Language of document : ECLI:EU:C:2023:795

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

19 de outubro de 2023 (*) (i)

«Reenvio prejudicial — Transportes — Regulamento (CE) n.o 1370/2007 — Serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros — Âmbito de aplicação — Artigo 1.o, n.o 2 — Instalação por cabos — Adjudicação por ajuste direto de um contrato de serviço público de transportes por uma autoridade local competente a um operador interno — Transferência do risco de exploração — Compensação das obrigações de serviço público»

No processo C‑186/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 7 de março de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de março de 2022, no processo

Sad Trasporto Locale SpA

contra

Provincia autonoma di Bolzano,

sendo intervenientes:

Strutture Trasporto Alto Adige SpA A. G.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan (relator), presidente de secção, Z. Csehi, M. Ilešič, I. Jarukaitis e D. Gratsias, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: C. Di Bella, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 30 de março de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Sad Trasporto Locale SpA, por G. Greco e A. Sandulli, avvocati,

–        em representação da Provincia autonoma di Bolzano, por L. Fadanelli, P. Mantini, P. Pignatta, L. Plancker e A. Roilo, avvocati,

–        em representação da Strutture Trasporto Alto Adige SpA A.G., por P. Mantini, avvocato,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Gattinara, P. Messina e F. Tomat, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 1370/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, relativo aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 1191/69 e (CEE) n.o 1107/70 do Conselho (JO 2007, L 315, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (UE) 2016/2338 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de dezembro de 2016 (JO 2016, L 354, p. 22) (a seguir «Regulamento n.o 1370/2007»), bem como do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Sad Trasporto Locale SpA à Provincia autonoma di Bolzano (Província Autónoma de Bolzano, Itália) a respeito da adjudicação direta, mediante concessão, a um operador interno do serviço de transporte público de passageiros em determinadas instalações por sistema guiado (via-férrea) e teleférico da Strutture Trasporto Alto Adige SpA A. G. (a seguir «STA»).

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Regulamento n.o 1370/2007

3        Os considerandos 33 e 36 do Regulamento n.o 1370/2007 têm a seguinte redação:

«(33)      Nos [n.os] 87 a 95 do [Acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C‑280/00, EU:C:2003:415),] […], o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias decidiu que as compensações pelo serviço público não constituem vantagens na aceção do artigo [107.o TFUE], desde que sejam preenchidos quatro critérios cumulativos. Caso esses critérios não sejam preenchidos e estejam reunidos os critérios gerais de aplicabilidade do n.o 1 do [107.o TFUE], as compensações pelo serviço público constituem auxílios estatais e são subordinadas aos artigos [93.o, 106.o, 107.o e 108.o TFUE].

[…]

(36)      […] Qualquer compensação concedida pela prestação de serviços públicos de transporte de passageiros, para além dos que são abrangidos pelo presente regulamento, que possa envolver auxílios estatais na aceção do n.o 1 do artigo [107.o TFUE], deverá obedecer às disposições dos artigos [106.o, 107.o e 108.o TFUE], incluindo qualquer interpretação pertinente do [Tribunal de Justiça da União Europeia] e, em especial, o seu [Acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C‑280/00, EU:C:2003:415)]. Ao analisar tais casos, a Comissão [Europeia] deverá, por conseguinte, aplicar princípios similares aos consignados no presente regulamento ou, se for caso disso, outra legislação no domínio dos serviços de interesse económico geral.»

4        O artigo 1.o, n.os 1 e 2, deste regulamento, sob a epígrafe «Objetivo e âmbito de aplicação», dispõe:

«1.      O presente regulamento tem por objetivo definir o modo como, no respeito das regras do direito comunitário, as autoridades competentes podem intervir no domínio do transporte público de passageiros para assegurar a prestação de serviços de interesse geral que sejam, designadamente, mais numerosos, mais seguros, de melhor qualidade e mais baratos do que aqueles que seria possível prestar apenas com base nas leis do mercado.

Para este fim, o presente regulamento define as condições em que as autoridades competentes, ao imporem obrigações de serviço público ou ao celebrarem contratos relativos a obrigações de serviço público, compensam os operadores de serviços públicos pelos custos incorridos e/ou concedem direitos exclusivos em contrapartida da execução das obrigações de serviço público.

2.      O presente regulamento é aplicável à exploração nacional e internacional de serviços públicos de transporte de passageiros por caminho de ferro propriamente dito e outros sistemas guiados e por estrada, com exceção dos serviços explorados essencialmente por razões históricas ou de interesse turístico. Os Estados‑Membros podem aplicar o presente regulamento ao transporte público de passageiros por via navegável interior e, sem prejuízo do Regulamento (CEE) n.o 3577/92 do Conselho, de 7 de dezembro de 1992, relativo à aplicação do princípio da livre prestação de serviços aos transportes marítimos internos nos Estados‑Membros (cabotagem marítima) [JO, 1992, L 364, p. 7], por via marítima nacional.

[…]»

5        O artigo 2.o, alíneas a), e), h), i), j) e a‑A), do referido regulamento, sob a epígrafe «Definições», enuncia:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

a)      “Transporte público de passageiros”, os serviços de transporte de passageiros de interesse económico geral prestados ao público numa base não discriminatória e regular;

[…]

e)      “Obrigação de serviço público”, a imposição definida ou determinada por uma autoridade competente com vista a assegurar serviços públicos de transporte de passageiros de interesse geral que um operador, caso considerasse o seu próprio interesse comercial, não assumiria, ou não assumiria na mesma medida ou nas mesmas condições sem contrapartidas;

[…]

h)      “Adjudicação por ajuste direto”, a adjudicação de um contrato de serviço público a um determinado operador de serviços públicos sem qualquer processo prévio de concurso;

i)      “Contrato de serviço público”, um ou vários atos juridicamente vinculativos que estabeleçam o acordo entre uma autoridade competente e um operador de serviço público para confiar a este último a gestão e a exploração dos serviços públicos de transporte de passageiros sujeitos às obrigações de serviço público. Nos termos da legislação dos Estados‑Membros, o contrato pode consistir igualmente numa decisão aprovada pela autoridade competente:

—      sob a forma de um ato individual de tipo legislativo ou regulamentar, ou

—      que inclua as condições em que a autoridade competente presta ela própria os serviços ou confia a sua prestação a um operador interno;

j)      “Operador interno”, uma entidade juridicamente distinta, sobre a qual a autoridade competente a nível local ou, em caso de agrupamento de autoridades, pelo menos uma autoridade competente a nível local, exerce um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços;

[…]

a‑A) “Serviços públicos de transporte ferroviário de passageiros”, o transporte público ferroviário de passageiros, excluindo o transporte de passageiros por outros sistemas guiados, como os metropolitanos ou os metropolitanos ligeiros de superfície.»

6        O artigo 5.o, n.o 2, do mesmo regulamento, sob epígrafe «Adjudicação de contratos de serviço público», dispõe:

«Salvo se o direito nacional o proibir, as autoridades competentes a nível local, quer se trate de uma autoridade singular ou de um agrupamento de autoridades prestadoras de serviços públicos integrados de transporte de passageiros, podem decidir prestar elas próprias serviços públicos de transporte de passageiros ou adjudicar contratos de serviço público por ajuste direto a uma entidade juridicamente distinta sobre a qual a autoridade competente a nível local ou, caso se trate de um agrupamento de autoridades, pelo menos uma autoridade competente a nível local, exerçam um controlo análogo ao que exercem sobre os seus próprios serviços.

[…]»

 Regulamento (UE) 2016/424

7        O artigo 3.o, pontos 1, 7 e 9, do Regulamento (UE) 2016/424 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativo às instalações por cabo e que revoga a Diretiva 2000/9/CE (JO 2016, L 81, p. 1), sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1)      “Instalação por cabo”, um sistema completo, implantado no local, constituído por uma infraestrutura e por subsistemas, concebido, construído, montado e posto em serviço com o objetivo de transportar pessoas, e em que a tração é assegurada por cabos dispostos ao longo do percurso;

[…]

7)      “Teleférico”, uma instalação por cabo em que as cabinas estão suspensas de um ou mais cabos e são por eles propulsionadas;

[…]

9)      “Funicular”, uma instalação por cabo em que as cabinas são puxadas por um ou mais cabos ao longo de uma via que pode estar situada no solo ou ser suportada por estruturas fixas.»

 Direito italiano

8        O artigo 192.o, n.o 2, do decreto legislativo n.o 50 — Codice dei contratti pubblici (Decreto‑Lei n.o 50, de 18 de abril de 2016 — Códigos dos Contratos Públicos) (suplemento ordinário n.o 10 da GURI n.o 91, de 19 de abril de 2016), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, enuncia:

«Para efeitos de adjudicação in house de um contrato que tenha por objeto serviços disponíveis no mercado em regime de concorrência, as entidades adjudicantes devem efetuar previamente uma apreciação da adequação económica da proposta das entidades in house, tendo em conta o objeto e o valor da prestação, expondo, na fundamentação do processo de adjudicação, as razões para não recorrer ao mercado, bem como os benefícios que resultam para a comunidade da forma de gestão escolhida, por referência, igualmente, aos objetivos de universalidade e de natureza social, de eficiência, de economia e de qualidade do serviço, bem como de otimização da utilização dos recursos públicos.»

9        O artigo 34, n.o 20, do decreto‑legge n.o 179/2012 — Ulteriori misure urgenti per la crescita del Paese (Decreto‑Lei n.o 179, de 18 de outubro de 2012, relativo a outras medidas urgentes para o crescimento do país) (suplemento ordinário n.o 194 da GURI n.o 245, de 19 de outubro de 2012), convertido em lei, conforme alterado, pela legge n.o 221 (Lei n.o 221), de 17 de dezembro de 2012 (suplemento ordinário n.o 208 da GURI n.o 294, de 18 de dezembro de 2012), dispõe:

«No que se refere aos serviços públicos locais de interesse económico, a fim de assegurar o respeito pelo direito da União Europeia, a igualdade entre os operadores e a economia de gestão, bem como, com vista a garantir a informação adequada às entidades em causa, o contrato de serviço é adjudicado com base num relatório elaborado para o efeito e publicado no sítio Internet da entidade que procede à adjudicação em causa; esse relatório indica os fundamentos dessa adjudicação e em que medida as condições previstas pelo direito da União para a forma de adjudicação escolhida estão preenchidas, e define o conteúdo preciso das obrigações de serviço público e de serviço universal, indicando as compensações económicas sempre que adequado.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10      Por força das Decisões de 30 de dezembro de 1991 e de 15 de junho de 2001, cujos efeitos foram prorrogados por mais de uma vez e, por último, até 19 de março de 2021, a recorrida no processo principal, a Província Autónoma de Bolzano, comissionou à recorrente no processo principal, a Sad Trasporto Locale SpA, a gestão dos serviços de transporte público locais na referida Província, incluindo as instalações fixas de funicular, de teleférico e de elétrico.

11      Ao abrigo da Deliberação n.o 243, de 16 de março de 2021, a recorrida no processo principal adjudicou internamente, nos termos do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1370/2007, os referidos serviços de transporte público, para o período compreendido entre 19 de maio de 2021 e 30 de abril de 2030, à STA, uma sociedade de que é a única acionista e que é, portanto, juridicamente distinta, embora exerça a sua atividade a título principal com a mesma e opere exclusivamente no território da Província Autónoma de Bolzano.

12      O transporte por funicular e elétrico representa a parte maioritária dos serviços de transporte cuja gestão foi assim atribuída, constituindo o transporte por teleférico 47 % do serviço global diretamente atribuído à STA.

13      Nessa Deliberação n.o 243, a recorrida no processo principal aprovou um contrato de serviço público que prevê o pagamento à STA de uma taxa contratual a cargo da recorrida no processo principal, bem como, o plano económico e financeiro relativo à sua relação com a STA, do qual resulta que as receitas tarifárias são atribuídas à recorrida no processo principal, ao passo que as eventuais receitas provenientes de outras atividades comerciais, acessórias à prestação do serviço em causa, são atribuídas à STA.

14      Na Deliberação n.o 244, adotada no mesmo dia que a referida Deliberação n.o 243, a recorrida no processo principal impôs à recorrente no processo principal a prossecução de prestação de serviços de transporte até à sua assunção pela STA.

15      A recorrente no processo principal interpôs recurso no Tribunale Regionale di Giustizia Amministrativa del Trentino Alto Adige, Sezione autonoma di Bolzano (Tribunal Regional de Justiça Administrativa do Trentino Alto‑Ádige, Secção Autónoma de Bolzano, Itália), pedindo a anulação das Deliberações n.os 243 e 244 e dos atos conexos, incluindo o relatório relativo à adjudicação in house, o contrato de serviço em causa e ainda o respetivo plano económico e financeiro.

16      A este respeito, a recorrente no processo principal alegou que essas deliberações eram ilegais, na medida em que o artigo 5.o, n.os 2 a 6, do Regulamento n.o 1370/2007 não se aplicava aos contratos de serviço público em causa no processo principal, uma vez que esta disposição apenas diz respeito aos contratos de concessão relativos ao transporte público de passageiros por caminho de ferro ou por outros sistemas guiados e por estrada. Ora, o litígio no processo principal tem por objeto um contrato de serviço que, por um lado, não reveste a forma de concessão e, por outro, tem por objeto um serviço de transporte por teleférico. Por conseguinte, este litígio deve ser decidido em conformidade com o Código dos Contratos Públicos, particularmente o artigo 192.o, n.o 2, que subordina uma adjudicação in house à existência de condições específicas, nomeadamente, uma fundamentação reforçada relativa à impossibilidade de abrir um concurso e demonstrar os benefícios dessa adjudicação para a comunidade, as quais não se encontram preenchidas no caso em apreço.

17      No decurso do processo, a recorrente no processo principal suscitou, com referência ao considerando 33 do Regulamento n.o 1370/2007, a questão da compatibilidade da compensação atribuída no âmbito do contrato de serviço público em causa no processo principal com as disposições do Tratado FUE relativas aos auxílios de Estado, alegando, nomeadamente, que o nível da compensação atribuída à STA não tinha sido determinado com base numa análise de custos que uma empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios de transporte necessários teria incorrido para cumprir as obrigações de prestação de serviços que lhe incumbiam.

18      Tendo o Tribunale Regionale di Giustizia Amministrativa del Trentino Alto Adige, Sezione autonoma di Bolzano (Tribunal Regional de Justiça Administrativa do Trentino Alto‑Ádige, Secção Autónoma de Bolzano) negado provimento ao recurso interposto pela recorrente no processo principal, esta interpôs recurso no Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália). Este órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à interpretação das disposições do Regulamento n.o 1370/2007 e do Tratado FUE relativas aos auxílios de Estado.

19      Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por um lado, sobre a questão de saber se o transporte por teleférico se encontra abrangido pelo âmbito de aplicação deste regulamento, conforme definido no seu artigo 1.o, n.o 2, e, por outro, de saber se a compensação prevista no contrato de serviço público de transporte de passageiros em causa no processo principal constitui um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, sujeito à obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE, se a metodologia que permitiu calcular essa compensação estava em conformidade com o quarto requisito estabelecido pela jurisprudência resultante do Acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C‑280/00, EU:C:2003:415).

20      Nestas condições, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 1.o, n.o 2, do [Regulamento n.o 1370/2007] ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação deste regulamento à exploração nacional e internacional de serviços públicos de transporte multimodal de passageiros em que, por um lado, o serviço público de transporte tem natureza unitária para efeitos de adjudicação e é prestado através de elétrico, funicular e teleférico, por outro, o transporte por “sistema guiado” (via-férrea) corresponde a mais de 50 % do serviço total e unitário adjudicado ao gestor?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, […] [d]eve o artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1370/2007 ser interpretado no sentido de que impõe, também em relação à adjudicação por ajuste direto a um operador interno de um contrato de serviço público que inclui o transporte de passageiros por elétrico, uma verificação da forma jurídica do ato de adjudicação, com o efeito de excluir do âmbito de aplicação do referido artigo 5.o, n.o 2, os atos que não tenham a forma de contratos de concessão de serviços?

3)      Em caso de resposta afirmativa à segunda questão, [d]eve o artigo 5.o, n.o 1, alínea b) e n.o 2, da Diretiva 2014/23/UE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão (JO 2014, L 94, p.1),] ser interpretado no sentido de que deve ser excluída a transferência para o adjudicatário do risco de exploração ligado à gestão dos serviços quando o contrato objeto de adjudicação: a) se baseie no custo bruto, com a imputação da titularidade das receitas à entidade adjudicante; b) preveja a favor do gestor, como receitas de gestão, apenas uma contrapartida paga pela entidade [adjudicante], ligado ao volume de [serviço] prestado (com exclusão, portanto, do risco de procura); c) deixe à entidade adjudicante o risco de exploração de procura (pela redução das contrapartidas em razão de uma redução do volume de serviço para além dos limites [predefinidos]), o risco normativo (por alterações legislativas ou regulamentares, bem como pelo atraso na emissão de autorizações e/ou certificações pelas entidades competentes), o risco financeiro (pela falta ou atraso no pagamento das contrapartidas, bem como pelo não ajustamento das contrapartidas), bem como o risco por motivos de força maior (resultante de uma alteração imprevisível das condições de prestação do serviço); bem como d) transfira para a entidade adjudicatária o risco de exploração da oferta (por variação dos custos de fatores não controláveis pelo operador — energia, matérias‑primas, materiais), o risco das relações laborais (decorrente da variação do custo do pessoal nos termos da contratação coletiva), o risco de gestão (decorrente de uma dinâmica negativa dos custos de exploração por estimativas incorretas), bem como o risco socioambiental (decorrente de eventos acidentais no decurso da execução de bens funcionais para a prestação do serviço)?

4)      Por fim, [d]evem [o artigo] 107.o, n.o 1, TFUE e [o artigo] 108.o, n.o 3, TFUE ser interpretados no sentido de que, no âmbito de uma adjudicação por ajuste direto de um contrato de serviço público de transporte de passageiros decidida por uma autoridade competente a nível local a favor de um operador interno, configura um auxílio de Estado sujeito ao procedimento de notificação prévia previsto no artigo 108.o, n.o 3, TFUE uma compensação [das] obrigações de serviço público calculada com base em custos de gestão que, por estarem associados às exigências previsíveis do serviço, são, por um lado, determinados tendo em conta os custos históricos do serviço prestado pelo gestor cessante, adjudicatário de uma concessão de serviços prorrogada por mais dez anos, por outro, relativos a custos ou contrapartidas ainda respeitantes à adjudicação anterior ou, em qualquer caso, respeitantes a parâmetros normais de mercado aplicáveis à generalidade dos operadores do setor?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

21      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1370/2007 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação deste regulamento a um contrato de serviços públicos misto de transporte multimodal de passageiros, incluindo o transporte por elétrico, por funicular e por teleférico, inclusivamente num contexto no qual o transporte por sistema guiado represente a parte maioritária dos serviços de transporte cuja gestão foi adjudicada.

22      A este respeito, importa recordar, por um lado, que, segundo jurisprudência constante, uma interpretação de uma disposição do direito da União não pode ter por resultado retirar qualquer efeito útil à letra clara e precisa dessa disposição. Assim, quando o sentido de uma disposição do direito da União resulta inequivocamente da sua própria redação, o Tribunal de Justiça não se pode afastar dessa interpretação (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2022, VD e SR, C‑339/20 e C‑397/20, EU:C:2022:703, n.o 71 e jurisprudência referida).

23      Por outro lado, o artigo 9.o do Regulamento n.o 1370/2007 isenta as compensações pagas em conformidade com este regulamento da obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE. Desde que, na medida em que atenuam a regra geral da obrigação de notificação, as disposições do referido regulamento e as condições previstas devam ser interpretadas em termos estritos (v., neste sentido, Acórdão de 21 de julho de 2016, Dilly’s Wellnesshotel, C‑493/14, EU:C:2016:577, n.o 37, e de 5 de março de 2019, Eesti Pagar, C‑349/17, EU:C:2019:172, n.o 60).

24      A redação do artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1370/2007, que define o seu âmbito de aplicação, dispõe que este regulamento é aplicável à exploração nacional e internacional de serviços públicos de transporte de passageiros por caminho de ferro propriamente dito e outros sistemas guiados e por estrada, com exceção dos serviços explorados essencialmente por razões históricas ou de interesse turístico. Aí se especifica também que os Estados‑Membros podem aplicar este regulamento ao transporte público de passageiros por via navegável interior.

25      Ora, primeiro, importa observar que o Regulamento n.o 1370/2007 não define os termos «transporte de passageiros por caminho de ferro propriamente dito e outros sistemas guiados». Todavia, tendo em conta o seu sentido habitual na linguagem corrente, a opção de o legislador utilizar estes termos implica que pretendeu visar modos de transporte caracterizados pela deslocação de veículos numa via formada por uma única via‑férrea ou por vários carris paralelos.

26      Por conseguinte, estes termos não se aplicam a um modo de transporte como o teleférico. Com efeito, o teleférico é definido no artigo 3.o, ponto 7, do Regulamento 2016/424 como uma instalação por cabo em que as cabinas estão suspensas de um ou mais cabos e são por eles propulsionadas.

27      Segundo, por este mesmo motivo, este modo de transporte também não se enquadra no transporte por estrada ou por via navegável interior, igualmente referido no artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1370/2007.

28      Terceiro, o Regulamento n.o 1370/2007 não contém nenhuma disposição que vise aplicá‑lo a contratos mistos que incluam meios de transporte diferentes dos previstos no seu artigo 1.o, n.o 2, incluindo num contexto em que o transporte por sistema guiado represente mais de 50 % desse contrato.

29      Quarto, refira‑se que o artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1370/2007 prevê a possibilidade de os Estados‑Membros poderem aplicar o referido regulamento ao transporte público de passageiros por via navegável interior. Assim, uma vez que a possibilidade de extensão do âmbito de aplicação do referido regulamento está expressamente prevista no artigo 1.o, n.o 2, do referido regulamento sem que esta disposição mencione o transporte por teleférico, há que considerar que este meio de transporte não pode ser objeto dessa possibilidade de extensão.

30      Ora, pelas razões expostas no n.o 23 do presente acórdão, o artigo 1.o, n.o 2, desse regulamento, que determina o seu âmbito de aplicação, deve ser objeto de interpretação estrita.

31      Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1370/2007 deve ser interpretado no sentido de que este regulamento não se aplica a um contrato de serviços públicos misto de transporte multimodal de passageiros, incluindo o transporte por elétrico, por funicular e por teleférico, inclusivamente num contexto no qual o transporte por sistema guiado represente a parte maioritária dos serviços de transporte cuja gestão foi adjudicada.

 Quanto à segunda e terceira questões

32      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder às segunda e terceira questões.

 Quanto à quarta questão

33      Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 107.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que constitui um «auxílio de Estado», na aceção desta disposição, a compensação das obrigações de serviço público paga a um operador interno no âmbito de uma adjudicação por ajuste direto de um contrato de serviço público de transporte de passageiros por uma autoridade local competente que tenha sido calculada com base nos custos de exploração, que, por um lado, são calculados tendo em conta os custos anteriores do serviço prestado pelo operador cessante e, por outro, são reportados a custos ou a contrapartidas também relativos à adjudicação anterior ou, em qualquer caso, relativos a parâmetros normais de mercado, válidos para todos os operadores do setor em causa.

34      Esta questão coloca‑se, como resulta das explicações do órgão jurisdicional de reenvio, num contexto no qual o sistema de compensação a pagar ao novo operador tinha sido determinado, nomeadamente, com base em parâmetros de referência setoriais uniformes e numa comparação com os custos resultantes de um plano económico e financeiro relativo a um concurso simulado, por sua vez baseado nas contas de resultados do operador cessante relativas a certos anos anteriores.

35      A título preliminar, importa recordar que, como resulta do considerando 36 do Regulamento n.o 1370/2007, quando é concedida uma compensação pela prestação de um serviço público de transporte de passageiros não abrangido por esse regulamento, há que examinar se essa compensação constitui um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, caso em que a referida compensação está sujeita à obrigação de notificação prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE.

36      A este respeito, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que são considerados auxílios de Estado as intervenções que, independentemente da forma que assumam, sejam suscetíveis de favorecer direta ou indiretamente empresas ou que se deva considerar conferirem uma vantagem económica que a empresa beneficiária não teria obtido em condições normais de mercado, ou seja, na ausência da intervenção do Estado (v., neste sentido, Acórdão de 27 de janeiro de 2022, Sātiņi‑S, C‑238/20, EU:C:2022:57, n.o 41 e jurisprudência referida).

37      No entanto, segundo o Acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C‑280/00, EU:C:2003:415), uma compensação pela prestação de serviço público escapa à qualificação de auxílio de Estado quando estejam cumulativamente preenchidos quatro requisitos. Primeiro, a empresa beneficiária de uma compensação que represente a contrapartida de prestações efetuadas para cumprir obrigações de serviço público deve ser efetivamente incumbida do cumprimento das obrigações de serviço público e essas obrigações têm de estar claramente definidas. Segundo, os parâmetros, com base nos quais é calculada a compensação, têm de ser previamente estabelecidos de forma objetiva e transparente. Terceiro, a compensação não pode ultrapassar o necessário para cobrir, total ou parcialmente, os custos decorrentes do cumprimento das obrigações de serviço público, tendo em conta as receitas correspondentes, bem como um lucro razoável pelo cumprimento dessas obrigações. Quarto, consequentemente, quando a escolha da empresa a encarregar do cumprimento das obrigações de serviço público não seja efetuada através de um processo de concurso público, essa compensação deve ser determinada com base numa análise dos custos que uma empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios necessários para poder cumprir as exigências de serviço público impostas teria suportado para cumprir essas obrigações, tendo em conta as respetivas receitas assim como um lucro razoável pela execução destas obrigações (v., neste sentido, Acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg, C‑280/00, EU:C:2003:415, n.os 89, 90, 92 e 93).

38      Mais especificamente, com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o cálculo de uma compensação concedida no âmbito de um contrato de serviço público de transporte de passageiros preenche o quarto requisito recordado no número anterior do presente acórdão quando esse cálculo seja efetuado tendo em conta os custos e as contrapartidas do operador cessante, bem como os parâmetros normais de mercado, que são válidos para todos os operadores do setor em causa. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas de que esses critérios constituam uma base adequada para calcular os custos de uma empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios necessários para poder cumprir as exigências de serviço público impostas.

39      A este respeito, no que se refere, primeiro, aos «parâmetros normais de mercado», refira‑se que uma das abordagens suscetíveis de serem utilizadas para verificar se esse quarto requisito se encontra preenchido pode consistir em calcular a compensação a conceder a uma empresa adjudicatária de um contrato de serviço público em função de uma média dos custos suportados por empresas que prestem um serviço público comparável em todos os aspetos ao do processo principal, num mercado de concorrência livre e há vários anos, das receitas relativas à execução das obrigações de serviço público que as referidas empresas recebem e, sendo caso disso, dos lucros por elas gerados em razão desse serviço. Com efeito, pode presumir‑se que semelhante cálculo permite determinar os custos que uma empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios necessários para poder cumprir as exigências de serviço público impostas teria suportado para esse efeito, tendo em conta as receitas correspondentes e um lucro razoável que a mesma pudesse esperar do exercício dessa atividade.

40      Todavia, para que tal abordagem seja pertinente, importa assegurar, antes de mais, que o número de empresas que operam no mercado assim tidas em conta seja suficientemente significativo, para que, na situação específica de uma dada empresa que não tenha de ser objeto de uma ponderação desproporcionada, se possa considerar que essa média é estatisticamente robusta e, portanto, representativa do padrão previsto pelo quarto requisito enunciado no Acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C‑280/00, EU:C:2003:415).

41      Em seguida, somente as empresas em condições de executar imediatamente as obrigações de serviço público em causa e, portanto, suscetíveis de serem consideradas adequadamente dotadas dos meios necessários para poder cumprir as exigências de serviço público impostas podem ser consideradas para efeitos desse cálculo.

42      Por último, embora o serviço oferecido por essas empresas tenha de ser comparável ao serviço público em causa, no contexto de uma atribuição de um serviço público de transporte multimodal de passageiros, essa exigência não exclui que, num primeiro momento, o custo suportado por uma empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios necessários para cada um dos elementos desse serviço de transporte multimodal seja calculado separadamente e que, num segundo momento, esses custos sejam somados, desde que, sendo caso disso, os eventuais efeitos de sinergia, claramente identificáveis e decorrentes da gestão integrada desses elementos, sejam devidamente tidos em conta.

43      Caberá, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, à luz destes elementos, se os parâmetros normais de mercado aplicados no caso presente correspondem a essa metodologia.

44      No que respeita, segundo, à questão de saber se os custos do serviço prestado pelo operador cessante podem ser tidos em conta, refira‑se que o critério da «empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios necessários» não exclui, por si só, um cálculo baseado nos custos anteriores de serviços prestados pelo operador cessante ou relativos à adjudicação anterior, desde que, no entanto, à luz dos métodos de análise contabilística e financeira habitualmente utilizados para esse efeito, o operador cessante possa ser considerado uma empresa média e bem gerida.

45      Por conseguinte, há que responder à quarta questão que o artigo 107.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que não constitui um «auxílio de Estado», na aceção desta disposição, a compensação das obrigações de serviço público paga a um operador interno no âmbito de uma adjudicação por ajuste direto de um contrato de serviço público de transporte de passageiros por uma autoridade local competente que tenha sido calculada com base nos custos de exploração, que, por um lado, são determinados tendo em conta os custos anteriores do serviço prestado pelo operador cessante e, por outro, são reportados a custos ou a contrapartidas também relativos à adjudicação anterior ou, em qualquer caso, são relativos a parâmetros normais de mercado, válidos para todos os operadores do setor em causa, desde que o recurso a esses elementos conduza à determinação de custos que reflitam aqueles que uma empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios necessários para poder cumprir as exigências de serviço público impostas, teria suportado para cumprir essas obrigações.

 Quanto às despesas

46      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

1)      O artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 1370/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, relativo aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 1191/69 e (CEE) n.o 1107/70 do Conselho, conforme alterado pelo Regulamento (UE) 2016/2338 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de dezembro de 2016,

deve ser interpretado no sentido de que:

este regulamento não se aplica a um contrato de serviços públicos misto de transporte multimodal de passageiros, incluindo o transporte por elétrico, por funicular e por teleférico, inclusivamente num contexto no qual o transporte por sistema guiado represente a parte maioritária dos serviços de transporte cuja gestão foi adjudicada.

2)      O artigo 107.o, n.o 1, TFUE

deve ser interpretado no sentido de que:

não constitui um «auxílio de Estado», na aceção desta disposição, a compensação das obrigações de serviço público paga a um operador interno no âmbito de uma adjudicação por ajuste direto de um contrato de serviço público de transporte de passageiros por uma autoridade local competente que tenha sido calculada com base nos custos de exploração, que, por um lado, são determinados tendo em conta os custos anteriores do serviço prestado pelo operador cessante e, por outro, são reportados a custos ou a contrapartidas também relativos à adjudicação anterior ou, em qualquer caso, são relativos a parâmetros normais de mercado, válidos para todos os operadores do setor em causa, desde que o recurso a esses elementos conduza à determinação de custos que reflitam aqueles que uma empresa média, bem gerida e adequadamente dotada com os meios necessários para poder cumprir as exigências de serviço público impostas, teria suportado para cumprir essas obrigações.

Assinaturas


*      Língua do processo: italiano.


i      Na sequência de uma verificação de texto por parte da Unidade Portuguesa, o ponto 1 do Dispositivo foi objeto de uma alteração de ordem linguística, posteriormente à sua disponibilização em linha.