Language of document : ECLI:EU:T:2009:317

Processo T‑301/04

Clearstream Banking AG e

Clearstream International SA

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Concorrência – Abuso de posição dominante – Serviços financeiros – Decisão que declara a existência de uma infracção ao artigo 82.° CE – Recusa de prestação de serviços transfronteiriços de compensação e de liquidação – Preços discriminatórios – Mercado relevante – Imputabilidade do comportamento ilícito»

Sumário do acórdão

1.      Concorrência – Posição dominante – Mercado em causa – Delimitação – Apreciação económica complexa – Poder de apreciação da Comissão – Fiscalização jurisdicional – Limites

(Artigo 82.° CE)

2.      Concorrência – Posição dominante – Mercado em causa – Delimitação – Critérios

(Artigo 82.° CE)

3.      Concorrência – Posição dominante – Mercado em causa – Delimitação – Critérios – Substituibilidade dos produtos ou serviços do lado da oferta e do lado da procura

(Artigo 82.° CE; Comunicação da Comissão 97/C 372/03)

4.      Concorrência – Posição dominante – Mercado em causa – Delimitação – Incidência da prática decisória anterior da Comissão – Inexistência

(Artigo 82.° CE)

5.      Concorrência – Posição dominante – Mercado em causa – Delimitação – Critérios – ausência total de concorrência por parte de outros serviços parcialmente permutáveis – Condição não necessária

(Artigo 82.° CE)

6.      Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão que declara a existência de uma infracção – Decisão que implica uma apreciação económica ou técnica complexa – Fiscalização jurisdicional – Limites

(Artigos 81.° CE e 82.° CE)

7.      Concorrência – Posição dominante – Abuso – Obrigações que incumbem à empresa dominante – Possibilidade de a empresa em posição dominante preservar os seus interesses comerciais, desde que não reforce a sua posição dominante nem abuse dela

(Artigo 82.° CE)

8.      Concorrência – Posição dominante – Abuso – Conceito – Inexistência de culpa – Incidência do objectivo dos comportamentos abusivos

(Artigo 82.° CE)

9.      Concorrência – Posição dominante – Abuso – Conceito – Comportamentos que têm quer por efeito quer por objecto obstar à manutenção ou ao desenvolvimento da concorrência

(Artigo 82.° CE)

10.    Concorrência – Posição dominante – Abuso – Recusa discriminatória de acesso aos serviços primários de compensação e de liquidação para os valores mobiliários emitidos em conformidade com o direito alemão

(Artigo 82.° CE)

11.    Concorrência – Posição dominante – Abuso – Aplicação de preços discriminatórios

(Artigo 82.° CE)

12.    Concorrência – Posição dominante – Abuso – Aplicação de condições desiguais a prestações equivalentes – Necessidade de prova de uma distorção efectiva da concorrência – Inexistência

(Artigos 3.°, n.° 1, alínea g), CE e 82.°, n.°  2, alínea c), CE)

13.    Concorrência – Regras comunitárias – Infracção cometida por uma filial – Imputação à sociedade‑mãe – Requisitos

14.    Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão – Identificação das infracções sancionadas

(Artigos 81.° CE e 82.° CE)

15.    Tramitação processual – Medidas de instrução – Audição de testemunhas – Poder de apreciação do Tribunal de Primeira Instância

(Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, art. 68, n.° 1)

1.      A definição do mercado relevante para efeitos do direito comunitário da concorrência, que envolve apreciações económicas complexas por parte da Comissão, só pode ser objecto de uma fiscalização limitada por parte do juiz comunitário. No entanto, este último não se deve abster de fiscalizar a interpretação que a Comissão faz dos dados de natureza económica. Nesta matéria, incumbe‑lhe verificar se a Comissão baseou a sua apreciação em elementos de prova exactos, fiáveis e coerentes, se estes elementos constituem a totalidade dos dados pertinentes que devem ser tomados em consideração para apreciar uma situação complexa e se são susceptíveis de fundamentar as conclusões que deles se retiram.

(cf. n.° 47)

2.      Para efeitos do exame da posição, eventualmente dominante, de uma empresa em determinado mercado sectorial, as possibilidades de concorrência devem ser apreciadas no âmbito do mercado de todos os produtos ou serviços que, em função das suas características, são particularmente adequados para satisfação das necessidades constantes e pouco substituíveis por outros produtos ou serviços.

Além disso, dado que a determinação do mercado relevante serve para avaliar se a empresa em questão tem a possibilidade de prejudicar uma concorrência efectiva e de ter um comportamento, em medida apreciável, independente dos seus concorrentes e dos seus clientes, não se pode, para este efeito, limitar o exame unicamente às características objectivas dos produtos ou serviços em causa, devendo as condições da concorrência e a estrutura da oferta e da procura no mercado ser também tomadas em consideração.

O conceito de mercado relevante implica que possa haver uma concorrência efectiva entre os produtos ou os serviços que dele fazem parte, o que pressupõe um grau suficiente de permutabilidade para a mesma utilização entre todos os produtos ou serviços que façam parte de um mesmo mercado.

(cf. n.os 48, 49)

3.      Como decorre da Comunicação da Comissão relativa à definição de mercado relevante para efeitos do direito comunitário da concorrência, «um mercado de produto relevante compreende todos os produtos e/ou serviços consideradas permutáveis ou substituíveis pelo consumidor devido às suas características, preços e utilização pretendida». A substituibilidade do lado da oferta pode igualmente ser tomada em consideração na definição dos mercados nos casos em que os seus efeitos são equivalentes aos da substituição do lado da procura em termos de eficácia e efeito imediato. Tal requer que os fornecedores possam transferir a sua produção para os produtos relevantes e comercializá‑los a curto prazo sem incorrerem em custos ou riscos suplementares significativos em resposta a pequenas alterações duradouras nos preços relativos.

A este respeito, a Comissão não comete um erro manifesto de apreciação ao considerar a existência de um mercado específico de serviços primários de compensação e de liquidação para os valores mobiliários emitidos segundo o direito alemão, distinto do mercado de serviços secundários, desde que, devido ao facto de a empresa deter neste mercado um monopólio de facto e constituir, portanto, um parceiro comercial incontornável em relação aos referidos serviços primários, não existe substituibilidade do lado da procura nem do lado da oferta dos referidos serviços.

Com efeito, um submercado que tem características específicas do ponto de vista da procura e da oferta e que oferece produtos ou serviços que ocupam uma posição indispensável e não permutável no mercado mais geral do qual faz parte deve ser considerado como um mercado de produtos ou serviços distinto. Neste contexto, basta que um mercado potencial, mesmo hipotético, possa ser identificado, o que acontece quando os produtos ou os serviços são indispensáveis para exercer uma dada actividade e existe para eles uma procura efectiva por parte das empresas que decidem exercer esta actividade. Por conseguinte, é determinante que possam ser identificados dois estádios de produção diferentes mas relacionados, na medida em que o produto a montante é um elemento indispensável ao fornecimento do produto a jusante.

(cf. n.os 50, 51, 57, 62, 64‑68, 73)

4.      No âmbito do poder decisório em matéria de concorrência, a Comissão deve proceder a uma análise individualizada das circunstâncias próprias de cada processo, sem estar vinculada por decisões anteriores. Daqui resulta que as partes destinatárias de uma decisão de aplicação do artigo 82.° CE da Comissão não podem pôr em causa as constatações desta última pelo facto de diferirem das feitas anteriormente noutro processo, mesmo supondo que os mercados em questão nos dois processos sejam similares ou mesmo idênticos.

(cf. n.° 55)

5.      Se a existência de uma relação de concorrência entre dois serviços não supõe uma permutabilidade perfeita entre eles para um determinado uso, a constatação de uma posição dominante no que respeita a um serviço não exige uma ausência total de concorrência de outros serviços parcialmente permutáveis, desde que esta concorrência não ponha em causa o poder da empresa de exercer uma influência considerável sobre as condições em que esta concorrência se desenvolve e, em todo o caso, de se comportar em grande medida sem ter necessidade de a levar em conta e sem que esta sua atitude a prejudique.

(cf. n.° 64)

6.      Embora o juiz comunitário exerça, de modo geral, uma fiscalização integral no que respeita à questão de saber se estão ou não reunidas as condições de aplicação das regras de concorrência, a fiscalização que exerce sobre as apreciações económicas complexas feitas pela Comissão deve, contudo, limitar‑se à verificação do respeito das regras processuais e de fundamentação, bem como da exactidão material dos factos, da inexistência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder.

Do mesmo modo, na medida em que uma decisão da Comissão resulte de apreciações técnicas complexas, estas são, em princípio, objecto de uma fiscalização judicial limitada, que implica que o juiz comunitário não possa substituir a apreciação dos elementos de facto feita pela Comissão.

No entanto, embora o juiz comunitário reconheça à Comissão uma margem de apreciação em matéria económica ou técnica, isto não implica que se deva abster de fiscalizar a interpretação que a Comissão faz de dados dessa natureza. Com efeito, o juiz comunitário deve, designadamente, verificar não só a exactidão material dos elementos de prova invocados, a sua fiabilidade e a sua coerência, mas também verificar se estes elementos constituem a totalidade dos dados pertinentes que devem ser tomados em consideração para apreciar uma situação complexa e se são susceptíveis de fundamentar as conclusões que deles se retiram.

(cf. n.os 93‑95)

7.      Se a verificação da existência de uma posição dominante não implica por si mesma qualquer censura em relação à empresa em causa, impõe‑lhe, porém, independentemente das causas dessa posição, a responsabilidade especial de não prejudicar, pelo seu comportamento, uma concorrência efectiva e não falseada no mercado comum. Do mesmo modo, se a existência de uma posição dominante não priva uma empresa nessa posição do direito de preservar os seus interesses comerciais próprios quando estes estiverem ameaçados, e se essa empresa tem a faculdade, em termos razoáveis, de praticar os actos que julgue adequados à protecção dos seus interesses, esses comportamentos já não são, porém, admissíveis quando têm como objectivo reforçar essa posição dominante e abusar dela.

Decorre também da natureza das obrigações impostas pelo artigo 82.° CE que, em determinadas circunstâncias, as empresas em posição dominante podem ser privadas do direito de adoptar comportamentos ou levar a cabo actos que não são em si mesmos abusivos e que seriam mesmo não condenáveis se fossem adoptados ou praticados por empresas não dominantes.

A este respeito, constitui um comportamento abusivo o facto de uma empresa em posição dominante no mercado de fornecimento de serviços primários de compensação e de liquidação para os valores mobiliários emitidos em conformidade com o direito alemão de protelar o acesso directo de outra empresa ao sistema informático necessário aos referidos serviços.

(cf. n.os 132, 133, 136)

8.      O conceito de exploração abusiva é um conceito objectivo que se refere a comportamentos de uma empresa em posição dominante, susceptíveis de influenciar a estrutura de um mercado em que, precisamente pela presença dessa empresa, o grau de concorrência já está enfraquecido, e que têm por efeito criar obstáculos, recorrendo a meios diferentes dos que regem uma concorrência normal entre produtos ou serviços com base nas prestações dos operadores económicos, à manutenção do grau de concorrência ainda existente no mercado ou ao desenvolvimento dessa concorrência. Assim sendo, o comportamento de uma empresa em posição dominante pode considerar‑se abusivo, na acepção do artigo 82.° CE, independentemente de qualquer culpa. Por conseguinte, o facto de uma empresa em posição dominante não ter prosseguido qualquer objectivo anticoncorrencial, é irrelevante para a qualificação jurídica dos factos. Neste contexto, a demonstração do objectivo das acções controvertidas da referida empresa em posição dominante pode reforçar a conclusão da existência de um abuso de posição dominante, mas não é uma condição de tal existência.

(cf. n.os 140‑142)

9.      Para demonstração de uma violação do artigo 82.° CE, basta demonstrar que o comportamento abusivo da empresa em posição dominante tende a restringir a concorrência ou, por outras palavras, que o comportamento é adequado ou susceptível de ter tal efeito.

(cf. n.° 144)

10.    Para concluir pela existência de um abuso na acepção do artigo 82.° CE no caso de uma recusa de serviço é necessário que este último seja susceptível de eliminar toda a concorrência no mercado por parte de quem procura o serviço e não possa ser objectivamente justificada, mas ainda que o serviço seja em si mesmo indispensável para o exercício da actividade de quem procura o serviço. Um produto ou serviço só pode considerar‑se essencial ou indispensável se não existir qualquer substituto real ou potencial. Além disso, o critério da eliminação de toda a concorrência não impõe que a Comissão demonstre a eliminação de toda a concorrência no mercado, mas somente um risco de eliminação de toda a concorrência efectiva neste.

A este respeito, constitui um abuso de posição dominante na acepção do artigo 82.° CE o facto de uma empresa em posição dominante no mercado de fornecimento de serviços primários de compensação e de liquidação para os valores mobiliários emitidos em conformidade com o direito alemão deter um monopólio de facto no referido mercado e constituir, portanto, um parceiro comercial incontornável em matéria de prestação dos referidos serviços, recusar de forma discriminatória a uma outra empresa o acesso aos referidos serviços, quando este é indispensável à prestação de serviços secundários transfronteiriços de compensação e de liquidação de títulos, prejudicando, assim, sem justificação objectiva, a inovação e a concorrência no domínio da prestação dos referidos serviços transfronteiriços e, em última instância, os consumidores no mercado único.

(cf. n.os 145‑150)

11.    Para uma empresa em posição dominante, a prática de preços discriminatórios é proibida pelo artigo 82.°, parágrafo segundo, alínea c), CE, uma empresa não pode, assim, praticar diferenças artificiais de preços susceptíveis de provocar uma desvantagem para os seus clientes e a falsear a concorrência.

(cf. n.os 169, 170)

12.    A proibição específica da discriminação prevista no artigo 82.°, segundo parágrafo, alínea c), CE faz parte do regime que garante, em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE, que a concorrência não seja falseada no mercado interno. O comportamento comercial da empresa em posição dominante não deve falsear a concorrência no mercado situado a montante ou a jusante, isto é a concorrência entre fornecedores ou entre clientes desta empresa. Os co‑contratantes da referida empresa não devem ser favorecidos ou desfavorecidos em matéria da concorrência entre eles. Por conseguinte, para que os requisitos de aplicação do artigo 82.°, segundo parágrafo, alínea c), CE sejam preenchidos, há que verificar que o comportamento da empresa em posição dominante num dado mercado não somente é discriminatório, mas também tende a falsear esta relação de concorrência, isto é a entravar a posição concorrencial de uma parte dos parceiros comerciais desta empresa em relação às outras.

A este respeito, nada obsta a que a discriminação de parceiros comerciais que se encontrem numa relação de concorrência possa ser considerada abusiva a partir do momento em que o comportamento da empresa em posição dominante, analisadas todas as circunstâncias do caso concreto, conduz a uma distorção da concorrência entre estes parceiros comerciais. Numa tal situação, não seria exigível que se apresentasse também a prova de uma deterioração efectiva quantificável da posição concorrencial dos parceiros comerciais considerados individualmente.

(cf. n.os 192, 193)


13.    O comportamento anticoncorrencial de uma empresa pode ser imputado a outra, quando aquela não determinou de forma autónoma o seu comportamento no mercado, mas aplicou no essencial as instruções que lhe foram dadas por esta última, tendo em conta, em particular, os laços económicos e jurídicos que as unem. Assim, o comportamento de uma filial pode ser imputado à sociedade‑mãe, quando a filial não determinar de forma autónoma a sua conduta no mercado, mas aplicar no essencial as instruções que lhe são dadas pela sociedade‑mãe.

No caso específico em que uma sociedade‑mãe detém 100% do capital da sua filial autora do comportamento ilícito, há uma presunção simples, segundo a qual a referida sociedade‑mãe exerce uma influência determinante no comportamento da sua filial e as duas constituem, portanto, uma única empresa na acepção do direito da concorrência. Compete, por conseguinte, à sociedade‑mãe, que contesta perante o juiz comunitário uma decisão da Comissão de lhe aplicar uma coima por um comportamento da sua filial, ilidir esta presunção mediante a apresentação de elementos de prova susceptíveis de demonstrar a autonomia desta última.

(cf. n.os 198, 199)

14.    É no dispositivo das decisões que a Comissão indica qual a natureza e a medida das infracções às regras de concorrência que sanciona ou declara. Em princípio, precisamente em matéria de alcance e natureza das infracções sancionadas, é o dispositivo e não a fundamentação que prevalece. Só em caso de falta de clareza dos termos utilizados no dispositivo é que este último deve ser interpretado recorrendo à fundamentação da decisão. A este respeito, não apresenta qualquer ambiguidade o dispositivo de uma decisão que precisa a natureza, a duração e os autores de comportamentos constitutivos de infracções às regras de concorrência e que ordene a estes últimos que se abstenham no futuro de reiterar estes comportamentos.

(cf. n.os 210‑212)

15.    O Tribunal de Primeira Instância é que julga da eventual necessidade de completar os elementos de informação de que dispõe sobre os processos que lhe são submetidos. Mesmo que um pedido de inquirição de testemunhas formulado na petição inicial refira com precisão os factos sobre os quais devem ser ouvidas a ou as testemunhas e as razões que justificam a respectiva inquirição, compete ao Tribunal de Primeira Instância apreciar a pertinência do pedido, tendo em conta o objecto do litígio e a necessidade de proceder à inquirição das testemunhas citadas. Assim, se o Tribunal de Primeira Instância considerar poder pronunciar‑se utilmente com base nos pedidos, fundamentos e argumentos desenvolvidos quer durante a fase escrita quer durante a fase oral, pode indeferir o pedido de inquirição de uma testemunha.

(cf. n.os 216‑218)