Language of document : ECLI:EU:C:2023:350

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

27 de abril de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Comércio eletrónico — Diretiva 2000/31/CE — Artigo 1.o — Âmbito de aplicação — Artigo 2.o, alínea c) — Conceito de “prestador de serviços estabelecido” — Artigo 3.o, n.o 1 — Prestação de serviços da sociedade da informação por um prestador estabelecido no território de um Estado‑Membro — Sociedade estabelecida no território da Confederação Suíça — Inaplicabilidade ratione personae — Artigo 56.o TFUE — Acordo entre a Comunidade Europeia e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, sobre a livre circulação de pessoas — Âmbito de aplicação — Proibição de restrições às prestações de serviços transfronteiriças cuja duração não exceda 90 dias por ano civil — Prestação de serviços em Itália com duração superior a 90 dias — Inaplicabilidade ratione personae — Artigo 102.o TFUE — Inexistência de qualquer elemento na decisão de reenvio que permita estabelecer uma relação entre o litígio no processo principal e um eventual abuso de posição dominante — Inadmissibilidade»

No processo C‑70/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 27 de janeiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 1 de fevereiro de 2022, no processo

Viagogo AG

contra

Autorità per le Garanzie nelle Comunicazioni (AGCOM),

Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (AGCM),

sendo interveniente:

Ticketone SpA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: M. L. Arastey Sahún, presidente de secção, N. Wahl (relator) e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Viagogo AG, por E. Apa, E. Foco, M.V. La Rosa, E. Marasà, M. Montinari e I. Picciano, avvocati,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por R. Guizzi e F. Varrone, avvocati dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Angeli, S. Kalėda, U. Małecka e L. Malferrari, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação, por um lado, dos artigos 3.o, 14.o e 15.o da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio eletrónico») (JO 2000, L 178, p. 1), em conjugação com o artigo 56.o TFUE, e, por outro, dos artigos 102.o e 106.o TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Viagogo AG, uma sociedade estabelecida em Genebra (Suíça), à Autorità per le Garanzie nelle Comunicazioni (AGCOM) (Autoridade Reguladora das Comunicações, Itália) e à Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (AGCM) (Autoridade de Defesa da Concorrência e do Mercado, Itália), a respeito de uma coima de 3 700 000 euros aplicada à Viagogo pela AGCOM.

 Quadro jurídico

 Acordo CESuíça

3        A Comunidade Europeia e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, assinaram em 21 de junho de 1999 no Luxemburgo (Luxemburgo) sete acordos, entre os quais o Acordo sobre a Livre Circulação de Pessoas (JO 2002, L 114, p. 6; a seguir «Acordo CE‑Suíça»). Através da Decisão do Conselho e da Comissão no que se refere ao Acordo relativo à Cooperação Científica e Tecnológica, de 4 de abril de 2002, relativa à celebração de sete acordos com a Confederação Suíça (2002/309/CE, Euratom) (JO 2002, L 114, p. 1; retificação no JO 2015, L 210, p. 38), estes acordos foram aprovados em nome da Comunidade. Entraram em vigor em 1 de junho de 2002.

4        O artigo 1.o do Acordo CE‑Suíça, sob a epígrafe «Objetivo», prevê:

«O presente Acordo, tem por objetivo, a favor dos nacionais dos Estados‑Membros da Comunidade Europeia e da Suíça:

[…]

b)      Facilitar a prestação de serviços no território das Partes Contratantes e, nomeadamente, liberalizar a prestação de serviços de curta duração; […]»

5        O artigo 5.o do Acordo CE‑Suíça, sob a epígrafe «Prestador de serviços», tem a seguinte redação:

«1.      Sem prejuízo de outros acordos específicos relativos à prestação de serviços entre as Partes Contratantes […] um prestador de serviços, incluindo as sociedades de acordo com as disposições do anexo I, goza do direito de prestar um serviço no território da outra Parte Contratante, cuja duração não exceda 90 dias de trabalho efetivo por ano civil.

[…]»

6        Nos termos do artigo 15.o do Acordo CE‑Suíça, sob a epígrafe «Anexos e Protocolos», os anexos e protocolos deste acordo fazem dele parte integrante.

7        O artigo 17.o do anexo I do Acordo CE‑Suíça, sob a epígrafe «Prestação de serviços», enuncia:

«Segundo o artigo 5.o do presente Acordo, é proibida, no âmbito da prestação de serviços:

a)      Qualquer restrição a uma prestação de serviços transfronteiras no território de uma Parte Contratante que não exceda um período de 90 dias de trabalho efetivo por ano civil.

[…]»

8        Segundo o artigo 18.o deste anexo, o disposto no artigo 17.o do referido anexo é aplicável às sociedades constituídas nos termos da legislação de um Estado‑Membro da Comunidade ou da Confederação Suíça que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal no território de uma das Partes Contratantes.

9        O artigo 21.o do mesmo anexo estabelece:

«1.      A duração total de uma prestação de serviços abrangida pela alínea a) do artigo 17.o do presente anexo, quer se trate de uma prestação ininterrupta ou de prestações sucessivas, não pode exceder 90 dias de trabalho efetivo por ano civil.

[…]»

 Direito da União

10      Nos termos do considerando 19 da Diretiva 2000/31:

«A determinação do local de estabelecimento do prestador deve fazer‑se de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual do conceito de estabelecimento é indissociável a prossecução efetiva de uma atividade económica, através de um estabelecimento fixo por um período indefinido. […] O local de estabelecimento, quando se trate de uma sociedade prestadora de serviços através de um sítio internet, não é o local onde se encontra a tecnologia de apoio a esse sítio ou o local em que este é acessível, mas sim o local em que essa sociedade desenvolve a sua atividade económica. […]»

11      O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objetivo e âmbito de aplicação», tem a seguinte redação:

«1.      A presente diretiva tem por objetivo contribuir para o correto funcionamento do mercado interno, garantindo a livre circulação dos serviços da sociedade da informação entre Estados‑Membros.

[…]

4.      A presente diretiva não estabelece normas adicionais de direito internacional privado, nem abrange a jurisdição dos tribunais.»

12      O artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

a)      “Serviços da sociedade da informação”: os serviços da sociedade da informação na aceção do n.o 2 do artigo 1.o da Diretiva 98/34/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO 1998, L 204, p. 37)], alterada pela Diretiva 98/48/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de julho de 1998 (JO 1998, L 217, p. 18)];

b)      “Prestador de serviços”: qualquer pessoa, singular ou coletiva, que preste um serviço do âmbito da sociedade da informação;

c)      “Prestador de serviços estabelecido”: o prestador que efetivamente exerça uma atividade económica através de uma instalação fixa, por um período indefinido. A presença e a utilização de meios técnicos e de tecnologias necessários para prestar o serviço não constituem, em si mesmos, o estabelecimento do prestador;

[…]»

13      O artigo 3.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Mercado interno», enuncia:

«1.      Cada Estado‑Membro assegurará que os serviços da sociedade da informação prestados por um prestador estabelecido no seu território cumpram as disposições nacionais aplicáveis nesse Estado‑Membro que se integrem no domínio coordenado.

2.      Os Estados‑Membros não podem, por razões que relevem do domínio coordenado, restringir a livre circulação dos serviços da sociedade da informação provenientes de outro Estado‑Membro.

[…]»

 Direito italiano

14      A Legge n. 232 — Bilancio di previsione dello Stato per l’anno finanziario 2017 e bilancio pluriennale per il triennio 2017—2019 (Lei n.o 232 relativa ao Orçamento Provisório do Estado para o Ano Financeiro de 2017 e Orçamento Plurianual para o Triénio 2017‑2019), de 11 de dezembro de 2016 (GURI n.o 297, de 21 de dezembro de 2016, suplemento ordinário à GURI n.o 57), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei de 2016»), inclui um artigo 1.o cujo n.o 545 prevê o seguinte:

«Para combater a elisão e a evasão fiscais, bem como assegurar a proteção dos consumidores e garantir a ordem pública, a venda ou qualquer outra forma de disponibilização de bilhetes para espetáculos efetuada, ainda que com base em contrato específico ou convenção, por pessoas que não sejam titulares dos sistemas de emissão desses bilhetes é punida, salvo se o ato constituir crime, com a proibição desse comportamento e com uma coima de 5 000 euros a 180 000 euros, bem como, quando o referido comportamento ocorra através das redes de comunicações eletrónicas, segundo as regras estabelecidas no n.o 546, com a remoção dos conteúdos, ou, nos casos mais graves, com o bloqueio do sítio Internet através do qual a infração foi praticada, sem prejuízo das ações de indemnização. A [AGCOM] e as outras autoridades competentes efetuam as investigações e intervenções necessárias, agindo oficiosamente ou na sequência da comunicação dos interessados. Em qualquer dos casos, não será punida a venda ou qualquer outra forma de disponibilização de bilhetes para espetáculos efetuada por uma pessoa singular de maneira ocasional, desde que não tenha fins comerciais.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      A Viagogo, com sede social e domicílio fiscal em Genebra, explora sítios Internet baseados na intermediação entre consumidores para a revenda de bilhetes para espetáculos e eventos desportivos. Uma vez comprados os bilhetes a emissores oficiais, como os organizadores do espetáculo ou do evento em causa ou os distribuidores autorizados («mercado primário»), algumas pessoas podem pretender revendê‑los. A Viagogo foi criada para conectar a oferta e a procura no mercado da venda de bilhetes em segunda mão («mercado secundário»).

16      Tendo em conta a rapidez com que os bilhetes disponíveis no mercado primário deixam de estar disponíveis, nomeadamente devido ao recurso a programas automatizados de compra por alguns utilizadores, o número de pessoas à procura de bilhetes, em especial no que se refere a espetáculos ou eventos de grande renome, tem vindo a aumentar e os sítios Internet dedicados ao mercado secundário em causa são, assim, um verdadeiro sucesso.

17      Neste contexto, a Viagogo pré‑seleciona, nos sítios Internet que explora através de uma plataforma de armazenagem em servidor nos Estados Unidos, um certo número de espetáculos ou de eventos. Os titulares dos bilhetes, ao escolherem o espetáculo ou o evento correspondente a esses bilhetes, podem propô‑los para venda nesses sítios Internet. A Viagogo estabelece o contacto entre os vendedores e os potenciais compradores, oferecendo serviços auxiliares como assistência telefónica e por correio eletrónico, a sugestão de preços com base num programa informático e um sistema automatizado de promoção de bilhetes para determinados espetáculos ou eventos.

18      Tendo o fenómeno descrito no n.o 16 do presente acórdão atingido proporções consideradas inquietantes em Itália, nomeadamente devido à facilidade de utilizar a exploração desses sítios Internet para branquear dinheiro proveniente de atividades ilegais, e uma vez que o preço de venda dos bilhetes no mercado secundário já não tem nenhuma relação com aquele em que esses bilhetes foram colocados no mercado primário, o legislador italiano implementou uma política destinada a combater esse fenómeno, nomeadamente através da adoção do artigo 1.o, n.o 545, da Lei de 2016.

19      Após várias denúncias apresentadas por sociedades que operam no setor da organização de eventos musicais, por sociedades de venda de bilhetes para eventos musicais no mercado primário e por associações profissionais, a AGCOM procedeu a uma inspeção do sítio Internet www.viagogo.it, gerido pela Viagogo.

20      Na sequência dessa inspeção, a AGCOM, através da Decisão n.o 104/20/CONS, de 16 de março de 2020, aplicou à Viagogo uma coima de 3 700 000 euros. Foi imputada à Viagogo a prática de 37 infrações, através desse sítio Internet e da remissão para este último contida numa rede social, que consistem na colocação à venda, entre março e maio de 2019, de bilhetes para concertos e espetáculos, sem que a Viagogo fosse titular dos sistemas de emissão desses bilhetes, a preços superiores aos preços nominais indicados nos locais de venda autorizados.

21      A Viagogo interpôs recurso de anulação dessa decisão no Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália), que negou provimento ao recurso. Interpôs recurso da sentença de primeira instância no processo principal para o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), o órgão jurisdicional de reenvio.

22      Neste contexto, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A Diretiva [2000/31], em especial os artigos 3.o, 14.o e 15.o, conjugados com o artigo 56.o TFUE, opõem‑se à aplicação da legislação de um Estado‑Membro relativa à venda de bilhetes para eventos no mercado secundário que tem por efeito impedir um operador de uma plataforma de armazenagem em servidor (hosting) que opera na [União Europeia], como a recorrente no presente processo, de prestar a utilizadores terceiros serviços de anúncios de venda de bilhetes para eventos no mercado secundário, reservando essa atividade apenas aos vendedores, organizadores de eventos ou outras pessoas autorizadas por autoridades públicas para a emissão de bilhetes no mercado primário através de sistemas certificados?

2)      Além disso, as disposições conjugadas dos artigos 102.o TFUE e 106.o TFUE opõem‑se à aplicação de uma legislação de um Estado‑Membro relativa à venda de bilhetes para eventos que reserva todos os serviços inerentes ao mercado secundário de bilhetes (em especial a intermediação) apenas aos vendedores, organizadores de eventos ou outras pessoas autorizadas para a emissão de bilhetes no mercado primário através de sistemas certificados, proibindo essa atividade aos prestadores de serviços da sociedade da informação que pretendem operar como prestadores de armazenagem em servidor (hosting provider) na aceção dos artigos 14.o e 15.o da Diretiva [2000/31], designadamente quando, como no caso em apreço, essa reserva tem como efeito permitir a um operador dominante no mercado primário de distribuição de bilhetes alargar o seu domínio aos serviços de intermediação no mercado secundário?

3)      Em conformidade com a legislação europeia, em especial a Diretiva [2000/31], pode o conceito de [“]prestador de serviços de armazenagem em servidor (hosting provider) passivo[”] ser utilizado apenas na falta de quaisquer atividades de colocação de filtros, seleção, indexação, organização, catalogação, agregação, avaliação, utilização, alteração, extração ou promoção dos conteúdos publicados pelos utilizadores, entendidas como uma lista exemplificativa e que não têm de estar todos presentes porque devem ser considerados, por si só, indicativos de uma gestão empresarial do serviço e/ou da adoção de uma técnica de avaliação comportamental dos utilizadores, para aumentar a sua fidelização, ou cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a relevância das referidas circunstâncias para que, mesmo que se verifique uma ou mais dessas atividades, seja possível considerar predominante a neutralidade do serviço que conduz à qualificação de prestador de serviços de armazenagem em servidor (hosting provider) passivo?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

23      Em primeiro lugar, importa recordar que, para ser admissível, um pedido de decisão prejudicial deve ser necessário para a resolução do litígio que o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a decidir (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 30 e jurisprudência referida), o que pressupõe que as disposições de direito da União sobre as quais incide esse pedido sejam aplicáveis a esse litígio.

24      A este respeito, primeiro, importa salientar que as três questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito à interpretação da Diretiva 2000/31. Ora, esta última não é aplicável ratione personae ao litígio no processo principal.

25      Com efeito, a Diretiva 2000/31 tem por objetivo, em conformidade com o seu artigo 1.o, contribuir para o correto funcionamento do mercado interno, garantindo a livre circulação dos serviços da sociedade da informação «entre Estados‑Membros». Isto pressupõe, portanto, para que esta diretiva seja aplicável ratione personae, que as prestações de serviços em causa sejam efetuadas por prestadores de serviços estabelecidos no território de um Estado‑Membro, como recorda o artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva.

26      A este respeito, o artigo 2.o, alínea c), da mesma diretiva define o «prestador de serviços estabelecido» como o prestador que efetivamente exerça uma atividade económica através de uma instalação fixa, por um período indefinido, precisando esta disposição que a presença e a utilização de meios técnicos e de tecnologias necessários para prestar o serviço em causa não constituem, em si mesmos, o estabelecimento do prestador.

27      A este propósito, resulta da jurisprudência que, dado que a possibilidade de aplicar o artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2000/31 está subordinada à identificação do Estado‑Membro em cujo território o prestador do serviço da sociedade de informação em causa está efetivamente estabelecido, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se esse prestador está efetivamente estabelecido no território de um Estado‑Membro. Na falta de tal estabelecimento, o mecanismo previsto no artigo 3.o, n.o 2, desta diretiva não é aplicável (Acórdão de 15 de março de 2012, G, C‑292/10, EU:C:2012:142, n.o 71 e jurisprudência referida).

28      Do mesmo modo, a proibição, por razões inerentes ao domínio coordenado, das restrições à livre prestação de serviços objeto da Diretiva 2000/31, visa unicamente, nos termos expressos do artigo 3.o, n.o 2, desta diretiva, os serviços «provenientes de outro Estado‑Membro».

29      É certo que, em aplicação do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3), o Comité Misto do Espaço Económico Europeu (EEE), através da Decisão n.o 91/2000, de 27 de outubro de 2000, que altera o anexo XI (serviços de telecomunicações) do Acordo EEE (JO 2001, L 7, p. 13), alargou o âmbito de aplicação da Diretiva 2000/31 ao EEE, pelo que esta diretiva visa igualmente os Estados partes no referido acordo. Todavia, a Confederação Suíça não figura entre estes últimos. Por outro lado, não foi adotada nenhuma decisão pelo Comité Misto UE‑Suíça, instituído em aplicação do Acordo CE‑Suíça, com vista à extensão da aplicação da referida diretiva a este Estado terceiro.

30      Ora, é facto assente que a Viagogo está estabelecida em Genebra, tem aí a sua sede e centraliza aí a sua atividade económica, não obstante o facto de desenvolver os seus sítios Internet em versões acessíveis em diferentes Estados‑Membros da União, nomeadamente, em Itália. As prestações de serviços em causa são, portanto, fornecidas a partir de um Estado terceiro por uma sociedade regida pelo direito desse Estado terceiro.

31      Daqui resulta que, contrariamente ao que pressupõe o órgão jurisdicional de reenvio, a Diretiva 2000/31 não pode ser invocada pela recorrente no processo principal. Uma vez que todas as questões submetidas por esse órgão jurisdicional se referem a esta diretiva, o pedido de decisão prejudicial é, na totalidade, inadmissível.

32      Segundo, além disso, importa precisar, no que respeita à primeira questão, que o artigo 56.o TFUE também não pode ser invocado pela Viagogo.

33      Com efeito, este artigo, salvo no caso de um tratado ou acordo internacional que o preveja, não é aplicável a uma sociedade estabelecida num Estado terceiro à União, ainda que essa sociedade preste serviços que possam ser obtidos por nacionais de determinados Estados‑Membros ou pelas sociedades estabelecidas no território destes últimos (v., neste sentido, Acórdão de 21 de maio de 2015, Wagner‑Raith, C‑560/13, EU:C:2015:347, n.o 36 e jurisprudência referida).

34      No caso em apreço, o âmbito de aplicação do Acordo CE‑Suíça não permite à Viagogo invocar a aplicação do artigo 56.o TFUE, uma vez que a particularidade deste acordo consiste em prever, no que respeita à equiparação dos prestadores de serviços estabelecidos na Suíça a prestadores estabelecidos no território de um Estado‑Membro, um limite temporal de 90 dias por ano civil.

35      Assim, o artigo 1.o do Acordo CE‑Suíça prevê, em especial, «liberalizar a prestação de serviços de curta duração», o artigo 5.o, n.o 1 deste acordo concede, por sua vez, aos prestadores de serviços suíços o «direito de prestar um serviço no território da outra Parte Contratante, cuja duração não exceda 90 dias de trabalho efetivo por ano civil». O anexo I do referido acordo, que, nos termos do artigo 15.o do mesmo acordo, faz dele parte integrante, inclui um artigo 17.o que proíbe «[q]ualquer restrição a uma prestação de serviços transfronteiras no território de uma Parte Contratante que não exceda um período de 90 dias de trabalho efetivo por ano civil». Por outro lado, o artigo 18.o deste anexo estipula que o disposto no artigo 17.o do referido anexo é aplicável às sociedades constituídas nos termos da legislação de um Estado‑Membro da Comunidade ou da Confederação Suíça que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal no território de uma das Partes Contratantes. Por último, o artigo 21.o do mesmo anexo precisa que estes 90 dias correspondem à duração total de uma prestação, quer se trate de uma prestação ininterrupta ou de prestações sucessivas.

36      Ora, no caso em apreço, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que a Viagogo presta serviços de duração superior à prevista no Acordo CE‑Suíça.

37      Antes de mais, por natureza, um prestador de serviços que exerce a sua atividade exclusivamente através de sítios Internet confere‑lhe um caráter quase ininterrupto, ou mesmo permanente. Em especial, no que diz respeito a uma oferta relativa ao anúncio de venda de bilhetes para um determinado espetáculo ou evento, os potenciais compradores poderão manifestar‑se a qualquer momento através do sítio Internet em causa. A este respeito, não resulta dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio que o sítio Internet explorado pela recorrente no processo principal tenha, desde a sua criação, cessado em qualquer momento a sua atividade, o que é confirmado pelo Governo italiano, que indica que «o serviço de intermediação no mercado secundário é prestado [pela Viagogo] de forma contínua durante todo o ano civil».

38      Em seguida, resulta dos elementos apresentados em primeira instância no processo principal que a Viagogo já tinha sido punida em 2016 pela AGCOM e que a sua atividade não parecia limitada no tempo.

39      Por último, por um lado, a Decisão da AGCOM de 16 de março de 2020, que se refere especificamente aos meses de março a maio de 2019, ou seja, 92 dias, visa um período que excede a duração máxima de 90 dias prevista pelo Acordo CE‑Suíça. Por outro, resulta da sentença de primeira instância no processo principal que a última venda objeto de inspeção pela AGCOM teve lugar em 7 de setembro de 2019, ou seja, em todo o caso, muito além dos 90 dias previstos no Acordo CE‑Suíça.

40      Por conseguinte, a Viagogo não está abrangida pelo âmbito de aplicação ratione personae do artigo 56.o TFUE e não pode, por conseguinte, invocar a violação deste artigo no âmbito do litígio no processo principal, pelo que a primeira questão, na medida em que tem por objeto a interpretação do referido artigo, é igualmente inadmissível por este fundamento.

41      Em segundo lugar, as questões segunda e terceira levam o Tribunal de Justiça a recordar, a título exaustivo, a sua jurisprudência segundo a qual uma questão prejudicial submetida por um tribunal nacional é inadmissível se este não fornecer ao Tribunal de Justiça os elementos de facto e de direito necessários para que este lhe possa responder utilmente (Acórdão de 2 de julho de 2015, Gullotta e Farmacia di Gullotta Davide & C., C‑497/12, EU:C:2015:436, n.o 26).

42      Assim, em nenhum momento, no pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio expõe, no que respeita à segunda questão, as razões que o conduziram a interrogar‑se sobre a interpretação dos artigos 102.o e 106.o TFUE, nem o nexo que estabelece entre esses artigos e, em especial, a Lei de 2016, contrariamente aos requisitos fixados no artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

43      Em especial, no que respeita aos artigos 102.o TFUE e seguintes, e mais especificamente à existência de um eventual abuso de posição dominante, o órgão jurisdicional de reenvio não faz nenhuma referência aos elementos constitutivos de uma posição dominante, na aceção deste artigo 102.o, no contexto do processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 12 de dezembro de 2013, Ragn‑Sells, C‑292/12, EU:C:2013:820, n.o 41). Nada é dito sobre o que corresponde a esse abuso de posição dominante nem em que medida a Lei de 2016 é suscetível de dar origem ao mesmo (v., neste sentido, Acórdão de 2 de julho de 2015, Gullotta e Farmacia di Gullotta Davide & C., C‑497/12, EU:C:2015:436, n.o 25).

44      Quanto à terceira questão, cujo caráter hipotético é evidente, há que recordar que a justificação do reenvio prejudicial não é a formulação de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas a necessidade inerente à resolução efetiva de um litígio (v., nomeadamente, Acórdãos de 16 de dezembro de 1981, Foglia, C‑244/80, EU:C:1981:302, n.o 18, e de 20 de janeiro de 2005, García Blanco, C‑225/02, EU:C:2005:34, n.o 28 e jurisprudência referida).

45      Por conseguinte, tendo em conta todas as considerações precedentes, o pedido de decisão prejudicial é inadmissível.

 Quanto às despesas

46      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 27 de janeiro de 2022, é inadmissível.

Assinaturas


*      Língua do processo: italiano.