Language of document : ECLI:EU:C:2017:745

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

10 de outubro de 2017 (*)

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis — Diretiva 90/232/CEE — Artigo 1.o — Responsabilidade em caso de danos corporais causados a todos os passageiros, além do condutor — Seguro obrigatório — Efeito direto — Diretiva 84/5/CEE — Artigo 1.o, n.o 4 — Organismo encarregado de reparar os danos materiais ou corporais causados por um veículo não identificado ou que não está coberto por uma apólice de seguro — Invocabilidade de uma diretiva contra um Estado — Condições em que um organismo de direito privado pode ser considerado uma emanação do Estado e condições em que contra este podem ser invocadas as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto»

No processo C‑413/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda), por decisão de 12 de maio de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de julho de 2015, no processo

Elaine Farrell

contra

Alan Whitty,

Minister for the Environment,

Ireland,

Attorney General,

Motor Insurers Bureau of Ireland (MIBI),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič, L. Bay Larsen, A. Rosas e J. Malenovský, presidentes de secção, E. Juhász, A. Borg Barthet (relator), D. Šváby, M. Berger, A. Prechal, K. Jürimäe, C. Lycourgos e M. Vilaras, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: T. Millett, secretário adjunto,

vistos os autos e após a audiência de 5 de julho de 2016,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Minister for the Environment, da Ireland e do Attorney General, por E. Creedon e S. Purcell, na qualidade de agentes, assistidas por J. Connolly, SC, e C. Toland, BL,

–        em representação do Motor Insurers Bureau of Ireland (MIBI), por J. Walsh, solicitor, B. Murray, barrister, L. Reidy e B. Kennedy, SC,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues, D. Colas e C. David, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por H. Krämer e K.‑Ph. Wojcik, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 22 de junho de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a questão de saber se podem ser invocadas contra um organismo de direito privado ao qual um Estado‑Membro confiou a missão prevista no artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (JO 1984, L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244), conforme alterada pela Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990 (JO 1990, L 129, p. 33) (a seguir «Segunda Diretiva»), as disposições desta diretiva suscetíveis de ter efeito direto.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opôs, na primeira instância, Elaine Farrell a Alan Whitty, ao Minister for the Environment (Ministro do Ambiente, Irlanda), à Ireland (Irlanda), ao Attorney General, por um lado, e ao Motor Insurers Bureau of Ireland (MIBI), por outro, a respeito da indemnização a título dos danos corporais sofridos por E. Farrell num acidente de viação.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 1972, L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113; a seguir «Primeira Diretiva»), prevê:

«Cada Estado‑Membro […] adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.»

4        O artigo 1.o da Segunda Diretiva dispõe:

«1.      O seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva] deve, obrigatoriamente, cobrir os danos materiais e os danos corporais.

[…]

4.      Cada Estado‑Membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por missão reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais e corporais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no n.o 1. Esta disposição não prejudica o direito que assiste aos Estados‑Membros de atribuírem ou não à intervenção desse organismo um caráter subsidiário, nem o direito de regulamentarem os sistemas de recursos entre este organismo e o ou os responsáveis pelo sinistro e outras seguradoras ou organismos de segurança social obrigados a indemnizar a vítima pelo mesmo sinistro. Todavia, os Estados‑Membros não permitirão que o organismo em questão subordine o pagamento da indemnização à condição de a vítima provar, seja por que meio for, que a pessoa responsável não pode ou não quer pagar.

[…]»

5        Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva:

«Cada Estado‑Membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva], que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

–        pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer;

ou

–        pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa;

ou

–        pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa;

seja, por aplicação do n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva], considerada sem efeito no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro.»

6        De acordo com os considerandos segundo a quinto da Terceira Diretiva 90/232 (a seguir «Terceira Diretiva»):

«Considerando que a [Primeira Diretiva] impõe, no seu artigo 3.o, que cada Estado‑Membro tome todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos, cujo estacionamento habitual seja no seu território, se encontre coberta por um contrato de seguro; que os danos cobertos e as modalidades desse seguro devem ser determinados no âmbito dessas medidas;

Considerando que a [Segunda Diretiva] reduziu consideravelmente as disparidades de nível e de conteúdo do seguro obrigatório de responsabilidade civil entre os Estados‑Membros; que ainda subsistem disparidades significativas nos riscos cobertos por esse tipo de seguro;

Considerando que deve ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da [União] onde ocorram os acidentes;

Considerando que, em particular, existem em certos Estados‑Membros lacunas na cobertura pelo seguro obrigatório dos passageiros de veículos automóveis; que, para proteger essa categoria particularmente vulnerável de vítimas potenciais, é conveniente que essas lacunas sejam preenchidas;».

7        Nos termos do artigo 1.o, primeiro parágrafo, da Terceira Diretiva:

«Sem prejuízo do n.o 1, segundo parágrafo, do artigo 2.o da [Segunda Diretiva], o seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva] cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo.»

8        Nos termos do artigo 6.o, n.o 2, da Terceira Diretiva, a Irlanda dispunha de um prazo até 31 de dezembro de 1998 para dar cumprimento ao artigo 1.o desta diretiva, no que respeita aos passageiros transportados na parte traseira dos motociclos, e de um prazo até 31 de dezembro de 1995 para dar cumprimento ao referido artigo 1.o, no que respeita aos outros veículos.

 Direito irlandês

9        A section 56 do Road Traffic Act 1961 (Lei de 1961 relativa à circulação rodoviária), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei de 1961»), exige que todos os utilizadores de um veículo automóvel estejam cobertos por um seguro contra os danos corporais ou materiais causados a terceiros na via pública. Contudo, esta obrigação de seguro não é extensível aos danos causados às pessoas que viajem em partes de veículos que não estejam equipadas para passageiros.

10      Nos termos da section 78 da Lei de 1961, as seguradoras que exercem atividade no ramo do seguro automóvel na Irlanda devem ser membros do MIBI.

11      O MIBI é uma sociedade de responsabilidade limitada por garantia sem capital social, integralmente financiada pelos seus membros, os quais são as seguradoras que operam no mercado do seguro automóvel na Irlanda. O MIBI foi criado em novembro de 1954, no seguimento de um acordo celebrado entre o Department of Local Government (Departamento das Coletividades Locais) e as seguradoras emissoras de apólices de seguro automóvel na Irlanda.

12      Nos termos da cláusula 2.a de um acordo celebrado em 1988 entre o Ministro do Ambiente e o MIBI, qualquer pessoa que pretenda obter uma indemnização por parte de um condutor não coberto por uma apólice de seguro ou que não tenha sido identificado pode intentar uma ação contra o MIBI. Em conformidade com a cláusula 4.a deste acordo, o MIBI compromete‑se a indemnizar as vítimas de acidentes causados por condutores não cobertos por uma apólice de seguro ou que não tenham sido identificados. A obrigação de o MIBI indemnizar as vítimas surge quando um crédito que tenha sido reconhecido judicialmente não seja integralmente pago no prazo de 28 dias, desde que essa decisão judicial abranja «qualquer responsabilidade por danos corporais ou materiais que devam estar cobertos por uma apólice de seguro válida nos termos da section 56 da [Lei de 1961]».

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      E. Farrell foi vítima de um acidente de viação em 26 de janeiro de 1996, quando viajava como passageira numa carrinha de carga propriedade de A. Whitty, que era quem a conduzia e da qual perdeu o controlo. No momento do acidente, E. Farrell estava sentada no chão, na parte traseira do veículo de A. Whitty, sendo que este veículo não foi concebido nem construído para transportar passageiros na parte traseira.

14      Por A. Whitty não ter uma apólice de seguro que cobrisse os danos corporais sofridos por E. Farrell, esta tentou obter uma indemnização junto do MIBI.

15      O MIBI recusou‑se a indemnizar E. Farrell, por a responsabilidade pelos danos corporais que esta sofreu não estar abrangida pelo seguro obrigatório nos termos do direito irlandês.

16      Em setembro de 1997, E. Farrell instaurou um processo nos órgãos jurisdicionais irlandeses contra A. Whitty, o Ministro do Ambiente, a Irlanda, o Attorney General e o MIBI, no qual alegou, nomeadamente, que as medidas nacionais de transposição em vigor no momento do acidente não implementavam corretamente as disposições pertinentes da Primeira e da Terceira Diretiva. A High Court (Tribunal Superior, Irlanda) submeteu então um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça.

17      No âmbito desse reenvio, o Tribunal de Justiça declarou, por um lado, que o artigo 1.o da Terceira Diretiva devia ser interpretado no sentido de que se opunha a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros e, por outro, que este artigo reunia todas as condições exigidas para produzir efeito direto e, portanto, conferia aos particulares direitos que estes podem invocar diretamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Todavia, o Tribunal de Justiça considerou que competia ao juiz nacional verificar se esta disposição podia ser invocada contra um organismo como o MIBI (acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell, C‑356/05, EU:C:2007:229, n.os 36 e 44).

18      Numa decisão de 31 de janeiro de 2008, a High Court (Tribunal Superior) considerou que o MIBI era uma emanação do Estado e que, consequentemente, E. Farrell tinha o direito a ser indemnizado por ele.

19      O MIBI interpôs recurso desta decisão no órgão jurisdicional de reenvio, alegando que não é uma emanação do Estado e que, em consequência, não podem ser invocadas contra si as disposições, inclusivamente as que produzem efeito direto, de uma diretiva que não tinham sido transpostas para o direito nacional.

20      Na sequência de uma transação efetuada entre as partes no processo principal, E. Farrell recebeu uma indemnização pelos danos corporais que sofrera. Todavia, o MIBI, por um lado, e o Ministro do Ambiente, a Irlanda e o Attorney General, por outro, estão em desacordo sobre a questão de saber quem deve suportar o encargo desta indemnização.

21      Considerando que a resposta a esta questão depende da questão de saber se o MIBI deve ou não ser considerado uma emanação do Estado contra o qual podem ser invocadas as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto, a Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o critério seguido no acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313), tal como enunciado no n.o 20, [sobre a questão de] saber o que constitui uma emanação de um Estado‑Membro, ser interpretado no sentido de que os elementos desse critério devem ser aplicados

a)      cumulativamente, ou

b)      autonomamente?

2)      Na medida em que os diferentes aspetos referidos no acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313), podem, em alternativa, ser considerados fatores que devem ser devidamente tidos em conta para se chegar a uma avaliação global, existe um princípio fundamental subjacente aos diferentes elementos identificados nessa decisão que um tribunal deva aplicar na fundamentação de uma avaliação sobre a questão de saber se um determinado organismo é uma emanação do Estado?

3)      É suficiente que um Estado‑Membro, com o objetivo manifesto de dar cumprimento a obrigações que decorrem do direito da União, atribua a um organismo um conjunto significativo de responsabilidades, para que este seja considerado uma emanação do Estado‑Membro ou é necessário, além disso, que esse organismo tenha igualmente a) poderes [exorbitantes] ou b) opere sob o controlo direto ou a supervisão do Estado‑Membro?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

22      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 288.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não exclui que as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto possam ser invocadas contra uma entidade que não reúne todas as características enunciadas no n.o 20 do acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313).

23      Nos n.os 3 a 5 do acórdão Foster e o., o Tribunal de Justiça salientou que o organismo em causa no processo que deu origem ao referido acórdão, a saber, a British Gas Corporation, era «uma pessoa coletiva criada por lei», «encarregada de desenvolver e manter, em regime de monopólio, um sistema de distribuição de gás na Grã‑Bretanha», que «[o]s membros da [sua] direção eram nomeados pelo Secretário de Estado competente[, o qual] tinha igualmente o poder de dirigir à [British Gas] diretivas de caráter geral, para questões de interesse nacional, bem como instruções referentes à sua gestão», e que a British Gas estava habilitada a «apresentar ao Parlamento projetos de lei com autorização do Secretário de Estado».

24      Neste contexto, no n.o 18 desse acórdão, o Tribunal de Justiça recordou que «foi sucessivamente admitindo que as disposições incondicionais e suficientemente precisas de uma diretiva podem ser invocadas pelos sujeitos jurídicos contra organismos ou entidades que estejam sujeitas à autoridade ou ao controlo do Estado ou que disponham de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis às relações entre particulares» (acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o., C‑188/89, EU:C:1990:313, n.o 18)».

25      No n.o 20 do referido acórdão, deduziu que «faz, em todo o caso, parte do número dos organismos contra os quais se podem invocar as disposições de uma diretiva que sejam suscetíveis de produzir efeitos diretos um organismo que, seja qual for a sua natureza jurídica, foi encarregado, por um ato de uma autoridade pública, de prestar, sob controlo desta, um serviço de interesse público e que disponha, para esse efeito, de poderes especiais que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares.»

26      Como a advogada‑geral recordou no n.o 50 das suas conclusões, a opção feita pelo Tribunal de Justiça no n.o 20 do acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313), de recorrer aos termos «faz, em todo o caso, parte do número [destes] organismos» põe em evidência o facto de que o Tribunal de Justiça não pretendeu formular um teste geral destinado a abranger todas as situações em que podem ser invocadas contra um organismo as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeitos diretos, mas que o Tribunal de Justiça considerou que um organismo como o que estava em causa no processo que deu origem àquele acórdão deve, em todo o caso, ser considerado como tal, desde que todas as características enumeradas nesse n.o 20 estejam reunidas.

27      Com efeito, o referido n.o 20 deve ser lido à luz do n.o 18 do mesmo acórdão, no qual o Tribunal de Justiça salientou que tais disposições podem ser invocadas por um particular contra um organismo ou entidade que está sujeito à autoridade ou ao controlo do Estado ou que dispõe de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis às relações entre particulares.

28      Por conseguinte, como salientou, em substância, a advogada‑geral nos n.os 53 e 77 das suas conclusões, os requisitos segundo os quais o organismo em causa deve, respetivamente, estar sujeito à autoridade ou ao controlo do Estado e dispor de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis às relações entre particulares não são cumulativos (v., neste sentido, acórdãos de 4 de dezembro de 1997, Kampelmann e o., C‑253/96 a C‑258/96, EU:C:1997:585, n.os 46 e 47, e de 7 de setembro de 2006, Vassallo, C‑180/04, EU:C:2006:518, n.o 26).

29      Atendendo ao que precede, há que responder à primeira questão que o artigo 288.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não exclui, em si mesmo, que as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto possam ser invocadas contra uma entidade que não reúne todas as características enunciadas no n.o 20 do acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313), lidas em conjugação com as que figuram no n.o 18 do mesmo acórdão.

 Quanto à segunda e à terceira questão

30      Com a segunda e a terceira questão, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se existe um princípio fundamental que deva guiar um órgão jurisdicional na análise da questão de saber se as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto podem ser invocadas contra um organismo e, em especial, se essas disposições podem ser invocadas contra um organismo ao qual um Estado‑Membro confiou a missão prevista no artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva.

31      A este respeito, há que recordar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma diretiva não pode, por si só, criar obrigações na esfera jurídica de um particular e não pode, portanto, ser invocada, enquanto tal, contra este (acórdãos de 26 de fevereiro de 1986, Marshall, 152/84, EU:C:1986:84, n.o 48; de 14 de julho de 1994, Faccini Dori, C‑91/92, EU:C:1994:292, n.o 20; de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o., C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.o 108; e de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.o 30). Na verdade, alargar a invocabilidade das diretivas não transpostas ao domínio das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à União Europeia o poder de criar, com efeito imediato, deveres na esfera jurídica dos particulares, quando ela só tem essa competência nas áreas em que lhe é atribuído o poder de adotar regulamentos (acórdão de 14 de julho de 1994, Faccini Dori, C‑91/92, EU:C:1994:292, n.o 24).

32      No entanto, segundo jurisprudência igualmente constante do Tribunal de Justiça, quando os particulares estejam em condições de invocar uma diretiva, não contra um particular mas contra um Estado, podem fazê‑lo qualquer que seja a qualidade em que aja este último, a de empregador ou a de autoridade pública. Num e noutro caso, deve, com efeito, evitar‑se que o Estado possa tirar proveito da sua inobservância do direito da União (acórdãos de 26 de fevereiro de 1986, Marshall, 152/84, EU:C:1986:84, n.o 49; de 12 de julho de 1990, Foster e o., C‑188/89, EU:C:1990:313, n.o 17; e de 14 de setembro de 2000, Collino e Chiappero, C‑343/98, EU:C:2000:441, n.o 22).

33      Com base nestas considerações, o Tribunal de Justiça reconheceu que os sujeitos de direito podem invocar disposições incondicionais e suficientemente precisas de uma diretiva não apenas contra um Estado‑Membro e todos os órgãos da sua Administração, como as entidades descentralizadas (v., neste sentido, acórdão de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31), mas também, conforme foi recordado no âmbito da resposta à primeira questão, contra organismos ou entidades que estejam sujeitos à autoridade ou ao controlo do Estado ou que disponham de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis nas relações entre particulares (acórdãos de 12 de julho de 1990, Foster e o., C‑188/89, EU:C:1990:313, n.o 18, e de 4 de dezembro de 1997, Kampelmann e o., C‑253/96 a C‑258/96, EU:C:1997:585, n.o 46).

34      Tais organismos ou entidades distinguem‑se dos particulares e devem ser equiparados ao Estado, quer porque são pessoas coletivas de direito público que fazem parte do Estado em sentido amplo, quer porque estão sujeitos à autoridade ou ao controlo de uma autoridade pública, quer ainda porque foram encarregados, por essa autoridade, de exercer uma missão de interesse público e foram dotados, para esse efeito, dos referidos poderes exorbitantes.

35      Por conseguinte, as disposições de uma diretiva que produzam efeito direto podem ser invocadas contra uma entidade ou um organismo, ainda que de direito privado, a quem um Estado‑Membro tenha confiado o cumprimento de uma missão de interesse público e que, para esse efeito, disponha de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis nas relações entre particulares.

36      No presente caso, há que salientar que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, os Estados‑Membros deviam adotar todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

37      A importância atribuída pelo legislador da União à proteção das vítimas levou‑o a completar este dispositivo, ao obrigar os Estados‑Membros, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva, a instituírem um organismo com a missão de indemnizar, pelo menos dentro dos limites previstos pelo direito da União, os danos materiais ou corporais causados por um veículo não identificado ou relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro referida no artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva, o qual remete para o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva (acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o., C‑409/11, EU:C:2013:512, n.o 29).

38      Por conseguinte, a missão que um organismo de indemnização como o MIBI tem de cumprir e que lhe é atribuída por um Estado‑Membro, que faz parte do objetivo geral de proteção das vítimas prosseguido pela regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, deve ser vista como uma missão de interesse público inerente, no presente caso, à obrigação que o artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva impõe aos Estados‑Membros.

39      A este respeito, há que recordar que, no caso de danos materiais ou corporais causados por um veículo relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro prevista no artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, o Tribunal de Justiça declarou que a intervenção do referido organismo se destina a colmatar uma falha do Estado‑Membro respeitante à sua obrigação de assegurar que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro (v., neste sentido, acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o., C‑409/11, EU:C:2013:512, n.o 31).

40      No que se refere ao MIBI, há que acrescentar que, nos termos da section 78 da Lei de 1961, o legislador irlandês decretou a obrigatoriedade de inscrição neste organismo de todas as seguradoras que exercem uma atividade no ramo do seguro automóvel na Irlanda. Ao fazê‑lo, conferiu ao MIBI poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis às relações entre particulares, uma vez que, ao abrigo desta disposição legislativa, este organismo privado pode impor a todas essas seguradoras que se inscrevam nele e financiem o cumprimento da missão de que foi incumbido pelo Estado irlandês.

41      As disposições incondicionais e suficientemente precisas de uma diretiva podem, por conseguinte, ser invocadas contra um organismo como o MIBI.

42      Atendendo às considerações que precedem, há que responder à segunda e à terceira questão que as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto podem ser invocadas contra um organismo de direito privado ao qual um Estado‑Membro tenha confiado uma missão de interesse público, como aquela que é inerente à obrigação que o artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva impõe aos Estados‑Membros, e que, para este efeito, disponha, nos termos da lei, de poderes exorbitantes, tais como o poder de impor às seguradoras que exercem uma atividade no ramo do seguro automóvel no território do Estado‑Membro em causa que se inscrevam nele e o financiem.

 Quanto às despesas

43      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 288.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não exclui, em si mesmo, que as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto possam ser invocadas contra uma entidade que não reúne todas as características enunciadas no n.o 20 do acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C188/89, EU:C:1990:313), lidas em conjugação com as que figuram no n.o 18 do mesmo acórdão.

2)      As disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto podem ser invocadas contra um organismo de direito privado ao qual um EstadoMembro tenha confiado uma missão de interesse público, como aquela que é inerente à obrigação que o artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos EstadosMembros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, conforme alterada pela Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, impõe aos EstadosMembros, e que, para este efeito, disponha, nos termos da lei, de poderes exorbitantes, tais como o poder de impor às seguradoras que exercem uma atividade no ramo do seguro automóvel no território do EstadoMembro em causa que se inscrevam nele e o financiem.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.