CONCLUSÕES DO ADVOGADO GERAL
MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ-BORDONA
apresentadas em 5 de outubro de 2023 (1)
Processo C‑661/22
ABC Projektai UAB, anteriormente Bruc Bond UAB
contra
Lietuvos bankas
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia)]
«Reenvio prejudicial — Operação de uma instituição de pagamento que consiste na detenção de fundos de clientes sem ordem de pagamento específica além do prazo legal de execução da operação de pagamento — Qualificação da operação — Diretiva (UE) 2015/2366 — Serviços de pagamento no mercado interno — Diretiva 2009/110/CE — Emissão de moeda eletrónica»
1. A jurisprudência do Tribunal de Justiça respeitante às diretivas relativas aos serviços de pagamento (2) desenvolve‑se progressivamente (3), mas, salvo erro da minha parte, o Tribunal de Justiça apenas proferiu até agora um único acórdão (4) que interpreta a Diretiva 2009/110/CE (5), relativa à moeda eletrónica.
2. O presente reenvio prejudicial permitirá ao Tribunal de Justiça clarificar o conceito de «moeda eletrónica». Concretamente, terá de se determinar se há emissão de moeda eletrónica (atividade sujeita, por conseguinte, à Diretiva 2009/110) quando um prestador de serviços de pagamento (a seguir «PSP») recebe fundos sem uma ordem de pagamento específica e os retém por um período mais longo do que o previsto na lei.
I. Quadro jurídico
A. Direito da União
1. Diretiva 2015/2366
3. O artigo 4.o («Definições») estabelece:
«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:
[…]
3. “Serviço de pagamento”, uma atividade comercial constante do anexo I, ou várias dessas atividades;
4. “Instituição de pagamento”, uma pessoa coletiva à qual tenha sido concedida autorização, nos termos do artigo 11.o, para prestar e executar serviços de pagamento em toda a União;
5. “Operação de pagamento”, o ato, iniciado pelo ordenante ou em seu nome, ou pelo beneficiário, de depositar, transferir ou levantar fundos, independentemente de quaisquer obrigações subjacentes entre o ordenante e o beneficiário;
[…]
13. “Ordem de pagamento”, uma instrução dada por um ordenante ou por um beneficiário ao seu prestador de serviços de pagamento requerendo a execução de uma operação de pagamento;
[…]»
4. O artigo 18.o («Atividades») tem a seguinte redação:
«1. Para além da prestação de serviços de pagamento, as instituições de pagamento são autorizadas a exercer as seguintes atividades:
a) Prestação de serviços operacionais e serviços complementares estreitamente conexos, tais como garantias de execução de operações de pagamento, serviços cambiais, atividades de guarda, e ainda armazenamento e processamento de dados;
b) Exploração de sistemas de pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 35.o;
c) Atividades profissionais distintas da prestação de serviços de pagamento, nos termos do direito da União e do direito nacional aplicáveis.
2. Caso as instituições de pagamento prestem um ou mais serviços de pagamento, só podem ser titulares de contas de pagamento que sejam exclusivamente utilizadas para operações de pagamento.
3. Os fundos que as instituições de pagamento recebem dos utilizadores de serviços de pagamento tendo em vista a prestação de serviços de pagamento não constituem depósitos ou outros fundos reembolsáveis, na aceção do artigo 9.o da Diretiva 2013/36/UE, nem moeda eletrónica, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2009/110/CE.
[…]
5. As instituições de pagamento não podem exercer a atividade de aceitação de depósitos ou outros fundos reembolsáveis na aceção do artigo 9.o da Diretiva 2013/36/UE.
[…]»
5. O artigo 78.o («Receção de ordens de pagamento»), n.o 1, prevê:
«Os Estados‑Membros asseguram que o momento da receção seja o momento em que a ordem de pagamento é recebida pelo prestador de serviços de pagamento do ordenante.
A conta do ordenante não pode ser debitada enquanto não for recebida a ordem de pagamento […]»
6. O artigo 83.o («Operações de pagamento para uma conta de pagamento»), n.o 1, dispõe:
«Os Estados‑Membros exigem que o prestador de serviços de pagamento do ordenante garanta que, após o momento da receção a que se refere o artigo 78.o, o montante da operação de pagamento seja creditado na conta do prestador de serviços de pagamento do beneficiário até ao final do primeiro dia útil seguinte. Esse prazo pode ser prorrogado por mais um dia útil no caso das operações de pagamento iniciadas em suporte papel.»
2. Diretiva 2009/110
7. Nos termos do seu artigo 2.o («Definições»):
«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:
1) “Instituições de moeda eletrónica”, as pessoas coletivas autorizadas a emitir moeda eletrónica ao abrigo do título II da presente diretiva;
2) “Moeda eletrónica”, o valor monetário armazenado eletronicamente, inclusive de forma magnética, representado por um crédito sobre o emitente e emitido após receção de fundos para fazer operações de pagamento na aceção do ponto 5 do artigo 4.o da Diretiva 2007/64/CE e que seja aceite por uma pessoa singular ou coletiva diferente do emitente de moeda eletrónica;
[…]»
8. O artigo 10.o («Proibição de emitir moeda eletrónica») prevê:
«Sem prejuízo do disposto no artigo 18.o, os Estados‑Membros proíbem a emissão de moeda eletrónica às pessoas singulares ou coletivas que não sejam emitentes de moeda eletrónica.»
9. Nos termos do artigo 11.o («Emissão e caráter reembolsável»):
«1. Os Estados‑Membros asseguram que os emitentes de moeda eletrónica emitam moeda eletrónica pelo valor nominal aquando da receção dos fundos.
2. Os Estados‑Membros asseguram que, a pedido do portador, os emitentes de moeda eletrónica reembolsem, em qualquer momento e pelo valor nominal, o valor monetário detido em moeda eletrónica.
3. O contrato entre o emitente de moeda eletrónica e o respetivo portador deve indicar de forma clara e destacada as condições de reembolso, incluindo quaisquer taxas relacionadas com o mesmo, devendo o portador ser informado dessas condições antes de se vincular a qualquer contrato ou oferta.
[…]»
B. Direito lituano
1. Lei relativa aos pagamentos (6)
10. Nos termos do seu artigo 2.o, n.os 11 e 40, respetivamente, entende‑se por «beneficiário» uma pessoa singular ou coletiva, outra instituição ou subdivisão de uma instituição que conste de uma ordem de pagamento como destinatária dos fundos objeto da operação de pagamento; e por «ordenante» uma pessoa singular ou coletiva, outra instituição ou subdivisão de uma instituição que seja titular de uma conta de pagamento e que autorize uma ordem de pagamento a partir dessa conta ou, na ausência de conta de pagamento, que emite uma ordem de pagamento.
11. Nos termos do seu artigo 5.o, são serviços de pagamento as operações de pagamento, incluindo a transferência de fundos depositados numa conta de pagamento aberta junto do prestador de serviços de pagamento do utilizador ou de outro prestador de serviços de pagamento; os débitos diretos, incluindo os de caráter pontual; as operações de pagamento através de um cartão de pagamento ou de um dispositivo similar ou transferências a crédito, incluindo ordens de domiciliação (ponto 3), bem como as transferências de fundos (ponto 6).
12. Nos termos do artigo 6.o, n.o 3, as instituições de pagamento fazem parte dos prestadores de serviços de pagamento.
13. O artigo 38.o, n.o 1, dispõe que o prestador de serviços de pagamento do ordenante reembolsa o ordenante do montante de uma operação de pagamento não autorizada imediatamente após ter tido conhecimento da operação ou após esta lhe ter sido comunicada, o mais tardar até ao final do primeiro dia útil seguinte, e, se for caso disso, repõe a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se a operação de pagamento não autorizada não tivesse sido executada, exceto se o prestador de serviços de pagamento do ordenante tiver motivos fundados para suspeitar de fraude e comunicar por escrito esses motivos à autoridade de supervisão. O prestador de serviços de pagamento do ordenante deverá igualmente assegurar que o ordenante não sofra perdas resultantes dos juros devidos ao ou prestador de serviços de pagamento.
14. O artigo 42.o, n.o 2, prevê que o utilizador de serviços de pagamento que emite a ordem de pagamento e o seu prestador de serviços de pagamento podem acordar que a execução da ordem de pagamento terá início numa data determinada, decorrido um determinado prazo ou ainda na data em que o ordenante colocar fundos à disposição do prestador de serviços de pagamento. Nesse caso, a data acordada é considerada a data da receção da ordem de pagamento. Se a data acordada não for um dia útil para o prestador de serviços de pagamento, considera‑se que a ordem de pagamento foi recebida no dia útil seguinte.
15. O artigo 46.o, n.o 1, dispõe que o prestador de serviços de pagamento do ordenante garante que, após a receção da ordem de pagamento, o montante de uma operação de pagamento em euros realizada na Lituânia e destinada a outro Estado‑Membro seja creditado na conta do prestador de serviços de pagamento do beneficiário até ao final do primeiro dia útil seguinte, exceto no caso previsto no n.o 3 desse artigo. Esse prazo pode ser prorrogado de um dia útil no caso das operações de pagamento iniciadas em suporte papel.
16. O artigo 46.o, n.o 3, prevê que, no caso de transferências na Lituânia em euros, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve garantir que, após a receção da ordem de pagamento, o montante da operação de pagamento seja creditado na conta do prestador de serviços de pagamento do beneficiário no mesmo dia se a ordem de pagamento tiver sido recebida num dia útil antes das 12 h 00. Se a ordem de pagamento tiver sido recebida após as 12 h 00, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve garantir que o montante da operação de pagamento é creditado na conta do prestador de serviços de pagamento do beneficiário até ao primeiro dia útil seguinte. Na situação prevista no artigo 42.o, n.o 2, dessa lei, o prestador de serviços de pagamento do ordenante garante que o montante da operação de pagamento é creditado na conta do prestador de serviços de pagamento do beneficiário no dia da execução da ordem de pagamento e, se esse dia não for um dia útil para o prestador do serviço de pagamento, no dia útil seguinte.
2. Lei relativa às instituições de pagamento (7)
17. O artigo 4.o, n.o 3, dispõe que uma instituição de pagamento que preste um ou mais serviços de pagamento pode ser titular de contas de pagamento exclusivamente utilizadas para a prestação de serviços de pagamento. Os fundos que a instituição de pagamento recebe dos utilizadores de serviços de pagamento tendo em vista a prestação de serviços de pagamento não constituem depósitos ou outros fundos reembolsáveis nem moeda eletrónica.
18. O artigo 4.o, n.o 5, prevê que a instituição de pagamento não pode receber depósitos ou outros fundos reembolsáveis de operadores não profissionais do mercado nem emitir moeda eletrónica.
3. Lei relativa à moeda eletrónica (8)
19. Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, entende‑se por «moeda eletrónica» um valor monetário, representado por um crédito sobre o emitente, que é colocado em circulação quando os fundos são entregues ao emitente por pessoas singulares ou coletivas e que tem as características seguintes: é armazenado eletronicamente, inclusive de forma magnética, para efeitos de pagamento e aceite por outras pessoas que não o emitente de moeda eletrónica.
20. O artigo 5.o proíbe a emissão de moeda eletrónica às pessoas singulares ou coletivas que não sejam emitentes de moeda eletrónica.
21. O artigo 6.o, n.o 1, dispõe que os emitentes de moeda eletrónica emitem moeda eletrónica pelo valor nominal aquando da receção dos fundos de pessoas singulares ou coletivas.
II. Matéria de facto, litígio e questão prejudicial
22. A Bruc Bond UAB (posteriormente, ABC Projektai UAB) (9) era uma instituição autorizada pelo Lietuvos bankas (Banco da Lituânia) para prestar serviços de pagamento (10).
23. Em 16 de abril de 2020, o Banco da Lituânia revogou a licença concedida à ABC Projektai invocando dez fundamentos, dos quais apenas um diz respeito ao presente reenvio prejudicial, a saber, o facto de ter emitido moeda eletrónica sem ter a qualidade de instituição de moeda eletrónica (a seguir «IME»).
24. Segundo o Banco da Lituânia, a ABC Projektai tinha retido os fundos dos clientes por mais tempo do que o necessário para a execução das operações de pagamento ou por razões técnicas (11). A partir de 20 de fevereiro de 2017, as contas de seis clientes da ABC Projektai foram creditadas com fundos recebidos pelos clientes (pagamentos recebidos) sem um objetivo específico de pagamento e, as transferências de fundos (pagamentos efetuados) não foram efetuadas, durante vários dias (ou, em alguns casos, durante meses) (12), com exceção do débito das taxas da ABC Projektai.
25. Para o Banco da Lituânia, este comportamento implicava a emissão de moeda eletrónica, embora a ABC Projektai alegue que avisou os clientes da necessidade de enviar ordens de pagamento e que, na falta de receção, procederia ao reembolso dos fundos, como afirma ter feito.
26. A ABC Projektai recorreu da resolução do Banco da Lituânia no Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional, Vilnius, Lituânia), que negou provimento ao recurso em 8 de junho de 2021.
27. A ABC Projektai interpôs recurso da decisão proferida em primeira instância para o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia). Em substância, considera que, quando um serviço de pagamento não é prestado por uma IME e a emissão ou o resgate do valor nominal dos serviços eletrónicos não é a finalidade do serviço prestado, não constitui uma atividade relacionada com a emissão de moeda eletrónica.
28. O Banco da Lituânia contesta o recurso, insistindo no facto de a ABC Projektai ter emitido moeda eletrónica sem estar autorizada a fazê‑lo. Alega que tal decorre da posição adotada pelo Conselho de Supervisão do próprio Banco da Lituânia no que respeita a fundos detidos em contas de pagamento (13). Acrescenta que essa posição teria sido adotada em concertação com a Comissão Europeia.
29. Neste contexto, o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia) submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, em que uma instituição de pagamento aceita fundos sem uma ordem de pagamento específica para os transferir no mesmo dia útil ou no dia útil seguinte e os fundos permanecem na conta da instituição de pagamento destinada à realização de operações de pagamento durante mais tempo do que os prazos de execução do serviço de pagamento fixados pela legislação, devem as ações da instituição de pagamento ser consideradas:
a) uma parte de um pagamento de serviço ou uma operação de pagamento, conforme definidos no artigo 4.o, n.os 3 e 5, da [Diretiva 2015/2366], ou
b) uma emissão de moeda eletrónica, conforme definida no artigo 2.o, n.o 2, da [Diretiva 2009/110]?»
III. Tramitação processual no Tribunal de Justiça
30. O pedido de decisão prejudicial foi registado no Tribunal de Justiça em 20 de outubro de 2022.
31. Apresentaram observações escritas a ABC Projektai, os Governos Alemão, Checo, Polaco e Lituano, e a Comissão Europeia.
32. Não foi considerada necessária a realização de audiência.
IV. Apreciação
A. Considerações preliminares: conceitos aplicáveis
1. Moeda eletrónica
33. A evolução digital está a transformar radicalmente a prestação de serviços financeiros e o setor dos pagamentos de pequeno montante está na vanguarda desta tendência (14). A legislação da União, de que se destaca a Diretiva 2015/2366, dificilmente poderá travar esta acelerada mudança tecnológica (15) e, por isso, a Comissão propôs a sua revogação e substituição por outra (16).
34. Uma das novidades no âmbito da prestação de serviços de pagamento foi o surgimento da moeda eletrónica, emitida pelas IME e atualmente muito difundida (17). O seu regime encontrava‑se previsto na Diretiva 2000/46/CE (18) até à sua revogação pela Diretiva 2009/110 agora em vigor.
35. O conceito de moeda eletrónica foi atualizado na Diretiva 2009/110, a fim de o tornar mais claro e mais neutro do ponto de vista técnico (19). Nos termos da definição que resulta do seu artigo 2.o, ponto 2, este conceito implica um valor monetário armazenado eletronicamente, inclusive de forma magnética (20):
— representado por um crédito sobre o emitente;
— emitido após receção de fundos para fazer operações de pagamento; e
— que seja aceite por uma pessoa singular ou coletiva diferente do emitente de moeda eletrónica (21);
36. Os produtos de moeda eletrónica podem basear‑se em hardware ou software, em função da tecnologia utilizada para armazenar o valor monetário. Existem igualmente modelos que combinam características baseadas em hardware e software.
37. Quando se trate de produtos baseados em hardware, o poder de compra reside num dispositivo físico pessoal, como um cartão com chip eletrónico, com funções de segurança também baseadas em hardware. O valor monetário é normalmente transferido através de leitores de dispositivos que não requerem ligação de rede em tempo real a um servidor à distância.
38. Os produtos à base de software utilizam software especializado que funciona em dispositivos pessoais comuns, como computadores ou tablets. Para permitir a transferência do valor monetário, o dispositivo pessoal exige geralmente o estabelecimento de uma ligação em linha a um servidor à distância que controla a utilização do poder de compra.
39. O regime jurídico aplicável, por um lado, à moeda eletrónica e, por outro, aos serviços de pagamento está contido em duas diretivas distintas, mas relacionadas (22), cuja existência separada está a ser repensada (23).
2. Serviços de pagamento, operação de pagamento e contas de pagamento
40. O artigo 4.o da Diretiva 2015/2366 contém as definições dos conceitos que utiliza no seu articulado. Quanto ao que importa para este litígio:
— No seu ponto 3, entende por «serviço de pagamento» as atividades comerciais constantes do anexo I. Entre essas atividades, pelo menos três envolvem interações com uma conta de pagamento (24).
— No seu ponto 5, entende por «operação de pagamento» o ato, iniciado pelo ordenante ou em seu nome, ou pelo beneficiário, de depositar, transferir ou levantar fundos, independentemente de quaisquer obrigações subjacentes entre o ordenante e o beneficiário.
— No seu ponto 12, considera «conta de pagamento» uma conta, detida em nome de um ou mais utilizadores de serviços de pagamento, utilizada para a execução de operações de pagamento (25).
B. Análise da questão prejudicial
41. O órgão jurisdicional de reenvio expõe claramente a situação com que se defronta. Descreve a atuação de uma instituição de pagamento que:
— aceita fundos sem uma ordem de pagamento específica para os transferir no mesmo dia útil ou no dia útil seguinte; e
— mantém esses fundos na conta da própria instituição durante mais tempo do que os prazos de execução do serviço de pagamento fixados pela legislação lituana.
42. Com base nestes factos, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a atuação assim descrita deve ser abrangida pela Diretiva 2015/2366 ou, pelo contrário, deve ser qualificada de emissão de moeda eletrónica (26), conforme definida na Diretiva 2009/110 (27).
43. Da Diretiva 2015/2366 constam as regras de execução das operações de pagamento quando os fundos assumem a forma de moeda eletrónica. Todavia, essa mesma diretiva não regula a emissão de moeda eletrónica abrangida pela Diretiva 2009/110. Os PSP, enquanto tais, não estão habilitados a emitir moeda eletrónica, atividade que exige uma autorização específica.
44. O artigo 18.o da Diretiva 2015/2366 prevê que:
— As instituições de pagamento que prestem um ou mais serviços de pagamento (28) só podem ser titulares de contas de pagamento (29) que sejam exclusivamente utilizadas para operações de pagamento (n.o 2).
— «Os fundos que as instituições de pagamento recebem dos utilizadores de serviços de pagamento tendo em vista a prestação de serviços de pagamento não constituem depósitos ou outros fundos reembolsáveis […], nem moeda eletrónica […]» (n.o 3).
45. Nas reflexões que se seguem, defenderei que a retenção, por uma instituição de pagamento, dos fundos recebidos de um utilizador constitui, em princípio, uma operação que pressupõe a gestão de uma conta de pagamento. Na minha opinião, não perde essa natureza quando esses fundos são mantidos durante mais tempo do que os prazos fixados pela legislação para a execução de ordens de pagamento relativas aos mesmos (30).
46. Por conseguinte, à primeira vista, a atividade descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio constitui, um serviço de pagamento, conforme definido no artigo 4.o, ponto 3, e no anexo I da Diretiva 2015/2366.
47. Ora, seria (teoricamente) possível que essa atividade implicasse a emissão de moeda eletrónica, sujeita à Diretiva 2009/110?
48. Para responder a esta dúvida, importa ponderar, em primeiro lugar, a incidência de que exista um determinado prazo para que um PSP execute as ordens de pagamento recebidas do utilizador e, em segundo lugar, se a atividade descrita no despacho de reenvio pode ser incluída nas abrangidas pela Diretiva 2009/110.
1. Prazo de execução das ordens de pagamento
49. O artigo 83.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2366 fixa um prazo curto para que o PSP do ordenante credite o montante da operação de pagamento na conta do beneficiário (mais precisamente, na conta do PSP do beneficiário) (31).
50. Esse prazo começa a correr a partir do momento da receção da ordem de pagamento. Ora, nos termos do artigo 78.o, n.o 2, o PSP e o ordenante podem acordar outra data como «momento da receção para efeitos do artigo 83.o» da Diretiva 2015/2366 (32).
51. Como salienta o Governo Checo (33), o artigo 78.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2366 ficaria desprovido de sentido se o PSP tivesse a obrigação de respeitar o prazo do artigo 83.o, n.o 1, a contar da receção dos fundos e não a partir da receção da ordem de pagamento do ordenante.
52. O prazo de execução do artigo 83.o da Diretiva 2015/2366 começa a correr a partir da receção da ordem de pagamento, e não quando o titular da conta de pagamento transfere fundos para essa conta. Por outras palavras, o prazo não começa a correr no momento da receção dos fundos se o ordenante não tiver emitido uma ordem de pagamento relativa a esses fundos.
53. A ligação entre o prazo de execução da operação de pagamento e a receção da ordem de pagamento garante que o PSP atua em conformidade com um ato iniciado pelo ordenante (artigo 4.o, ponto 5, da Diretiva 2015/2366) ou com uma instrução dada pelo ordenante (artigo 4.o, ponto 13, da Diretiva 2015/2366).
54. Essa ligação justifica que o titular possa (como é frequente) transferir fundos para a sua conta de pagamento, sem fazer acompanhar essa transferência de uma ordem de pagamento. O titular está habilitado a manter fundos na conta a partir da qual serão executadas futuras ordens de pagamento. Logicamente, o PSP não poderá executar uma ordem de pagamento recebida na ausência de fundos na conta de pagamento do ordenante.
55. Na mesma ordem de ideias, a Diretiva 2015/2366 refere hipóteses de serviços de pagamento que necessitam para a sua boa execução de uma disponibilidade «contínua» de fundos na conta de pagamento. Por exemplo, a execução dos débitos diretos (34) pressupõe, de certo modo, uma disponibilidade contínua de fundos na conta de pagamento: seria muito pouco operacional para o utilizador fazer a transferência de fundos para cada débito com uma antecedência mínima, com o risco adicional de eventuais variações do montante do débito.
56. A disponibilidade contínua de fundos na conta de pagamento é igualmente patente em situações como a do artigo 78.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2366, que prevê a execução a posteriori e num prazo acordado de ordens de pagamento.
57. Pelo contrário, o Governo Lituano e o órgão jurisdicional de reenvio parecem sugerir que haverá emissão de moeda eletrónica se o PSP receber fundos numa conta de pagamento sem que o titular transmita ordens de pagamento para a sua execução, caso em que o PSP deveria proceder ao reembolso destes fundos e não retê‑los (pendentes) na conta de pagamento. Foi esta a alegação do Banco da Lituânia relativamente à ABC Projektai.
58. Penso que esta argumentação não encontra apoio na Diretiva 2015/2263, no que respeita à conversão dos fundos em moeda eletrónica.
59. Em meu entender, uma PSP violará essa diretiva (35), embora mantendo‑se no seu âmbito de aplicação, se receber ordens de pagamento e não as executar nos termos dos seus artigos 78.o e 83.o Ao violar as disposições contratuais aplicáveis à gestão da conta de pagamento, o PSP poderia igualmente incorrer na responsabilidade prevista no artigo 89.o da Diretiva 2015/2366, mas tal não implicaria a conversão dos fundos em moeda eletrónica. Essa conversão não ocorre pelo simples facto de os fundos serem transferidos e retidos numa conta de pagamento para efeitos da execução de ordens de pagamento futuras.
60. A Diretiva 2015/2366, salvo casos expressamente determinados, procede a uma harmonização total (artigo 107.o, n.o 1). Consequentemente, as regras nacionais que se lhe oponham não devem ser aplicadas, como seria o caso se um Estado‑Membro fixasse um prazo obrigatório para que o PSP executasse ordens de pagamento a contar da receção dos fundos na conta do ordenante.
61. O artigo 10.o da Diretiva 2015/2366 exige a salvaguarda dos fundos do utilizador de serviços de pagamento detidos pelo PSP, providenciando‑se no sentido: a) de que não sejam agregados aos fundos de qualquer pessoa singular ou coletiva distinta dos utilizadores dos serviços de pagamento em nome dos quais os fundos são detidos, b) ou de que sejam cobertos por uma apólice de seguro ou outra garantia equivalente, prestada por uma companhia de seguros ou instituição de crédito que não pertença ao mesmo grupo do próprio PSP.
62. Por conseguinte, não existe risco para o utilizador quando este transfere para uma conta de pagamento ou nela mantém fundos durante um período de tempo e emite posteriormente ordens de pagamento a partir desses fundos. Será a contar da receção dessa ordem de pagamento que o PSP deverá proceder à sua execução com a celeridade exigida pelo artigo 83.o da Diretiva 2015/2366.
63. Os fundos recebidos pelos PSP dos utilizadores que dispõem de uma conta de pagamento só podem ser utilizados para operações de pagamento (artigo 18.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2366). Por conseguinte, devem estar sempre disponíveis e sob controlo do titular da conta, que não receberá juros se os mantiver na conta para realizar operações de pagamento futuras. Estes fundos, como já salientei aquando da transcrição do artigo 18.o, n.o 3, da Diretiva 2015/2366, não constituem depósitos ou outros fundos reembolsáveis, na aceção do artigo 9.o da Diretiva 2013/36, nem moeda eletrónica.
2. Elementos determinantes para a emissão de moeda eletrónica
64. Pode deduzir‑se da definição constante da Diretiva 2009/110 e de outras disposições desta que a emissão de moeda eletrónica inclui os seguintes elementos (36):
— O utilizador disponibiliza fundos à IME e esta cria um ativo suplementar por um montante não inferior a esse valor monetário. O pré‑pagamento constitui o ponto de partida para a emissão de moeda eletrónica.
— O utilizador e a IME celebram um contrato nos termos do qual esta emite moeda eletrónica para realizar operações de pagamento. O destino da moeda eletrónica consiste precisamente em servir de instrumento do pagamento que o utilizador fará a uma pessoa que aceita essa modalidade monetária.
— A moeda eletrónica é armazenada eletronicamente, inclusive de forma magnética.
— O valor monetário representa um direito (um crédito) do utilizador sobre o emitente. Este último obriga‑se a reembolsá‑lo (37), a pedido do seu portador (38).
— A moeda eletrónica é aceite como meio de pagamento por uma pessoa singular ou coletiva diferente do emitente.
65. Na minha opinião, que, no essencial, coincide com a da ABC Projektai e com a dos Governos Alemão, Checo e Polaco, bem como com a da Comissão, nas circunstâncias expostas pelo órgão jurisdicional de reenvio não estão reunidos alguns dos elementos indispensáveis para considerar que a atividade da ABC Projektai constituía uma emissão de moeda eletrónica.
66. Em primeiro lugar, como acabei de explicar, a emissão de moeda eletrónica exige um acordo específico, estipulado num contrato. O utilizador deve acordar com a IME entregar‑lhe, sob esta fórmula, os fundos correspondentes, com vista a efetuar operações de pagamento. A IME emite moeda eletrónica precisamente porque o utilizador exprime a sua vontade de beneficiar desta modalidade e entrega‑lhe esses fundos para os destinar aos seus pagamentos posteriores.
67. Ora, sem prejuízo da apreciação final do órgão jurisdicional de reenvio, nada nos autos revela que esse contrato tenha existido, nem que o utilizador tenha manifestado a sua vontade de que a ABC Projektai emita moeda eletrónica pelo valor monetário dos fundos entregues. Transferir fundos para uma conta de pagamento e mantê‑los na mesma sem ordenar imediatamente operações de pagamento no valor desses fundos não implica uma manifestação de vontade (tácita) do utilizador para a emissão de moeda eletrónica.
68. É verdade que a componente subjetiva, ou seja, a finalidade (39) prosseguida pelo utilizador, não seria determinante em si se não se traduzisse num contrato com a IME, contrato que constitui um elemento estrutural (e, nessa mesma medida, objetivo) da emissão de moeda eletrónica.
69. Nesse contrato, a vontade das duas partes deve ficar clara, de forma que o utilizador e a IME acordem expressamente que esta última emite moeda eletrónica pelo valor monetário dos fundos recebidos do utilizador. Se assim não fosse, estaríamos perante uma transferência de fundos para uma conta de pagamento para que o PSP ou a mesma IME (40) prestem serviços de pagamento em favor do utilizador.
70. Em segundo lugar, nas circunstâncias referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, também não está preenchido o requisito de pré‑pagamento, que constitui outro elemento distintivo da moeda eletrónica. A partir do pré‑pagamento, a IME beneficia do controlo dos fundos que o utilizador lhe entregou para realizar pagamentos posteriores, uma vez estes convertidos em moeda eletrónica.
71. Na emissão de moeda eletrónica, o controlo dos fundos cabe à IME (41) e não ao utilizador que utiliza o valor monetário como instrumento de pagamento. Até ao termo do contrato, a IME controla os fundos recebidos do utilizador (42) sob a forma de valor monetário armazenado eletronicamente. A moeda eletrónica constitui um ativo suplementar criado pela IME com base nesses fundos.
72. Em contrapartida, nos serviços de pagamento prestados com base numa conta de pagamento, é o utilizador e não o PSP que controla, em qualquer momento, os fundos transferidos para essa conta.
73. No presente processo, sem prejuízo da apreciação do órgão jurisdicional de reenvio, não parece que o controlo dos fundos das contas de pagamento fosse realizado pela ABC Projektai, mas sim pelos titulares dessas contas, que podiam a todo o momento dirigir‑lhe ordens de pagamento com vista à sua execução.
74. Em terceiro lugar, sendo a moeda eletrónica um ativo suplementar controlado pela IME, esta instituição deve dispor de uma contabilidade específica que permita a aplicação do método concreto de cálculo dos seus fundos próprios, previsto no artigo 5.o, n.o 3, da Diretiva 2009/110.
75. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a ABC Projecktai dispunha dessa contabilidade específica para a moeda eletrónica e para o cálculo das exigências de fundos próprios, aspeto que não pode ser deduzido das informações fornecidas ao Tribunal de Justiça.
76. Em quarto lugar, nas contas de pagamento, o titular detém o controlo dos fundos, como acabei de sublinhar, e pode levantá‑los à sua vontade. No caso da moeda eletrónica, o ordenante pode igualmente solicitar à IME o «reembolso» do que não tenha utilizado para efetuar pagamentos a terceiros. Todavia, a reconversão da moeda eletrónica no seu valor nominal e o subsequente pagamento dos fundos por ordem do portador da moeda eletrónica dependerão das condições estabelecidas no contrato celebrado entre o utilizador e a IME que, por exemplo, pode prever o pagamento de taxas pelo cliente em caso de reembolso antecipado (43).
77. É o que prevê o artigo 11.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2009/110, ao dispor que:
— o contrato entre o emitente de moeda eletrónica e o respetivo portador deve indicar de forma clara e destacada as condições de reembolso, incluindo quaisquer taxas relacionadas com o mesmo, devendo o portador ser informado dessas condições antes de se vincular a qualquer contrato ou oferta; e
— o reembolso apenas pode ser sujeito a uma taxa se tal for declarado no contrato, nos termos do n.o 3, e num dos seguintes casos: a) o reembolso ser pedido antes da expiração do contrato; b) o contrato fixar uma data de expiração e o portador denunciar o contrato antes dessa data; ou c) o reembolso ser pedido mais de um ano após a data de expiração do contrato. A referida taxa deve ser proporcional e baseada nos custos efetivamente suportados pelo emitente de moeda eletrónica.
78. Cabe, mais uma vez, ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se foi celebrado um contrato entre o utilizador e a IME estipulando essas condições de reembolso claras e destacadas, como pressuposto da emissão da moeda eletrónica.
79. Em quinto lugar, a moeda eletrónica é armazenada eletronicamente, inclusive de forma magnética, e só pode ser utilizada com utilizadores que a aceitem de forma voluntária (44) e que disponham dos instrumentos para a sua utilização. Em contrapartida, as ordens de pagamento executadas a partir de uma conta de pagamento devem ser aceites pelos PSP de todos os operadores económicos.
80. Não resulta dos elementos dos autos que a ABC Projektai dispusesse de dinheiro armazenado eletronicamente ou de forma magnética, utilizável com uma rede de clientes que o aceitasse de forma voluntária. Pelo contrário, tudo parece indicar que se tratava de fundos depositados em contas de pagamento e utilizáveis apenas para executar as ordens de pagamento dos utilizadores.
81. Em definitivo, sem prejuízo das verificações do órgão jurisdicional de reenvio, a atividade controvertida está abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2015/2366 e não pode ser qualificada de emissão de moeda eletrónica conforme definida na Diretiva 2009/110.
V. Conclusão
82. Atendendo ao exposto, proponho que se responda ao Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia) nos seguintes termos:
«O artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2009/110/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao acesso à atividade das instituições de moeda eletrónica, ao seu exercício e à sua supervisão prudencial, que altera as Diretivas 2005/60/CE e 2006/48/CE e revoga a Diretiva 2000/46/CE, e o artigo 4.o, pontos 3 e 5, da Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, que altera as Diretivas 2002/65/CE, 2009/110/CE e 2013/36/UE e o Regulamento (UE) n.o 1093/2010, e que revoga a Diretiva 2007/64/CE,
devem ser interpretados no sentido de que:
a atividade de uma instituição de pagamento que consiste em aceitar fundos de um utilizador sem que tenha sido celebrado um contrato para a emissão de moeda eletrónica a partir desses fundos não é regulada pela Diretiva 2009/110, mas sim pela Diretiva 2015/2366.
O mesmo acontece quando, na falta desse contrato, a instituição de pagamento aceita fundos do utilizador sem uma ordem de pagamento específica para os transferir no mesmo dia útil ou no dia útil seguinte e os fundos permanecem na conta da instituição de pagamento destinada à realização de operações de pagamento durante mais tempo do que os prazos de execução do serviço de pagamento fixados legalmente para a prestação dos serviços de pagamento.»