previstas».

70.     Por conseguinte, o Tribunal de Primeira Instância nada considerou ilegal na reunião de 19 de Fevereiro de 1993 e não se referiu a qualquer outra declaração da Comissão com vista a fazer participar no projecto a Studienkreis.

71.     Por consequência, é de uma forma perfeitamente contraditória que o Tribunal de Primeira Instância, depois de ter tirado todas estas conclusões, declara, apesar disso, no n.° 79 do acórdão recorrido, que a proposta da Comissão constitui uma violação do princípio da boa fé. A Comissão refere, a este respeito, igualmente o n.° 86 do acórdão recorrido.

72.     Recordemos que neste número  (5) , o Tribunal de Primeira Instância decidiu que, tendo em conta as circunstâncias que apurou, «há que concluir que a Comissão violou o princípio da boa fé ao recusar o pagamento da segunda parcela da subvenção pelo facto de o projecto não estar concluído em 31 de Outubro de 1993».

73.     Resulta, assim, incontestavelmente da leitura deste número que, contrariamente ao que afirma a Comissão, o Tribunal de Primeira Instância não considerou que a proposta de associar a Studienkreis constituía uma violação do princípio da boa fé. Foi o facto de ter recusado o pagamento do saldo da subvenção em virtude de o projecto não estar concluído, sem que se possa afastar uma co‑responsabilidade da Comissão nesse atraso, que constituiu a violação do princípio.

74.     Além disso, há uma segunda razão que conduz à conclusão de que não existe a contradição alegada pela Comissão. Na verdade, contrariamente ao que dá a entender, o Tribunal de Primeira Instância de modo algum considerou a iniciativa da Comissão como uma simples proposta, ou mesmo um conselho amigável.

75.     Efectivamente, da detalhada apreciação dos factos, efectuada pelo Tribunal de Primeira Instância nos n.os 69 a 85 do seu acórdão, resulta que este considerou que a Comissão tentou impor a participação da Studienkreis (n.° 70 do acórdão). Sublinhou que esta vontade tinha carácter vinculativo para a IPK (n.° 73 do acórdão). Daí concluiu que a Comissão tinha exercido, entre o Verão de 1992 e 15 de Março de 1993, pelo menos, uma pressão constante sobre a IPK para que a Studienkreis fosse associada à execução do projecto Ecodata.

76.     Em segundo lugar, a Comissão alega ainda, no âmbito deste fundamento, a existência de uma outra contradição no raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Primeira Instância. Defende que este não podia, por um lado, considerar a proposta de associar a Studienkreis como uma violação do princípio da boa fé e, por outro, sustentar no n.° 69 do acórdão, que a Comissão teria podido impor a participação da Studienkreis prevendo uma condição neste sentido na decisão da concessão do apoio.

77.     Na verdade, enquanto uma mera proposta deixava a IPK inteiramente livre para decidir sobre as vantagens de uma eventual participação da Studienkreis, a imposição de uma condição nesse sentido seria juridicamente vinculativa e, portanto, a fortiori, uma restrição imposta à liberdade da IPK de gerir o projecto como entendesse.

78.     Este argumento é de rejeitar por duas razões. Na verdade, como já afirmámos, o Tribunal de Primeira Instância não considerou que a Comissão se limitou a formular uma simples proposta. Além disso, e sobretudo, a argumentação a fortiori apresentada pela Comissão, faz erradamente abstracção do carácter determinante do momento da sua intervenção.

79.     De facto, se no momento da decisão da concessão, a Comissão tivesse optado por impor a participação da Studienkreis, os eventuais candidatos teriam sabido o que os esperava e poderiam, consequentemente, ter tomado as suas providências. Noutros termos, a segurança jurídica estaria garantida. Em contrapartida, não é assim quando, como no caso vertente, a Comissão exerce pressões ex post para conseguir a participação da Studienkreis, enquanto, na ausência de condições formais a este respeito, os interessados tinham o direito de pressupor que tinham a liberdade de executar o projecto como melhor entendessem.

80.     Do que antecede resulta que improcede o terceiro fundamento da Comissão.

D – Quarto fundamento: quanto à não apreciação das consequências da violação do princípio da boa fé

81.     Através deste fundamento, a Comissão critica o Tribunal de Primeira Instância por, a partir da violação do princípio da boa fé, ter concluído pela nulidade da decisão na sua totalidade. Cometeu, portanto, um erro de direito, visto que pressupôs a existência de uma correspondência entre o valor financeiro das sexta e sétima etapas do projecto que não foram realizadas e o montante da segunda parcela da subvenção que não foi paga, o que quer dizer que o Tribunal de Primeira Instância considera que o valor das sexta e sétima etapas do projecto ascende exactamente a 40% da totalidade dos seus custos. Ora, não há correspondência na matéria, na medida em que a decisão não diz respeito apenas à inexistência da sexta e sétima etapas do projecto, mas também à má execução da quinta etapa, relativamente à qual a Comissão, através da decisão, recusou igualmente a regularização do montante solicitado.

82.     Como, no fim de contas, no caso vertente se trata de montantes que podem ser calculados com exactidão, o Tribunal de Primeira Instância não deveria, portanto, no n.° 94 do acórdão recorrido, ter anulado a decisão na totalidade, enquanto consequência jurídica da sua apreciação, mas anulá‑la na medida em que a Comissão recusa, através da referida decisão, participar financeiramente nos encargos que a IPK contraiu legalmente para a sexta e sétima etapas do projecto, que, em consequência, não foram realizadas por falta de tempo.

83.     A IPK responde que este fundamento não pode ser aceite e que, conforme já correctamente fez notar a propósito do primeiro fundamento da Comissão, a anulação parcial da decisão não pode ser tomada em conta em função do carácter vinculativo do acórdão do Tribunal de Justiça e da homogeneidade da decisão de concessão do apoio.

84.     Em nosso entender, o argumento da Comissão ignora o alcance do vício constatado pelo Tribunal de Primeira Instância. Na verdade, este entendeu que, ao procurar, nas condições do caso vertente, justificar a recusa do pagamento do saldo pelo atraso na execução do projecto, ignorando o impacto da sua própria ingerência na origem desse atraso, a Comissão violou o princípio da boa fé. Concluiu‑se igualmente, e remete‑se a esse respeito para as considerações que desenvolvemos no âmbito do primeiro fundamento da Comissão, que a decisão não continha os restantes elementos de fundamentação adiantados pela Comissão durante o processo.

85.     Assim, eraムlhe impossível proceder apenas à anulação parcial da decisão. Na verdade, segundo o mesmo órgão jurisdicional, encontrando‑se aquela desprovida da fundamentação necessária, este vício afecta necessariamente a totalidade da decisão. O Tribunal de Primeira Instância pressupôs, por isso, a existência de uma correspondência entre o valor das etapas não realizadas e o do saldo do apoio. Não podia suceder de forma diferente a não ser que o Tribunal de Primeira Instância tivesse concluído que os vícios que afectavam a decisão só diziam respeito a partes desta.

86.     Ora, não resulta do texto da mesma que se considerava que o atraso sublinhado pela Comissão apenas justificava a recusa do pagamento de uma parte do saldo.

87.     Foi, portanto, com razão que o Tribunal decidiu que os vícios pelo mesmo verificados afectavam a totalidade da decisão.

88.     Aliás, não estamos convencidos de que a anulação parcial, que a Comissão teria aparentemente preferido, seria necessariamente do seu interesse. Na verdade, a Comissão seria então obrigada a efectuar o pagamento de um montante, certamente inferior ao saldo, mas que a mesma não teria necessariamente julgado adequado. Em contrapartida, a anulação total decidida pelo Tribunal de Primeira Instância criou um contexto diferente. A Comissão, como o Tribunal de Primeira Instância muito judiciosamente mencionou, deve tomar as medidas necessárias para cumprimento do acórdão. Necessita, assim, de sanar os vícios que afectam a decisão, mas o conteúdo desta não é de outra forma prejudicado.

89.     Pelas razões que antecedem, propomos que seja julgado improcedente o fundamento baseado na falta de apreciação das consequências da violação do princípio da boa fé.

E – Quinto fundamento, baseado na ausência de análise dos princípios

90.     A Comissão alega que, com a sua abordagem da questão da colusão, o Tribunal de Primeira Instância violou os princípios dolo agit, quipetit, quod statim redditurus est (quem exige aquilo que deve pagar imediatamente, está a agir contra a boa fé) e fraus omnia corrumpit (a fraude corrompe todos), expressamente invocados pela Comissão na audiência de 16 de Novembro de 2000 no Tribunal de Primeira Instância. Este declarou, nesta ocasião, que não se tratava de um órgão jurisdicional penal e que não podia apreciar a questão de uma colusão.

91.     A Comissão observa a este respeito que, não sendo também um órgão jurisdicional penal, deve, contudo, assumir as suas responsabilidades no que respeita à protecção dos interesses financeiros da Comunidade. Por um lado, encontra‑se a este respeito num dilema na medida em que necessita, em caso de suspeita de corrupção, de tomar decisões muito antes de poder basear‑se em sentenças penais transitadas em julgado. Como demonstra o caso vertente, também não é possível suspender a instância no Tribunal de Primeira Instância enquanto se espera que eventualmente seja proferida uma decisão penal, se a parte incriminada não der o seu acordo à suspensão.

92.     Por outro lado, o Tribunal de Primeira Instância é exigente quanto aos elementos de prova de um delito. Na falta de uma sentença penal transitada em julgado, a Comissão só podia, portanto, apoiar‑se nos indícios e nos resultados do inquérito a partir do momento em que aparecessem e desde que existissem. A Comissão recorda que apresentou ao Tribunal de Primeira Instância os indícios pertinentes para o acórdão, dado que, por um lado, a colusão atrasou o projecto e, por outro, os referidos indícios constituem um fundamento de defesa contra o pedido da IPK de obter o pagamento da segunda parcela da subvenção. Ao pôr de parte que os princípios supra referidos possam aplicar‑se ao caso vertente enquanto fundamento de defesa e ao exigir, em contrapartida, que a Comissão adopte uma nova decisão com nova fundamentação, o Tribunal de Primeira Instância obriga finalmente a Comissão a pagar a subvenção na medida em que a suspeita não se transformou numa certeza inatacável.

93.     Além disso, a Comissão considera que a inobservância do princípio dolo agit, qui petit, quod statim redditurus est e a conclusão do Tribunal de Primeira Instância segundo a qual não pode apreciar o princípio fraus omnia corrumpit, a não ser que este seja adiantado como um fundamento da própria decisão e não como meio de defesa em relação a um pedido, são juridicamente incorrectas. À semelhança dos órgãos jurisdicionais civis e penais nacionais, o Tribunal de Primeira Instância dispõe, além do mais, de amplos poderes em matéria de instrução para apreciar os factos.

94.     Se o dilema da Comissão é compreensível, impõe‑se, contudo, sublinhar que a solução que a mesma propõe não pode ser adoptada.

95.     Na verdade, a tese da Comissão equivale a ser‑lhe concedido o direito de reescrever a fundamentação, mesmo quanto ao mérito, de uma decisão impugnada sob pretexto do aparecimento de considerações novas e à medida das descobertas feitas pela Comissão. Nesta perspectiva, o recurso de anulação já não teria por objecto um acto determinado, com um conteúdo conhecido da recorrente cujo recurso foi formulado em função do referido conteúdo, mas, pelo contrário, um alvo móvel, alterável ao sabor dos acontecimentos e cuja perseguição competiria à recorrente.

96.     É sabido que tal interpretação é incompatível com a própria noção de fiscalização jurisdicional, que esvazia de toda e qualquer substância. Além disso, viola as exigências da mais elementar segurança jurídica.

97.     Não é, portanto, muito surpreendente que esta tese esteja em contradição com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça já por nós salientada no âmbito da apreciação do primeiro fundamento, segundo a qual há que apreciar a validade do acto à luz dos fundamentos que comporta e a instituição não tem o direito de apresentar uma nova fundamentação perante o órgão jurisdicional.

98.     Acresce, por outro lado, que a Comissão não pode criticar o Tribunal de Primeira Instância por não ter feito uso dos seus poderes de instrução. Na verdade, mesmo que este órgão tivesse podido verificar a colusão alegada pela Comissão, não se lhe poderia referir, na falta de referência à referida colusão nos fundamentos da decisão.

99.     Será, portanto, necessário admitir que a Comissão se vê obrigada a sacrificar os interesses financeiros das Comunidades procedendo a pagamentos a operadores fraudulentos?

100.   Não é esse o caso. Pelo contrário, a Comissão está perfeitamente em condições de aplicar o princípio fraus omnia corrumpit. Na verdade, como foi com razão observado pelo Tribunal de Primeira Instância no n.° 92 do seu acórdão, «se a Comissão, após ter adoptado a decisão impugnada, tivesse considerado que os indícios referidos no n.° 89 supra eram bastantes para concluir pela existência de colusão ilícita entre G. Tzoanos, a 01‑Pliroforiki e a recorrente, de forma a viciar o procedimento de atribuição de apoio ao projecto Ecodata, teria podido, em vez de invocar no decurso do presente processo um fundamento não constante da referida decisão, revogá‑la e adoptar uma nova decisão que não apenas recusasse o pagamento da segunda parcela da subvenção, mas que ordenasse também o reembolso da parcela já paga».

101.   A Comissão tem, pois, o direito de tomar as medidas que se impõem quando indícios concretos apontam a necessidade de uma actuação da sua parte para proteger os interesses financeiros da Comunidade. É de notar que, contrariamente ao que alega a Comissão, o Tribunal de Primeira Instância nunca exigiu que a mesma aguardasse o resultado de uma eventual decisão civil ou penal ou que tivesse provas suficientes para obter uma condenação penal.

102.   Do que precede, resulta que há que julgar improcedente também este fundamento e, portanto, a totalidade do recurso da Comissão.

VII – Conclusão

103.   Em consequência, propomos que o Tribunal de Justiça se digne:

julgar inadmissível o recurso da IPK‑München GmbH,

negar provimento ao recurso da Comissão das Comunidades Europeias por ser em parte inadmissível, e, em parte, improcedente,

condenar cada uma das partes nas suas próprias despesas.


1
Língua original: francês.


2
Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 1998, Emesa Sugar/Conselho e o. [C‑363/98 P (R), Colect., p. I‑8787, n.os 44 a 46].


3
V., como exemplo da jurisprudência constante, acórdão de 28 de Maio de 1998, Deere/Comissão (C‑7/95 P, Colect., p. I‑3111, n.os 62 a 65).


4
V., acórdão Michel/Parlamento, já referido, n.° 12, bem como acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 14 de Maio de 1998, Mo och Domsjö/Comissão (T‑352/94, Colect., p. II‑1989, n.° 276, e as referências aí feitas).


5
Referido in extenso no n.° 32 supra.