ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
23 de Novembro de 1999 (1)
«Política comercial Acesso ao mercado dos produtos têxteis
Produtos originários da Índia e do Paquistão»
No processo C-149/96,
República Portuguesa, representada por L. Fernandes, director do Serviço dos
Assuntos Jurídicos da Direcção-Geral das Comunidades Europeias do Ministério
dos Negócios Estrangeiros, e C. Botelho Moniz, assistente da Faculdade de Direito
da Universidade Católica Portuguesa, na qualidade de agentes, com domicílio
escolhido no Luxemburgo na Embaixada de Portugal, 33, allée Scheffer,
contra
Conselho da União Europeia, representado por S. Kyriakopoulou, consultora
jurídica, e I. Lopes Cardoso, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,
com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de A. Morbilli, director-geral
da Direcção dos Assuntos Jurídicos do Banco Europeu de Investimento, 100,
boulevard Konrad Adenauer,
apoiado por
República Francesa, representada por C. de Salins, subdirectora de direito
internacional económico e de direito comunitário na Direcção dos Assuntos
Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e G. Mignot, secretário dos
Negócios Estrangeiros na mesma direcção, na qualidade de agentes, com domicílio
escolhido no Luxemburgo na Embaixada de França, 8 B, boulevard Joseph II,
e por
Comissão das Comunidades Europeias, representada por M. de Pauw e F. de
Sousa Fialho, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes, com domicílio
escolhido no Luxemburgo no gabinete de C. Gómez de la Cruz, membro do mesmo
serviço, Centre Wagner, Kirchberg,
que tem por objecto a anulação da Decisão 96/386/CE do Conselho, de 26 de
Fevereiro de 1996, relativa à celebração de memorandos de acordo entre a
Comunidade Europeia e a República Islâmica do Paquistão e entre a Comunidade
Europeia e a República da Índia sobre acordos em matéria de acesso de produtos
têxteis ao mercado (JO L 153, p. 47),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por: J. C. Moitinho de Almeida, presidente das Terceira e Sexta Secções,
exercendo funções de presidente, D. A. O. Edward, L. Sevón e R. Schintgen,
presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn (relator), C. Gulmann, J.-P. Puissochet, G.
Hirsch, P. Jann, H. Ragnemalm e M. Wathelet, juízes,
advogado-geral: A. Saggio,
secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,
visto o relatório para audiência,
ouvidas as alegações das partes na audiência de 30 de Junho de 1998,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 25 de
Fevereiro de 1999,
profere o presente
Acórdão
- 1.
- Por petição de recurso que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em
3 de Maio de 1996, a República Portuguesa pediu, ao abrigo do primeiro parágrafo
do artigo 173.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 230.°, primeiro
parágrafo, CE), a anulação da Decisão 96/386/CE do Conselho, de 26 de Fevereiro
de 1996, relativa à celebração de memorandos de acordo entre a Comunidade
Europeia e a República Islâmica do Paquistão e entre a Comunidade Europeia e
a República da Índia sobre acordos em matéria de acesso de produtos têxteis ao
mercado (JO L 153, p. 47, a seguir «decisão impugnada»).
Enquadramento jurídico e matéria de facto
Os acordos internacionais multilaterais do Uruguay Round
- 2.
- Em 15 de Dezembro de 1993, o Conselho aprovou, por unanimidade, os termos do
compromisso global com base no qual a Comunidade e os Estados-Membros
aceitaram pôr termo às negociações comerciais multilaterais do Uruguay Round (a
seguir «acordo de princípio»).
- 3.
- Na mesma data, em Genebra, o director-geral do Acordo Geral sobre Pautas
Aduaneiras e Comércio (a seguir «GATT»), P. Sutherland, declarou encerradas,
no âmbito do comité das negociações multilaterais, as negociações do Uruguay
Round. Apesar desta declaração de encerramento, convidou alguns participantes
a prosseguir as negociações relativas ao acesso ao mercado para se chegar a um
quadro de medidas «de acesso ao mercado» mais completo e equilibrado.
- 4.
- Depois deste encerramento, as negociações em matéria de acesso ao mercado dos
produtos têxteis e de vestuário (a seguir «produtos têxteis») nomeadamente com
a República da Índia (a seguir «Índia») e a República Islâmica do Paquistão (a
seguir «Paquistão») foram continuadas pela Comissão, assistida pelo «comité do
artigo 113.° têxteis» do Conselho (a seguir «comité 'têxteis»), designado por
esta última instituição para a coadjuvar no domínio da política comercial comum
para o sector têxtil da Comunidade.
- 5.
- Em 15 de Abril de 1994, na reunião de Marraquexe (Marrocos), num momento em
que as negociações com o Paquistão e a Índia sobre o acesso ao mercado dos
produtos têxteis ainda não tinham desembocado em nenhum acordo, o presidente
do Conselho e o membro da Comissão encarregado das relações externas
procederam, em nome da União Europeia e sob reserva de aprovação posterior,
à assinatura da acta final, que encerrou as negociações comerciais multilaterais do
«Uruguay Round» (a seguir «acta final»), do Acordo que institui a Organização
Mundial do Comércio (a seguir «OMC»), bem como de todos os acordos e
memorandos constantes dos anexos 1 a 4 do acordo que institui a OMC (a seguir
«acordos OMC»).
- 6.
- Entre esses acordos, incluídos no anexo 1 A do acordo que institui a OMC, figuram
o acordo sobre os têxteis e o vestuário (a seguir «ATV») e o acordo sobre os
procedimentos em matéria de licenças de importação.
- 7.
- Na sequência desta assinatura, o Conselho adoptou a Decisão 94/800/CE, de 22 de
Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em
relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações
multilaterais do Uruguay Round (1986-1994) (JO L 336, p. 1).
Os acordos celebrados com o Paquistão e a Índia
- 8.
- Após a assinatura dos acordos OMC, as negociações com a Índia e o Paquistão
prosseguiram, sob a direcção da Comissão, apoiada pelo comité «têxteis».
- 9.
- Em 15 de Outubro e 31 de Dezembro de 1994, a Comissão rubricou com o
Paquistão e a Índia dois «Memorandums of Understanding» (a seguir
«memorandos de acordo») entre a Comunidade Europeia, por um lado, e o
Paquistão e a Índia, por outro, respeitantes às condições de acesso ao mercado dos
produtos têxteis.
- 10.
- O memorando de acordo com o Paquistão contém uma série de compromissos,
tanto por parte da Comunidade como por parte deste Estado terceiro. Mais
precisamente, o Paquistão compromete-se a eliminar todas as restrições
quantitativas aplicáveis a uma série de produtos têxteis especificamente
enumerados no anexo II do memorando de acordo. Por seu lado, a Comissão
compromete-se «a acolher favoravelmente os pedidos de flexibilidade excepcional
que o Governo do Paquistão possa apresentar relativamente à gestão das actuais
restrições em matéria de contingentes [pautais] (incluindo reportes, utilizações
antecipadas e transferências entre categorias)» (n.° 6) e a dar início imediato aos
procedimentos internos necessários para assegurar a supressão, «antes da entrada
em vigor do acordo OMC... de todas as restrições que actualmente afectam a
importação de produtos do artesanato e do folclore do Paquistão» (n.° 7).
- 11.
- O memorando de acordo com a Índia prevê que o Governo indiano consolidará
os direitos aplicados aos produtos têxteis e de vestuário enumerados no anexo ao
memorando de acordo e que «o Secretariado da OMC será notificado dessas taxas
no prazo de 60 dias a contar da data de entrada em vigor do acordo OMC». Prevê,
além disso, que o Governo indiano pode «introduzir direitos específicos alternativos
para determinados produtos» e que o direito aplicável a esses produtos será
indicado «como percentagem ad valorem ou como um montante expresso em
rupias indianas (INR) por artigo/metro quadrado/kg, consoante o que for superior»
(n.° 2). A Comunidade Europeia, por seu lado, aceita «suprimir, com efeitos desde
1 de Janeiro de 1995, todas as restrições actualmente aplicáveis às exportações de
produtos do artesanato e do folclore da Índia, tal como referido no artigo 5.° do
acordo CE-Índia sobre o comércio de produtos têxteis» (n.° 5). A Comunidade
compromete-se a acolher favoravelmente os pedidos de «flexibilidade excepcional
que o Governo da Índia possa apresentar, para além das flexibilidades aplicáveis
ao abrigo do acordo bilateral sobre têxteis, em relação a qualquer categoria ou a
todas as categorias sujeitas a restrições» até às quantidades em relação a cada ano
de contingentação indicadas no memorando de acordo para os anos de 1995 a 2004
(n.° 6).
- 12.
- Por proposta da Comissão de 7 de Dezembro de 1995, o Conselho adoptou, em
26 de Fevereiro de 1996, a decisão impugnada, que foi aprovada por maioria
qualificada, com os votos contra do Reino de Espanha, da República Helénica e
da República Portuguesa.
- 13.
- Os acordos com a Índia e o Paquistão foram assinados, respectivamente, em
8 e 27 de Março de 1996.
- 14.
- A decisão impugnada foi publicada no Jornal Oficial das Comunidades
Europeias em 27 de Junho de 1996.
A regulamentação comunitária
- 15.
- O Regulamento (CEE) n.° 3030/93 do Conselho, de 12 de Outubro de 1993,
relativo ao regime comum aplicável às importações de certos produtos têxteis
originários de países terceiros (JO L 275, p. 1), na redacção que lhe foi dada pelo
Regulamento (CE) n.° 3289/94 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994
(JO L 349, p. 85), define o regime de importação, na Comunidade, de produtos
têxteis originários de países terceiros ligados à Comunidade por acordos, protocolos
ou outros convénios, ou que sejam membros da OMC.
- 16.
- Assim, segundo o seu artigo 1.°, n.° 1, o Regulamento n.° 3030/93 aplica-se à
importação dos produtos enunciados no Anexo I, originários de países terceiros,
enumerados no Anexo II, com os quais a Comunidade tenha celebrado acordos
bilaterais, protocolos ou outros convénios.
- 17.
- O artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 3030/93 estabelece que a importação na
Comunidade dos produtos têxteis enumerados no Anexo V, originários de um dos
países fornecedores mencionados nesse anexo, está sujeita aos limites quantitativos
anuais fixados nesse mesmo anexo. Nos termos do artigo 2.°, n.° 2, deste
regulamento, a introdução em livre prática na Comunidade de produtos cuja
importação está sujeita aos limites quantitativos referidos no Anexo V depende da
apresentação de uma autorização de importação emitida pelas autoridades dos
Estados-Membros nos termos do artigo 12.°
- 18.
- O artigo 3.°, n.° 1, deste mesmo regulamento estabelece que os limites quantitativos
fixados no Anexo V não são aplicáveis aos produtos folclóricos e artesanais
definidos nos Anexos VI e VIa que sejam acompanhados, na sua importação, de
um certificado de origem emitido em conformidade com o previsto nestes mesmos
anexos e que preencham as restantes condições neles definidas.
- 19.
- Em 10 de Abril de 1995, em execução do acordado a este respeito no acordo de
princípio (v. n.° 2 do presente acórdão), o Conselho, por proposta da Comissão,
aprovou o Regulamento (CE) n.° 852/95, relativo a uma contribuição financeira a
favor de Portugal para um programa específico de modernização da indústria dos
têxteis e do vestuário (JO L 86, p. 10).
- 20.
- Em 20 de Dezembro de 1995, a Comissão adoptou o Regulamento (CE)
n.° 3053/95, que altera os Anexos I, II, III, V, VI, VII, VIII, IX e XI do
Regulamento n.° 3030/93 (JO L 323, p. 1). Segundo o décimo quarto e o décimo
sexto considerandos deste regulamento, o facto de o acordo com a Índia no
domínio do acesso ao mercado prever a supressão das restrições quantitativas à
importação de determinados produtos do artesanato e do folclore originários deste
Estado terceiro constituía um dos elementos que justificavam a alteração desses
anexos a partir de 1 de Janeiro de 1995.
- 21.
- Os quinto e sexto parágrafos do artigo 1.° do Regulamento n.° 3053/95, por um
lado, substituem o Anexo VI do Regulamento n.° 3030/93 por um novo Anexo V
do Regulamento n.° 3053/95 e, por outro, revogam o Anexo VIa daquele
regulamento, a partir de 1 de Janeiro de 1995.
- 22.
- Como o Regulamento n.° 3053/95 estava ferido por um vício de forma, os quinto
e sexto parágrafos do seu artigo 1.° foram revogados, com efeitos retroactivos a
partir de 1 de Janeiro de 1995, pelo Regulamento (CE) n.° 1410/96 da Comissão,
de 19 de Julho de 1996, relativo à revogação parcial do Regulamento n.° 3053/95
(JO L 181, p. 15, a seguir «regulamento de revogação»). Segundo o primeiro
considerando do regulamento de revogação, as modificações previstas pelo artigo
1.°, quinto e sexto parágrafos, do Regulamento n.° 3053/95 tinham sido efectuadas
numa data em que, nos termos do disposto no artigo 19.° do Regulamento
n.° 3030/93, a Comissão não tinha ainda competência para o fazer, uma vez que o
Conselho ainda não havia decidido celebrar ou aplicar a título provisório os
convénios negociados pela Comissão com a Índia e o Paquistão em matéria de
acesso ao mercado dos produtos têxteis.
- 23.
- Pelo Regulamento (CE) n.° 2231/96, de 22 de Novembro de 1996, que altera os
Anexos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX e XI do Regulamento n.° 3030/93
(JO L 307, p. 1), a Comissão adaptou o Regulamento n.° 3030/93 aos memorandos
de acordo.
Quanto ao mérito
- 24.
- Em apoio do seu recurso, a República Portuguesa invocou, por um lado, violação
de certas regras e de certos princípios fundamentais da OMC e, por outro, violação
de determinadas regras e de determinados princípios fundamentais da ordem
jurídica comunitária.
Quanto à violação de regras e de princípios fundamentais da OMC
- 25.
- O Governo português alega que a decisão impugnada constitui uma violação de
certas regras e de certos princípios fundamentais da OMC, designadamente os do
GATT de 1994, do ATV e do acordo sobre os procedimentos em matéria de
licenças de importação.
- 26.
- O Governo português sustenta, quanto a este ponto, que, segundo a jurisprudência,
tem o direito de invocar estas regras e estes princípios fundamentais no Tribunal
de Justiça.
- 27.
- Com efeito, se é verdade que o Tribunal de Justiça declarou, no acórdão de 5 de
Outubro de 1994, Alemanha/Conselho (C-280/93, Colect., p. I-4973, n.os 103 a 112),
que as regras do GATT não têm efeito directo e que os particulares não podem
invocá-las perante os órgãos jurisdicionais, também é verdade que o Tribunal
declarou, neste mesmo acórdão, que isso já não acontece quando se está perante
medidas de execução de obrigações assumidas no quadro do GATT ou quando um
acto comunitário remete expressamente para disposições precisas do acordo geral.
Nestes casos, como o Tribunal decidiu no n.° 111 deste acórdão, compete-lhe a ele
controlar a legalidade do acto comunitário à luz das regras do GATT.
- 28.
- Ora, segundo o Governo português, é isso mesmo que acontece no presente caso,
em que está em causa um acto a decisão impugnada que aprova os
memorandos de acordo negociados com a Índia e o Paquistão a seguir ao
encerramento do Uruguay Round, especialmente para efeitos de aplicação das
regras constantes do GATT de 1994 e do ATV.
- 29.
- Por sua vez, o Conselho, apoiado pela República Francesa e pela Comissão, invoca
as características particulares dos acordos OMC que justificam, segundo eles, a
aplicação a estes acordos da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à
inexistência de efeito directo e à impossibilidade de invocação, em princípio, das
disposições do GATT de 1947.
- 30.
- O Conselho e os intervenientes em apoio deste alegam que decorre do carácter
particular da decisão impugnada que esta não é análoga às regulamentações em
causa nos acórdãos de 22 de Junho de 1989, Fediol/Comissão (70/87, Colect.,
p. 1781), e de 7 de Maio de 1991, Nakajima/Conselho (C-69/89, Colect., p. I-2069).
Com efeito, não se trataria de regulamentação comunitária em matéria comercial
destinada a «transpor» em direito comunitário disposições do ATV.
- 31.
- Ao que o Governo português responde que não é o GATT de 1947 que está em
causa no presente processo, mas os acordos OMC, entre os quais figura o GATT
de 1994, o ATV e o acordo sobre os procedimentos em matéria de licenças de
importação. Ora, os acordos OMC apresentam diferenças significativas em relação
ao GATT de 1947, designadamente porque alteram profundamente o sistema de
resolução dos litígios.
- 32.
- Além disso, segundo este governo, o presente processo não levanta o problema do
efeito directo, mas a questão de saber em que circunstâncias é que um
Estado-Membro pode invocar no Tribunal de Justiça os acordos OMC para
apreciação da legalidade de um acto do Conselho.
- 33.
- Segundo o Governo português, esta apreciação é justificada quando se está perante
actos, como a decisão impugnada, que aprovam acordos bilaterais que, nas relações
entre a Comunidade e países terceiros, regulam matérias às quais se aplicam as
regras da OMC.
- 34.
- Há que recordar liminarmente que, nos termos do direito internacional, as
instituições comunitárias, que têm competência para negociar e celebrar acordos
com países terceiros, podem acordar com estes os efeitos que as disposições de um
acordo devem produzir na ordem jurídica interna das partes contratantes. Só se
esta questão não tiver sido regulada pelo acordo é que cabe aos órgãos
jurisdicionais competentes e, em especial, ao Tribunal de Justiça, no âmbito da sua
competência decorrente do Tratado, decidi-la nos mesmos termos que qualquer
outra questão de interpretação relativa à aplicação do acordo na Comunidade (v.
acórdão de 26 de Outubro de 1982, Kupferberg, 104/81, Recueil, p. 3641, n.° 17).
- 35.
- Deve recordar-se igualmente que, segundo as regras gerais do direito internacional,
qualquer acordo deve ser executado de boa fé pelas partes. Se cada parte
contratante é responsável pelo integral cumprimento dos compromissos que
assumiu, compete-lhe, em contrapartida, determinar, na sua ordem jurídica, os
meios jurídicos adequados ao fim pretendido, salvo se o acordo, interpretado à luz
do seu objecto e da sua finalidade, especificar, ele próprio, esses meios (acórdão
Kupferberg, já referido, n.° 18).
- 36.
- Sendo embora verdade, como salienta o Governo português, que os acordos OMC
apresentam diferenças significativas em relação às disposições do GATT de 1947,
designadamente devido ao reforço do regime da cláusula de salvaguarda e do
mecanismo de resolução dos litígios, nem por isso o sistema resultante destes
acordos deixa de atribuir um papel importante à negociação entre as partes.
- 37.
- Embora o primeiro objectivo do mecanismo de resolução dos diferendos seja, em
princípio, segundo o n.° 7 do artigo 3.° do memorando de entendimento sobre as
regras e processos que regem a resolução dos litígios (anexo 2 do acordo OMC),
a revogação das medidas em causa quando se verifique que são incompatíveis com
as regras da OMC, este memorando prevê, no entanto, quando a sua revogação
imediata for inexequível, a possibilidade de conceder uma compensação, a título
provisório, enquanto se aguarda que a medida incompatível seja revogada.
- 38.
- É certo que, segundo o artigo 22.°, n.° 1, deste memorando, a compensação
constitui uma medida temporária que pode ser adoptada no caso de as
recomendações e as decisões do órgão de resolução dos diferendos, previsto no
artigo 2.°, n.° 1, do mesmo memorando, não serem executadas num prazo razoável,
e que este mesmo artigo prefere, como forma de tornar uma medida conforme aos
acordos OMC, a execução completa de uma recomendação.
- 39.
- Este artigo prevê, porém, no seu n.° 2, que, se um membro faltar à sua obrigação
de cumprimento, num prazo razoável, dessas recomendações e decisões, se
prontificará, se tal lhe for pedido e o mais tardar no termo do prazo razoável
fixado, a negociar com qualquer outra parte que tenha accionado os processos de
resolução dos conflitos, a fim de encontrar uma compensação que seja aceitável
por ambas as partes.
- 40.
- Nestas condições, impor aos órgãos jurisdicionais a obrigação de recusar a
aplicação de regras de direito internas incompatíveis com os acordos OMC teria
como consequência privar os órgãos legislativos ou executivos das partes
contratantes da possibilidade, prevista no artigo 22.° do referido memorando, de
encontrarem, ainda que a título temporário, soluções negociadas.
- 41.
- De onde resulta que os acordos OMC, interpretados à luz do seu objecto e da sua
finalidade, não fixam os meios jurídicos adequados para garantir a sua execução de
boa fé na ordem jurídica interna das partes contratantes.
- 42.
- No que diz respeito, mais especificamente, à aplicação dos acordos OMC no
quadro da ordem jurídica comunitária, há que salientar que, nos termos do seu
preâmbulo, o acordo que institui a OMC, incluindo os seus anexos, continua a
basear-se, tal como o GATT de 1947, no princípio das negociações realizadas
'numa base de reciprocidade e de vantagens mútuas, distinguindo-se assim, no
que se refere à Comunidade, dos acordos celebrados por esta com países terceiros
que instauram uma certa assimetria das obrigações ou criam relações especiais de
integração na Comunidade, como era o caso do acordo que foi objecto do acórdão
Kupferberg, já referido.
- 43.
- Além disso, não sofre contestação que algumas partes contratantes, que, do ponto
de vista comercial, se contam entre os mais importantes parceiros da Comunidade,
concluíram, à luz do objecto e da finalidade dos acordos OMC, que estes não
fazem parte das normas à luz das quais os respectivos órgãos jurisdicionais
controlam a legalidade das normas jurídicas internas.
- 44.
- É certo que a circunstância de os órgãos jurisdicionais de uma das partes
considerarem que algumas disposições de um acordo celebrado pela Comunidade
são directamente aplicáveis, enquanto o mesmo não é admitido pelos órgãos
jurisdicionais da outra parte, não é, por si só e sem mais, susceptível de constituir
uma falta de reciprocidade na execução do acordo (v. acórdão Kupferberg, já
referido, n.° 18).
- 45.
- Esta falta de reciprocidade dos parceiros comerciais da Comunidade no que diz
respeito aos acordos OMC que se baseiam no «princípio da reciprocidade e das
vantagens mútuas» e que, por aí, se distinguem dos acordos celebrados pela
Comunidade a que foi feita referência no n.° 42 do presente acórdão pode, porém,
levar a um desequilíbrio na aplicação das regras da OMC.
- 46.
- Com efeito, admitir que a tarefa de assegurar a conformidade do direito
comunitário com estas regras incumbe directamente ao juiz comunitário equivaleria
a privar os órgãos legislativos ou executivos da Comunidade da margem demanobra de que gozam os órgãos correspondentes dos parceiros comerciais da
Comunidade.
- 47.
- Resulta deste conjunto de considerações que, tendo em atenção a sua natureza e
a sua economia, os acordos OMC não figuram, em princípio, entre as normas
tomadas em conta pelo Tribunal de Justiça para fiscalizar a legalidade dos actos
das instituições comunitárias.
- 48.
- Esta interpretação corresponde, aliás, ao enunciado do último considerando do
preâmbulo da Decisão 94/800, segundo o qual, «pela sua natureza, o Acordo que
institui a Organização Mundial do Comércio e seus anexos não pode ser invocado
directamente nos tribunais da Comunidade e dos Estados-Membros».
- 49.
- Só no caso de a Comunidade ter decidido cumprir uma obrigação determinada
assumida no quadro da OMC ou de o acto comunitário remeter, de modo
expresso, para disposições precisas dos acordos OMC é que compete ao Tribunal
de Justiça fiscalizar a legalidade do acto comunitário em causa à luz das regras da
OMC (v., relativamente ao GATT de 1947, acórdãos Fediol/Comissão, n.os 19 a 22,
e Nakajima/Conselho, n.° 31, já referidos).
- 50.
- Há que examinar, assim, se, como pretende o Governo português, é esse o caso
presente.
- 51.
- Há que responder pela negativa a esta questão. Com efeito, a decisão impugnada
não visa assegurar a execução, na ordem jurídica comunitária, de uma obrigação
específica assumida no quadro da OMC e também não remete expressamente para
disposições precisas dos acordos OMC. O seu objecto restringe-se à aprovação dos
memorandos de acordo negociados pela Comunidade com o Paquistão e a Índia.
- 52.
- Resulta de quanto precede que não procede a alegação da República Portuguesa
de que a decisão impugnada foi tomada em violação de certas regras e de certos
princípios fundamentais da OMC.
Quanto à violação de regras e de princípios fundamentais da ordem jurídica
comunitária
Quanto à violação do princípio da publicidade das normas comunitárias
- 53.
- O Governo português alega que houve violação deste princípio, porque a decisão
impugnada e os memorandos de acordo aprovados por esta não foram publicados
no Jornal Oficial das Comunidades Europeias. Na réplica, limita-se a afirmar que
a validade da sua argumentação foi reconhecida, posto que a decisão impugnada
foi publicada depois da interposição do recurso.
- 54.
- Quanto a este aspecto, basta salientar que a publicação tardia de um acto
comunitário no Jornal Oficial das Comunidades Europeias não influencia a validade
desse acto.
Quanto à violação do princípio da transparência
- 55.
- O Governo português alega que este princípio foi violado, pois a decisão
impugnada aprova memorandos de acordo que não estão suficientemente
estruturados e que estão redigidos em termos obscuros que impedem um leitor
normal de se aperceber imediatamente de todas as suas implicações,
designadamente no que diz respeito à sua aplicação retroactiva. Em apoio deste
fundamento, invoca a resolução do Conselho, de 8 de Junho de 1993, relativa à
qualidade de redacção da legislação comunitária (JO C 166, p. 1).
- 56.
- Há que declarar, como sustentou o Conselho, que esta resolução não tem carácter
vinculativo e não obriga as instituições a seguir regras determinadas em matéria de
redacção de actos legislativos.
- 57.
- Acresce que, como salientou o advogado-geral no n.° 12 das suas conclusões, a
decisão é clara em todos os seus aspectos, tanto relativamente ao teor das suas
disposições, referentes à celebração de dois acordos internacionais, como
relativamente às normas contidas nos dois memorandos de acordo, que prevêem
uma série de compromissos recíprocos das partes contratantes com vista à
progressiva liberalização do mercado dos têxteis. Além disso, a acusação que o
Governo português faz à decisão impugnada, por não indicar expressamente as
disposições dos actos anteriores que modifica ou revoga, não é susceptível de
enfermar esta decisão, visto que não constitui violação de nenhuma formalidade
essencial que as instituições estejam obrigadas a observar sob pena de nulidade do
acto em causa.
- 58.
- A República Portuguesa não tem, pois, razão ao alegar que a decisão impugnada
foi tomada em violação do princípio da transparência.
Quanto à violação do princípio da cooperação leal nas relações entre a
Comunidade e os Estados-Membros
- 59.
- O Governo português sustenta que os acordos bilaterais com a Índia e o Paquistão
foram celebrados sem ter em conta a sua posição sobre as negociações com estes
dois países, posições essas que afirmou claramente ao longo de todo o processo
negocial, designadamente na reunião do Conselho de 15 de Dezembro de 1993,
durante a qual foi decidida a adesão aos acordos OMC, e numa carta de 7 de Abril
de 1994 dirigida ao Conselho pelo ministro dos Negócios Estrangeiros português.
- 60.
- O Governo português afirma que só deu o seu consentimento à assinatura da acta
final da OMC e dos seus anexos sob condição, nomeadamente, de a obrigação de
abertura dos respectivos mercados que recaía sobre a Índia e o Paquistão não
poder, nas negociações com estes países, implicar, em relação aos
Estados-Membros, outras contrapartidas para além das previstas no ATV.
- 61.
- Ao aprovar os memorandos de acordo, que previam uma aceleração do processo
de abertura do mercado dos produtos têxteis em relação ao ATV e,
consequentemente, o desmantelamento dos contingentes pautais comunitários para
estes produtos, a decisão impugnada teria sido adoptada em violação do princípio
da cooperação leal nas relações entre a Comunidade e os Estados-Membros, tal
como este se infere dos termos do artigo 5.° do Tratado CE (actual artigo 10.° CE),
devendo, portanto, ser anulada com este fundamento.
- 62.
- Este governo alega ainda que a assinatura da acta final exigia o acordo de todos
os Estados-Membros e não uma maioria qualificada dos membros do Conselho.
Qualquer modificação do equilíbrio que estava na base da assinatura dessa acta
final exigia nova deliberação nas mesmas condições de voto, isto é, a unanimidade.
- 63.
- O Conselho considera que a posição defendida pelo Governo português,
especialmente na carta do ministro dos Negócios Estrangeiros de 7 de Abril de
1994, tem natureza política e que, de resto, foi tida em conta uma vez que esteve
na origem da adopção do Regulamento n.° 852/95, através do qual o Conselho
concedeu uma série de subsídios a favor da indústria têxtil portuguesa.
- 64.
- O Conselho refuta igualmente a argumentação do Governo português, segundo a
qual a aprovação dos dois memorandos de acordo devia ter sido decidida por
unanimidade. Alega que, sendo a decisão impugnada um acto de política comercial,
podia ser adoptada pela maioria qualificada dos membros do Conselho, nos termos
do artigo 113.°, n.° 4, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 133.°,
n.° 4, CE). Os dois memorandos teriam, por outro lado, sido adoptados com pleno
respeito das disposições do Tratado e, designadamente, do seu artigo 113.°
- 65.
- A Comissão faz sua a argumentação do Conselho, acrescentando que, mesmo
admitindo que a República Portuguesa exprimiu reservas à celebração do acordo
final, o desrespeito deste não poderia justificar a anulação da decisão impugnada.
- 66.
- Há que declarar, em primeiro lugar, que a decisão impugnada é um acto de
política comercial, que devia ser adoptado por maioria qualificada nos termos do
artigo 113.°, n.° 4, do Tratado. Nestas condições, sendo pacífico que a decisão
impugnada foi adoptada com observância do disposto neste artigo, o facto de uma
minoria de Estados-Membros, entre os quais a República Portuguesa, se ter oposto
a essa aprovação não é susceptível de viciar essa decisão e, portanto, de implicar
a sua anulação.
- 67.
- Saliente-se, em segundo lugar, como fez o advogado-geral no n.° 32 das suas
conclusões, que o princípio da cooperação leal entre as instituições da Comunidade
e os Estados-Membros não tem incidência na escolha da base legal dos actos
jurídicos comunitários e, consequentemente, no processo legislativo a seguir para
a sua adopção.
- 68.
- A República Portuguesa não tem, por conseguinte, razão para sustentar que a
decisão impugnada desrespeitou o referido princípio.
Quanto à violação do princípio da confiança legítima
- 69.
- O Governo português alega que, ao adoptar a decisão impugnada, o Conselho
infringiu o princípio da confiança legítima dos operadores económicos que exercem
a sua actividade no quadro da indústria têxtil portuguesa.
- 70.
- Com efeito, segundo o Governo português, esses operadores tinham o direito de
esperar que o Conselho não introduziria alterações substanciais ao calendário e ao
ritmo de abertura do mercado comunitário dos produtos têxteis à concorrência
internacional, tal como estes tinham sido fixados nos acordos OMC, em particular
pelo ATV, nem à regulamentação comunitária em vigor, designadamente o
Regulamento n.° 3030/93, com as alterações nele introduzidas pelo Regulamento
n.° 3289/94, que transpõe para o direito comunitário as regras constantes do ATV.
- 71.
- A aprovação da decisão impugnada implicaria uma forte aceleração do processo
de liberalização do mercado comunitário e modificaria, endurecendo-o
sensivelmente, o quadro normativo constituído pelo ATV. Esta alteração
substancial e imprevisível das condições de concorrência no mercado comunitário
dos produtos têxteis teria alterado, por conseguinte, o quadro em que os
operadores económicos põem em prática as medidas de reestruturação que o
próprio Conselho, ao adoptar o Regulamento n.° 852/95, considerou indispensáveis,
o que prejudicaria a sua eficácia e causaria um grave prejuízo a esses operadores.
- 72.
- Em primeiro lugar, o Conselho alega que os operadores portugueses no sector dos
têxteis não podiam ter confiança legítima na manutenção de uma situação que era
objecto de negociações em curso. Se os operadores esperavam que a abertura dos
mercados da Índia e do Paquistão se efectuasse sem qualquer contrapartida, esta
esperança não podia ser caracterizada como confiança legítima por não resultar de
qualquer compromisso jurídico assumido pelo Conselho.
- 73.
- Em segundo lugar, o Conselho sustenta que a adopção dos dois memorandos de
acordo não põe minimamente em causa os resultados do Uruguay Round. Nestes
memorandos, não há qualquer disposição que altere o nível das restrições em vigor
ou o coeficiente de crescimento aplicado em virtude dos acordos bilaterais com a
Índia e o Paquistão. Os memorandos limitar-se-iam a consignar a disponibilidade
da Comissão para acolher favoravelmente os pedidos de flexibilidade excepcionais
(nomeadamente os reportes, as utilizações antecipadas e as transferências entre
categorias) apresentados pelo Paquistão ou pela Índia, e isto no quadro das
restrições existentes e sem exceder, por cada contingente anual, os montantes
fixados em cada memorando. Esta flexibilidade excepcional, e em especial a
possibilidade da sua utilização antecipada, não alterariam as restrições em vigor e,
sobretudo, não teriam como efeito modificar o calendário de integração das
categorias em causa no âmbito do GATT de 1994.
- 74.
- Segundo a Comissão, a República Portuguesa não pode invocar violação do
princípio da confiança legítima dos operadores económicos pelo facto de, por um
lado, não ter um interesse directo e pessoal na protecção da confiança legítima dos
operadores e, por outro, porque se absteve de avisar esses operadores económicos,
embora os dados na sua posse mostrassem clara e suficientemente que a
Comunidade, para chegar a um acordo, seria provavelmente obrigada a fazer
determinadas concessões suplementares.
- 75.
- Há que recordar, quanto a este aspecto, que, segundo jurisprudência constante, o
princípio do respeito da confiança legítima não pode servir para justificar a
intangibilidade de uma regulamentação, e isto, em especial, em sectores como o
da importação dos têxteis em que é necessário e, consequentemente,
razoavelmente prevísivel que as regras em vigor sejam continuamente adaptadas
às variações da conjuntura económica (v., neste sentido, acórdão de 29 de Janeiro
de 1998, Lopex Export, C-315/96, Colect., p. I-317, n.os 28 a 30).
- 76.
- Acresce que, pelas razões expostas pelo advogado-geral no n.° 33 das suas
conclusões, não foram criadas diferenças significativas de tratamento entre os
produtos indianos e paquistaneses, por um lado, e os provenientes dos outros
Estados que aderiram à OMC, por outro, e, em qualquer caso, essas diferenças, se
existem, não são susceptíveis de prejudicar as expectativas dos operadores em
causa.
- 77.
- Resulta do que precede que não merece acolhimento a alegação da República
Portuguesa de que a decisão impugnada foi adoptada em violação do princípio do
respeito da confiança legítima.
Quanto ao princípio da não retroactividade das normas jurídicas
- 78.
- O Governo português alega que o princípio da não retroactividade das normas
jurídicas foi violado, posto que o regime dos memorandos de acordo aprovados
pela decisão impugnada tem efeito retroactivo e se aplica a situações passadas, sem
que a necessidade de derrogar o princípio de que as normas jurídicas só vigoram
para o futuro tenha sido fundamentado.
- 79.
- Com efeito, quando foram rubricados, respectivamente, em 15 de Outubro e 31 de
Dezembro de 1994, e aprovados só em 26 de Fevereiro de 1996 pelo Conselho, os
memorandos de acordo celebrados com a Índia e o Paquistão teriam admitido a
aplicação de um regime de flexibilidades excepcionais que entrava em vigor,
segundo o n.° 6 de cada um dos memorandos, a partir de 1994 no caso do
Paquistão e de 1995 no caso da Índia.
- 80.
- A este respeito, basta declarar que, nos termos do artigo 19.° do Regulamento
n.° 3030/93, a Comissão tinha que dar cumprimento em direito comunitário a estes
compromissos internacionais através de medidas de alteração dos anexos deste
mesmo regulamento.
- 81.
- Por conseguinte, o efeito retroactivo eventual destas medidas só podia ser
impugnado no quadro de um recurso contra a sua adopção.
- 82.
- Improcede, pois, a alegação da República Portuguesa de desrespeito, pela decisão
impugnada, do princípio da não retroactivdade das normas jurídicas.
Quanto à violação do princípio da coesão económica e social
- 83.
- O Governo português sustenta que a decisão impugnada foi adoptada em violação
do princípio da coesão económica e social consagrado nos artigos 2.° e 3.°, alínea
j), do Tratado CE [que passaram, após alteração, a artigos 2.° CE e 3.°, n.° 1, alínea
k), CE] e nos artigos 130.°-A do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo
158.° CE), 130.°-B, 130.°-C do Tratado CE (actuais artigos 159.° CE e 160.° CE),
130.°-D e 130.°-E do Tratado CE (que passaram, após alteração, a artigos 161.° CE
e 162.° CE). Afirma que o próprio Conselho se referiu a este princípio nos
considerandos do Regulamento n.° 852/95, entendendo que a adopção deste
regulamento se tinha tornado necessária devido à aprovação de um regime jurídico
que agravava as desigualdades e atentava contra a coesão económica e social da
Comunidade.
- 84.
- O Conselho recorda que a Comunidade, para reforçar a sua coesão económica e
social, adoptou o Regulamento n.° 852/95 a favor da indústria portuguesa. Lembra
igualmente que a obrigação da Comunidade de integrar no quadro do GATT de
1994 produtos têxteis e de vestuário, em conformidade com o disposto no ATV e
no Regulamento n.° 3289/94, que altera o Regulamento n.° 3030/93, não foi
afectada pelos compromissos constantes dos dois memorandos de acordo.
- 85.
- A Comissão alega que, contrariamente ao que sustenta a República Portuguesa,
o Tratado CE não erige a coesão económica e social em princípio fundamental da
ordem jurídica comunitária cujo respeito se imporia de forma absoluta às
instituições a ponto de provocar a anulação automática de qualquer medida
susceptível de ter um impacto negativo em certas regiões desfavorecidas da
Comunidade.
- 86.
- É necessário salientar que, se decorre dos artigos 2.° e 3.° do Tratado bem como
dos artigos 130.°-A a 130.°-E do mesmo Tratado que o reforço da coesão
económica e social é um dos objectivos da Comunidade e, consequentemente,
constitui um elemento importante designadamente na interpretação do direito
comunitário em matéria económica e social, estas disposições têm, no entanto,
natureza programática, de modo que a prossecução do objectivo de coesão
económica e social deve ser o resultado das políticas e das acções da Comunidade
e dos Estados-Membros.
- 87.
- Não tem, pois, fundamento a alegação da República Portuguesa de que a decisão
impugnada foi adoptada em violação do princípio da coesão económica e social.
Quanto à violação do princípio da igualdade entre os operadores económicos
- 88.
- O Governo português alega ainda que a decisão impugnada favorece os produtos
de lã em relação aos produtos de algodão, dado que as medidas de abertura dos
mercados da Índia e do Paquistão instituídas pelos memorandos de acordo
beneficiam de um modo praticamente exclusivo os produtores comunitários do
sector «lã». Os produtores do sector «algodão» no qual se concentra o essencial
da capacidade exportadora da indústria portuguesa seriam, assim, duplamente
penalizados.
- 89.
- Ao que o Conselho responde que as negociações com a Índia e o Paquistão tinham
como objectivo melhorar o acesso aos mercados indiano e paquistanês. Se as
ofertas destes dois países foram susceptíveis de melhor satisfazer uma parte dos
operadores económicos, os do sector «lã», tal não pode constituir uma violação do
princípio da igualdade entre os operadores económicos, visto que os memorandos
não tiveram minimamente como objectivo discriminá-los.
- 90.
- A Comissão salienta que a circunstância de a Índia e o Paquistão terem proposto
para os produtos do sector «lã» um tratamento mais favorável do que o reservado
aos produtos do sector «algodão» (o que a República Portuguesa não demonstra),
criando, assim, uma certa desigualdade de tratamento entre diferentes categorias
de operadores têxteis, não pode ser imputada ao Conselho como uma
discriminação estabelecida por ele. De resto, mesmo supondo que lhe pudesse ser
imputada, esta desigualdade justificar-se-ia pela natureza do acto em causa e pelo
objectivo prosseguido pelo Conselho ao aprovar os memorandos de acordo, isto é,
melhorar, no interesse comum, o acesso de todos os produtos de origem
comunitária aos mercados indiano e paquistanês.
- 91.
- Deve recordar-se, neste contexto, que o princípio da não discriminação impõe ao
legislador comunitário que «situações comparáveis não sejam tratadas de maneira
diferente, a menos que uma diferenciação se justifique objectivamente» (v.,
designadamente, acórdão Alemanha/Conselho, já referido, n.° 67).
- 92.
- No presente caso, como salientou o advogado-geral no n.° 35 das suas conclusões,
os operadores do sector têxtil actuam em dois mercados distintos, o da lã e o do
algodão, e, por isso, um eventual prejuízo económico de uma das duas categorias
de produtores não implica violação do princípio da não discriminação.
- 93.
- Por conseguinte, não procede igualmente a alegação da República Portuguesa de
que a decisão impugnada foi adoptada em violação do princípio da igualdade entre
os operadores económicos.
- 94.
- Por tudo o exposto, improcedem as alegações da República Portuguesa de que a
decisão impugnada foi adoptada em violação de determinadas regras e de
determinados princípios fundamentais da ordem jurídica comunitária e, portanto,
o recurso deve ser rejeitado na íntegra.
Quanto às despesas
- 95.
- Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida deve
ser condenada nas despesas, se tal tiver sido pedido. Tendo o Conselho pedido a
condenação da República Portuguesa nas despesas e tendo esta sido vencida, há
que condená-la nas despesas. Nos termos do artigo 69.°, n.° 4, do mesmo
regulamento, os Estados-Membros e as instituições intervenientes suportarão as
suas próprias despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA
decide:
- 1.
- Negar provimento ao recurso.
- 2.
- Condenar a República Portuguesa nas despesas.
- 3.
- Deixar a cargo da República Francesa e da Comissão das Comunidades
Europeias as suas próprias despesas.
Moitinho de Almeida Edward Sevón Schintgen
Kapteyn Gulmann
Puissochet
Hirsch Jann Ragnemalm Wathelet
|
Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 23 de Novembro de 1999.
O secretário
O presidente
R. Grass
G. C. Rodríguez Iglesias