Language of document : ECLI:EU:C:2003:25

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

ANTONIO TIZZANO

apresentadas em 16 de Janeiro de 2003 (1)

Processo C-30/01

Comissão das Comunidades Europeias

apoiada pelo

Reino de Espanha

contra

Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte

«Incumprimento de Estado - Mercado interno - Directivas - Não transposição para o território de Gibraltar - Aplicabilidade do Tratado CE e do direito derivado a esse território»

Índice

     I - Introdução

I - 1

     II - Enquadramento legal

I - 3

         A - As disposições comunitárias de carácter geral

I - 3

             a) A livre circulação de mercadorias e o mercado interno

I - 3

             b) Âmbito de aplicação territorial do Tratado

I - 4

         B - As disposições de direito derivado relativas à união aduaneira

I - 5

         C - As disposições respeitantes a Gibraltar

I - 7

             a) Introdução

I - 7

             b) O acto de adesão de 1972

I - 7

             c) As medidas de política comercial comum aplicáveis a Gibraltar

I - 8

         D - As directivas em causa

I - 10

     III - Matéria de facto e tramitação processual

I - 10

     IV - Argumentos das partes e apreciação

I - 10

         A - Introdução

I - 10

         B - Os termos da questão

I - 12

         C - Posição das partes

I - 12

         D - Apreciação

I - 16

             a) O regime de circulação das mercadorias entre Gibraltar e o resto da Comunidade

I - 16

             b) Aplicabilidade a Gibraltar das directivas relativas ao mercado interno

I - 20

             c) Aplicabilidade das directivas que prosseguem também outras finalidades

I - 24

             d) Considerações finais

I - 26

     V - Quanto às despesas

I - 26

     VI - Conclusão

I - 26

I - Introdução

1.
    No presente processo, a Comissão das Comunidades Europeias acusa o Reino Unido da não transposição para o território de Gibraltar de uma série de directivas, adoptadas com base nos artigos 94.° CE e 95.° CE.

2.
    Nomeadamente, o Reino Unido não adoptou, relativamente a esse território, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à Directiva 67/548/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1967, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à classificação, embalagem e rotulagem das substâncias perigosas (a seguir «Directiva 67/548») (2), várias vezes alterada, à Directiva 87/18/CEE do Conselho, de 18 de Dezembro de 1986, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à aplicação dos princípios de boas práticas de laboratório e ao controlo da sua aplicação para os ensaios sobre as substâncias químicas (a seguir «Directiva 87/18») (3), à Directiva 93/12/CEE do Conselho, de 23 de Março de 1993, relativa ao teor de enxofre de determinados combustíveis líquidos (a seguir «Directiva 93/12») (4), e sucessivas alterações, à Directiva 79/113/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à determinação da emissão sonora de máquinas e materiais de estaleiro (a seguir «Directiva 79/113») (5), e sucessivas alterações, à Directiva 84/533/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1984, sobre a aproximação das legislações dos Estados-Membros relativas ao nível de potência sonora admissível para os motocompressores (a seguir «Directiva 84/533») (6), e sucessivas alterações, à Directiva 84/534/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1984, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao nível de potência sonora admissível para gruas-torres (a seguir «Directiva 84/534») (7), e sucessivas alterações, à Directiva 84/535/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1984, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao nível de potência sonora admissível para os grupos electrogéneos de soldadura (a seguir «Directiva 84/535») (8), e sucessivas alterações, à Directiva 84/536/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1984, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao nível de potência sonora admissível para os grupos electrogéneos de potência (a seguir «Directiva 84/536») (9), e sucessivas alterações, à Directiva 84/537/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1984, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao nível de potência sonora admissível para os martelos-demolidores e para os martelos-perfuradores manuais (a seguir «Directiva 84/537») (10), e sucessivas alterações, à Directiva 84/538/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1984, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao nível de potência sonora admissível para as máquinas de cortar relva (a seguir «Directiva 84/538») (11), e sucessivas alterações, à Directiva 86/594/CEE do Conselho, de 1 de Dezembro de 1986, relativa ao ruído aéreo emitido pelos aparelhos domésticos (a seguir «Directiva 86/594») (12), à Directiva 86/662/CEE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1986, relativa à limitação de emissões sonoras produzidas por escavadoras hidráulicas, escavadoras de cabos, tractores de terraplenagem (bulldozers), carregadoras e escavadoras-carregadoras (a seguir «Directiva 86/662») (13), e sucessivas alterações, à Directiva 94/62/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro de 1994, relativa a embalagens e resíduos de embalagens (a seguir «Directiva 94/62») (14), e à Directiva 97/35/CE da Comissão, de 18 de Junho de 1997, que adapta pela segunda vez ao progresso técnico a Directiva 90/220/CEE do Conselho relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados (a seguir «Directiva 97/35») (15).

II - Enquadramento legal

A - As disposições comunitárias de carácter geral

a) A livre circulação de mercadorias e o mercado interno

3.
    Por força do artigo 3.° CE, a acção da Comunidade implica, entre outras coisas, como se sabe, a proibição entre os Estados-Membros dos direitos aduaneiros e das restrições quantitativas à entrada e saída das mercadorias [alínea a)], uma política comercial comum [alínea b)] e «um mercado interno caracterizado pela abolição, entre os Estados-Membros, dos obstáculos à livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e de capitais» [alínea c)].

4.
    Retomando a previsão do artigo 3.°, alínea c), CE, e especificando o seu conteúdo, o artigo 14.°, n.° 2, CE prevê, por sua vez, que:

«O mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada de acordo com as disposições do presente Tratado.»

5.
    O título I da parte II do Tratado, dedicado à livre circulação de mercadorias, abre com as disposições gerais dos artigos 23.° e 24.° CE que dispõem o seguinte:

«Artigo 23.°

1. A Comunidade assenta numa união aduaneira que abrange a totalidade do comércio de mercadorias e implica a proibição, entre os Estados-Membros, de direitos aduaneiros de importação e de exportação e de quaisquer encargos de efeito equivalente, bem como a adopção de uma pauta aduaneira comum nas suas relações com países terceiros.

2. O disposto no artigo 25.° e no capítulo 2 do presente título é aplicável tanto aos produtos originários dos Estados-Membros como aos produtos provenientes de países terceiros que se encontrem em livre prática nos Estados-Membros.

Artigo 24.°

Consideram-se em livre prática num Estado-Membro os produtos provenientes de países terceiros em relação aos quais se tenham cumprido as formalidades de importação e cobrado os direitos aduaneiros ou encargos de efeito equivalente exigíveis nesse Estado-Membro, e que não tenham beneficiado de um draubaque total ou parcial desses direitos ou encargos.»

6.
    Recordo também que o artigo 25.° CE, para o qual remete o artigo 23.°, n.° 2, proíbe a imposição de direitos aduaneiros de importação e de exportação entre Estados-Membros, bem como encargos de efeito equivalente. Por sua vez, o capítulo 2 do título I (artigos 28.° a 31.° CE), para o qual remete igualmente o artigo 23.°, n.° 2, diz respeito à proibição de restrições quantitativas entre Estados-Membros.

7.
    São, enfim, relevantes na matéria os artigos 94.° CE e 95.° CE, que dispõem:

«Artigo 94.°

O Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, e após consulta do Parlamento Europeu e do Conselho Económico e Social, adopta directivas para a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros que tenham incidência directa no estabelecimento ou no funcionamento do mercado comum.

Artigo 95.°

1. Em derrogação do artigo 94.° e salvo disposições em contrário do presente Tratado, aplicam-se as disposições seguintes à realização dos objectivos enunciados no artigo 14.° O Conselho, deliberando de acordo com o procedimento previsto no artigo 251.° e após consulta do Conselho Económico e Social, adopta as medidas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros que tenham por objecto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno.

[...]»

b) Âmbito de aplicação territorial do Tratado

8.
    O artigo 299.° CE determina em linhas gerais o âmbito de aplicação territorial do Tratado CE, estabelecendo no n.° 4, para o que aqui interessa, que:

«As disposições do presente Tratado são aplicáveis aos territórios europeus cujas relações externas sejam asseguradas por um Estado-Membro.»

B - As disposições de direito derivado relativas à união aduaneira

9.
    O Regulamento (CE) n.° 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (a seguir «Código Aduaneiro Comunitário» ou simplesmente «código») (16), delimita o seu objecto precisando, no seu artigo 1.°, que:

«A legislação aduaneira compreende o presente código e as disposições adoptadas a nível comunitário ou nacional em sua aplicação. O presente código aplica-se, sem prejuízo de disposições especiais estabelecidas noutros domínios:

-    às trocas entre a Comunidade Europeia e países terceiros;

-    às mercadorias abrangidas pelos Tratados que instituem, respectivamente, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica.»

10.
    O artigo 3.° do código define o «território aduaneiro comunitário» confirmando o disposto a esse respeito nos actos comunitários anteriores e, em especial, no Regulamento n.° 1496/68/CEE do Conselho, de 27 de Setembro de 1968, relativo à definição do território aduaneiro da Comunidade (a seguir «Regulamento n.° 1496/68») (17), alterado na sequência dos vários alargamentos da Comunidade. Esse território é constituído, em princípio, pelo conjunto dos territórios aduaneiros de cada um dos Estados-Membros: são excluídos, deste modo, os territórios que, embora fazendo parte integrante de um Estado-Membro, não são considerados parte do respectivo território aduaneiro (18), mas incluem-se os que são abrangidos no território aduaneiro de um Estado-Membro, mesmo não fazendo parte desse Estado (19).

11.
    Nomeadamente, na sequência do alargamento de 1972, e para o que aqui interessa, a disposição precisa que:

«O território aduaneiro da Comunidade compreende:

-    [...]

-    o território do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, bem como as ilhas anglo-normandas e a ilha de Man.

[...]»

12.
    Daí resulta que, relativamente ao Reino Unido, o seu território é abrangido na totalidade pelo território aduaneiro comunitário juntamente com as referidas possessões da Coroa, apesar de não fazerem parte do Reino. Pelo contrário, Gibraltar é excluído.

13.
    O artigo 4.° do código precisa, por sua vez, a definição de «mercadoria comunitária», para os efeitos da aplicação da legislação aduaneira comunitária, dispondo que:

«Na acepção do presente código, entende-se por:

[...]

7) Mercadorias comunitárias: as mercadorias:

-    inteiramente obtidas no território aduaneiro da Comunidade, nas condições referidas no artigo 23.°, sem incorporação de mercadorias importadas de países ou territórios que não façam parte do território aduaneiro da Comunidade;

-    importadas de países terceiros ou territórios que não façam parte do território aduaneiro da Comunidade e introduzidas em livre prática;

-    obtidas no território aduaneiro da Comunidade, quer exclusivamente a partir das mercadorias referidas no segundo travessão, quer a partir das mercadorias referidas no primeiro e segundo travessões.

8) Mercadorias não comunitárias: as mercadorias não abrangidas pelo n.° 7».

14.
    O artigo 79.° do código dispõe o seguinte:

«A introdução em livre prática confere o estatuto aduaneiro de mercadoria comunitária a uma mercadoria não comunitária.

A introdução em livre prática implica a aplicação das medidas de política comercial, o cumprimento das outras formalidades previstas para a importação de mercadorias, bem como a aplicação dos direitos legalmente devidos.»

C - As disposições respeitantes a Gibraltar

a) Introdução

15.
    Cedida pelo Rei de Espanha à Coroa da Grã-Bretanha por força do artigo X do Tratado de Utrecht de 1713, Gibraltar goza, desde 1830, do estatuto de Crown Colony (British Overseas Territory). A cidade é regida, como se sabe, pela Gibraltar Convention Order 1969, que a define no seu preâmbulo como «part of Her Majesty's dominions». Apesar de uma importante transferência de poderes executivos para instituições locais democraticamente eleitas na colónia, as competências em matéria de relações externas, defesa e segurança pública pertencem à Coroa.

b) O acto de adesão de 1972

16.
    Em vista desse estatuto especial de Gibraltar, o artigo 28.° do Acto relativo às condições de adesão e às adaptações dos Tratados, que faz parte dos actos relativos à adesão às Comunidades Europeias do Reino da Dinamarca, da Irlanda, do Reino da Noruega e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (a seguir «acto de adesão de 1972» ou «acto de adesão») (20), previu que:

«Os actos das instituições da Comunidade relativos aos produtos abrangidos pelo Anexo II do Tratado CEE (21) e aos produtos cuja importação na Comunidade esteja submetida a uma regulamentação específica em consequência da execução da política agrícola comum, bem como os actos em matéria de harmonização das legislações dos Estados-Membros relativas aos impostos sobre o volume de negócios não são aplicáveis a Gibraltar, a não ser que o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, disponha em contrário.»

17.
    Por sua vez, o artigo 29.° do mesmo acto prevê que:

«Os actos enumerados na lista constante do Anexo I do presente acto são objecto das adaptações especificadas no referido anexo.»

18.
    Em especial, para o que aqui interessa, assinalo que a primeira secção da lista referida no Anexo I diz respeito à legislação aduaneira e que esta é alterada no sentido acima referido (n.° 11) para adaptar a definição de território aduaneiro comunitário contida no Regulamento n.° 1496/68 na sequência da adesão do Reino Unido à Comunidade. Gibraltar, recordo-o, está excluído desse território.

19.
    Além disso, e sempre para o que aqui interessa, o acto de adesão de 1972 eliminou a menção do Reino Unido e dos seus territórios dependentes, incluindo Gibraltar, da lista de territórios pertencentes a países terceiros aos quais é aplicável o regime de liberalização das importações de mercadorias estabelecido pelo Regulamento (CEE) n.° 1025/70 do Conselho, de 25 de Maio de 1970, que estabelece um regime comum aplicável às importações de países terceiros (a seguir «Regulamento n.° 1025/70») (22). Para esse fim, o Anexo I do acto de adesão de 1972 procedeu à alteração da lista contida no Anexo II do referido regulamento.

20.
    Em relação à alteração mencionada do Regulamento n.° 1025/70, o Anexo II do acto de adesão de 1972 precisa que:

«O problema resultante da supressão da indicação de Gibraltar no Anexo II [do Regulamento n.° 1025/70] deve ser resolvido de modo a garantir que, no que respeita ao regime de liberalização das importações na Comunidade, Gibraltar seja colocada na mesma situação em que se encontrava antes da adesão».

c) As medidas de política comercial comum aplicáveis a Gibraltar

21.
    A fim de compreender melhor a posição de Gibraltar no sistema do Tratado, é oportuno recordar aqui também a regulamentação das trocas de mercadorias com países terceiros que, antes da liberalização radical que se seguiu à entrada em vigor na Comunidade dos acordos da OMC, constava do Regulamento (CEE) n.° 288/82 do Conselho, de 5 de Fevereiro de 1982, relativo ao regime comum aplicável às importações (a seguir «Regulamento n.° 288/82») (23).

22.
    Nos termos do n.° 1 do seu artigo 1.°, o Regulamento n.° 288/82 era aplicável «às importações dos produtos originários de países terceiros».

23.
    Por força do n.° 2 do seu artigo 1.°:

«a importação na Comunidade dos produtos referidos no n.° 1 é livre, não se encontrando sujeita a qualquer restrição quantitativa, sem prejuízo:

[...]

-    das restrições quantitativas relativas aos produtos constantes do Anexo I, e mantidas nos Estados-Membros indicados nesse anexo em relação a esses produtos».

24.
    O Anexo I do referido regulamento, por sua vez, abrangia uma série de restrições quantitativas, relativas a certos produtos aí indicados, que os Estados-Membros estavam autorizados a manter em vigor relativamente a todos os países terceiros ou relativamente a um ou mais desses países. Ao fazê-lo, o referido anexo previa, em especial, a possibilidade de França e Itália manterem em vigor restrições quantitativas para os produtos provenientes do território de Gibraltar.

25.
    Para esclarecer a posição de Gibraltar relativamente à política comercial comum, recorda-se enfim que o referido território está incluído na lista dos países terceiros que beneficiam do sistema de preferências pautais generalizadas que a Comunidade concede aos países em vias de desenvolvimento. Gibraltar, com efeito, está incluído no Anexo I do Regulamento (CE) n.° 2501/2001 do Conselho, de 10 de Dezembro de 2001, relativo à aplicação de um sistema de preferências pautais generalizadas durante o período compreendido entre 1 de Janeiro de 2002 - 31 de Dezembro de 2004 (a seguir «Regulamento n.° 2501/2001») (24). Por força do artigo 2.° do referido regulamento, Gibraltar beneficia portanto do regime geral de preferências pautais do artigo 7.° Por conseguinte, nas importações de produtos originários de Gibraltar são garantidas reduções pautais significativas relativamente aos direitos da nação mais favorecida estabelecidos na pauta aduaneira comum.

D - As directivas em causa

26.
    As numerosas directivas cuja transposição está em causa têm conteúdos variados e, com frequência, bastante técnicos, o que todavia não é relevante no presente processo. Nesta sede, será suficiente sublinhar os seus traços comuns, isto é, o facto de todas terem sido adoptadas com base nos artigos 94.° CE e 95.° CE (25) e todas terem por objectivo favorecer a livre circulação de mercadorias por meio da harmonização das legislações nacionais relativas, precisamente, às mercadorias e respeitantes simultaneamente às políticas ambientais.

III - Matéria de facto e tramitação processual

27.
    Por ofício de 3 de Julho de 1997, e no parecer fundamentado de 28 de Julho de 2000, a Comissão acusou o Reino Unido de não ter transposto, no que respeita a Gibraltar, numerosas directivas de harmonização baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE, no caso vertente, as directivas referidas supra no n.° 2.

28.
    O Reino Unido, por seu lado, sustentou que se absteve com razão de as transpor, na medida em que o território de Gibraltar é estranho ao território aduaneiro da Comunidade e deve, portanto, considerar-se excluído do âmbito de aplicação das disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias, bem como das disposições conexas de direito derivado, como precisamente as directivas em questão.

29.
    Não satisfeita com as respostas fornecidas, a Comissão intentou a presente acção de incumprimento, por petição que deu entrada em 25 de Janeiro de 2001.

30.
    Por despacho de 22 de Junho de 2001, o Tribunal de Justiça autorizou o Reino de Espanha a intervir no presente processo em apoio dos pedidos da Comissão, ao abrigo do artigo 93.°, n.° 1, do Regulamento de Processo.

IV - Argumentos das partes e apreciação

A - Introdução

31.
    Como resulta da descrição precedente da legislação relevante, Gibraltar é objecto de um regime especial. Não faz parte do território aduaneiro comunitário e não está, portanto, sujeito à legislação aduaneira comunitária, e isto também é válido, como precisam as disposições acima referidas, para os produtos agrícolas, dado que a Gibraltar não são aplicáveis as normas de direito derivado relativas a esses produtos.

32.
    Daí resulta, como de resto confirmam expressamente as disposições recordadas de direito derivado (v. os Regulamentos n.os 288/82 e 2501/2001), que as mercadorias importadas na Comunidade provenientes de Gibraltar são submetidas ao regime das importações não comunitárias; e (mas a questão, como veremos, ainda é controversa) as mercadorias provenientes de Gibraltar devem ser consideradas provenientes de países terceiros. Enfim, a Gibraltar não se aplicam as normas em matéria de harmonização do IVA.

33.
    De resto, o Tratado é, em princípio, aplicável a Gibraltar, por força do artigo 299.°, n.° 4, CE; em especial, são-lhe plenamente aplicáveis os princípios gerais da ordem jurídica comunitária (a começar pela proibição de discriminação em razão da nacionalidade), bem como as liberdades de circulação de pessoas, serviços e capitais e as outras políticas comunitárias referidas no artigo 3.° CE.

34.
    Durante muito tempo este regime não parece ter colocado problemas especiais, nem sequer após a adesão de Espanha à Comunidade. A antiga disputa com o Reino Unido é aflorada apenas nalguns sectores (26); no que respeita, no entanto, à aplicação do Tratado e do direito derivado a Gibraltar, durante muitos anos não surgiram, que se saiba, dificuldades específicas. A própria Comissão parecia prestar uma atenção relativa à questão, de tal modo que, ainda em 1996, instada a precisar ao Parlamento Europeu qual o estado de aplicação das directivas comunitárias a Gibraltar, declarou não estar em posição de dar uma resposta imediata (27). Para esse efeito, demorou vários meses e ocupou-se essencialmente das directivas em matéria de livre prestação de serviços, de estabelecimento e de circulação de capitais (28). Quanto às directivas baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE, a tese da aplicabilidade das mesmas a Gibraltar não foi defendida, nessa ocasião, com especial firmeza (29).

B - Os termos da questão

35.
    A questão aparece, portanto, de um modo claro e preciso apenas no presente processo e é analisada sob todos os seus ângulos. Em especial, a meu ver, devem resolver-se sobretudo, sucessivamente, os seguintes problemas.

36.
    Antes de mais, trata-se de determinar se a exclusão de Gibraltar do território aduaneiro comunitário implica também a sua exclusão do âmbito de aplicação das normas do Tratado que visam garantir a livre circulação de mercadorias.

37.
    Em segundo lugar, trata-se de determinar se a eventual inaplicabilidade das disposições relativas à livre circulação de mercadorias implica, por sua vez, a não aplicação a Gibraltar das directivas baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE que visam o estabelecimento do mercado interno e, em especial, a abolição dos obstáculos à circulação de mercadorias.

38.
    Em caso afirmativo, enfim, há que perguntar em seguida se a não aplicação das referidas directivas é permitida também no caso de as mesmas, embora tendo como objectivo principal a abolição de obstáculos à livre circulação de mercadorias, prosseguirem igualmente finalidades estranhas ao mercado interno (no caso vertente, finalidades de política ambiental).

C - Posição das partes

39.
    A Comissão, apoiada pelo Governo espanhol, parte da afirmação de que, em virtude do seu estatuto de Crown Colony do Reino Unido, Gibraltar é sem dúvida um território europeu cujas relações externas são asseguradas por um Estado-Membro. Na acepção do artigo 299.°, n.° 4, CE, o Tratado e o direito derivado aplicam-se, portanto, integralmente a Gibraltar, exceptuando as exclusões e as derrogações expressamente previstas.

40.
    Entre estas, continua a Comissão, o acto de adesão de 1972 indica sectores significativos da legislação comunitária. Designadamente, a aplicação das disposições relativas aos produtos agrícolas e das medidas de harmonização do IVA é excluída do mesmo modo que Gibraltar é excluído do território aduaneiro e da aplicação de medidas de política comercial previstas pelo Regulamento n.° 1025/70.

41.
    Ora, continua a Comissão, na medida em que representam uma excepção ao princípio geral da aplicação plena da legislação comunitária, essas previsões devem ser interpretadas em sentido estrito, em aplicação do conhecido princípio, várias vezes confirmado também pelo Tribunal de Justiça, segundo o qual as disposições derrogatórias de liberdades fundamentais são de aplicação estrita (30).

42.
    No presente caso, essas disposições colidem precisamente com uma liberdade fundamental, designadamente, a liberdade de circulação de mercadorias. À luz do referido princípio interpretativo, há que perguntar se essas disposições permanecem confinadas no seu âmbito específico ou se colidem com a aplicabilidade (rectius, inaplicabilidade) de toda a legislação relativa à livre circulação de mercadorias (artigos 28.° e seguintes). Porém, na realidade, não é sob esse ângulo que a Comissão coloca aqui a questão, mas antes sob o ângulo da aplicabilidade das directivas de harmonização adoptadas pelas instituições comunitárias por força dos artigos 94.° CE e 95.° CE e que visam o estabelecimento do mercado interno.

43.
    A esse propósito, a recorrente sustenta que entre as derrogações relativas à aplicação do Tratado a Gibraltar não há nenhuma que diga respeito às referidas directivas, e que nem as que estão em causa no presente processo prevêem, por sua parte, qualquer limitação territorial específica. Portanto, deve concluir-se, segundo a Comissão, que tanto os mencionados artigos do Tratado como as directivas em causa devem aplicar-se ao território da colónia britânica.

44.
    Por outro lado, observa a Comissão, a solução contrária conduz a um resultado que não é razoável do ponto de vista da protecção do ambiente. Seguindo essa solução, com efeito, seriam aplicáveis a Gibraltar as directivas adoptadas com base nas competências especificamente previstas pelo título XIX do Tratado no sector ambiental, ao passo que não seriam aplicáveis as directivas adoptadas com base nos artigos 94.° CE e 95.° CE, apesar de igualmente destinadas (embora não a título principal ou exclusivo) a finalidades de protecção do ambiente.

45.
    O Reino de Espanha, por seu lado, sustenta que o regime de livre circulação de mercadorias é plenamente aplicável a Gibraltar. Em defesa dessa tese, o Governo espanhol sustenta também que a liberdade de circulação de mercadorias representa um princípio fundamental do mercado comum (31) e que as derrogações a essa liberdade devem ser, portanto, de interpretação estrita. Se assim é, então deve reconhecer-se que a exclusão de Gibraltar do território aduaneiro comunitário implica unicamente a inaplicabilidade da pauta aduaneira comum ao comércio externo da colónia britânica, com a consequência de as mercadorias provenientes de países terceiros e importadas para Gibraltar estarem isentas de direitos aduaneiros. Em contrapartida, no comércio entre Gibraltar e o resto da Comunidade mantêm-se aplicáveis a proibição de direitos aduaneiros, bem como a proibição de restrições quantitativas e de medidas de efeito equivalente.

46.
    Em apoio dessa interpretação, o Governo espanhol refere o regime em vigor para Ceuta e Melilha em virtude do acto relativo às condições de adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às adaptações dos Tratados (32). Também estas duas cidades do Norte de África estão excluídas do território aduaneiro comunitário nos termos do artigo 1.° do protocolo relativo às ilhas Canárias e a Ceuta e Melilha, anexo ao acto de adesão de 1985 (33); apesar disso, os produtos originários de Ceuta e Melilha beneficiam de isenção total de direitos e encargos de efeito equivalente à entrada no território aduaneiro comunitário, e vice-versa (artigos 2.° e 6.° do mesmo protocolo). Deve deduzir-se daí, segundo o Governo espanhol, que a exclusão do território aduaneiro comunitário implica unicamente a não aplicação dos direitos da pauta aduaneira comum aos produtos importados de países terceiros, mantendo-se excluído qualquer efeito sobre a circulação intracomunitária de mercadorias.

47.
    No que respeita, em seguida, à aplicabilidade a Gibraltar dos artigos 94.° CE e 95.° CE, o Governo espanhol, além de apresentar argumentos semelhantes aos da Comissão, acrescenta nomeadamente que as competências atribuídas à Comunidade por essas disposições são instrumentais relativamente ao estabelecimento do mercado interno globalmente considerado. Com efeito, não se pode chegar à criação de um único mercado sem fronteiras internas, a não ser visando igualmente a eliminação dos obstáculos a todas as liberdades de circulação dos factores produtivos. Se, portanto, se entendesse que o território de Gibraltar está totalmente excluído da liberdade de circulação de mercadorias, deveria concluir-se que a colónia britânica está excluída de todo o mercado interno, porque não é só essa liberdade que não é aplicável, mas também todas as outras.

48.
    Por seu lado, o Governo do Reino Unido observa antes de mais, de um ponto de vista geral, que as disposições do acto de adesão relativas a Gibraltar, consideradas no seu conjunto, prosseguem o objectivo de manter na colónia britânica a plena autonomia na gestão da sua política comercial de que gozava antes da adesão do Reino Unido à Comunidade. Esse objectivo nunca foi posto em causa durante as negociações, e precisamente para o realizar foi determinada a exclusão de Gibraltar do território aduaneiro comunitário e do âmbito de aplicação da política comercial comum (v. artigo 29.° e Anexo I, primeira secção, n.° 4, do acto de adesão de 1972).

49.
    Com efeito, graças a essa exclusão, continua aquele governo, as disposições do Tratado relativas ao estabelecimento da união aduaneira (artigos 23.° e seguintes, CE) não se aplicam à colónia e as mercadorias que entram nesta, dada a autonomia da sua política comercial, não podem considerar-se em livre prática na Comunidade, na acepção do artigo 24.° CE. Mas sendo assim, nem sequer podem aplicar-se ao comércio entre Gibraltar e o resto da Comunidade as disposições dos artigos 28.° e seguintes CE, relativas à proibição de restrições quantitativas e de medidas de efeito equivalente nas trocas de mercadorias; isto por força da previsão expressa do artigo 23.°, n.° 2, CE, que limita a aplicação dessas proibições às mercadorias em livre prática. De resto, em coerência com esse regime, e para o completar, o artigo 28.° do acto de adesão de 1972 dispõe que não se aplicam a Gibraltar as normas relativas à política agrícola comum e à política comercial comum no sector agrícola, determinando assim a exclusão da colónia britânica do regime de livre circulação de mercadorias também nesse sector.

50.
    Naturalmente, o Reino Unido não ignora o princípio da interpretação estrita das derrogações à aplicação das disposições do Tratado, mas nega que esse princípio seja relevante no presente processo. Se, como vimos, as previsões do acto de adesão de 1972 relativas a Gibraltar implicam a não aplicação a esse território do conjunto das disposições do Tratado sobre livre circulação de mercadorias, daí decorre necessariamente, com base em considerações elementares de lógica e de justiça, que as disposições de direito derivado instrumentais ao estabelecimento dessa liberdade também não são aplicáveis.

51.
    No que se refere, nomeadamente, às competências previstas pelos artigos 94.° CE e 95.° CE, o Reino Unido recorda que estas se destinam à remoção dos obstáculos, no interior da Comunidade, à circulação de mercadorias, serviços, pessoas e capitais. Daí resulta que os actos baseados nessas normas e que visam a eliminação dos obstáculos relativos à circulação de mercadorias podem aplicar-se apenas às partes do território comunitário dentro das quais o Tratado previu que as mercadorias circulem livremente. Isto, como vimos, não acontece em Gibraltar e, portanto, não há nenhuma razão que justifique a aplicação desses actos ao comércio entre Gibraltar e o resto da Comunidade.

52.
    Se o ponto de vista da Comissão fosse acolhido, continua o governo demandado, obter-se-ia o resultado paradoxal de esvaziar, na sua substância, o estatuto que o acto de adesão pretende preservar para Gibraltar, isto é, o de um território dotado de uma política comercial autónoma em matéria de mercadorias. A aplicação das directivas adoptadas com base nos artigos 94.° CE e 95.° CE e relativas às mercadorias pode, com efeito, impedir que Gibraltar importe bens de países terceiros que não correspondam aos requisitos impostos por essas directivas.

53.
    O Reino Unido rejeita, enfim, o argumento da Comissão segundo o qual as directivas que são objecto do presente processo devem ser aplicáveis a Gibraltar, na medida em que além dos objectivos do mercado interno prosseguem também objectivos ambientais. A este propósito, o Reino Unido recorda que a jurisprudência do Tribunal de Justiça esclareceu, por um lado, que os objectivos do mercado interno são condição necessária e suficiente para a adopção válida de um acto de harmonização baseado no artigo 95.° CE e, por outro, que esses objectivos também devem considerar-se prevalecentes quando a directiva prossegue, para além deles, finalidades de protecção da saúde das pessoas e do ambiente (34). Ora, uma medida de harmonização baseada no artigo 95.° CE que diga respeito à circulação de mercadorias nunca pode ser aplicável a Gibraltar, mesmo que tenha objectivos acessórios de protecção ambiental.

D - Apreciação

54.
    Chegando a uma apreciação das teses acima expostas, devo advertir desde já que me cingirei à ordem de exposição anteriormente anunciada. Apreciarei antes de mais se a exclusão de Gibraltar do território aduaneiro comunitário implica também a sua exclusão do âmbito de aplicação das normas do Tratado que visam garantir a livre circulação das mercadorias, para depois me debruçar sobre o problema da aplicabilidade das directivas baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE que visam a eliminação de obstáculos à circulação de mercadorias. Enfim, no caso dessa aplicabilidade ser excluída, devemos em seguida perguntar se essa conclusão vale também para as directivas que, embora tendo por objectivo principal a eliminação de obstáculos à livre circulação de mercadorias, prosseguem também finalidades estranhas ao mercado interno (no caso vertente, finalidades de política ambiental).

a) O regime de circulação das mercadorias entre Gibraltar e o resto da Comunidade

55.
    Quanto a este ponto, devo antes de mais observar que, pelo menos entre a demandante e o governo demandado, não parecem subsistir verdadeiras divergências. A tese do Reino Unido, segundo a qual não se aplicam a Gibraltar as normas comunitárias relativas à livre circulação de mercadorias, nunca foi realmente contestada pela Comissão. Pelo contrário, a Comissão declarou-se favorável a essa tese, ao responder a algumas perguntas parlamentares, esclarecendo aliás que Gibraltar gere autonomamente a sua política comercial aliás nas relações com o resto da Comunidade e é considerado equiparado a um país terceiro para os efeitos da aplicação das medidas de política comercial comum (35). Quanto a este ponto, portanto, existem divergências sobretudo entre a Espanha e o Reino Unido.

56.
    Esclarecido isto, e quanto ao mérito da questão, começarei por recordar que, por força do Tratado, a proibição de impor direitos aduaneiros e encargos equivalentes, bem como restrições quantitativas e medidas equivalentes, aplica-se aos produtos originários dos Estados-Membros e aos provenientes de países terceiros e introduzidos em livre prática nos Estados-Membros. Para poder confirmar, portanto, se o comércio entre Gibraltar e o resto da Comunidade está sujeito ao regime de livre circulação, há que determinar, por um lado, se as mercadorias produzidas em Gibraltar devem considerar-se originárias de um Estado-Membro e, por outro lado, se as mercadorias importadas para Gibraltar podem considerar-se introduzidas em livre prática num Estado-Membro na acepção dos artigos 23.° e 24.° CE.

57.
    Começando por este último ponto, recordo que, na acepção do artigo 24.° CE, os produtos provenientes de países terceiros são considerados em livre prática num Estado-Membro quando forem cumpridas nesse Estado-Membro as formalidades de importação, aplicadas as medidas da política comercial comum e cobrados os direitos aduaneiros exigíveis (v. artigo 79.° do Código Aduaneiro Comunitário), tendo presente que esses direitos foram fixados pela pauta aduaneira comum (artigo 23.°, n.° 1, CE; artigo 20.°, n.° 1, do Código Aduaneiro Comunitário).

58.
    Ora, é incontroverso que, sendo Gibraltar um território estranho ao território aduaneiro comunitário, as mercadorias que nele entram provenientes de um país terceiro não são submetidas aos direitos da pauta aduaneira comum, mas aos direitos que as autoridades locais eventualmente fixaram de modo autónomo. Além disso, em virtude da exclusão do território de Gibraltar da união aduaneira, as mercadorias que nele entram não são submetidas a nenhuma das medidas da política comercial comum. Daí resulta que as mercadorias importadas para Gibraltar não estão em livre prática num Estado-Membro, na acepção do artigo 24.° CE.

59.
    Em seguida, quanto à questão de as mercadorias originárias de Gibraltar poderem considerar-se originárias de um Estado-Membro na acepção do artigo 23.°, n.° 2, CE, parece-me evidente que a resposta deve ser negativa, visto que só as mercadorias produzidas no território aduaneiro de um Estado-Membro e, portanto, no território aduaneiro comunitário, podem ser «originárias».

60.
    Com efeito, como já recordei (v. supra, n.° 10), o território comunitário coincide, em plena coerência com as finalidades do artigo 23.° CE, com o território aduaneiro dos Estados-Membros, mesmo que seja eventualmente diferente relativamente ao âmbito da soberania territorial dos mesmos (artigo 3.° do Código Aduaneiro Comunitário). Além disso, na acepção do artigo 4.° do mesmo código, são «mercadorias comunitárias: as mercadorias inteiramente obtidas no território aduaneiro da Comunidade», bem como as mercadorias «importadas de países terceiros ou territórios que não façam parte do território aduaneiro da Comunidade e introduzidas em livre prática» (36).

61.
    Sendo assim, evidentemente, as mercadorias originárias de Gibraltar não podem por isso mesmo considerar-se «mercadorias comunitárias», porque não são produzidas no território aduaneiro da Comunidade; poderão eventualmente vir a sê-lo uma vez introduzidas em livre prática no território comunitário.

62.
    De resto, o facto de Gibraltar ser considerado equiparado a país terceiro para efeitos das disposições comunitárias sobre circulação de mercadorias é confirmado pelas disposições especificamente adoptadas em matéria de política comercial comum. Com efeito, por um lado, antes de os acordos de Marraquexe revitalizarem à escala mundial a proibição de restrições quantitativas e imporem a alteração das correspondentes disposições da política comercial comunitária, o regime comum aplicável às importações estabelecido pelo Regulamento n.° 288/82 contemplava expressamente a possibilidade de submeter a restrições quantitativas os produtos provenientes do território de Gibraltar, à entrada no território aduaneiro comunitário (artigo 1.°, n.° 2, e Anexo I; v. supra, n.os 23 e 24). Por outro lado, Gibraltar está incluído no sistema de preferências generalizadas estabelecido pelo Regulamento n.° 2501/2001, e as mercadorias originárias da colónia são, portanto, consideradas mercadorias de um país terceiro e admitidas na Comunidade nas condições pautais preferenciais estabelecidas no referido regulamento (artigo 2.° e Anexo I).

63.
    Devo concordar, de resto, com o Governo demandado quando observa que a sujeição das mercadorias provenientes de Gibraltar às normas aplicáveis às trocas de mercadorias com países terceiros constitui o pressuposto evidente das disposições do acto de adesão de 1972 relativas à colónia britânica. Em especial, observa-se que, após ter procedido à eliminação formal do Reino Unido e dos seus territórios dependentes, incluindo Gibraltar, da lista de países terceiros cujos produtos são admitidos na Comunidade em conformidade com o regime de liberalização das importações estabelecido pelo Regulamento n.° 1025/70 (Anexo I, primeira secção, n.° 4, do acto de adesão: v. supra n.° 19), o Anexo II do mesmo acto dispõe expressamente que as mercadorias provenientes de Gibraltar devem gozar, de qualquer modo, no momento da sua importação no território aduaneiro comunitário, de um regime de liberalização análogo àquele de que gozam as mercadorias provenientes de países terceiros aos quais se aplica o referido regulamento (v. supra, n.° 20). Ora, também me parece que, como já observou o Reino Unido, essa precisão não teria sido necessária se as mercadorias originárias de Gibraltar fossem consideradas comunitárias e se lhes fosse aplicável, por conseguinte, o regime comunitário de livre circulação.

64.
    Também não me parecem convincentes as objecções suscitadas pelo Governo espanhol a respeito dessa conclusão, em nome de uma pretensa analogia entre o regime aplicável à colónia britânica e o regime previsto para os territórios espanhóis de Ceuta e Melilha. É verdade, com efeito, que as duas cidades espanholas estão excluídas do território aduaneiro comunitário, enquanto os bens que aí têm origem têm, apesar disso, acesso ao resto da Comunidade com isenção dos direitos da pauta aduaneira comum. No entanto, por força do artigo 1.° do protocolo (37), os bens provenientes de Ceuta e Melilha não são considerados «em livre prática» no território aduaneiro comunitário para os efeitos dos artigos 23.° CE e 24.° CE e, portanto, o regime de livre circulação aplicável às mercadorias originárias desses territórios espanhóis não decorre da simples aplicação do Tratado. Pelo contrário, esse regime é uma consequência da criação, graças aos artigos 2.°, n.° 1 (38), e 6.°, n.° 1 (39), do protocolo n.° 2 relativo às ilhas Canárias, Ceuta e Melilha, de uma zona de comércio livre que abrange o território aduaneiro da Comunidade, por um lado, e os territórios aduaneiros dos dois enclaves espanhóis, por outro. Daí resulta, em minha opinião, que o regime em vigor para Ceuta e Melilha, longe de infirmar a interpretação que foi dada do regime aplicável a Gibraltar, confirma a sua validade: a exclusão do território aduaneiro comunitário implica a inaplicabilidade das disposições do Tratado relativas às trocas de mercadorias, sem prejuízo das disposições expressas em contrário.

65.
    Parece-me portanto que posso concluir quanto a este ponto no sentido de que entre Gibraltar e o resto do território comunitário não vigora um regime de livre circulação de mercadorias ou, por outras palavras, que não se aplicam a Gibraltar as normas comunitárias do título I da parte III do Tratado sobre a livre circulação de mercadorias.

b) Aplicabilidade a Gibraltar das directivas relativas ao mercado interno

66.
    Como já referi, porém, o verdadeiro cerne do litígio que opõe a Comissão ao Reino Unido diz respeito às medidas adoptadas por força dos artigos 94.° CE e 95.° CE, e à sua aplicabilidade a Gibraltar.

67.
    Segundo o Reino Unido, como vimos, essa aplicabilidade é excluída quando as medidas em questão se destinam a facilitar a liberdade de circulação de mercadorias, ou seja, uma liberdade que não se estende a Gibraltar.

68.
    Segundo a Comissão, pelo contrário, essa conclusão vai demasiado longe e viola o princípio que impõe uma interpretação estrita das derrogações aos princípios gerais. Por outro lado, observa por sua vez o Governo espanhol, da unidade do conceito de mercado interno decorre a indivisibilidade das liberdades previstas pelo Tratado, com a consequência de que quando uma delas não é aplicável, as outras também não podem sê-lo.

69.
    Essa objecção baseia-se evidentemente na ideia de que, por vezes, as medidas de harmonização relativas às mercadorias, às pessoas, aos serviços ou aos capitais não esgotam a sua função ao favorecer uma ou outra das respectivas liberdades, mas são avaliadas num quadro global, como partes de um projecto único e abrangente tendente ao estabelecimento e ao funcionamento do mercado único. Por conseguinte, deve falar-se não tanto de medidas de harmonização destinadas, por vezes, a eliminar os obstáculos à livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços ou de capitais, mas de medidas destinadas, todas e cada uma delas, a realizar esse único projecto.

70.
    Essa objecção, sendo embora sugestiva, não me parece contudo convincente, pelo menos para os efeitos que aqui interessam. A meu ver, embora seja verdade que o conceito de mercado interno é um conceito unitário e engloba em si mesmo todas as liberdades em questão, isso não significa que seja alheio a essas liberdades, e ainda menos que estas confundam com isso a sua própria especificidade a fim de se tornarem indistintas entre si.

71.
    Essa tese contraria de resto um dado textual evidente, que é o facto de diferentes disposições do Tratado dizerem respeito ao estabelecimento das diversas liberdades. Mas, na realidade, essa diversidade de textos é apenas o reflexo da autonomia conceptual e sistemática de cada uma das liberdades individuais, cuja realização é, com efeito, confiada a instrumentos, modalidades, tempos e condições bastantes diversos.

72.
    Sem me alongar quanto a este ponto, basta-me observar que a objecção em análise é contrariada per tabulas mesmo em relação aos aspectos que são relevantes no presente processo. Se é verdade, com efeito, que um mercado interno abrangendo as quatro referidas liberdades de circulação é o objectivo prosseguido em linhas gerais pela Comunidade, não é necessariamente verdade que esse seja um objectivo prosseguido por toda a Comunidade. Existem de facto territórios da Comunidade que são expressamente excluídos desta ou daquela liberdade, sem que seja minimamente posta em dúvida a aplicabilidade das outras. Basta pensar no caso das ilhas Anglo-Normandas e da ilha de Man, para citar duas possessões da Coroa britânica ou, após a adesão da Finlândia, do caso da ilhas Åland: a esses territórios são aplicáveis, com efeito, as disposições relativas à livre circulação de mercadorias, mas não as disposições relativas à liberdade de circulação de pessoas e de serviços, como resulta respectivamente dos artigos 1.° e 2.° do protocolo n.° 3 relativo às ilhas Anglo-Normandas e à ilha de Man (40), e do artigo 1.° do protocolo n.° 2 relativo às ilhas Åland (41).

73.
    Não me parece, portanto, nem estranho nem singular que o Tratado, para territórios que apresentam uma situação especial, como o de Gibraltar, preveja um regime igualmente especial, em que as liberdades de circulação são conjugadas de modo diferente do regime geral. No caso vertente, precisamente, esse regime tem por objectivo a fusão entre o mercado de Gibraltar e o resto do mercado comunitário num espaço sem fronteiras internas no que respeita à circulação de serviços, pessoas e capitais, deixando de fora, todavia, pelas razões já várias vezes referidas, a circulação de mercadorias.

74.
    Sendo assim, daí resulta necessariamente que também as directivas baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE destinadas a harmonizar disposições nacionais respeitantes à circulação de mercadorias, e que portanto têm por objectivo principal o estabelecimento dessa liberdade, não são aplicáveis a Gibraltar, a não ser violando o regime que lhe é expressamente reservado, ou seja, precisamente o regime de exclusão de Gibraltar da livre circulação de mercadorias.

75.
    Pode tentar-se, de resto, imaginar o que aconteceria se se optasse pela solução contrária, tomando como exemplo a primeira das directivas cuja não aplicação a Gibraltar é denunciada pela Comissão, isto é, a Directiva 67/548 em matéria de rotulagem e classificação das substâncias perigosas. Como se sabe, essa directiva prevê que as substâncias perigosas apenas podem ser introduzidas no comércio se os rótulos das embalagens e a classificação da substância forem conformes aos requisitos harmonizados, devendo especificar-se, designadamente, o nome da substância, a sua proveniência, os símbolos e as indicações relativas à sua perigosidade e aos riscos daí decorrentes, em cumprimento das previsões detalhadas da directiva. Se se entendesse que essa regulamentação devia estender-se a Gibraltar, daí resultaria a impossibilidade de importar, para comercialização naquele território, mercadorias provenientes de um país terceiro e não correspondentes aos requisitos exigidos pela directiva, a não ser procedendo previamente à reembalagem das mesmas a seguir à sua classificação correcta em conformidade com as prescrições técnicas harmonizadas. Isso contraria, obviamente, o estatuto concedido a Gibraltar e, designadamente, o regime especial previsto pelo acto de adesão para lhe assegurar a autonomia em matéria de política comercial de que gozava antes da adesão do Reino Unido à Comunidade.

76.
    Outro exemplo pode ser retirado das directivas relativas à determinação da emissão sonora de máquinas e materiais de estaleiro, que estão em causa, entre outras, no presente processo (refiro-me à Directiva-quadro 79/113 e às directivas de execução como a Directiva 84/533, ou a Directiva 84/534, ou ainda as Directivas 84/535, 84/536, 84/537, etc.). Se, com efeito, essas directivas fossem aplicáveis também a Gibraltar, seria impedida na prática a importação nesse território, para as necessidades da construção civil local, dos motocompressores, dos grupos electrogéneos ou martelos-demolidores e de outros aparelhos análogos, ruidosos mas baratos, provenientes, por exemplo, de Marrocos. Estes não poderiam ser introduzidos no mercado no território de Gibraltar, a não ser após a sua insonorização e a emissão de um certificado comunitário por parte de um organismo autorizado. Também nesse caso, portanto, haveria uma violação do regime especial previsto para Gibraltar.

77.
    Parece-me poder afirmar que a exclusão deste território da livre circulação de mercadorias implica necessariamente que aí não sejam aplicáveis sequer as directivas baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE destinadas a harmonizar disposições nacionais sobre a circulação de mercadorias.

78.
    Esta conclusão parece-me inevitável quando se trata de directivas destinadas a título principal ao estabelecimento da liberdade de circulação de mercadorias. Aliás, pode perguntar-se - mesmo não parecendo ser esse o caso no presente processo - se a mesma conclusão se impõe para as directivas baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE que têm por objectivo em primeiro lugar e principalmente o estabelecimento das outras liberdades de circulação (todas, como disse, aplicáveis a Gibraltar), mas visam também, embora apenas incidentalmente, favorecer a livre circulação de mercadorias.

79.
    Não é fácil dar uma resposta segura à questão. Parece-me, todavia, que em semelhante hipótese a medida de harmonização em questão deve considerar-se aplicável também ao território de Gibraltar, e não apenas tendo em consideração o carácter indirecto e acessório dos efeitos que a directiva relevante produz sobre a circulação de mercadorias, mas sobretudo com base no princípio da interpretação estrita das derrogações à aplicação uniforme do direito comunitário. Esse princípio dificilmente poderá actuar na hipótese acima referida, porque nesses casos não se pode falar de uma autêntica derrogação, uma vez que a exclusão de Gibraltar é a consequência directa do regime fixado pelo acto de adesão. No caso vertente, pelo contrário, essa consequência não só não é imposta pelo acto de adesão, mas é por ele excluída.

c) Aplicabilidade das directivas que prosseguem também outras finalidades

80.
    Mas não é esta, repito, a questão que se coloca no presente processo. Aqui a questão diz respeito às directivas que, mesmo tendo por objecto exclusivo a circulação de mercadorias, prosseguem simultaneamente, embora de modo acessório, também outras finalidades (no caso vertente, as de protecção ambiental).

81.
    Como já recordei, a Comissão sustenta que essas directivas devem considerar-se aplicáveis a Gibraltar, em parte pelas razões gerais já analisadas acima, mas sobretudo porque de outro modo se verificaria uma distinção não razoável quanto à aplicação territorial de directivas com objectivos de protecção ambiental, consoante sejam baseadas nos artigos 94.° CE e 95.° CE ou directamente nas bases jurídicas estabelecidas expressamente para esse sector (artigos 174.° e seguintes, CE). A Comissão objecta que essa distinção conduziria a uma aplicação parcial a Gibraltar das medidas de protecção ambiental, em prejuízo, seguramente, da coerência da política comunitária na matéria.

82.
    Por minha parte, mesmo compreendendo as preocupações da Comissão, considero apesar de tudo mais convincente a solução contrária apresentada pelo Reino Unido. Parece-me, com efeito, que as consequências «não razoáveis» que a Comissão assinala com razão são sobretudo fruto de práticas legislativas comunitárias, mais ou menos obrigatórias durante um certo tempo e portanto mais ou menos justificadas, mas que não podem no entanto ter influência para efeitos do presente processo.

83.
    Como sabemos, a Comunidade não dispunha, no passado, de nenhuma competência legislativa específica para adoptar normas em matéria de ambiente, tendo necessariamente de se apoiar em bases jurídicas alternativas, entre as quais, em especial, o artigo 100.° do Tratado (actual artigo 94.° CE). A partir de 1987 e da entrada em vigor do Acto Único Europeu, a situação alterou-se e foi reconhecida à Comunidade competência específica para adoptar medidas em matéria de ambiente. O mesmo, como se sabe, aconteceu noutros sectores (protecção dos consumidores, saúde, etc.), determinando uma prática consistente mas incerta quanto à relação entre a finalidade do acto e a respectiva base jurídica.

84.
    É sabido aliás que, igualmente, ou mesmo sobretudo, para fazer frente aos abusos e equívocos que a referida prática poderia ter determinado, o Tribunal de Justiça elaborou uma jurisprudência clara a esse respeito. Em especial, e para o que aqui interessa, o Tribunal de Justiça confirmou constantemente que «a escolha da base jurídica de um acto deve assentar em elementos objectivos susceptíveis de fiscalização jurisdicional. Entre os referidos elementos figuram, designadamente, a finalidade e o conteúdo do acto» (42). Se, portanto, «o exame de um acto comunitário demonstrar que ele prossegue uma dupla finalidade ou que tem dois componentes e se um destes for identificável como principal ou preponderante, enquanto o outro é apenas acessório, o acto deve ter por fundamento uma única base jurídica, ou seja, a exigida pela finalidade ou componente principal ou preponderante» (43).

85.
    No caso vertente, isso implica, evidentemente, que uma directiva que tem por objectivo principal a eliminação dos obstáculos ao estabelecimento do mercado interno, isto é, uma directiva que tem «efectivamente por objecto a melhoria das condições do estabelecimento e do funcionamento do mercado interno» (44), só pode ser baseada nos artigos 94.° CE e 95.° CE e exclusivamente neles, e que não importam, sob este ângulo, as outras finalidades eventualmente prosseguidas a título acessório pelo acto.

86.
    No caso vertente, as directivas em causa são todas baseadas, elas próprias ou o acto do qual constituem uma medida de execução (v. supra, n.° 25), nos artigos 94.° CE e 95.° CE, e visam principalmente, se não exclusivamente, favorecer a livre circulação de mercadorias. Por essa razão, como já tentei demonstrar acima, devem ter o mesmo âmbito de aplicação territorial dessa liberdade; o facto de, acessoriamente, terem objectivos conexos com a protecção do ambiente não altera a sua qualificação e, para o que aqui interessa, não pode conduzir à ampliação do seu âmbito de aplicação territorial para além dos limites impostos pelos tratados e pelo acto de adesão de 1972.

87.
    Com isto não se quer negar, evidentemente, que a não aplicação de tais directivas a Gibraltar possa pôr em risco a coerência das políticas comunitárias nos sectores que são objecto das referidas directivas. Mas, para evitar o efeito receado pela Comissão e garantir a coerência da política comunitária, não se pode pôr em causa o regime reservado a Gibraltar; tanto mais que a Comunidade também tem sempre a possibilidade de exercer, quando os pressupostos estejam reunidos, as competências que lhe são atribuídas nos sectores específicos (para o ambiente, como sabemos, pelos artigos 174.° e seguintes, CE), prevendo, se for caso disso, medidas oportunas aplicáveis (também) a Gibraltar.

d) Considerações finais

88.
    Pelas razões que tive oportunidade de expor até aqui, parece-me, portanto, que se deve reconhecer que não são aplicáveis a Gibraltar as normas do Tratado que estabelecem um regime de livre circulação de mercadorias, nem as medidas de harmonização baseadas no artigo 94.° CE ou no artigo 95.° CE, quando se destinam a título principal ao estabelecimento da liberdade de circulação de mercadorias; isto independentemente das outras finalidades que essas medidas prossigam a título acessório.

89.
    No caso vertente, como sustenta, em substância, o Reino Unido sem ser contrariado pela Comissão nem pelo Governo espanhol, todas as directivas cuja transposição está em causa têm por objecto exclusivamente a harmonização de disposições nacionais relativas às mercadorias e não se destinam, portanto, ao estabelecimento de qualquer outra liberdade do mercado interno.

90.
    Por conseguinte, pelas razões indicadas até agora, entendo que a acção da Comissão deve ser julgada improcedente na sua totalidade.

V - Quanto às despesas

91.
    Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se tal tiver sido pedido. Tendo o Reino Unido pedido a condenação da Comissão nas despesas e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas.

92.
    O artigo 69.°, n.° 4, do Regulamento de Processo dispõe que os Estados-Membros que intervieram suportam as suas despesas. O Reino de Espanha, por conseguinte, suportará as suas despesas.

VI - Conclusão

93.
    À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça declare que:

«1)    A acção da Comissão é julgada improcedente.

2)    A Comissão é condenada nas despesas.

3)    O Reino de Espanha suportará as suas despesas.»


1: -     Língua original: italiano.


2: -     JO L 196, p. 1; EE 13 F1 p. 50.


3: -     JO 1987, L 15, p. 29.


4: -     JO L 74, p. 81.


5: -     JO 1979, L 33, p. 15.


6: -     JO L 300, p. 9; EE 15 F5 p. 66.


7: -     Ibidem, p. 130.


8: -     Ibidem, p. 142.


9: -     Ibidem, p. 149.


10: -     Ibidem, p. 156.


11: -     Ibidem, p. 171.


12: -     JO L 344, p. 24.


13: -     JO L 384, p. 1.


14: -     JO L 365, p. 10.


15: -     JO L 169, p. 72.


16: -     JO L 302, p. 1.


17: -     JO L 238, p. 1. Foi posteriormente revogado pelo Regulamento (CEE) n.° 2151/84 do Conselho, de 23 de Julho de 1984, relativo ao território aduaneiro da Comunidade (JO L 197, p. 1), por sua vez revogado pelo Regulamento n.° 2913/92 do Conselho, já referido. V. também infra, n.° 18.


18: -     Além do caso de Gibraltar, recordo aqui, por exemplo, os territórios italianos e alemães que pertencem ao território aduaneiro suíço.


19: -     Designadamente, o território do Principado do Mónaco, que faz parte do território aduaneiro francês e, no passado, o território da República de São Marinho, enquanto parte do território aduaneiro italiano, até à entrada em vigor, em 1 de Dezembro de 1992, do acordo provisório de comércio e de união aduaneira entre a Comunidade Económica Europeia e a República de São Marinho, de 27 de Novembro de 1992 (JO L 359, p. 14).


20: -     JO 1972, L 73, p. 1.


21: -     Isto é, os produtos agrícolas.


22: -     JO 1970, L 124, p. 6. Foi posteriormente revogado pelo Regulamento (CEE) n.° 1439/74 do Conselho, de 4 de Junho de 1974, relativo ao regime comum aplicável às importações (JO 1974, L 159, p. 1).


23: -     JO L 35, p. 1. Foi posteriormente revogado pelo Regulamento (CE) n.° 518/94 do Conselho, de 7 de Março de 1994, relativo ao regime comum aplicável às importações por sua vez revogado pelo Regulamento (CE) n.° 3285/94 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativo ao regime comum aplicável às importações e que revoga o Regulamento (CE) n.° 518/94 (JO L 349, p. 53).


24: -     JO L 346, p. 1.


25: -     Algumas das directivas em questão são na realidade directivas secundárias, adoptadas pela Comissão em virtude de um poder executivo que lhe é atribuído por uma directiva principal, baseada, por sua vez, no artigo 94.° CE ou no artigo 95.° CE.


26: -     Recordo, designadamente, que os controlos fronteiriços efectuados pelas autoridades espanholas estiveram na origem de perguntas parlamentares e de reclamações individuais à Comissão; tal como a questão do uso comum do aeroporto do istmo, acordado entre as partes e nunca aplicado em razão das dificuldades posteriormente surgidas, que provocou a exclusão de Gibraltar do regime de liberalização do espaço aéreo europeu. V. Regulamento (CEE) n.° 2343/90 do Conselho, de 24 de Julho de 1990, relativo ao acesso das transportadoras aéreas às rotas dos serviços aéreos regulares intracomunitários e à partilha da capacidade de transporte de passageiros entre Estados-Membros (JO L 217, p. 8, em especial, artigo 1.°, n.° 3).


27: -     Instada, com efeito, a «indicar com precisão qual é a situação relativa à aplicação das directivas comunitárias por parte do Reino Unido no território de Gibraltar» (pergunta escrita n.° 3558/96 da deputada L. De Esteban Martin, de 12 de Dezembro de 1996), numa primeira resposta de 15 de Janeiro de 1997, o presidente Santer respondeu que: «A Comissão está a proceder à recolha das informações necessárias para responder à pergunta colocada. A Comissão não deixará de comunicar os resultados das suas pesquisas no mais curto prazo» (v. JO 1997, C 83, p. 133).


28: -     Resposta complementar do presidente Santer de 1 de Julho de 1997 (JO 1998, C 45, p. 3), para completar a primeira resposta, referida na nota anterior. Nessa resposta complementar, a Comissão dava conta da falta de transposição de algumas directivas relativas precisamente aos sectores dos serviços financeiros, bem como do reconhecimento das formações e das qualificações nos sectores das profissões liberais e ligadas à saúde, lembrando que tinham sido iniciados processos de infracção.


29: -     Resposta complementar: «Quanto às directivas baseadas no artigo 100.°-A do Tratado CE e igualmente no domínio do ambiente, a Comissão considera que são aplicáveis em Gibraltar, estando esta questão a ser actualmente debatida com as autoridades britânicas.»


30: -     A Comissão, na verdade, cita directamente uma única decisão, relativa ao artigo 30.° CE, ou seja, o acórdão de 17 de Junho de 1981, Comissão/Irlanda (113/80, Recueil, p. 1625).


31: -     V., em especial, acórdãos de 24 de Fevereiro de 1984, Rewe (37/83, Recueil, p. 1229), e de 17 de Maio de 1994, França/Comissão (C-41/93, Colect., p. I-1829).


32: -     JO 1985, L 302, p. 27 (a seguir «acto de adesão de 1985»).


33: -     JO L 302, p. 400 (a seguir «protocolo n.° 2 relativo às ilhas Canárias, Ceuta e Melilha»).


34: -     V., em especial, acórdão de 5 de Outubro de 2000, Alemanha/Parlamento e Conselho (C-376/98, Colect., p. I-8419, n.os 84 a 88).


35: -     V. a resposta do comissário De Clercq às perguntas escritas n.os 1823/84, 1824/84 e 1825/84 (JO 1985, C 341, p. 1). Nessa ocasião, instada a esclarecer, designadamente, «se é verdade que, em consequência da proposta de adesão de Espanha à Comunidade [...] não será limitado o direito às vendas por grosso através da imposição de uma licença aos importadores espanhóis, justificada pelo facto de as necessidades de Gibraltar serem adequadamente satisfeitas pelos fornecedores locais», a Comissão respondeu que: «As disposições do acto de adesão de 1972 e, designadamente, a exclusão de Gibraltar do território aduaneiro da Comunidade implicam, por um lado, que as disposições do Tratado CEE respeitantes à livre circulação de mercadorias no interior da Comunidade não são aplicáveis a Gibraltar e, por outro, que este território é tratado como ‘país terceiro’ no que se refere aos actos da política comercial comum directamente conexos com a importação e exportação de mercadorias» (sublinhado meu), precisando além disso que «o regime que Gibraltar aplicará à importação de mercadorias provenientes de Espanha e doutros Estados-Membros é abrangido [...] pela política comercial da sua competência [...]. A Comissão recorda além disso que, à excepção das derrogações resultantes do acto de adesão de 1972, são aplicáveis a Gibraltar as disposições do Tratado CEE e o direito derivado relativo ao artigo 227.°, n.° 4, do mesmo Tratado. Portanto, estas disposições, respeitantes designadamente à livre prestação de serviços e ao direito de estabelecimento, são aplicáveis na Comunidade ampliada desde a adesão.»

    Posteriormente, em 1989, a resposta dada pelo Sr. Bangemann em nome da Comissão a uma pergunta que tinha por objecto «Controlos vexatórios na fronteira entre Gibraltar e Espanha» (14 de Março de 1989, JO 1989, C 262, p. 10), confirmava esta posição, assegurando que «Gibraltar faz parte do território ao qual se aplicam os Tratados que instituem a Comunidade, mas ao mesmo tempo é excluído do seu território aduaneiro. As normas do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias não são, portanto, aplicáveis às trocas comerciais entre Gibraltar e Espanha e as mercadorias provenientes desse território estão sujeitas ao regime comum à importação na Comunidade. As facilidades previstas pela legislação comunitária em matéria de trocas intracomunitárias de mercadorias não se aplicam, portanto, à passagem da fronteira entre Gibraltar e Espanha» (sublinhado meu).


36: -     Sublinhado meu.


37: -     Nos termos do qual, recordo, «1. Os produtos originários das ilhas Canárias ou de Ceuta e Melilha bem como os produtos provenientes de países terceiros importados nas ilhas Canárias ou em Ceuta e Melilha no âmbito dos regimes que lhes são aplicáveis não são considerados, aquando da sua colocação em livre prática no território aduaneiro da Comunidade, mercadorias que preencham as condições dos artigos 9.° e 10.° do Tratado CEE, nem mercadorias em livre prática nos termos do Tratado CECA.

    2. O território aduaneiro da Comunidade não compreende as ilhas Canárias nem Ceuta e Melilha.

    3. Salvo disposição em contrário do presente protocolo, os actos das instituições das Comunidades em matéria de legislação aduaneira para as trocas comerciais exteriores aplicam-se nas trocas comerciais entre o território aduaneiro da Comunidade, por um lado, e as ilhas Canárias e Ceuta e Melilha, por outro.

    4. Salvo disposição em contrário do presente protocolo, os actos das instituições das Comunidades relativos à política comercial comum, autónomos ou convencionais, directamente ligados à importação ou à exportação de mercadorias, não são aplicáveis às ilhas Canárias e a Ceuta e Melilha.

    5. Salvo disposição contrária do acto de adesão, incluindo o presente protocolo, a Comunidade aplica nas suas trocas comerciais com as ilhas Canárias e com Ceuta e Melilha relativamente aos produtos que são objecto do Anexo II do Tratado CEE o regime geral que aplica nas suas trocas exteriores.»


38: -     «Sob reserva dos artigos 3.° e 4.° do presente protocolo, os produtos originários das ilhas Canárias e de Ceuta e Melilha, aquando da sua colocação em livre prática no território aduaneiro da Comunidade, beneficiam da isenção de direitos aduaneiros nos termos previstos nos n.os 2 e 3.»


39: -     «Os produtos originários do território aduaneiro da Comunidade, aquando da respectiva importação nas ilhas Canárias ou em Ceuta e Melilha, beneficiam da isenção de direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente, nos termos definidos nos n.os 2 e 3.»


40: -     Protocolo n.° 3 respeitante às ilhas Anglo-Normandas e à ilha de Man (JO 1972, L 73, p. 164).

    Artigo 1.°, n.° 1: «A regulamentação comunitária em matéria aduaneira e em matéria de restrições quantitativas, designadamente a do acto de adesão, aplica-se às ilhas Anglo-Normandas e à ilha de Man nas mesmas condições que ao Reino Unido.»

    Artigo 2.°: «Os direitos de que beneficiam as pessoas das ilhas Anglo-Normandas e da ilha de Man no Reino Unido não são prejudicados pelo acto de adesão. Estas pessoas não beneficiam, porém, das disposições comunitárias relativas à livre circulação de pessoas e de serviços.»


41: -     Acto relativo às condições de adesão do Reino da Noruega, da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia e às adaptações dos Tratados em que se fundamenta a União Europeia, protocolo n.° 2 relativo às ilhas Åland (JO 1994, C 241, p. 352).

    «Artigo 1.°:

    As disposições do Tratado CE não prejudicarão a aplicação das actuais disposições em vigor em 1 de Janeiro de 1994 nas ilhas Åland relativamente:

    -    às restrições, numa base não discriminatória, ao direito das pessoas singulares sem hembygdsraett/kotiseutuoikeus (cidadania regional) das ilhas Åland e das pessoas colectivas de adquirirem e possuírem propriedade predial nas ilhas Åland sem licença das autoridades competentes dessas ilhas;

    -    às restrições, numa base não discriminatória, ao direito de estabelecimento e ao direito de prestação de serviços das pessoas singulares sem hembygdsraett/kotiseutuoikeus (cidadania regional) das ilhas Åland, ou das pessoas colectivas, sem licença das autoridades competentes dessas ilhas.»


42: -     V. acórdãos de 3 de Dezembro de 1996, Portugal/Conselho (C-268/94, Colect., p. I-6177, n.° 22); de 4 de Abril de 2000, Comissão/Conselho (C-269/97, Colect., p. I-2257, n.° 43); de 30 de Janeiro de 2001, Espanha/Conselho (C-36/98, Colect., p. I-779, n. 58), e parecer de 6 de Dezembro de 2001, relativo ao protocolo de Cartagena (2/00, Colect., p. I-9713, n.° 22).


43: -     V. acórdãos de 17 de Março de 1993, Comissão/Conselho (C-155/91, Colect., p. I-939, n.os 19 e 21); de 23 de Fevereiro de 1999, Parlamento/Conselho (C-42/97, Colect., p. I-869, n.os 39 e 40); C-36/98, já referido, n.° 59, e parecer 2/00, já referido, n.° 23.


44: -     Acórdão de 5 de Outubro de 2000, Alemanha/Parlamento e Conselho (C-376/98, Colect., p. I-8419, n.° 84).