Edição provisória
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ-BORDONA
apresentadas em 13 de junho de 2024 (1)
Processo C-368/23 [Fautromb] (i)
Haut conseil du commissariat aux comptes
contra
MO
[pedido de decisão prejudicial apresentado pela formation restreinte du Haut conseil du commissariat aux comptes (Formação reduzida do Conselho Superior da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, França)]
«Reenvio prejudicial — Artigo 267.º TFUE — Conceito de órgão jurisdicional nacional — Critérios — Livre prestação de serviços — Diretiva 2006/43/CE — Artigos 22.º e 52.º — Regulamento (UE) n.º 537/2014 — Artigo 5.º, n.os 1 e 2 — Diretiva 2006/123/CE — Artigo 25 — Atividades pluridisciplinares — Legislação nacional que proíbe os revisores oficiais de contas de exercerem atividades comerciais com exceção das acessórias à profissão de contabilista — Articulação entre a Diretiva 2006/43 e o Regulamento n.º 537/2014 com a Diretiva 2006/123 — Artigo 3.º da Diretiva 2006/123 — Conflito com outras disposições do direito da União — Artigos 49.º e 56.º TFUE — Razões imperiosas de interesse geral — Proporcionalidade»
1. O Haut conseil du commissariat aux comptes (Conselho Superior da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, França; a seguir «H3C») era, à data dos factos objeto do presente reenvio prejudicial (2), a autoridade pública de supervisão dos revisores oficiais de contas em França.
2. Uma formação reduzida do H3C é responsável pela decisão de aplicação de uma coima e de proibição do exercício da profissão em relação a um revisor oficial de contas a que foi imputada a realização de atividades que, segundo o direito nacional, são incompatíveis com o seu estatuto.
3. Antes de tomar a sua decisão, a formação reduzida do H3C submete ao Tribunal de Justiça as questões que se lhe suscitaram sobre a compatibilidade com o direito da União da legislação francesa que proíbe que os revisores oficiais de contas desempenhem atividades comerciais, com exceção das acessórias à profissão de contabilista. Para esse efeito, solicita a interpretação da Diretiva 2006/123/CE (3), da Diretiva 2006/43/CE (4) e do Regulamento (UE) n.º 537/2014 (5).
4. O pedido de decisão prejudicial será admissível se o Tribunal de Justiça aceitar que a formação reduzida do H3C exerce funções jurisdicionais, na aceção do artigo 267.º TFUE, o que não é aceite pelo Governo Francês. Pelos motivos que explicarei adiante, concordo com este Governo no sentido de que o Tribunal de Justiça não deveria admitir o pedido.
I. Quadro jurídico
A. Direito da União
1. Diretiva 2006/123
5. Em conformidade com o artigo 3.º («Relação com outras disposições do direito comunitário»):
«1. Sempre que haja um conflito entre uma disposição da presente diretiva e um outro instrumento comunitário que discipline aspetos específicos do acesso e do exercício da atividade de um serviço em domínios ou profissões específicos, as disposições desse instrumento comunitário prevalecem e aplicam‑se a esses domínios ou profissões específicos. […]».
6. O artigo 25.º («Atividades pluridisciplinares») dispõe:
«1. Os Estados‑Membros devem assegurar que os prestadores não estejam sujeitos a requisitos que os obriguem a exercer exclusivamente uma atividade específica ou que limitem o exercício conjunto ou em parceria de atividades diferentes.
Todavia, podem estar sujeitos a requisitos deste tipo os seguintes prestadores:
a) As profissões regulamentadas, na medida em que tal se justifique, para garantir o respeito das regras deontológicas, que variam em função da especificidade de cada profissão, e seja necessário para assegurar a sua independência e imparcialidade;
[…]».
2. Diretiva 2006/43
7. O artigo 22.º («Independência e objetividade») contém as regras cujo cumprimento deve ser assegurado pelos Estados‑Membros para que, em substância, os revisores oficiais de contas ou as sociedades de revisores oficiais de contas sejam independentes relativamente à entidade auditada, não tenham interesses financeiros nessa entidade ou em entidades com ela relacionadas e evitem os conflitos de interesses com umas e outras.
8. Nos termos do artigo 52.º («Harmonização mínima»):
«Os Estados‑Membros que exijam a revisão legal de contas podem impor requisitos mais exigentes, salvo disposições em contrário na presente diretiva».
3. Regulamento n.º 537/2014
9. O artigo 5.º («Proibição da prestação de serviços distintos da auditoria») prevê:
«1. O revisor oficial de contas ou a sociedade de revisores oficiais de contas que realize a revisão legal de contas de uma entidade de interesse público, ou qualquer membro da rede a que esse revisor ou essa sociedade pertença, não prestam direta ou indiretamente à entidade auditada, à sua empresa-mãe ou às entidades sob o seu controlo na União quaisquer serviços distintos da auditoria proibidos:
a) Durante o período compreendido entre o início do período auditado e a emissão do relatório de auditoria ou certificação legal das contas; e
b) Durante o exercício financeiro imediatamente anterior ao período referido na alínea i) em relação aos serviços enumerados no segundo parágrafo, alínea e).
Para efeitos do presente artigo, entende-se por “serviços distintos da auditoria proibidos”:
[…]
2. Os Estados‑Membros podem proibir outros serviços, para além dos referidos no n.º 1, quando considerem que estes serviços representam uma ameaça à independência […].
[…]».
B. Direito francês
1. Code de commerce (Código Comercial)
a) Regulamentação do H3C aplicável ratione temporis
10. O n.º I do artigo L. 821-1 dispõe que o H3C exerce, nomeadamente, as seguintes funções: registo dos revisores oficiais de contas; adoção de regras relativas à deontologia dos revisores oficiais de contas, ao controlo interno de qualidade e ao exercício da profissão; supervisão do cumprimento das obrigações dos revisores neste âmbito; e aplicação de sanções.
11. O n.º II do artigo L. 821-2 estabelece que o H3C decide em formação reduzida quanto às sanções.
12. De acordo com o artigo L. 821-3-1, o H3C dispõe de um serviço responsável pela inspeção prévia à abertura dos procedimentos sancionatórios. Este serviço é dirigido por um rapporteur général (relator geral).
13. O artigo L. 824-4 prevê que o presidente do H3C comunica ao relator geral qualquer facto suscetível de justificar a instauração de um procedimento sancionatório. O relator geral também pode instaurar um procedimento com base nas denúncias que lhe sejam dirigidas.
b) Incompatibilidades dos revisores oficiais de contas
14. O artigo L. 822-10, na sua redação anterior à Lei n.º 2019-486, de 22 de maio de 2019 (6), estabelecia que as funções de revisor oficial de contas são incompatíveis:
«1º Com qualquer atividade ou ato que seja suscetível de afetar a sua independência.
2º Com qualquer atividade por conta de outrem; no entanto, um revisor oficial de contas pode lecionar no âmbito do exercício da sua profissão ou exercer uma atividade por conta de outrem para um revisor oficial de contas ou para um contabilista.
3º Com qualquer atividade comercial, quer seja exercida diretamente quer por interposta pessoa».
15. A Lei n.º 2019-486 introduziu duas exceções à terceira das incompatibilidades mencionadas. Em virtude da mesma, as funções de revisor são, desde então, compatíveis com:
– As atividades comerciais acessórias à profissão de contabilista, que devem ser exercidas em conformidade com as regras deontológicas e de independência dos revisores oficiais de contas e n as condições previstas no terceiro parágrafo do artigo 22.º do Decreto n.º 45-2138 de 19 de setembro de 1945 (7); e
– as atividades comerciais acessórias exercidas por uma «sociedade multiprofissional» em conformidade com as condições previstas no artigo 31-5 da Lei n.º 90-1258 (8).
2. Decreto n.º 45-2138
16. Segundo o artigo 22.º:
«As funções de contabilista são incompatíveis com qualquer atividade profissional ou com qualquer ato suscetível de afetar a independência de quem a exerce, designadamente:
[…]
Com qualquer atividade comercial ou intermediação para além daquelas que se relacionam com o exercício da profissão, salvo se for exercida a título acessório e não for suscetível de pôr em causa o exercício da profissão ou a independência dos membros contabilistas, bem como o respeito por estes últimos das regras inerentes ao seu estatuto e deontologia […]».
II. Matéria de facto, litígio e questões prejudiciais
17. MO é revisor oficial de contas desde 1976. Está também inscrito na Ordem dos Contabilistas desde 1967.
18. MO detém, direta ou indiretamente, através da sociedade anónima Fiducial International, 99,9 % do capital da sociedade de direito civil Fiducial («sociedade Fiducial SC»), da qual é gerente. Essa sociedade é a sociedade‑mãe do grupo pluridisciplinar Fiducial, constituído por MO em 1970 (9).
19. Em 3 de janeiro de 2022, a presidente do H3C deu conhecimento ao relator geral de uma série de factos que poderiam levar a pressupor que MO exercia atividades comerciais incompatíveis com as funções de revisor. Nesse mesmo dia, o relator geral deu início a uma inspeção do incumprimento das obrigações de MO relativas ao exercício da revisão oficial de contas.
20. Em 13 de outubro de 2022, foi formalmente instaurado um procedimento sancionatório contra MO.
21. A formação reduzida do H3C deve decidir se MO violou, desde 3 de janeiro de 2016, o ponto 3 do artigo L. 822-10 do Código de Comércio. MO teria cometido essa infração ao exercer, direta ou indiretamente, através das sociedades Fiducial SC e Fiducial International, atividades comerciais não acessórias à profissão de contabilista e, por conseguinte, incompatíveis com as funções de revisor oficial de contas (10).
22. Na sessão realizada em 13 de abril de 2023, o relator geral solicitou que se retirasse MO do registo de revisores oficiais de contas, que lhe fosse aplicada uma sanção pecuniária de 250 000 euros e que fosse ordenada a publicação da decisão num jornal económico ou financeiro a expensas do interessado.
23. Na mesma sessão, o representante de MO pediu a sua exoneração de responsabilidade alegando que o artigo L. 822-10, ponto 3, do Código Comercial era contrário ao direito da União, designadamente ao artigo 25.º da Diretiva 2006/123.
24. A formação reduzida do H3C tem dúvidas quanto ao facto de a proibição imposta aos revisores oficiais de contas de desempenharem atividades comerciais ser compatível com o artigo 25.º da Diretiva 2006/123, conjugado com outras disposições do direito da União.
25. Para a formação reduzida do H3C, em síntese:
– Essa proibição pode prevenir situações de conflito de interesses e, consequentemente, limitar os riscos de perda da independência e da imparcialidade dos revisores oficiais de contas.
– A proibição podia basear‑se no poder de os Estados‑Membros imporem normas mais rigorosas do que as expressamente previstas na Diretiva 2006/43.
– As exceções a esta proibição (que autorizam os revisores oficiais de contas a desempenharem atividades comerciais acessórias da profissão de contabilista ou atividades comerciais exercidas a título acessório por uma sociedade constituída para o exercício comum de determinadas profissões liberais) limitam o dano causado à liberdade de os revisores oficiais de contas diversificarem as suas atividades. Simultaneamente, determinam que essas atividades autorizadas estejam sujeitas a determinados requisitos deontológicos impostos aos contabilistas ou a outras profissões regulamentadas (11).
26. Neste contexto, a formação reduzida do H3C submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) Deve o artigo 25.º da Diretiva [2006/123], tendo em consideração, em especial, as disposições da Diretiva [2006/43] e [d]o Regulamento [n.º 537/2014] ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional proíba os revisores oficiais de contas e as sociedades de revisores oficiais de contas de exercerem qualquer atividade comercial, quer seja exercida diretamente ou por interposta pessoa?
2) Em caso de resposta afirmativa, o mesmo se aplica quando essa legislação exclui do âmbito de aplicação dessa proibição, por exceção, por um lado, as atividades comerciais acessórias à profissão de contabilista certificado, exercidas no respeito pelas regras deontológicas e de independência dos revisores oficiais de contas e em conformidade com as condições previstas no terceiro parágrafo do artigo 22.º [do Decreto n.º 45-2138], e, por outro, as atividades comerciais acessórias exercidas por uma sociedade multiprofissional em conformidade com as condições previstas no artigo 31-5 da Lei n.º 90-1258, de 31 de dezembro de 1990?»
III. Tramitação processual no Tribunal de Justiça
27. O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de junho de 2023.
28. Foram apresentadas observações escritas por MO, pelos Governos Belga e Francês e pela Comissão Europeia. Todos, exceto o Governo Belga, compareceram na audiência realizada em 9 de abril de 2024.
IV. Apreciação
A. Admissibilidade do reenvio prejudicial
29. O Governo Francês considera que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, dado que a formação reduzida do H3C não é um órgão jurisdicional com legitimidade para submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, em conformidade com o artigo 267.º TFUE.
30. A sua objeção baseia‑se no Acórdão CityRail (12) e é formulada, em substância, nos seguintes termos:
– O H3C é uma autoridade administrativa independente, fator que, como salienta o Acórdão CityRail (n.º 45), reveste uma especial importância para decidir se as suas decisões são de natureza jurisdicional, indo além dos critérios tradicionais (13) a que se refere o órgão jurisdicional de reenvio. O H3C «referiu-se aos [«critérios Vaassen-Göbbels»] sem examinar por que razão a decisão a proferir seria de natureza jurisdicional no sentido da jurisprudência do Tribunal de Justiça» (14).
– No sistema de supervisão pública da revisão oficial de contas, o H3C dá cumprimento à Diretiva 2006/43, cujo artigo 30.º‑D exige que as suas decisões sejam passíveis de recurso. Em França, compete ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) conhecer, em primeira e última instância, dos recursos de plena jurisdição das decisões do H3C. Este fator é um indício da natureza administrativa dessas decisões (Acórdão CityRail, n.º 62).
– As sanções aplicadas pelo H3C são sanções administrativas que, por definição, não são aplicadas pelos órgãos judiciais. A formação reduzida do H3C não controla a legalidade de uma decisão previamente adotada, apenas toma posição, pela primeira vez, no âmbito de um procedimento administrativo sancionatório.
– As modalidades de organização interna do H3C decorrem de exigências constitucionais, visto que separam as funções de inspeção e instrução, por um lado, e as de decisão de pronunciar a sanção, por outro. Prosseguem o objetivo de assegurar o direito de defesa e a natureza contraditória do procedimento sancionatório. A decisão tomada pela formação reduzida do H3C no termo desse procedimento é imputada ao próprio H3C «enquanto instituição».
31. Considero que a objeção do Governo Francês deve ser julgada procedente. Inevitavelmente irei remeter, no sentido de fundamentar a minha opinião, tanto para as considerações expostas nas conclusões no processo CityRail (15) como no acórdão nele proferido.
1. Reenvio prejudicial e autoridades independentes de supervisão
32. A verificação dos critérios Vaassen-Göbbels obedece à metodologia habitualmente seguida para determinar quando é que um pedido de decisão prejudicial provém de um órgão jurisdicional, na aceção do artigo 267.º TFUE.
33. No entanto, na aplicação das categorias do artigo 267.º TFUE às autoridades independentes de regulação e supervisão, os critérios Vaassen-Göbbels (especialmente o da independência do órgão) passam a um segundo plano. Não basta que os mesmos sejam preenchidos para que aquelas autoridades tenham a qualidade de órgão jurisdicional(16)
34. O que é relevante, para este efeito, é comprovar se essas autoridades independentes, dada a natureza específica das suas funções num determinado contexto, decidem no âmbito de um processo que termine com a prolação de uma decisão de caráter jurisdicional (17).
35. Assim o declarou o Tribunal de Justiça: «Esta verificação reveste especial importância na presença de autoridades administrativas cuja independência é uma consequência direta das exigências que decorrem do direito da União, que lhes confere competências de controlo setorial e de vigilância dos mercados. Embora essas autoridades sejam suscetíveis de responder aos critérios […] Vaassen-Göbbels […], a atividade de controlo setorial e de vigilância dos mercados é, essencialmente, de natureza administrativa […], na medida em que implica o exercício de competências que são diferentes das atribuídas aos órgãos jurisdicionais» (18).
36. O artigo L. 821-1 do Código Comercial francês define o H3C como autoridade pública independente. O Governo Francês, depois de apontar que essa independência é consequência direta das exigências do direito da União (19), sublinha o caráter administrativo, e não jurisdicional, das competências do H3C.
2. Funções sancionatórias das autoridades independentes
37. O artigo 32.º, n.º 4, da Diretiva 2006/43 refere-se a uma vasta gama de funções dos reguladores nacionais em matéria de revisão oficial de contas. Trata‑se de um leque de missões tipicamente administrativas, que constituem o contexto específico em que exercem as suas atribuições (20).
38. Entre essas funções salienta‑se, no que aqui importa, a que a Diretiva 2006/43 lhes atribui no capítulo VI («Inspeção e sanções»). O seu artigo 30.º‑A outorga poderes sancionatórios às autoridades nacionais, sublinhando que se trata de «sanções administrativas», o que é reiterado no artigo 30.º‑C.
39. O H3C tem competência sancionatória de natureza administrativa no âmbito da revisão oficial de contas. Essa característica, desde logo, «constitui um indício da [sua] natureza administrativa e não jurisdicional» (21).
40. Na audiência houve alguma discussão sobre a questão de saber se a jurisprudência CityRail devia ser considerada aplicável apenas às funções reguladoras das autoridades independentes ou alargar‑se também às suas funções sancionatórias (22). Na minha opinião, não há motivos para reduzir o alcance daquele acórdão, tanto mais que a atribuição de poderes sancionatórios às autoridades independentes é, em muitos casos, um instrumento chave para o desempenho das suas missões.
3. Procedimento sancionatório
41. Constitui, igualmente, um indício de que um órgão não exerce funções jurisdicionais, mas administrativas, «o poder de instaurar processos oficiosamente […], bem como o de aplicar, também oficiosamente, sanções nas matérias da sua competência» (23).
42. Ora, o H3C, em casos como o dos autos, age oficiosamente, sem que tenha havido uma denúncia prévia (24), na sequência de a instauração do processo ter sido ordenada pela sua presidente. Na fase final do procedimento sancionatório intervém efetivamente uma formação reduzida, mas esta formação não deixa de ser um dos órgãos que integram o próprio H3C. A este é atribuída, como salienta o Governo Francês, a autoria das decisões dos seus órgãos internos. O H3C não é, assim, uma autoridade que tenha a qualidade de terceiro em relação à sua formação reduzida ou vice‑versa.
43. É certo que o impulso processual cabe ao relator geral. No entanto, mesmo quando o responsável pela decisão final não seja quem acompanha a tramitação do procedimento, é o H3C, em definitivo, que assume todas as funções, embora de forma separada ou desdobrada entre diversas unidades da sua estrutura orgânica.
44. A estrutura do procedimento administrativo seguido neste caso revela que, em bom rigor, não se trata de um litígio entre partes, mas de um processo dirigido de forma inquisitiva contra MO. A formação reduzida do H3C não exerce uma função de controlo de uma decisão anterior, mas toma posição e decide pela primeira vez no exercício do poder sancionatório. (25)
45. No que se refere à separação das funções de instrução das funções decisórias no âmbito sancionatório, é lógico que o órgão que tem de decidir seja distinto do competente para inspecionar os factos e para elaborar a imputação. O Governo Francês salienta, como já referi, que essa separação obedece a exigências constitucionais (26).
46. Por conseguinte, a separação das atividades instrutória e decisória, no contexto do processo principal, não é um elemento indicador do exercício de funções jurisdicionais.
47. A decisão que a formação reduzida do H3C adotar no termo do procedimento não tem, em caso algum, força de caso julgado, contrariamente ao que sucede com as decisões jurisdicionais.
48. Na audiência, o Governo Francês indicou que, por derrogação à regra geral, o órgão sancionatório pode revogar posteriormente a medida adotada, poder que não se enquadra na natureza das decisões jurisdicionais (27). A defesa de MO opôs‑se, todavia, a esta possibilidade.
4. Recursos judiciais interpostos das decisões da autoridade independente
49. O Tribunal de Justiça qualificou de «administrativa» a atividade dos organismos reguladores que não têm por missão fiscalizar a legalidade de uma decisão, mas tomar posição, pela primeira vez, sobre a queixa de um administrado e cujas decisões são suscetíveis de recurso judicial (28).
50. Além disso, indicou:
– A circunstância de que os Estados‑Membros devem garantir «que as decisões tomadas pela entidade reguladora possam ser objeto de fiscalização jurisdicional […] constitui um indício da natureza administrativa dessas decisões» (29).
– «[E]ssa participação da Autoridade num procedimento de recurso, pondo em causa a sua própria decisão, constitui um indício de que, quando a adota, a Autoridade não tem qualidade de terceiro em relação aos interesses em presença» (30).
51. O órgão jurisdicional de reenvio ignora, no seu pedido de decisão prejudicial, a importância do regime da fiscalização jurisdicional das suas decisões. As observações do Governo Francês revelam, pelo contrário, que, de acordo com o artigo 30.º‑D da Diretiva 2006/43 (31), a decisão da formação reduzida do H3C é passível de recurso para o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional).
52. Ao decidir esse recurso, que é de plena jurisdição, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) exerce uma fiscalização completa, factual e jurídica da decisão adotada pela formação reduzida do H3C, que o Governo Francês qualifica de «instância administrativa» (32).
53. Esta sujeição à fiscalização jurisdicional determina que a decisão sancionatória do H3C «não [seja] suscetível de se revestir das características de uma decisão judicial, nomeadamente da autoridade de caso julgado» (33). Pelo contrário, poderá dar lugar a um processo judicial, no qual o H3C intervém como recorrido (34). Uma vez mais, este fator «constitui um indício de que, quando a adota, a Autoridade não tem qualidade de terceiro em relação aos interesses em presença» (35).
54. Será durante a intervenção posterior de um verdadeiro órgão jurisdicional [o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional)] que este se pode dirigir ao Tribunal de Justiça, se o considerar necessário, para expor as suas dúvidas sobre a interpretação do direito da União (36).
55. Não existe, assim, risco de vazio quanto a essa interpretação. Do ponto de vista da unidade de interpretação do direito da União, «a existência dos referidos recursos judiciais permite garantir a eficácia do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º TFUE» (37).
5. Conclusão intercalar
56. A totalidade dos fatores que acabo de expor revela que a formação reduzida do H3C não exerce funções jurisdicionais quando aplica uma sanção administrativa ao revisor oficial de contas. Do mesmo modo, não está autorizada a fazer uso do mecanismo do artigo 267.º TFUE. O seu pedido de decisão prejudicial é, portanto, inadmissível.
57. De qualquer forma, para o caso de o Tribunal de Justiça não partilhar desta posição, irei analisar o mérito desse pedido.
B. Quanto ao mérito
1. Considerações prévias
58. A primeira questão prejudicial refere‑se à legislação nacional que proíbe o exercício de qualquer atividade comercial aos revisores oficiais de contas e às sociedades de revisores oficiais de contas. O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se essa legislação é contrária ao artigo 25.º da Diretiva 2006/123 «tendo em consideração, em especial, as disposições da Diretiva [2006/43] e do Regulamento [n.º 537/2014]», que não especifica.
59. A segunda questão prejudicial é suscitada para o caso de se responder afirmativamente à primeira. Nessa hipótese, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o sentido da resposta seria alterado caso a legislação nacional admita certas exceções à incompatibilidade (atividades comerciais acessórias à profissão de contabilista certificado ou exercidas por uma sociedade multiprofissional).
60. Antes de mais há que clarificar a sequência temporal das normas internas, dado que os factos imputados a MO se verificaram entre 3 de janeiro de 2016 e o dia em que foi iniciada a inspeção, 3 de janeiro de 2022. Neste período sucederam‑se dois regimes jurídicos diferentes quanto ao ponto 3 do artigo L. 822-10 do Código Comercial:
– De 3 de janeiro de 2016 até à entrada em vigor da Lei n.º 2019-486, aplicava‑se a proibição absoluta de os revisores oficiais de contas desempenharem qualquer atividade comercial, diretamente ou por interposta pessoa.
– A partir da entrada em vigor da Lei n.º 2019-486, essa proibição é matizada e admitem‑se as duas exceções que já transcrevi (38).
61. Cada uma das questões corresponde às respetivas referências normativas aplicáveis nesses subperíodos.
62. Sob outra perspetiva, e no que se refere à segunda questão prejudicial, não é clara a razão de introduzir na discussão a exceção relativa às «atividades comerciais acessórias exercidas por uma sociedade multiprofissional em conformidade com os requisitos estabelecidos no artigo 31-5 da Lei n.º 90-1258 […]». Considero, como o Governo Francês (39), que, à vista dos factos imputados a MO, esta disposição poderia não ser pertinente no processo dos autos.
63. Com efeito, não está aqui em causa a questão de saber se uma sociedade de revisores oficiais de contas pode integrar outros profissionais e exercer simultaneamente atividades diferentes das que são próprias da revisão oficial de contas (40). O problema suscitado neste litígio é apenas o de saber se um revisor oficial de contas que seja uma pessoa singular pode, através de sociedades cujo capital detém ou nas quais participa, desempenhar outras atividades comerciais.
64. Assim, concentrar‑me‑ei, quanto à segunda questão prejudicial, na exceção relativa às «atividades comerciais acessórias à profissão de contabilista certificado, exercidas no respeito das regras deontológicas e de independência dos revisores oficiais de contas e em conformidade com as condições previstas no terceiro parágrafo do artigo 22.º do Decreto n.º 45-2138».
2. Disposições de direito da União aplicáveis
65. As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio apontam para a interpretação do artigo 25.º da Diretiva 2006/123, à luz da Diretiva 2006/43 (que disciplina a atividade dos revisores oficiais de contas na União e do Regulamento n.º 537/2014 (que regula apenas a revisão legal de contas das entidades de interesse público) (41).
66. De acordo com o artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 2006/123 (42), sempre que haja um «conflito» entre esta e a Diretiva 2006/43 ou o Regulamento n.º 537/2014, prevaleceria a aplicação destes últimos, ou seja, a lex specialis seria aplicada preferencialmente à lex generalis.
67. O artigo 25.º da Diretiva 2006/123, ao versar sobre as atividades pluridisciplinares, consagra um princípio geral mitigado por várias exceções:
– O princípio geral (n.º 1, primeiro parágrafo) é o de que «os prestadores não estejam sujeitos a requisitos que os obriguem a exercer exclusivamente uma atividade específica» ou a requisitos «que limitem o exercício conjunto ou em parceria de atividades diferentes».
– A exceção (n.º 1, segundo parágrafo) que aqui interessa é a que respeita às profissões regulamentadas, nomeadamente a dos revisores oficiais de contas. O seu regime pode não respeitar o princípio geral, isto é, a liberdade de exercer atividades pluridisciplinares: a) se tal se justificar para garantir o respeito das regras deontológicas inerentes à especificidade de cada profissão; e b) se for necessário para assegurar a independência e a imparcialidade de quem exerce essa profissão (43).
68. Quanto à Diretiva 2006/43 (especialmente após ter sido alterada pela Diretiva 2014/56) e ao Regulamento n.º 537/2014, ambos estes instrumentos visam impor aos revisores oficiais de contas normas éticas rigorosas, no que respeita à sua integridade, independência e objetividade (44). A Diretiva 2014/56 tratou de «reforçar, através de uma harmonização mais aprofundada, particularmente, a independência dos revisores oficiais de contas na execução da sua função» (45).
69. Nos termos do artigo 52.º da Diretiva 2006/43, «[o]s Estados‑Membros que exijam a revisão legal de contas podem impor requisitos mais exigentes, salvo disposições em contrário na presente diretiva». No mesmo sentido, segundo o artigo 5.º, n.º 2, do Regulamento n.º 537/2014, os Estados‑Membros podem proibir aos revisores oficiais de contas das entidades de interesse público a prestação de outros serviços (à entidade auditada) distintos da auditoria se esses serviços representarem uma ameaça à independência.
70. O artigo 25.º da Diretiva 2006/123 encontra um ponto de interseção com o artigo 22.º («Independência e objetividade») da Diretiva 2006/43 e com o artigo 5.º («Proibição da prestação de serviços distintos da auditoria») do Regulamento n.º 537/2014 na garantia da independência do revisor oficial de contas, para cuja salvaguarda são determinadas as incompatibilidades e proibições.
71. Ora, à semelhança da Comissão (46), não considero que neste caso haja, propriamente, um conflito entre a aplicação de umas e outras disposições do direito da União, que substitua a Diretiva 2006/123 por força da regra de especialidade consagrada no seu artigo 3.º, n.º 1. Pelo contrário, há uma relação de complementaridade.
72. Tratar‑se‑á, assim, de decidir se a legislação francesa, ao proibir aos revisores oficiais de contas o exercício de atividades comerciais, respeita a exceção prevista no artigo 25.º, n.º 1, segundo parágrafo, alínea a), da Diretiva 2006/123 e também as disposições instituídas pela Diretiva 2006/43 e pelo Regulamento n.º 537/2014 para assegurar a independência e a imparcialidade desses profissionais.
3. Resposta conjunta às duas questões prejudiciais
73. O artigo 52.º da Diretiva 2006/43 e o artigo 5.º, n.º 2, do Regulamento n.º 537/2014 autorizam os Estados‑Membros a ultrapassar os limites do artigo 22.º da Diretiva 2006/43 e do artigo 5.º, n.º 1, do Regulamento n.º 537/2014.
74. Os Estados‑Membros podem, assim, impor aos revisores oficiais de contas restrições mais rigorosas. É o que acontece no direito francês.
75. No entanto, este poder não é incondicional. Os Estados‑Membros devem respeitar as disposições do Tratado FUE relativas tanto à liberdade de estabelecimento como à livre prestação de serviços, previstas, respetivamente, nos artigos 49.º e 56.º TFUE (47).
76. Nos termos dos seus considerandos 2 e 5, o desígnio da Diretiva 2006/123 é, precisamente, eliminar as restrições à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de serviços entre os Estados‑Membros. Na medida em que estes objetivos, dos quais decorre o regime instaurado pela Diretiva 2006/123, coincidem com os dos artigos 49.º e 56.º TFUE, não é necessário recorrer ao direito primário e são suficientes as disposições daquela diretiva.
77. Mesmo que neste processo não existam elementos transfronteiriços, os requisitos impostos pela legislação controvertida poderiam desencorajar o estabelecimento ou a prestação de serviços em França de revisores oficiais de contas provenientes de outros Estados‑Membros (48). Uma norma de um Estado‑Membro que proíbe os revisores oficiais de contas de exercer qualquer outra atividade comercial é suscetível, por si só, de afetar negativamente a liberdade de circulação dos revisores oficiais de contas dos restantes Estados‑Membros (49).
78. As restrições das liberdades fundamentais podem considerar‑se justificadas se se basearem em razões imperiosas de interesse geral e, em caso afirmativo, se não excederem o necessário à realização dos objetivos prosseguidos (50).
79. A essa justificação e necessidade se refere o artigo 25.º, n.º 1, segundo parágrafo, alínea a), da Diretiva 2006/123 quando autoriza que os Estados‑Membros imponham, às profissões regulamentadas, requisitos que limitam o desempenho de atividades pluridisciplinares. Embora não tenham a mesma redação, deve considerar‑se implicitamente subjacente aos artigos 52.º da Diretiva 2006/43 e 5.º, n.º 2, do Regulamento n.º 537/2014.
a) Conteúdo da restrição
80. Importa, antes de mais, determinar o âmbito da restrição. A interpretação do direito nacional não compete ao Tribunal de Justiça, mas da decisão de reenvio e das observações das partes infere‑se que a proibição de exercer qualquer atividade comercial tem um caráter quase absoluto.
81. É certo que, após a aprovação da Lei n.º 2019-486, os revisores oficiais de contas podem desempenhar as atividades comerciais acessórias à profissão de contabilista (51) (admissíveis sob determinadas condições) (52) e as atividades comerciais acessórias exercidas por uma «sociedade multiprofissional», nas condições previstas pelo artigo 31-5 da Lei n.º 90-1258. Essas exceções, todavia, têm um caráter muito limitado, que não consegue ocultar o alcance quase global da própria proibição.
b) Justificação da restrição
82. Segundo o Governo Francês, a independência obrigatória dos revisores oficiais de contas, responsáveis por uma missão de interesse geral, tem como corolário a incompatibilidade com o seu acesso ao exercício de atividades comerciais. A restrição ao exercício dessas atividades justificar‑se‑ia pelos seguintes motivos:
– A legislação nacional pretenderia evitar que o revisor oficial de contas se converta num interveniente comum do mundo económico. A imbricação dos diferentes setores (bancários, económicos ou financeiros) cria interferências potenciais, suscetíveis de gerar suspeitas. A proibição de acumular atividades garante a um terceiro objetivo, razoável e informado, que o revisor oficial de contas não é um agente económico comum, capaz de interagir direta ou indiretamente com as entidades controladas.
– A incompatibilidade também se explicaria pela especial obrigação de competência profissional a que está sujeito o revisor oficial de contas. O exercício de uma atividade comercial distinta da revisão oficial de contas poderia minorar a sua dedicação e afetar a sua competência profissional.
– O direito da União e o direito nacional concedem à profissão o monopólio da revisão legal de contas, atividade regulamentada e de interesse geral. Parece legítimo esperar que os revisores oficiais de contas se dediquem efetivamente a esta função específica.
83. O Governo Francês põe, assim, o acento tónico no monopólio da revisão legal de contas, o que se relaciona com a dimensão externa da sua independência: o público deve ver o revisor oficial de contas como um profissional de confiança, distanciado da vida económica ordinária.
84. Na minha opinião, os motivos de interesse geral alegados pelo Governo Francês explicariam que os revisores oficiais de contas sejam sujeitos a certas restrições no exercício de atividades comerciais, distintas da própria auditoria. Ora, o que poderia comprometer a independência dos revisores oficiais de contas (ou das sociedades de revisores oficiais de contas ou membros da sua rede) é a prestação às entidades auditadas de certos serviços distintos da revisão legal de contas (53).
85. Admitindo‑se, o que é muito improvável, que esse mesmo perigo para a independência pudesse provir da prestação ao público, em geral, de serviços distintos da revisão legal de contas pelos revisores oficiais de contas (54), o problema não seria tanto a justificação, em abstrato, de um regime restritivo, mas sim o conteúdo concreto das proibições impostas, que pudesse exceder o necessário para realizar o seu objetivo.
c) Proporcionalidade
86. O Governo Francês considera que a legislação controvertida é proporcionada: o revisor oficial de contas não é obrigado a exercer exclusivamente esta atividade específica, uma vez que também pode desempenhar a de contabilista, à qual se referem as duas exceções introduzidas pela Lei n.º 2019-486 (55).
87. O Governo Francês completa o seu raciocínio excluindo a possibilidade de a mesma finalidade poder ser alcançada através de outras medidas menos onerosas. Assim aconteceria com a instauração de um regime de autorização prévia, com a redação de uma lista de atividades proibidas ou com um mecanismo obrigatório de publicação dos seus relatórios de auditoria. Nenhuma dessas medidas responderia à necessidade de os terceiros ficarem cientes da independência do revisor oficial de contas.
88. Pelo contrário, a Comissão considera que a proibição se afigura desproporcionada em relação ao seu objetivo. Para a consecução deste já há outras disposições da lei francesa, que são referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio (56), sem que fique bem explícito o motivo pelo qual deveriam ser completadas com aquela proibição. Em especial, o artigo L. 822-10, ponto 1, do Código Comercial francês exclui qualquer atividade que possa afetar a independência do revisor oficial de contas.
89. É ao órgão jurisdicional de reenvio que caberá (caso se admita que é competente para submeter pedidos de decisão prejudicial) avaliar da proporcionalidade das normas controvertidas. No entanto, o Tribunal de Justiça pode fornecer‑lhe algumas orientações como as que a proponho em seguida.
90. Em primeiro lugar, não concordo com a tese do Governo Francês sobre a interpretação do artigo 25.º, n.º 1, da Diretiva 2006/123 no que se refere ao advérbio exclusivamente. Na minha opinião, que coincide com a da Comissão, a obrigação de «exercer exclusivamente uma atividade específica» subsiste quando uma legislação nacional permite que a essa atividade acresça outra acessória de menor importância, proibindo o exercício simultâneo de todas as restantes atividades de natureza comercial, como sucede neste caso. Se se adotasse a tese do Governo Francês, um Estado‑Membro poderia, através de concessões mínimas, contornar facilmente os objetivos prosseguidos pela norma.
91. Em segundo lugar, e sob a mesma perspetiva, a proibição quase absoluta de os revisores oficiais de contas exercerem atividades comerciais (já referi que as duas exceções admissíveis têm um alcance muito limitado) obedece a uma «inversão da lógica prescrita pelo artigo 25.º da Diretiva 2006/123» (57). Se, em conformidade com esta disposição, o livre exercício de atividades pluridisciplinares deve ser a regra para os prestadores de serviços, a legislação francesa adota, justamente, o princípio contrário quanto aos revisores oficiais de contas.
92. Em terceiro lugar, como salienta a Comissão, a independência do revisor oficial de contas já se encontra assegurada por outras disposições do direito francês, sem sequer se referir que o código deontológico dessa profissão contém igualmente regras destinadas a evitar os conflitos de interesses.
93. Em quarto lugar, as duas exceções autorizadas, relativas a certas atividades comerciais acessórias, não são suficientes para demonstrar a proporcionalidade da proibição geral. Devo recordar que «o artigo 25.º, n.º 1, segundo parágrafo, alínea a), da Diretiva 2006/123 não prevê a possibilidade de sujeitar o exercício conjunto de uma profissão regulamentada com outra atividade à condição de esta última ser acessória» (58).
94. Em quinto lugar, o legislador francês poderia identificar, através de um catálogo ou lista semelhante à do artigo 5.º do Regulamento n.º 537/2014, os serviços distintos da revisão oficial de contas que, em concreto, são proibidos aos revisores oficiais de contas para assegurar a sua independência ou a imagem que desta independência tenha o público em geral. Em face do que é alegado pelo Governo Francês, esta técnica dá um resultado menos gravoso do que a proibição (quase) generalizada imposta pela lei controvertida, ao mesmo tempo que daria igualmente cumprimento ao objetivo de manter a independência do revisor oficial de contas.
95. Se adotasse essa solução, o legislador deveria justificar: a) por que motivo uma lista aplicável, segundo o Regulamento n.º 537/2014, apenas à revisão legal de contas de uma entidade de interesse público é alargada à revisão oficial de contas de entidades desprovidas desse caráter; e b) por que motivo uma lista aplicável apenas a determinados serviços (distintos da revisão legal de contas) prestados à entidade examinada é ampliada a outras atividades comerciais que o revisor oficial de contas possa prestar a pessoas ou entidades que não audita.
96. A interdição geral de atividades comerciais distintas da revisão legal de contas aparece, assim, à primeira vista, como desproporcionalmente rigorosa e excedendo o objetivo de assegurar a independência e a objetividade dos revisores oficiais de contas. Nessa mesma medida, não respeita o artigo 25.º, n.º 1, da Diretiva 2006/123, o artigo 52.º da Diretiva 2006/43 e o artigo 5, n.º 2, do Regulamento n.º 537/2014.
V. Conclusão
97. Atendendo ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça declare a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial.
Subsidiariamente, proponho que responda a esse pedido nos seguintes termos:
«O artigo 25.º da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno, em conjugação com os artigos 22.º e 52.º da Diretiva 2006/43/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2006, relativa à revisão legal das contas anuais e consolidadas, e o artigo 5.º, n.os 1 e 2, do Regulamento (UE) n.º 537/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativo aos requisitos específicos para a revisão legal de contas das entidades de interesse público,
deve ser interpretado no sentido de que:
se opõe, em princípio, a uma legislação nacional que proíba os revisores oficiais de contas de exercer qualquer atividade comercial, diretamente ou por interposta pessoa, com exceção das atividades comerciais acessórias à profissão de contabilista. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se essa legislação se baseia em razões de interesse geral que justifiquem a proibição e se esta é indispensável para assegurar a independência e a objetividade dos revisores oficiais de contas.»