ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção)
4 de Fevereiro de 1998 (1)
«Acção de indemnização Responsabilidade extracontratual Leite
Imposição suplementar Quantidade de referência Compromisso de
reconversão Venda coerciva da exploração Prejuízos Nexo de causalidade
Prescrição»
No processo T-246/93,
Günther Bühring, residente em Elsfleth (Alemanha), representado por Hagen
Lichtenberg, Bergiusstraße 11, Bremen (Alemanha),
contra
Conselho da União Europeia, representado por Arthur Brautigam, consultor
jurídico, na qualidade de agente, assistido por Hans-Jürgen Rabe e Georg M.
Berrisch, advogados em Hamburgo e Bruxelas, com domicílio escolhido no
Luxemburgo no gabinete de Alexandro Morbilli, director-geral na Direcção dos
Assuntos Jurídicos do Banco Europeu de Investimento, 100, boulevard Konrad
Adenauer,
e
Comissão das Comunidades Europeias, representada por Dierk Booß, membro do
Serviço Jurídico, na qualidade de agente, assistido por Hans-Jürgen Rabe e Georg
M. Berrisch, advogados em Hamburgo e Bruxelas, com domicílio escolhido no
Luxemburgo no gabinete de Carlos Gómez de la Cruz, membro do Serviço
Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,
que tem por objecto, com base nos artigos 178.° e 215.°, segundo parágrafo, do
Tratado CEE, um pedido de indemnização pelos prejuízos sofridos pelo
demandante devido à aplicação do Regulamento (CEE) n.° 857/84 do Conselho,
de 31 de Março de 1984, que estabelece as regras gerais para a aplicação da
imposição suplementar referida no artigo 5.°-C do Regulamento (CEE) n.° 804/68,
no sector do leite e produtos lácteos (JO L 90, p. 13; EE 03 F30 p. 64),
completado pelo Regulamento (CEE) n.° 1371/84 da Comissão, de 16 de Maio de
1984 (JO L 132, p. 11; EE 03 F30 p. 208),
O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA
DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Primeira Secção),
composto por: A. Saggio, presidente, V. Tiili e R. M. Moura Ramos, juízes,
secretário: A. Mair, administrador
vistos os autos e após a audiência de 25 de Junho de 1997,
profere o presente
Acórdão
Enquadramento jurídico
- 1.
- Em 1977, para reduzir um excedente de produção de leite na Comunidade, o
Conselho adoptou o Regulamento (CEE) n.° 1078/77, de 17 de Maio de 1977, que
institui um regime de prémios de não comercialização do leite e dos produtos
lácteos e de reconversão dos efectivos bovinos de orientação leiteira (JO L 131,
p. 1; EE 03 F12 p. 143, a seguir «Regulamento n.° 1078/77»). Este regulamento
oferecia aos produtores um prémio como contrapartida da subscrição de um
compromisso de não comercialização de leite ou de reconversão dos efectivos
bovinos durante um período de cinco anos.
- 2.
- Em 1984, para fazer face a uma situação persistente de produção em excesso, o
Conselho adoptou o Regulamento (CEE) n.° 856/84, de 31 de Março de 1984 (JO
L 90, p. 10; EE 03 F30 p. 61), que altera o Regulamento (CEE) n.° 804/68 do
Conselho, de 27 de Junho de 1968, que estabelece a organização comum de
mercado no sector do leite e dos produtos lácteos (JO L 148, p. 13;
EE 03 F2 p. 146). O novo artigo 5.°-C deste último texto legislativo institui uma
«imposição suplementar» sobre as quantidades de leite entregues pelos produtores
que ultrapassem uma «quantidade de referência».
- 3.
- O Regulamento (CEE) n.° 857/84 do Conselho, de 31 de Março de 1984, que
estabelece as regras gerais para a aplicação da imposição suplementar referida no
artigo 5.°-C do Regulamento n.° 804/68 no sector do leite e produtos lácteos (JO
L 90, p. 13; EE 03 F30 p. 64, a seguir «Regulamento n.° 857/84»), fixou a
quantidade de referência para cada produtor, com base na produção entregue
durante um ano de referência, ou seja, o ano civil de 1981, sem prejuízo da
possibilidade de os Estados-Membros escolherem o ano civil de 1982 ou o ano civil
de 1983. Este regulamento foi completado pelo Regulamento (CEE) n.° 1371/84
da Comissão, de 16 de Maio de 1984, que fixa as regras de aplicação da imposição
suplementar referida no artigo 5.°-C do Regulamento n.° 804/68 (JO L 132, p. 11;
EE 03 F30 p. 208, a seguir «Regulamento n.° 1371/84»).
- 4.
- Por acórdãos de 28 de Abril de 1988, Mulder (120/86, Colect., p. 2321, a seguir
«acórdão Mulder I», e Von Deetzen (170/86, Colect., p. 2355), o Tribunal de
Justiça declarou inválido o Regulamento n.° 857/84, tal como foi completado pelo
Regulamento n.° 1371/84, por violação do princípio da confiança legítima.
- 5.
- Em cumprimento destes acórdãos, o Conselho adoptou o Regulamento (CEE)
n.° 764/89, de 20 de Março de 1989, que altera o Regulamento n.° 857/84, que
estabelece as regras gerais para aplicação da imposição suplementar referida no
artigo 5.°-C do Regulamento n.° 804/68 no sector do leite e dos produtos lácteos
(JO L 84, p. 2, a seguir «Regulamento n.° 764/89»). Nos termos deste regulamento
modificativo, os produtores que tivessem subscrito compromissos de não
comercialização ou de reconversão obtiveram uma quantidade de referência dita
«específica» (também chamada «quota»).
- 6.
- Um dos produtores que estiveram na origem do recurso que levou à declaração de
invalidade do Regulamento n.° 857/84 tinha entretanto, juntamente com outros
produtores, intentado contra o Conselho e a Comissão uma acção de indemnização
dos prejuízos sofridos devido à não atribuição, em aplicação deste regulamento, de
uma quantidade de referência.
- 7.
- Por acórdão de 19 de Maio de 1992, Mulder e o./Conselho e Comissão (C-104/89
e C-37/90, Colect., p. I-3061, a seguir «acórdão Mulder II»), o Tribunal de Justiça
declarou a Comunidade responsável por esses prejuízos. O Tribunal deu às partes
o prazo de um ano para chegarem a acordo sobre o montante da indemnização.
Não tendo as partes chegado a acordo, o processo foi reaberto para permitir ao
Tribunal fixar, no acórdão que vier a pôr termo à instância, os critérios de
avaliação do prejuízo.
- 8.
- Confrontados com o grande número de produtores envolvidos e perante a
dificuldade de negociar soluções individuais, o Conselho e a Comissão publicaram,
em 5 de Agosto de 1992, a Comunicação 92/C 198/04 (JO C 198, p. 4, a seguir
«comunicação» ou «comunicação de 5 de Agosto»). Após terem aí recordado as
implicações do acórdão Mulder II, e com o objectivo de lhe darem pleno efeito,
as instituições manifestaram a sua intenção de adoptar as modalidades práticas de
indemnização dos produtores em causa. Até à adopção destas modalidades, as
instituições comprometeram-se a renunciar, em relação a todos os produtores com
direito a indemnização, a invocar a prescrição resultante do artigo 43.° do Estatuto
CEE do Tribunal de Justiça(a seguir «Estatuto»). Todavia, o compromisso estava
sujeito à condição de o direito à indemnização não ter ainda prescrito na data da
publicação da comunicação ou na data em que o produtor se tinha dirigido a uma
das instituições. Finalmente, as instituições asseguravam aos produtores que o facto
de não se manifestarem a partir da data da comunicação e até à adopção das
modalidades práticas de indemnização não lhes causaria prejuízo.
Matéria de facto
- 9.
- Em 30 de Setembro de 1979, o demandante, produtor de leite na Alemanha,
subscreveu um compromisso de reconversão do seu efectivo bovino, no quadro do
Regulamento n.° 1078/77.
- 10.
- O compromisso subscrito pelo demandante, que terminou em 29 de Março de
1984, cobria o ano de referência escolhido nos termos do Regulamento n.° 857/84.
Não tendo o demandante produzido leite durante esse ano, não pôde ser-lhe
atribuída uma quantidade de referência, nem pôde, por conseguinte, comercializar
uma quantidade de leite isenta da imposição suplementar.
- 11.
- Como o demandante se tinha endividado junto de vários bancos e não conseguiu
fazer face às obrigações daí decorrentes, os credores procederam à venda coerciva
da sua exploração agrícola em 25 de Março de 1986.
- 12.
- Em 26 de Junho de 1989, na sequência da entrada em vigor do Regulamento
n.° 764/89, o demandante requereu que lhe fosse atribuída uma quantidade de
referência específica. Esse pedido foi indeferido por decisão da Câmara da
Agricultura de Weser-Ems, de 28 de Junho de 1989, pelo facto de o demandante
já não possuir uma exploração agrícola. Esta decisão foi objecto de um recurso
interposto em 29 de Dezembro de 1992 para o Verwaltungsgericht Oldenburg, na
sequência do indeferimento, em 3 de Dezembro de 1992, de uma reclamação
administrativa.
- 13.
- O demandante intentou igualmente contra a Câmara da Agricultura de Weser-Ems
uma acção de indemnização pelos prejuízos sofridos devido a erros alegadamente
cometidos por um empregado dessa Câmara ao efectuar o registo do seu pedido
de prémio de reconversão. Tendo o Landgericht e o Oberlandsgericht Oldenburg
julgado verificada a prescrição, o processo subiu ao Bundesgerichtshof.
- 14.
- Neste contexto, o demandante intentou a presente acção, com base nos artigos
178.° e 215.° do Tratado CEE, solicitando uma indemnização pelos prejuízos
sofridos devido ao facto de o Regulamento n.° 857/84 não ter previsto a concessão
de uma quantidade de referência aos produtores na sua situação.
Tramitação processual
- 15.
- A petição deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 30 de Abril de
1993. Por requerimento entrado na mesma data, o demandante solicitou o
benefício da assistência judiciária.
- 16.
- Por decisão do Tribunal de Justiça de 14 de Setembro de 1993, a instância foi
suspensa até ser proferido acórdão final nos processos apensos Mulder e
o./Conselho e Comissão (C-104/89) e Heinemann/Conselho e Comissão (C-37/90)
(v. supra, n.° 7).
- 17.
- Por despacho de 27 de Setembro de 1993, o Tribunal de Justiça remeteu o
processo ao Tribunal de Primeira Instância, nos termos do artigo 3.° da Decisão
88/591/CECA, CEE, Euratom, do Conselho, de 24 de Outubro de 1988, que institui
o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias (JO L 319, p. 1), na
redacção que lhe foi dada pela Decisão 93/350/Euratom, CECA, CEE, do
Conselho, de 8 de Junho de 1993 (JO L 144, p. 21). O processo foi registado no
Tribunal de Primeira Instância sob o número T-246/93.
- 18.
- O Tribunal, na sequência da adopção de medidas de organização do contencioso
das quotas leiteiras, ordenou o prosseguimento da instância, por despacho de 14
de Setembro de 1994.
- 19.
- A fase escrita do processo terminou em 16 de Fevereiro de 1995, com a
apresentação da tréplica.
- 20.
- Por despacho de 4 de Dezembro de 1995, o Tribunal concedeu ao demandante o
benefício da assistência judiciária.
- 21.
- Com base no relatório preliminar do juiz-relator, o Tribunal (Primeira Secção)
decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução. As partes foram ouvidas na
audiência de 25 de Junho de 1997.
Pedidos das partes
- 22.
- O demandante conclui pedindo que o Tribunal se digne:
condenar os demandados a pagar-lhe 2 362 400 DM a título de
indemnização, acrescidos de juros à taxa de 8%, a contar da data do
acórdão, indemnização essa em que se inclui um montante de
1 500 000 DM, pela perda da exploração subsequente à venda coerciva, ummontante de 504 000 DM pela perda do rendimento que teria podido obter
com a locação da quantidade de referência, e um montante de 358 400 DM,
correspondente ao valor dessa quantidade de referência de que foi privado;
condenar os demandados nas despesas.
- 23.
- O Conselho e a Comissão concluem pedindo que o Tribunal se digne:
julgar a acção inadmissível;
a título subsidiário, julgá-la improcedente;
condenar o demandante nas despesas da instância.
Quanto à admissibilidade
Quanto à falta de legitimidade passiva
Argumentação das partes
- 24.
- Os demandados fazem notar que, como resulta da jurisprudência (acórdão do
Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 1973, Werhahn e o./Conselho, 63/72 a
69/72, Recueil, p. 1229, n.os 6 a 8; Colect., p. 477), só a Comunidade pode ser
responsabilizada e, portanto, ter a qualidade de demandada numa acção intentada
com base no artigo 215.° do Tratado. Como a petição indica como demandados o
Conselho e a Comissão, a acção teria sido intentada contra instituições sem
legitimidade passiva.
- 25.
- O demandante não respondeu a esta excepção.
Apreciação do Tribunal
- 26.
- É jurisprudência constante que, quando a Comunidade é responsabilizada por um
acto de uma ou várias das suas instituições, é representada no Tribunal pela
instituição ou instituições a quem é imputado o acto gerador da responsabilidade.
O facto de a acção ser intentada contra as instituições e não expressamente contra
a Comunidade não é susceptível de conduzir à inadmissibilidade da acção, quando
não prejudique os direitos da defesa (acórdão Werhahn e o./Conselho, já referido,
n.os 7 e 8).
- 27.
- No caso ora em apreço, os demandados não alegaram qualquer ofensa aos
respectivos direitos. Deve, por conseguinte, julgar-se improcedente a excepção
alegada.
Quanto à violação do artigo 44.° do Regulamento de Processo
Argumentação das partes
- 28.
- As instituições salientam que o demandante pede simultaneamente a indemnização
do prejuízo resultante da não utilização de uma quantidade de referência por ele
próprio e a indemnização do prejuízo resultante da não utilização da mesma
quantidade por locatários. Esta pretensão equivaleria a uma cumulação de duas
causas de prejuízo que se excluem reciprocamente. Na parte em que incide sobre
o valor da quantidade de referência de que o demandante foi privado, a petição
não estaria, portanto, fundamentada em termos concludentes e seria inadmissível
à luz do artigo 44.° do Regulamento de Processo.
- 29.
- O demandante afirma que uma quantidade de referência atribuída ao abrigo do
Regulamento n.° 857/84 tem um valor económico próprio, que pré-existe ao seu
valor de exploração e que não desaparece quando é temporariamente explorado
por um terceiro. Não tendo o demandante recebido uma quantidade de referência
ao abrigo deste regulamento, o prejuízo sofrido compreenderia não só o lucro
cessante resultante da não exploração dessa quantidade de referência, mas
igualmente o seu valor intrínseco. Ora, a petição conteria todas as indicações
respeitantes a este elemento do prejuízo.
Apreciação do Tribunal
- 30.
- Nos termos do disposto no artigo 44.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de
Processo, a petição deve conter a indicação do objecto do litígio e a exposição
sumária dos fundamentos invocados.
- 31.
- No caso em apreço, a petição satisfaz os requisitos exigidos por esta disposição.
- 32.
- Com efeito, no acto em causa, o demandante refere os artigos 178.° e 215.° do
Tratado como base jurídica do pedido, põe claramente em causa a
responsabilidade dos demandados devido à aplicação do Regulamento n.° 857/84,
na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento n.° 1371/84, descreve as
circunstâncias de facto do processo, especifica as três causas de prejuízo cuja
reparação pede, quantifica cada um dos prejuízos e pede a condenação dos
demandados no pagamento das importâncias correspondentes.
- 33.
- A questão de saber se o demandante pode pedir simultaneamente a indemnização
do prejuízo resultante da não utilização de uma quantidade de referência por ele
próprio e a indemnização do prejuízo resultante da não utilização da mesma
quantidade pelos locatários não é uma questão de admissibilidade mas de
procedência que deve, se for caso disso, ser resolvida no quadro da análise de
mérito.
- 34.
- Nestas condições, deve julgar-se improcedente a alegada inadmissibilidade.
Quanto à responsabilidade da Comunidade
Argumentação das partes
- 35.
- O demandante alega que faz parte do grupo de empresários agrícolas que sofreram
prejuízos pelo facto de o Regulamento n.° 857/84 não ter previsto quantidades de
referência para os agricultores que não entregaram leite durante o ano de
referência devido a compromissos subscritos subscritos no quadro da aplicação do
Regulamento n.° 1078/77. Os factos subjacentes ao caso em apreço
corresponderiam, assim, aos factos em causa nos processos em que foi proferido
o acórdão Mulder II, e as instituições demandadas seriam responsáveis pelos
prejuízos causados.
- 36.
- O demandante sustenta que a venda coerciva da sua exploração agrícola não é
consequência de endividamento excessivo e de má gestão que possam ser-lhe
imputados. Afirma que a sua exploração era perfeitamente viável no termo do
compromisso de reconversão. Com base em relatórios de controlo da Câmara da
Agricultura de Weser-Ems e da Aliança Agrícola da Baixa Saxónia, alega que teria
podido retomar a produção de leite. Reconhece que tinha sido obrigado a
endividar-se devido aos prejuízos sofridos na sequência do seu pedido de prémio
de reconversão, mas entende que são os próprios demandados os responsáveis por
esses prejuízos no quadro da execução do Regulamento n.° 1078/77.
- 37.
- Existiria, portanto, uma relação de causalidade adequada entre a não atribuição de
uma quantidade de referência e a venda coerciva da exploração do demandante.
Uma quantidade de referência seria condição fundamental da manutenção da
exploração, e a sua inexistência teria feito desaparecer a razão de ser dessa mesma
exploração.
- 38.
- Os demandados contestam as pretensões do demandante.
- 39.
- Relativamente à causa de indemnização ligada à perda da exploração agrícola na
sequência da sua venda em hasta pública, afirmam que as condições previstas pelo
segundo parágrafo do artigo 215.° do Tratado não se encontram satisfeitas. Com
efeito, o demandante seria o único responsável por essa perda e, de qualquer
modo, não existe no presente caso, entre o Regulamento n.° 857/84 e os prejuízos
cuja causa lhe é imputada, o nexo de causalidade exigido pela jurisprudência.
- 40.
- Só as decisões económicas tomadas pelo demandante em 1979 teriam levado à
venda coerciva da quinta. O demandante estaria já de tal modo endividado no
início do ano de 1984 que lhe teria sido impossível realizar os investimentos
necessários para retomar a exploração. Esta conclusão seria confirmada pela
decisão de adjudicação do Amtsgericht Brake, de 16 de Maio de 1986, que
mostraria que as dívidas do demandante não estavam cobertas pelo valor, em 1984,
dos elementos do inventário da exploração.
- 41.
- Nestas condições, a exploração do demandante já não seria viável no termo do
compromisso de reconversão, em Março de 1984. A recusa de atribuição de uma
quantidade de referência ao demandante não teria, portanto, tido qualquer efeito
posterior no declínio económico da sua exploração.
- 42.
- Tendo em consideração a situação económica do demandante, a não atribuição de
uma quantidade de referência poderia, quando muito, ter contribuído para agravar
as suas dificuldades financeiras e para a venda coerciva da exploração. Tal facto
não seria, porém, suficiente para responsabilizar a Comunidade em virtude de um
acto normativo.
- 43.
- Neste contexto, o nexo de causalidade desapareceria, uma vez que o prejuízo,
provocado, pelo menos em parte, por imprevidência ou por má gestão do
demandante, se deveria, em primeiro lugar, ao comportamento da vítima (acórdãos
do Tribunal de Justiça de 4 de Fevereiro de 1975, Compagnie Continentale
France/Conselho, 169/73, Colect., p. 59, e de 29 de Setembro de 1982, Oleifici
Mediterranei/CEE, 26/81, Recueil, p. 3057, 3079).
- 44.
- Quanto à segunda causa de prejuízo invocada, ligada à impossibilidade em que o
demandante se teria encontrado de locar a quantidade de referência durante o
período entre 1 de Abril de 1984 e 31 de Março de 1993, os demandados
sustentam que tal facto não pode originar o direito a reparação.
- 45.
- Com efeito, a locação da quantidade de referência só poderia ter sido considerada
relativamente ao período compreendido entre o termo do compromisso de
reconversão e 25 de Março de 1986, data da venda coerciva da exploração. Ora,
durante esse período, o artigo 5.°-C do Regulamento n.° 804/68, conjugado com o
artigo 7.° do Regulamento n.° 857/84, não permitia a locação das quantidades de
referência, situação esta que o Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 22 de
Outubro de 1991, Von Deetzen (C-44/89, Colect., p. I-5119), não julgou contrária
ao princípio da confiança legítima. Em consequência, durante o período em que
o demandante podia ter beneficiado dessa quantidade, a sua locação não era
possível.
- 46.
- Quanto à terceira causa de prejuízo invocada, que corresponde, segundo o
demandante, ao valor da quantidade de referência de que foi privado, os
demandados alegam que, quando muito, poderia corresponder aos lucros cessantes
decorrentes da impossibilidade de utilização pessoal da quantidade de referência.
Salientam, contudo, que, a partir da venda coerciva da exploração, em 1986, o
demandante já não podia produzir leite nem, portanto, obter uma quantidade de
referência para as campanhas leiteiras seguintes.
Apreciação do Tribunal
- 47.
- O Tribunal observa que, como as próprias instituições reconheceram na sua
comunicação de 5 de Agosto (n.os 1 e 3), resulta do acórdão Mulder II que a
responsabilidade da Comunidade existe em relação a cada produtor que tenha
sofrido um prejuízo reparável pelo facto de ter sido impedido de comercializar leite
em virtude do Regulamento n.° 857/84 (v. igualmente o acórdão do Tribunal de
Primeira Instância, de 16 de Abril de 1997, Hartmann/Conselho e Comissão,
T-20/94, Colect., p. II-595, n.° 71).
- 48.
- Face aos documentos juntos aos autos e não contestados pelos demandados, o
demandante encontra-se na situação dos produtores visados pelo acórdão Mulder
II. Tendo subscrito um compromisso de reconversão no âmbito do Regulamento
n.° 1078/77, foi-lhe recusada uma quantidade de referência no termo desse
compromisso, em consequência da aplicação do Regulamento n.° 857/84.
- 49.
- Nestas condições, o demandante tem direito a que os demandados o indemnizem
pelo prejuízo sofrido na sequência da aplicação desse regulamento.
- 50.
- Resulta do acórdão Mulder II que o prejuízo reparável é o que resulta da privação
de uma quantidade de referência durante o período compreendido entre a
aplicação, a cada produtor, do Regulamento n.° 857/84, na sua versão inicial, e a
atribuição a esses produtores de uma quantidade de referência específica, nos
termos do Regulamento n.° 764/89.
- 51.
- No entanto, no caso ora em apreço, embora tenha sido ilicitamente recusada ao
demandante uma quantidade de referência em 1984, por aplicação do
Regulamento n.° 857/94, o demandante já não podia ter direito a essa quantidade
depois de 25 de Março de 1986, data da venda coerciva da exploração
relativamente à qual tinha subscrito um compromisso de reconversão em 1978.
Com efeito, sendo a quantidade de referência atribuída em função de determinadas
terras (acórdãos do Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1994, Herbrink,
C-98/91, Colect., p. I-223, n.° 13, e de 17 de Abril de 1997, Earl de Kerlast, C-15/95,
Colect., p. I-1961, n.° 17), já não podia ser atribuída ao demandante essa
quantidade a partir da data em que deixou de ser proprietário dessas terras.
- 52.
- De onde resulta que os prejuízos susceptíveis de reparação sofridos pelo
demandante por ter sido privado dessa quantidade só podem ser os prejuízos
ocorridos até 25 de Março de 1986.
- 53.
- Antes de determinar o alcance do direito à indemnização, deve examinar-se se, e
em que medida, o pedido do demandante foi atingido por prescrição.
Quanto à prescrição
Argumentação das partes
- 54.
- O demandante alega que os demandados não podem invocar a prescrição, por
terem renunciado a fazê-lo na comunicação de 5 de Agosto. O princípio da
legalidade impõe às instituições que respeitem as tomadas de posição por elas
adoptadas e que geram a confiança nos produtores. Não podem, portanto, vir a
seguir invocar prescrição.
- 55.
- O demandante considera que, de qualquer modo, os seus direitos não
prescreveram. Alega que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça
(acórdãos de 27 de Janeiro de 1982, Birra Wührer e o./Conselho e Comissão,
256/80, 257/80, 265/80, 267/80 e 5/81, Recueil, p. 85, e De Franceschi/Conselho e
Comissão, 51/81, Recueil, p. 117, a seguir «acórdãos Birra Wührer e De
Franceschi»), o prazo de prescrição só começa a correr a partir do momento em
que a vítima tome conhecimento do prejuízo e do acto que o causou. Seria
indispensável que a vítima estivesse em condições de apreciar as circunstâncias de
facto e de direito. No caso em apreço, tal só teria sido possível depois da
publicação do acórdão Mulder II, momento a partir do qual se verificou que as
instituições tinham incorrido em responsabilidade perante os produtores.
- 56.
- Mesmo admitindo que a prescrição tivesse começado a correr a partir da venda
coerciva da exploração em 1986, a contagem do respectivo prazo teria sido
interrompida pelo Regulamento n.° 764/89, que, adoptado na sequência do acórdão
Mulder I, se destinava a resolver as acções de indemnização resultantes das lacunas
do Regulamento n.° 857/84, na sua versão inicial.
- 57.
- O demandante invoca ainda, a este propósito, o recurso que interpôs no órgão
jurisdicional nacional competente da decisão que lhe recusou uma quantidade de
referência no quadro do Regulamento n.° 764/89 (v. supra, n.° 12).
- 58.
- Sustenta, por último, que o seu pedido não pode ter prescrito, dado que, logo em
1992, depois do acórdão Mulder II, se dirigiu à Comissão a fim de negociar a
possibilidade de uma resolução amigável do litígio.
- 59.
- As instituições demandadas alegam que a acção de indemnização dos prejuízos
invocados prescreveu. O prazo de prescrição previsto no artigo 43.° do Estatuto
começa a correr, quando estejam em causa prejuízos causados por um acto
normativo, no momento em que o demandante tenha sofrido um prejuízo certo
(acórdãos Birra Wührer e De Franceschi, n.° 10).
- 60.
- No presente caso, os prejuízos alegados teriam sido causados pelo Regulamento
n.° 857/84. Ora, esses prejuízos já estariam suficientemente concretizados aquando
da entrada em vigor deste regulamento, em 1 de Abril de 1984, uma vez que, a
partir dessa data, se tornou claro que o demandante não iria obter qualquer
quantidade de referência. De qualquer modo, o prazo teria começado a correr em
26 de Março de 1986, no dia a seguir à venda coerciva da exploração. O direito do
demandante teria, portanto, prescrito em 26 de Março de 1991, cinco anos após
a venda e antes da propositura da acção.
- 61.
- Ao contrário do que o demandante afirma, a data da declaração, pelo Tribunal de
Justiça, da invalidade do Regulamento n.° 857/84 no acórdão Mulder I, ou a do
reconhecimento de um direito à reparação no acórdão Mulder II, não pode ser o
ponto de partida da contagem do prazo prescricional. A este respeito, só o
conhecimento do facto gerador do prejuízo pode ser tomado em consideração e
não o conhecimento da declaração da sua invalidade ou o do reconhecimento do
direito à indemnização (acórdão do Tribunal de Justiça de 7 de Novembro de 1985,
Adams/Comissão, 145/83, Recueil, p. 3539, n.° 50).
- 62.
- Os demandados afirmam igualmente que só a propositura da acção dentro do
prazo podia ter interrompido a prescrição.
- 63.
- Resulta do artigo 43.°, segundo período, do Estatuto que a prática de actos
jurídicos não leva a essa interrupção. A adopção do Regulamento n.° 764/89 não
teria, portanto, incidência na prescrição.
- 64.
- Do mesmo modo, a propositura de uma acção num órgão jurisdicional nacional
acção essa que, no presente caso, não põe aliás em causa a responsabilidade da
Comunidade não basta para interromper a prescrição.
- 65.
- No que se refere à comunicação de 5 de Agosto, os demandados sustentam que a
renúncia dela constante a invocar a excepção só se referia aos direitos ainda não
prescritos nessa data ou na data em que o produtor se tivesse dirigido a uma das
instituições. Ora, a acção de indemnização prescreveu em 26 de Março de 1991,
antes da publicação da comunicação, e o demandante não se dirigiu
atempadamente às instituições.
Apreciação do Tribunal
- 66.
- O prazo de prescrição previsto no artigo 43.° do Estatuto, aplicável ao processo no
Tribunal de Primeira Instância por força do artigo 46.° do mesmo Estatuto, não
pode começar a correr antes de estarem reunidas todas as condições a que está
subordinada a obrigação de reparação e, nomeadamente, quando a
responsabilidade resulte de um acto normativo, antes de se produzirem os efeitos
danosos deste acto (acórdãos Birra Wührer e De Franceschi, n.° 10, e acórdão
Hartmann/Conselho e Comissão, n.° 107, já referido).
- 67.
- No caso presente, o prejuízo ligado à impossibilidade de explorar uma quantidade
de referência foi sofrido pelo demandante a contar do dia em que, após o termo
do seu compromisso de reconversão, teria podido retomar as entregas de leite se
não lhe tivesse sido recusada uma quantidade de referência, isto é, a partir de 1 de
Abril de 1984, data em que lhe foi aplicado o Regulamento n.° 857/84. Foi,
portanto, nesta data que as condições de uma acção de indemnização contra a
Comunidade ficaram preenchidas e que o prazo prescricional começou a correr.
- 68.
- O argumento do demandante segundo o qual o prazo de prescrição só teria
começado a correr a partir da data da declaração de invalidade do Regulamento
n.° 857/84 pelo acórdão Mulder I não tem fundamento. Com efeito, como este
Tribunal já decidiu, essa tese reconduz-se a fazer com que o direito de pedir uma
indemnização dependa da anulação ou da declaração de invalidade prévias do acto
que está na origem do dano. Em consequência, esta tese nega a autonomia da
acção por responsabilidade, a que se referem os artigos 178.° e 215.° do Tratado,
em relação ao recurso de anulação, que permite que uma acção de indemnização
seja intentada sem ter sido precedida de um recurso de anulação e assegura,
consequentemente, uma protecção acrescida dos particulares (v. acórdão
Hartmann/Conselho e Comissão, já referido, n.° 128).
- 69.
- Para efeitos da determinação do período durante o qual os prejuízos foram
sofridos, deve declarar-se que esses prejuízos não foram causados
instantaneamente. Prolongaram-se durante um certo tempo, enquanto o
demandante se viu na impossibilidade de obter uma quantidade de referência.
Trata-se de um dano continuado, renovado quotidianamente (v. acórdão
Hartmann/Conselho e Comissão, já referido, n.° 132). O direito a indemnização
incide, assim, sobre períodos sucessivos começados em cada um dos dias em que
a comercialização não foi possível.
- 70.
- Tendo o demandante perdido a sua exploração em 25 de Março de 1986, deixou
de ter direito, desde esta data, a uma quantidade de referência (v. supra, n.os 51 e
52). Não sofreu, portanto, prejuízos relacionados com a aplicação do Regulamento
n.° 857/84 depois dessa data, uma vez que todos os seus prejuízos, incluindo a
perda da exploração agrícola, já eram conhecidos. O prazo de prescrição expirou,
pois, cinco anos depois de 25 de Março de 1986, isto é, em 25 de Março de 1991.
- 71.
- Antes desta última data, o demandante não praticou nenhum dos actos susceptíveis
de interromper a prescrição a que se refere o artigo 43.° do Estatuto, ou seja,
apresentação de uma petição no tribunal comunitário, ou de um pedido prévio
dirigido à instituição competente da Comunidade.
- 72.
- O recurso interposto nos órgãos jurisdicionais nacionais que o demandante invoca
não era um acto susceptível de interromper a prescrição. Com efeito, só o recurso
ao tribunal comunitário poderia ter esse efeito. Acresce que o recurso em causa
visava o acto das autoridades nacionais que recusara conceder ao demandante uma
quantidade de referência em aplicação do Regulamento n.° 764/89. Não pode, por
conseguinte, ter consequências no que respeita ao presente pedido de
indemnização.
- 73.
- A afirmação do demandante de que teria encetado negociações com a Comissão
em 1992 não foi comprovada por documentos. O demandante não apresentou
designadamente qualquer documento susceptível de constituir um pedido prévio na
acepção do artigo 43.° do Estatuto.
- 74.
- Finalmente, o Regulamento n.° 764/89 também não interrompeu a prescrição, ao
contrário do que afirma o demandante. Este regulamento só prevê a atribuição de
uma quantidade de referência a determinados produtores. Não pode, portanto, ter
consequências na reparação de prejuízos sofridos antes da sua entrada em vigor.
Aliás, nenhuma disposição deste regulamento exprime a intenção das instituições
de suspender a contagem dos prazos de prescrição em curso.
- 75.
- Nestas condições, não tendo havido interrupção ou suspensão da prescrição
ocorrida o mais tardar em 25 de Março de 1991, a acção intentada em 8 de
Setembro de 1993 foi proposta tardiamente, quando o direito já se encontrava
prescrito.
- 76.
- Assim, o demandante não pode recusar aos demandados o direito de invocar aprescrição, pelo facto de terem renunciado a esta na comunicação de 5 de Agosto.
Com efeito, nesta comunicação, aquilo a que as instituições se comprometeram foi
a não invocar a prescrição desde que o direito à indemnização não estivesse ainda
prescrito na data de publicação da comunicação.
- 77.
- Resulta de quanto precede que a acção deve ser julgada improcedente.
Quanto às despesas
- 78.
- Por força do disposto no n.° 2 do artigo 87.° do Regulamento de Processo, a parte
vencida é condenada nas despesas se tal tiver sido requerido. Tendo o demandado
sido vencido, há que condená-lo a suportar as despesas, como pedido pelos
demandados.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção),
decide:
1) A acção é julgada improcedente.
2) O demandante suportará as despesas.
Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 4 de Fevereiro de 1998.
O secretário
O presidente
H. Jung
A. Saggio