Language of document : ECLI:EU:T:2021:92

Processo T259/20

Ryanair DAC

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Décima Secção alargada) de 17 de fevereiro de 2021

«Auxílios de Estado – Mercado francês do transporte aéreo – Moratória sobre o pagamento da taxa de aviação civil e da taxa de solidariedade sobre os bilhetes de avião devidos mensalmente durante o período de março a dezembro de 2020 no contexto da pandemia de COVID‑19 – Decisão de não levantar objeções – Auxílio destinado a reparar os danos causados por um acontecimento extraordinário – Livre prestação de serviços – Igualdade de tratamento – Critério da posse de uma licença emitida pelas autoridades francesas – Proporcionalidade – Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE – Dever de fundamentação»

1.      Auxílios concedidos pelos Estados – Proibição – Derrogações – Auxílios compatíveis com o mercado interno – Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários – Critérios – Acontecimento extraordinário – Conceito – Pandemia de COVID19 e medidas estatais para enfrentar o surto – Inclusão

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 23‑27)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados – Proibição – Derrogações – Auxílios compatíveis com o mercado interno – Auxílios destinados a remediar os danos causados pelas calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários – Moratória sobre o pagamento de taxas aeronáuticas a favor das companhias de transporte aéreo público no âmbito da pandemia de COVID19 – Moratória reservada às companhias aéreas titulares de uma licença nacional – Auxílio compatível com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE – Violação do princípio de não discriminação em razão da nacionalidade – Falta; Inexistência

[Artigos 18.°, primeiro parágrafo, e 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 30‑32, 49)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados – Proibição – Derrogações – Auxílios compatíveis com o mercado interno – Auxílios destinados a remediar os danos causados pelas calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários – Moratória sobre o pagamento de taxas aeronáuticas a favor das companhias de transporte aéreo público no âmbito da pandemia de COVID19 – Moratória reservada às companhias aéreas titulares de uma licença nacional – Apreciação – Critérios – Objetivo do regime de auxílio – Proporcionalidade do auxílio

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 33‑48, 50)

4.      Livre prestação de serviços – Disposições do Tratado – Âmbito de aplicação – Serviços em matéria de transportes na aceção do artigo 58.°, n.° 1, TFUE – Serviços de transporte aéreo – Regime jurídico especial

(Artigos 56.°, 58.°, n.° 1, e 100.°, n.° 2, TFUE)

(cf. n.os 55, 56)

5.      Auxílios concedidos pelos Estados – Decisão da Comissão de não levantar objeções a um regime de auxílios – Dever de fundamentação – Alcance – Consideração do contexto e do conjunto das normas jurídicas que regulam a matéria

[Artigos 107.°, n.° 3, alínea b), e 296.° TFUE]

(cf. n.os 79‑84)

6.      Recurso de anulação – Pessoas singulares ou coletivas – Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito – Decisão da Comissão que, sem abertura do procedimento formal de exame, declara a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno – Recurso dos interessados na aceção do artigo 108.°, n.° 2, TFUE – Identificação do objeto do recurso – Recurso destinado a salvaguardar os direitos processuais dos interessados – Fundamentos que podem ser invocados – Inexistência de conteúdo autónomo de um tal fundamento no caso em apreço

(Artigos 108.°, n.° 2, e 267.°, n.° 4, TFUE)

(cf. n.° 87)

Resumo

A moratória sobre o pagamento de taxas instituídas pela França para apoiar as companhias aéreas, titulares de uma licença francesa, no âmbito da pandemia de COVID19 é conforme com o direito da União

Em 24 de março de 2020, a República Francesa notificou à Comissão Europeia, em conformidade com o artigo 108.°, n.° 3, TFUE, uma medida de auxílio sob a forma de moratória no pagamento da taxa de aviação civil e da taxa de solidariedade sobre os bilhetes de avião devidas mensalmente durante o período entre março e dezembro de 2020 (a seguir «regime de auxílios em causa»). Esta moratória, que beneficia as companhias aéreas titulares de uma licença francesa (1), consiste em adiar o pagamento dessas taxas a 1 de janeiro de 2021 e em repartir seguidamente os pagamentos por um período de 24 meses, a saber, até 31 de dezembro de 2022. O montante exato das taxas é determinado em função do número de passageiros transportados e do número de voos efetuados a partir de um aeroporto francês.

Na sua Decisão de 31 de março de 2020 (2), a Comissão qualificou a moratória relativa ao pagamento das taxas de auxílio de Estado (3) compatível com o mercado interno, em conformidade com o artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE. Por força dessa disposição, são compatíveis com o mercado interno os auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários.

A companhia aérea Ryanair interpôs recurso de anulação dessa decisão, que é, no entanto, julgado improcedente pela Décima Secção alargada do Tribunal Geral. Nesse contexto, esta examina, pela primeira vez, a legalidade do regime de auxílio de Estado adotado com vista a responder às consequências da pandemia da COVID‑19 à luz do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE (4). O Tribunal Geral especifica ainda a articulação entre as regras relativas aos auxílios de Estado e o princípio de não discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.°, primeiro parágrafo, TFUE, por um lado, e o princípio da livre prestação de serviços, por outro.

Apreciação do Tribunal Geral

O Tribunal Geral procede, em primeiro lugar, a uma fiscalização da decisão da Comissão à luz do artigo 18.°, primeiro parágrafo, TFUE, que proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade no âmbito de aplicação dos Tratados, sem prejuízo das suas disposições especiais. Ora, uma vez que o artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE figura, segundo o Tribunal Geral, entre essas disposições especiais, este examina se a moratória relativa ao pagamento dos impostos podia ser declarada compatível com o mercado interno ao abrigo desta disposição.

A este respeito, o Tribunal Geral confirma, por um lado, que a pandemia de COVID‑19 e as medidas de restrição dos transportes e de confinamento adotadas pela República Francesa com vista a dar‑lhe resposta constituem, no seu conjunto, um acontecimento extraordinário na aceção do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE, que causou danos económicos às companhias aéreas que operam em França. Segundo o Tribunal Geral, também é incontestável que o objetivo da moratória sobre o pagamento dos impostos é efetivamente o de reparar os referidos prejuízos.

O Tribunal Geral verifica, por outro lado, que a limitação da moratória relativa ao pagamento das taxas às companhias aéreas na posse de uma licença francesa é adequada para atingir o objetivo de remediar os prejuízos causados pelo referido acontecimento extraordinário. A este respeito, o Tribunal sublinha que, por força do regulamento que aprova regras comuns de exploração dos serviços aéreos na Comunidade, a posse de uma licença francesa se traduz, de facto, na presença do estabelecimento principal das companhias aéreas no território francês e na sua sujeição à supervisão financeira e de honorabilidade das autoridades francesas. Segundo o Tribunal Geral, as disposições do referido regulamento estabelecem obrigações recíprocas entre as companhias aéreas detentoras de uma licença francesa e as autoridades francesas e, assim, um vínculo específico e estável entre elas que responde de forma adequada aos requisitos previstos no artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE.

Quanto ao caráter proporcionado da moratória sobre o pagamento das taxas, o Tribunal Geral sublinha, além disso, que as companhias aéreas elegíveis para o regime de auxílio são as mais duramente afetadas pelas medidas de restrição de transporte e de confinamento adotadas por França. A extensão da referida moratória a companhias não estabelecidas em França não teria permitido, em contrapartida, atingir de forma tão precisa e sem risco de sobrecompensação o objetivo de remediar os prejuízos económicos sofridos pelas companhias aéreas que operam em França.

À luz dessas constatações, o Tribunal Geral confirma que o objetivo do regime de auxílios em causa preenche os requisitos da derrogação prevista no artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE e que as modalidades de concessão do auxílio não vão além do necessário para atingir esse objetivo. Assim, o referido regime também não constitui uma discriminação proibida nos termos do artigo 18.°, primeiro parágrafo, TFUE.

Em segundo lugar, o Tribunal Geral examina a decisão da Comissão à luz da livre prestação de serviços enunciada no artigo 56.° TFUE. A este respeito, o Tribunal recorda que esta liberdade fundamental não se aplica exatamente da mesma forma ao domínio dos transportes, que está sujeito a um regime jurídico especial, do qual faz parte o referido regulamento que estabelece regras comuns de exploração dos serviços aéreos na Comunidade. Ora, esse regulamento tem precisamente por objeto definir as condições de aplicação, no setor dos transportes aéreos, do princípio da livre prestação de serviços. No entanto, a Ryanair não alegou nenhuma violação do referido regulamento.

Em terceiro lugar, o Tribunal Geral rejeitou o fundamento segundo o qual a Comissão cometeu um erro manifesto na apreciação do valor da vantagem atribuída às companhias aéreas que beneficiam da moratória sobre o pagamento das taxas. O Tribunal Geral verifica que o montante dos prejuízos sofridos pelos beneficiários da moratória é, com toda a probabilidade, nominalmente superior ao montante nominal total da moratória, pelo que o espetro de uma eventual sobrecompensação deve ser claramente afastado. Além disso, o Tribunal Geral sublinha que a Comissão teve em conta os compromissos da República Francesa de lhe fornecer uma metodologia pormenorizada da forma como esse Estado‑Membro tencionava quantificar, a posteriori e para cada beneficiário, o montante dos danos ligados à crise causada pela pandemia, o que constitui uma garantia suplementar de evitar qualquer risco de sobrecompensação.

Por último, o Tribunal Geral julga improcedente o fundamento relativo a uma alegada violação do dever de fundamentação e considera que não é necessário conhecer do mérito do fundamento relativo à violação dos direitos processuais derivados do artigo 108.°, n.° 2, TFUE.


1      Licença emitida ao abrigo do artigo 3.° do Regulamento (CE) no 1008/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de setembro de 2008, relativo a regras comuns de exploração dos serviços aéreos na Comunidade (JO 2008, L 293, p. 3).


2      Decisão C (2020) 2097 final da Comissão relativa ao auxílio estatal SA.56765 (2020/N) – França – COVID‑19 – Moratória sobre o pagamento de taxas aeronáuticas a favor das companhias de transporte aéreo público.


3      Na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE.


4      No seu Acórdão de 17 de fevereiro de 2021, Ryanair/Comissão (T‑238/20), o Tribunal Geral procede a um exame da legalidade à luz do artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE de um regime de auxílios de Estado adotado pelo Reino da Suécia para dar uma resposta às consequências da pandemia de COVID‑19 no mercado sueco do transporte aéreo.